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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.4 no.1 Ribeirão Preto abr. 1996

 

PSICOLOGIA E SAÚDE

 

A observação das interações mãe-filho na consulta pediátrica: os desafios na construção de um instrumento(1)

 

 

Gimol Benzaquen Pedrosa2

Universidade Estadual Paulista

 

 

O objetivo deste artigo é apresentar os desafios encontrados quando da operacionalização, em categorias descritivas, das trocas interativas entre mãefilho durante a consulta pediátrica, tendo como pano de fundo as discussões recentes sobre os conceitos teóricos de interação e de doenças psicossomáticas na infância.

A produção de pesquisas em psicologia sobre interação social tem sido muito intensa nos últimos anos, no cenário brasileiro e internacional. Uma revisão de duas revistas brasileiras de ampla circulação entre os psicólogos -Psicologia: Teoria e Pesquisa e Temas em Psicologia -, nos anos de 1993 e 1994, mostra que 13 publicações têm o termo interação no título do trabalho e vários outros o abordam. Nas décadas de 70 e 80, já se encontravam várias publicações que discutiam a natureza e a função da interação, criando desafios para a pesquisa e a aplicação.

Em publicações nacionais, há artigos preocupados com a vinculação do conceito teórico e sua operacionalização, assim como os diferentes tipos de recorte para captar o fenômeno (Carvalho, 1988; Dessen, 1994; Duran, 1987; Marturano, 1987 e Perosa, 1993). Outros trabalhos discutem a interdependência do processo interativo com outras aquisições humanas como a subjetividade, a linguagem, o processo ensino-aprendizagem (Coelho, 1993; Arendt, 1993; Moro e Branco, 1993). E são vários os estudos que, ao lado das preocupações de ordem teórica e metodológica, apresentam produção de dados. (Gil, 1993; Linhares e Maturano, 1994; Dessen e Aranha, 1994). Em sua grande maioria, os pesquisadores foram estudar a interação nas escolas, na família, em creches e centros de recreação.

O fenômeno da interação também ocorre em situação de atendimento em consultório, e é neste contexto que nos propomos a discuti-lo.

No âmbito da Psicologia da Saúde, no trabalho conjunto com pediatras, seja este clínico, de pesquisa ou de formação de novos pediatras, informações a respeito do processo interativo (teóricas e práticas) têm sido bastante solicitadas.

Os médicos têm apresentado a necessidade de instrumentos de observação e avaliação da relação mãe-filho para poderem adequar as orientações pediátricas a cada caso (sejam elas alimentar, referentes ao sono, higiene ou mesmo medicamentosa), de acordo com as características e o tipo de interação da díade. Nas consultas de puericultura, os médicos percebem que uma orientação geral como, por exemplo, dizer a uma mãe que ignore a birra, dificilmente será seguida numa díade cuja mãe não tem a menor tolerância ao choro do filho e este saiba aproveitar-se disso.

Mas, é no caso das doenças psicossomáticas infantis, especialmente de bebês e crianças de até 3 anos de idade que mais se tem discutido o papel da interação das díades, já que algumas teorias, como se verá a seguir, consideram estas relações variáveis importantes no aparecimento das doenças.

 

O CONCEITO DE INTERAÇÃO NAS TEORIAS PSICOSSOMÁTICAS

O qualificativo psicossomático tem sido utilizado para englobar os distúrbios mais diversos, desde que no seio de uma doença se possa descobrir um fator psicológico causal ou reacional. Se a maioria das teorias psicossomáticas postulam uma relação entre eventos de vida (stress, choques...) e a possibilidade de adoecer; teorias mais específicas declaram que certas doenças somáticas estão relacionadas a conflitos, estilos de personalidade, atitudes e padrões de comportamento (Ongaro, 1994).

Mas, o termo psicossomático também pode aparecer associado às conseqüências somáticas de certos distúrbios de comportamento como o alcoolismo, tabagismo e inclusive à propensão a acidentes e traumatismos físicos, próprios de certos estilos de vida (Jeammet, Reynaud e Consoli, 1982).

A fim de delimitar o termo, neste trabalho, entende-se por doença psicossomática:

"Todo distúrbio somático que comporte, em seu determinismo, um fator psicológico interveniente, não de modo contingente, como pode ocorrer em qualquer afecção, mas por uma contribuição essencial à gênese da doença' (Jeammet, Reynaud e Consoli, 1982, p.205).

Essas manifestações somáticas podem ser puramente funcionais, como os distúrbios alimentares (vômitos, diarréias, cólicas) ou manifestações psicossomáticas propriamente ditas, como a asma, eczemas, gastrites, nanismo psicogênico etc.

Essa definição de doença psicossomática pressupõe uma concepção de doença que comporta a determinação de fatores psicossociais na gênese dos distúrbios somáticos. Na medicina, desde a Antigüidade egípcia e grega, convivem duas posições ideológicas diversas para explicar a etiologia das doenças. A primeira confere à doença uma existência autônoma, independente do organismo que a suporta, e seria causada pelo ataque de algum agente exterior. A outra considera a doença como uma reação do organismo e do indivíduo em sua totalidade a uma perturbação do equilíbrio, e seria causada por uma pluralidade de fatores interagindo entre si (genéticos, ambientais, psicológicos). Jeammet, Reynaud e Consoli (1982) esclarecem que sua concepção de doença não é de uma causalidade linear (micróbio externo → lesão), mas filiam-se a uma concepção multifatorial da doença.

Segundo Mazet (1988), nos últimos 20 anos a psicossomática tem sido uma área de interesse comum a pediatras e psicólogos. Por um lado, os pediatras tornaram-se mais sensíveis ao bem-estar psicológico do bebê e à qualidade das trocas interativas; por outro lado, os psicólogos interessaram-se em observar diretamente as primeiras manifestações do "sofrimento psíquico" do lactente.

Os primeiros trabalhos de pediatras, especialmente os dos franceses, centralizaram-se nas anorexias e nos distúrbios do sono, em razão da evidência de fatores psicológicos em sua etiologia. Os psicólogos, geralmente de formação psicanalítica, iniciaram seus estudos com pacientes psicossomáticos adultos, tentando entender sua doença a partir da reconstrução de seu passado e de seu processo de cura, mas logo perceberam que era necessário observar diretamente a instalação das doenças nos primeiros anos de vida, em seu status nascendi. O iniciador da observação direta da patologia psicossomática foi René Spitz.

Spitz (1987), num trabalho clássico publicado em 1954, utilizou-se, de modo sistemático, da observação direta do lactente e de filmes, para estudar o desenvolvimento psíquico precoce e sua relação com as doenças. Apesar de postular que os problemas psicossomáticos decorriam de interações mal sucedidas entre mãe e filho, focalizou seus estudos apenas nos comportamentos da mãe, suas atitudes para com a criança (rejeitante, ansiosa, agressiva, superprotetora) e observou, como conseqüência, a instalação de doenças psicossomáticas na criança.

Segundo Kreisler (1987), foram necessárias várias pesquisas e descobertas sobre a competência do bebê para que trabalhos mais recentes se interessassem pela interação propriamente dita (normal ou patológica) e sua relação com as doenças psicossomáticas. Estes trabalhos, além de apresentarem um interesse por pesquisa, eram, muitas vezes, trabalhos clínicos de avaliação e mesmo intervenção, com o objetivo de influir na interação precoce para garantir a saúde mental futura da criança. Como exemplo, Fraiberg (1982) observou que crianças com até 36 meses de vida, filhos de mães depressivas ou psicóticas, expostas a comportamentos imprevisíveis e a situações de desamparo, iniciaram, ao lado de problemas alimentares e gritos, uma esquiva ao contato materno (inclusive o visual) totalmente inesperada para os padrões de desenvolvimento nesta faixa etária. Um programa terapêutico de intervenção na díade, ou de afastamento da mãe com substituição do agente cuidador, reverteu vários dos quadros apontados como patológicos.

Portanto, tanto pela incidência de casos quanto pela importância da intervenção precoce em momentos mais plásticos da vida, os vários profissionais que atendem crianças pequenas interessam-se pelas primeiras interações.

Dos estudiosos da área, Kreisler (1987), da Escola Psicossomática de Paris, foi um dos primeiros a tentar descrever o que seriam interações saudáveis e patológicas.

Segundo ele, há três qualidades essenciais para que se possa falar em um funcionamento interativo com boa resistência psicossomática: plenitude afetiva, flexibilidade e estabilidade. Em suas palavras:

"A plenitude afetiva enriquece a relação por tudo que a mãe traz de riqueza afetiva nas manipulações, no contexto, no olhar, no acompanhamento vocal A flexibilidade designa a adequação das respostas da mãe às necessidades físicas e instintivas, ajustando-se às variações individuais. A estabilidade é a continuidade da relação com uma pessoa, mas também a coerência temporal e espacial dos ritmos de vida e a regularidade dos comportamentos por parte das pessoas que cercam a criança" (Kreisler, 1987, p.289).

Em contraposição, as interações que facilitam a instalação de doenças psicossomáticas são a insuficiência e sobrecarga de estimulação e a incoerência. Podem ocorrer interações nas quais mais de uma característica esteja presente, mas parece que a característica predominante acaba determinando o tipo de patologia que se instala. As perturbações da interação podem estar mais ligadas a fatores próprios da criança (grande prematuridade, por exemplo), aos pais ou a uma combinação dos tipos de fatores.

A partir da definição de Kreisler (1987), Mazet e Stoleru (1990), preocupados em observar a interação na clínica, propõem que as interações patológicas possam ser categorizadas quanto a:

a) quantidade de estimulação oferecida (carência ou excesso);

b) perturbações na reciprocidade ou

c) fixações e regressões a padrões interativos incompatíveis para tal faixa etária.

Os autores esclarecem que se trata de conceitos relacionais, pois, uma mesma quantidade de estimulação pode ser excessiva para um bebê, cujo nível de tolerância à estimulação é mais baixo, ou constituir-se numa hipoestimulação, para um bebê mais apático. Assim, não é possível observar apenas a mãe, mas é também observando as respostas do bebê e suas transações que um excesso (ou falta) de estimulação poderá ser identificado.

Para que a estimulação possa ser adequada, é preciso que haja regulação, isto é, decodificação dos sinais emitidos pelo outro e mudança de comportamento. A mãe, por exemplo, precisa identificar que o fechamento dos olhos, o desvio do olhar, o enrijecimento e a expressão de tensão (ou de alívio) tem um valor de comunicação que demanda mudanças em seu comportamento. Finalmente, alguns padrões interativos aparentemente harmoniosos podem não ser adequados na cultura, para aquela faixa etária (Mazet e Stoleru, 1990).

Frente a esses conceitos teóricos, considerou-se necessário criar um instrumento que permitisse o estudo das interações e auxiliasse no trabalho clínico, na situação de consulta ambulatorial. Iniciou-se com a operacionalização do conceito de interação.

 

TENTATIVA DE OPERACIONALIZAÇÃO DO CONCEITO DE INTERAÇÃO

Segundo Marturano (1987), para captar os princípios que regulam uma determinada interação, no caso mãe-fílho, o primeiro desafio consiste em organizar os elementos observáveis que compõem a situação. Parte-se de uma representação conceituai do funcionamento da díade na situação em estudo (mesmo que imprecisa), e ela é comparada e diferenciada de outras situações sociais onde ocorre o fenômeno.

A situação de consultório, numa consulta médica pediátrica, comporta a observação dessa interação, especialmente se a criança for pequena. É uma situação peculiar, pois a criança vem acompanhada por um elemento familiar (a mãe) e se depara com um estranho(3) (o médico), que conduzirá as atividades. Têm-se, então, três elementos presentes.

Do ponto de vista sistêmico, dever-se-a considerar que se está frente a vários subsistemas (criança-mãe; criança-médico; médico-mãe) e que, portanto, ocorrerão relações em subsistemas triádicos (Dessen, 1994). Residiam aqui dois grandes problemas em lidar com sistemas triádicos: 1) a complexidade da análise de dados e, 2) a elaboração do sistema de categorias. Segundo a própria Dessen (1994), os pesquisadores dos grupos triádicos e poliádicos têm observado que, no momento atual, parece mais propício um longo período de préobservações e registros não sistemáticos, antes da tentativa de categorizar e quantificar.

A premência de ter algumas categorias operacionalizadas, por não se tratar apenas de um problema de pesquisa, e a importância de dois elementos - mãe e filho - em relação ao terceiro - o médico -, no problema em questão, levou à opção de colocar o foco de atenção na díade mãe-fílho e incluir, sempre que necessário, a terceira pessoa na descrição dos comportamentos, acreditando que o médico certamente é um dos elementos reguladores da interação.

A consulta pediátrica tem uma estrutura com momentos bem marcados. Em um período de tempo de 20 a 30 minutos ocorre o exame clínico, o exame físico e a orientação. As metas e as funções dos participantes são diversas nestes três momentos; no exame clínico a relação está mais centrada na díade mãemédico e o objetivo é obter (e fornecer) o maior número de informações, especialmente verbais, sobre a criança; no segundo momento a relação em foco é a criança-médico e a meta é obter (e fornecer) as informações corporais necessárias para o diagnóstico, com o menor sofrimento possível, por meio de exame físico; já no terceiro momento volta-se a priorizar a díade mãe-médico e o interesse está em orientar (e compreender) procedimentos a serem desenvolvidos posteriormente, sem a presença do médico. Há, ainda um momento em que a díade mãe-criança atua de forma mais independente: na hora de despir a criança para prepará-la para o exame e na hora de vestí-la.

As características apontadas acima criavam algumas situações peculiares de pesquisa. Primeiro, permitiam traçar diferentes perfis interativos das díades usuárias do serviço. Segundo, possibilitavam que se testasse a regularidade das trocas interativas, comparando as características interacionais em três momentos diferentes da consulta, inclusive, em um deles, usualmente, bastante carregado de tensão, que é o exame físico. As estruturas semelhantes ainda permitiam comparar os dados da primeira consulta médica com a evolução das interações em outras consultas subseqüentes.

Para Marturano (1987), o segundo desafio que se apresenta ao pesquisador consiste em operacionalizar os conceitos e as relações representadas no modelo. Para isto, é preciso construir categorias, explicitar os critérios utilizados e determinar o tipo de recorte para representar o fluxo interativo. Em um primeiro momento, pensou-se em recorrer a escalas de avaliação já existentes.

Mazet (1993), preocupado em avaliar interações no consultório, assinala que o momento é de avaliações mais sistemáticas, que permitam dados comparáveis. Para tanto, sugere a utilização de escalas de avaliação das interações precoces. No entanto, ele faz algumas ressalvas quanto à sua amplitude, já que na maioria das vezes as escalas foram elaboradas por clínicos que se aventuravam nessa área de pesquisa com objetivos específicos, o que restringe sua utilidade para situações novas. Cita, entre outras, a Escala de Brazelton (Neonatal Behavioral Assessment Scale) muito utilizada, mas restrita a bebês no primeiro mês de vida, ou a GLOS (Greenspan Liberman Observation Scale), elaborada pelos dois pesquisadores que dão nome à escala, numa unidade de prevenção de famílias de alto risco, para analisar as relações contingentes entre o comportamento da mãe e do filho em situação de jogos livres. Mazet (1993), detém-se na Escala RAF (Recherche Action-formation) de Bobigny, elaborada por uma equipe multiprofissional (pediatras, psicólogos, psiquiatras, fonoaudiólogos) preocupada com ações preventivas em díades mãe-filho de risco psicossocial. Essa escala foi concebida para ser usada em consultas pediátricas de 20 minutos, adaptada às diferentes idades dos pacientes, e serviu de modelo para o instrumento criado neste trabalho. Não foi utilizada na íntegra, pois vários comportamentos primordiais dependiam do cunho qualitativo do observador (exemplo: reciprocidade freqüente, rara, ausente) e não se tinha pistas de como haviam sido definidos pela equipe.

A inexistência de uma escala apropriada levou a consultas em trabalhos de pesquisa sobre interação, que se utilizaram de categorias observacionais para operacionalizar as relações mãe-filho. Utilizaram-se os estudos sobre a dupla mãe-filho no banho (Solilto, 1972); sobre as interações verbais da mãe, professora e criança com atraso do desenvolvimento (Ramos, 1979 e Sígolo, 1994); sobre as interações adulto-criança e criança-criança em creche (Cerqueira, 1986 e Perosa, 1990), e sobre as interações mãe-criança prematura (Eizerik, 1986).

 

CONSTRUÇÃO DO INSTRUMENTO

Em um primeiro momento, foram realizadas várias observações cursivas de consultas pediátricas, a partir do momento em que a díade entrava no consultório até sua saída. Dois observadores (alunos do 4º ano médico) registravam as seqüências interativas das díades. Uma seqüência iniciava-se quando um dos elementos emitia um comportamento socialmente dirigido(4) ao parceiro e este emitia uma resposta contígua (num intervalo aproximado de dez segundos). A seqüência mínima era de dois elos (emissão de um → resposta do outro), mas os parceiros podssssiam alternar seus comportamentos em seqüências maiores.

Quando não havia uma emissão contígua do parceiro, ou este iniciava outra atividade, encerrava-se a seqüência. Vários comportamentos iniciais não resultaram em seqüências interativas.

Como se pretendia facilitar o registro das observações, para que o próprio pediatra-conssssssultante pudesse registrar as seqüências interativas, elaboraramse listas de checagem a partir das observações cursivas e arrolaram-se os comportamentos iniciais mais freqüentes de cada elemento da díade, em cada um dos momentos da consulta (exame clínico, exame físico, orientação - Vide Quadro I).

 

 

Cada comportamento inicial era seguido de alternativas de resposta do parceiro. Por exemplo: Momento: exame físico.

Ao choro da criança a mãe:

a) olha

b) se aproxima

c) mantém contatos corporais (dá mão, acaricia, abraça...)

d) tenta convencer verbalmente

e) ameaça verbalmente

f) intercede junto ao médico para acabar com o procedimento

g) usa contenção física para que o exame continue

h) não olha

i) outros

Podiam ocorrer mais de um comportamento concomitante (olhar, aproximar-se) ou alguns comportamentos em seqüência. O observador sinalizava qual deles havia ocorrido e, se era uma seqüência, os enumerava. Como um comportamento, por exemplo: choro, podia iniciar uma seqüência várias vezes durante o exame, havia um espaço dividido nas margens para registrar várias emissões de seqüências iniciadas por aquele comportamento.

Havia, ainda, a observação de três tipos de seqüências que pareciam ocorrer, independentemente do momento da consulta: imitar (emitir o mesmo comportamento do modelo); ajudar (fazer ou colocar à disposição do outro alguma coisa ou ação que ele precisasse para completar a atividade), e brincar (emitir simultaneamente ou sucessivamente ações acompanhadas de risos, olhares e toques).

As listas de comportamentos foram testadas pelos estudantes do quarto ano médico e, com base em suas observações e registros, elaboraram-se as categorias de análise.

Os comportamentos observados e registrados deveriam prestar-se à comparação entre as diversas díades ou os diferentes momentos da consulta e, para tanto, foram agrupados segundo os critérios apontados por Kreisler (1987), Mazet e Stoleru (1990): a quantidade de estimulação, o prazer no contato, a reciprocidade, a flexibilidade e a adequação do padrão à etapa do desenvolvimento.

A quantidade de estimulação oferecida era obtida pelo número de iniciações de cada um dos participantes, assim como pela qualidade da iniciação (coercitiva e não coercitiva). A não coercitiva ocorria quando a mãe incentivava, sugeria, convidava ou ajudava fisicamente a criança a realizar a atividade (entrar na sala, despir-se, abrir a boca) ou quando a criança pedia, apontava, solicitava com o olhar. A iniciação coercitiva ocorria quando a mãe impedia a realização, forçava fisicamente, ameaçava verbalmente, ou quando a criança chorava, puxava, criava situações perigosas para obter atenção.

O prazer no contato era avaliado pela proporção de trocas em que houvesse sorrisos, beijos, carícias, elogios, verbalizações afetuosas, em oposição a restrições físicas, choro, agressões (verbais e físicas), verbalizações depreciativas, chantagens.

A reciprocidade, por sua vez, podia ser medida pela proporção de iniciações conseqüenciadas pelo parceiro em relação ao total de iniciações, levandose em conta a imediaticidade destas últimas (prontamente ou com demora).

Aqui também computou-se a proporção de situações em que houvesse seqüências de comportamentos com um objetivo comum, em oposição aos conflitos e atividades paralelas. Por objetivo comum consideraram-se as seqüências de comportamentos nas quais ambos os parceiros estavam engajados na mesma atividade, como as imitações, as ajudas, as brincadeiras e as ordens e imperativos verbais aceitos pelo parceiro.

Para Kreisler (1987), além da reciprocidade era preciso que as interações tivessem flexibilidade; o parceiro não apenas respondia, mas adequava sua resposta, e, dependendo do comportamento do outro, modificava o objetivo ou a forma de contato. Havia mães que, frente a resistência do filho para entrar na sala ou submeter-se ao exame físico, empurravam a criança, forçavam-na a permanecer na maca, apesar destas tentativas, muitas vezes, parecerem resultar em insucessos.

A flexibilidade era avaliada pela proporção de interações em que o parceiro mudava o curso da resposta a partir da ação do outro elemento, ao invés de perseverar. (Exemplo: mãe senta criança no colo - criança chora - mãe coloca no chão). Para captar a flexibilidade era necessário observar seqüências de mais de dois elos.

Finalmente, avaliava-se se a interação observada era adequada ou não, para a faixa etária observada. Para isto, tomaram-se como referência as escalas de desenvolvimento disponíveis (Brunet e Lézine, 1981; Frankenburg, Fandal, Kasur, Cohrs, 1975), especialmente no que toca ao sistema social-pessoal ou dependencia-independencia.

Um mesmo comportamento recebia várias leituras, dependendo do critério de categorização priorizada.

O instrumento ainda está sendo testado empiricamente e reavaliado, no entanto, já se pode perceber alguns de seus limites e vantagens e, principalmente, pode-se retomar a questão a respeito da validade da observação de interações em consultório.

Discutindo o instrumento

A primeira pergunta é: as observações refletem mesmo a interação interpessoal? A operacionalização feita retrata o conceito de interação, conforme ele é concebido teoricamente?

Segundo Carvalho (1988), enquanto categoria descritiva, qualquer critério de definição é arbitrário e igualmente aceitável, desde que bem explicitado, mas isto não implica que qualquer definição refira-se à interação enquanto categoria teórica. No caso deste estudo, além de toda a produção sobre o conceito na área da psicologia e as dificuldades quanto à sua definição (Perosa, 1993), havia uma conceituação teórica da área da Psicossomática Infantil.

Tanto a produção exclusivamente psicológica quanto a psicossomática parecem destacar o critério da reciprocidade e flexibilidade. Os dados coletados mostram que houve problemas quanto à avaliação da flexibilidade. A flexibilidade impõe um recorte da observação em episódios, para que se possa captar o controle entre parceiros. A dificuldade de realizar uma observação cursiva limitou o fluxo interativo disponível para a análise. Foi preciso ater-se a seqüências de dois ou de no máximo três elos. Além desta limitação, ficar restrito a listas de comportamentos, se por um lado permitiu o registro por um grande número de clínicos que atendem consultas, por outro, levou à perda de uma série de comportamentos e situações não esperadas, que porventura ocorreram na consulta.

Com relação à reciprocidade, os dados empíricos mostraram que foi possível caracterizar sua ocorrência e, o estilo de cada díade. Certamente, observações mais detalhadas (gestuais, mímicas, de proximidade) ocorrerão quanto mais se burilar o instrumento e os observadores, mas os resultados até agora obtidos permitem acreditar que se captou muitos comportamentos socialmente dirigidos e conseqüenciados por um parceiro.

A segunda pergunta é quanto à validade. Será esse segmento interativo, observado em consultório,é representativo do tipo de interações que esta díade mantém no cotidiano?

Marturano (1977) já havia demonstrado que a interação mãe-filho em situação alimentar variava, quando a díade era observada em casa ou no laboratório, principalmente se as atividades nas duas situações diferissem muito. Ramos (1979) e Sígolo (1994) também demonstraram que os comportamentos das díades observadas eram bastante influenciadas pelo contexto no qual ocorriam as interações, na escola ou em casa, na situação alimentar, banho ou brinquedo.

Entretanto, esses mesmos pesquisadores perceberam que haviam peculiaridades nas díades que se mantinham mesmo em diferentes situações. Sígolo (1994), por exemplo, notou tipos e funções diversas de diretividade nas díades por ela estudadas: uma que favorecia a independência, outra que fortalecia o comportamento dependente da criança e outra que compensava um repertório limitado. Eram estilos que se mantinham em todas as situações.

Essas particularidades na organização e funcionamento das díades parecem ocorrer muito precocemente. Ross (1982), avaliando crianças de 2 anos em situações de jogos e conflitos, observou que as repetidas experiências davam à díade um perfil próprio, e Perosa (1992), observando crianças por volta de 1 ano, confirmou as características pessoais das díades de crianças, quanto à forma de funcionamento, organização e distribuição de papéis.

Branco (1993) afirma que a visão sistêmica do desenvolvimento humano parte do pressuposto da existência de regularidade e de uma organização própria nos processos interativos. É a crença nesta regularidade, referendada pelos dados de pesquisa citados acima, que permitem supor que o recorte colhido no consultório possa ser representativo da forma usual de funcionamento desta díade. Mais dados empíricos, no entanto, são necessários para avaliar, por exemplo, o potencial regulador do médico na situação em questão.

Finalizando, a utilização de categorias elaboradas a partir de registros observacionais, mesmo que ainda em fase incipiente da pesquisa, parece estar conferindo objetividade à interpretação das interações mãe-filho pelos diferentes profissionais (pediatras, psicólogos, psiquiatras) que têm discutido, nesse serviço, as doenças psicossomáticas infantis.

 

Referências Bibliográficas

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(1) Parte deste trabalho foi apresentado na XXV Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia com o título A Observação das Interações de Crianças Pequenas em Situação de Avaliação Ambulatória!. versão atual deve muito à leitura cuidadosa e a sugestões da Profª Drª Célia Maria Lara da Costa Zanon, a quem agradecemos
(2) Departamento de Neurologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina - Campus de Rubião Júnior - Botucatu
(3) O termo "estranho" foi utilizado para diferenciar o médico dos familiares. Neste estudo, o termo ganhaforça porque, em se tratando de hospital-escola, em geral, há um rodízio de médicos que fazem o atendimento, mesmo dos casos crônicos.
(4) "Um comportamento socialmente dirigido é identificado pelo olhar que um parceiro dirige, concomitantemente a uma ação ao outro componente da diade" (mueller e Brenner, 1977).