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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.4 no.1 Ribeirão Preto abr. 1996

 

PSICOLOGIA E SAÚDE

 

Saúde e adoecimento existencial: o paradoxo do equilíbrio psicológico

 

 

Yolanda Cintrão Forghieri

Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e Personalidade. Rua Ametista, 38 - Cep. 04109-010 - São Paulo - SP

 

 

O desenvolvimento saudável da personalidade e as condições que podem favorecê-lo ou dificultá-lo têm sido o foco de meu interesse, durante os numerosos anos de minhas atividades como aconselhadora psicológica, psicoterapeuta e professora.

O convívio com grande quantidade de alunos e clientes tem levado-me a observar a importância das vivências de bem-estar, segurança e tranqüilidade para a atualização das potencialidades do ser humano e a sua evolução no sentido do amadurecimento e da saúde existencial. A abordagem humanística da psicologia forneceu-me significativos subsídios para esclarecer e fundamentar estes fatos (Rogers e Kinget, 1971; Maslow, 1968).

Por outro lado, tenho tido também a oportunidade de observar o grande sofrimento de indivíduos que experienciam a contrariedade e a angústia e o quanto esse tipo de vivência pode dificultar, e até impedir, o seu desenvolvimento saudável. Muitas são as pessoas que adoecem existencialmente, quando vivenciam de modo intenso tal experiência; algumas conseguem recuperar-se e outras permanecem doentes o resto de suas vidas.

Na longa jornada de meio século de estudos, pesquisas, reflexões e vivências profissionais e cotidianas, muitas têm sido as indagações que me têm surgido sobre o tema de meu interesse; entre elas destacam-se as seguintes:

• quais as peculiaridades da vivência de bem-estar e tranqüilidade?

• quais as peculiaridades da vivência de contrariedade e angústia?

• existe alguma relação entre ambas?

• qual a contribuição de cada uma delas para o desenvolvimento da saúde existencial?

• no que consiste esse desenvolvimento?

E, nessa longa jornada, tenho também procurado obter esclarecimentos sobre estas minhas indagações.

Este artigo tem por objetivo apresentar uma versão resumida dos estudos e das pesquisas que tenho feito sobre o assunto e dos esclarecimentos que eles me proporcionaram até o presente momento.

Entre as abordagens psicológicas sobre a personalidade que tenho estudado, dou prioridade à que se fundamenta na fenomenologia, por considerá-la a que mais subsídios oferece para a compreensão do existir humano. Embora a fenomenologia encontre-se no campo da filosofia, seus principais fundamentos têm sido utilizados por renomados psiquiatras e psicólogos para investigar e descrever o psiquismo humano. Entre esses profissionais, destacam-se Binswanger, o iniciador da análise existencial, e Boss, que a desenvolveu e a ampliou. É nesses autores que baseio o referencial teórico de meu trabalho.

"A análise existencial de que falamos não deve ser confundida com a analítica da existência de Heidegger. A primeira é uma exégesis hermenêutica ao nível ônticoantropológico, uma análise da existência humana concreta. A segunda é uma hermenêutica fenomenológica do ser entendido como existência e se move em um plano ontológico. Compreende-se a semelhança de expressões, dado que a análise existencial baseia-se na estrutura da existência como "ser-no-mundo", elaborada pela primeira vez na analítica existencial". (Binswanger, 1967b, p.325)

 

ENFOQUE FENOMENOLÓGICO DA PERSONALIDADE

"O termo personalidade é aqui tomado como o conjunto de características do existir humano, consideradas e descritas de acordo com o modo como são percebidas e compreendidas, pela pessoa, no decorrer da vivência cotidiana imediata e tendo como fundamento os seus aspectos fenomenológicos primordiais. Tais características constituem uma totalidade; a sua organização em itens separados tem, apenas, o intuito de descrevê-las de modo minucioso, para facilitar a sua compreensão". (Forghieri, 1993a, p.26)

O ser humano

A estrutura originária da existência humana é ser-no-mundo; o ser humano existe sempre em relação a algo ou a alguém.

"O primordial ser-no-mundo do homem não é uma abstração e sim uma ocorrência concreta; acontece e realiza-se, apenas, nas múltiplas formas peculiares do seu comportamento e nas diferentes maneiras dele relacionarse às coisas e às pessoas". (Boss, 1963, p.34)

Entretanto, "mundo" não é aqui considerado, simplesmente, como o ambiente, as coisas, os animais e as pessoas que se encontram, objetivamente, diante do ser humano.

"Mundo significa não apenas "o quê", mas ao mesmo tempo, o "como" e o "quem" de seu existir, as formas do como e do quem - do ser-em e do ser-si-mesmo que surgem clara e imediatamente, da caracterização do mundo do momento. Note-se, também, que "o mundo" designa ao mesmo tempo o Umwelt, o Mitwelt e o Eigenwelt". (Binswanger, 1967, p.325)

Assim sendo, o "mundo" abrange tanto os aspectos materiais e biológicos (Umwelt) quanto os aspectos humanos (Mitwelt) da existência, e também aqueles que dizem respeito ao ser-si-mesmo como ser-no-mundo (Eigenwelt).

E, ao existir no mundo, relacionando-se com entes materiais, com animais e com seus semelhantes, o ser humano não apenas observa os acontecimentos mas os compreende, atribuindo-lhes significados.

"Poderíamos dizer que vemos o significado que as coisas têm para nós. Se não vemos o significado, não vemos coisa alguma". (Berg, van den, 1973, p.39)

"O que percebemos, inicialmente, não são impressões de sabor, som, cheiro ou tato, e sim significados". (Binswanger, 1963, p.114)

É assim que o ser humano vai, gradativamente, descobrindo, constituindo e conhecendo o mundo e a si mesmo, de modo intimamente relacionado; ele compreende a si mesmo a partir de sua existência.

E a compreensão e o conhecimento de si requerem, necessariamente, a relação com seus semelhantes, pois é esta que lhe possibilita descobrir e atualizar as suas características peculiarmente humanas, tais como o amor, a liberdade, a responsabilidade, o contentamento e a angústia. Só posso saber quem sou como ser humano convivendo com meus semelhantes.

Maneiras do existir: preocupada, sintonizada e racional

A angústia e o amor são estruturas básicas da existência que, na vivência cotidiana imediata, manifestam-se, respectivamente, em duas maneiras paradoxais de existir: a preocupada e a sintonizada.

A vivência cotidiana imediata sempre acontece envolvida em algum sentimento de sintonia e bem-estar ou de preocupação e desagrado, que varia desde níveis muito tênues, os quais quase não chegamos a perceber, até níveis tão intensos que nos arrebatam completamente.

A maneira preocupada consiste numa vivência global de insatisfação, a qual varia desde uma vaga intranqüilidade por termos de cuidar de algo até uma profunda sensação de angústia, que chega a nos envolver por completo. Ela ocorre tanto em situações concretamente presentes em nossa vida quanto naquelas em que apenas nos lembramos de coisas já acontecidas ou que temos receio de que venham a acontecer, podendo surgir, também, sem que percebamos as razões de seu aparecimento.

A maneira preocupada de existir encontra-se presente em nossa vida cotidiana, mais freqüentemente de forma branda e imprecisa, intensificando-se em algumas ocasiões, como, por exemplo, quando sofremos grandes contrariedades, enfrentamos momentos de perigo ou precisamos assumir decisões importantes. Entretanto, é na angústia que se encontram enraizadas todas as manifestações do modo preocupado de existir.

Quando estamos angustiados, ficamos muito aflitos, sentindo-nos impotentes para livrarmo-nos da aflição, pois a angústia não tem um objeto definido em relação ao qual possamos nos envolver e agir para superá-lo. A angústia é a negação de todo objeto ou, em outras palavras, seu único objeto é a própria ameaça, cuja fonte é o "nada" ou a morte. Por isso, "tentamos transformar a angústia em medo e ir corajosamente de encontro aos objetos nos quais a ameaça se corporifica". (Tillich, 1972, p.35).

Angústia, medo e coragem encontram-se intimamente relacionados. Ter coragem é conseguir existir e auto-realizar-se, apesar da angústia que ameaça o próprio viver; é ter forças para assumi-la na vida cotidiana e para transformá-la em medos concretos, que podem ser analisados e enfrentados com os recursos dos quais o indivíduo dispõe. Porém, mesmo que ele consiga ser bem sucedido nesse empreendimento e passe a vivenciar momentos tranqüilos, sempre estará sujeito ao reaparecimento da angústia, pois esta é básica na existência humana.

Entretanto, como já referi anteriormente, o amor também é básico na existência, na vivência cotidiana imediata, e manifesta-se na maneira sintonizada de existir.

"Ao ser-no-mundo como cuidado (angústia), acrescentei o "ser-além-do-mundo " como o ser da existência por amor a "nós ", que eu tenho designado com o nome de amor. (...) O amor é o único que pode oferecer pátria e eternidade à existência". (1967a, p. 239; 1967b, p. 329)

A maneira sintonizada de existir consiste numa vivência de bem-estar e agradável envolvimento em algo ou com alguém.

A manifestação mais profunda da maneira sintonizada de vivenciar as situações consiste numa vivência de completa harmonia e plenitude em nosso existir no mundo; Buber (1977) a denomina de relação Eu-Tu. Esta pode surgir em nosso contato com a natureza, no encontro com nossos semelhantes, assim como no nosso envolvimento agradável ao ouvir uma melodia, ler um livro, apreciar uma obra de arte ou ao conseguir completar um empreendimento importante, vencer uma situação perigosa etc.

Quando me abandono à minha vivência e me sinto em profunda sintonia ao contemplar, por exemplo, o alvorecer do dia no bosque ou as ondas revoltas do mar, vivencio profunda tranqüilidade e indescritível bem-estar. É como se a própria natureza estivesse partilhando de meu existir e eu também vibrasse com ela, sentindo-me integrada ao mundo, dele fazendo parte harmoniosamente.

E vibramos, ainda, de forma mais intensa, quando nos sentimos em completa harmonia com alguém, na troca de olhares receptivos, no toque carinhoso de nossas mãos, nas frases que se completam com o silêncio de uma compreensão recíproca.

Ao encontrar-se completamente envolvido e sintonizado nas situações que vivência, o ser humano adquire o poder de libertar-se do emaranhado das diversidades, integrando-as numa totalidade harmoniosa. Homens e mulheres, bons e maus, sábios e ignorantes, jovens e velhos, belos e feios tornam-se livres de seus atributos individuais e vivenciam a sua totalidade como seres humanos. Não importa o seu sexo, a sua nacionalidade, a sua cultura, pois deixam de ser uma coisa entre as coisas para tornarem-se pessoas semelhantes, que existem num mesmo mundo.

Tal vivência, de completa sintonia, dura apenas alguns instantes, os quais, de certo modo, não têm duração objetiva, pois neles fundem-se, paradoxalmente, o espaço e o tempo, o momento concreto e a eternidade, e todas as particularidades do ser humano e do mundo.

Mas, além de acontecer, algumas vezes, de forma tão ampla e profunda, a maneira sintonizada de existir ocorre, mais freqüentemente, de modo menos intenso, consistindo apenas num tênue e agradável sentimento de bem-estar e tranqüilidade.

A maneira sintonizada de existir, assim como a preocupada, ocorrem em nossas vivências imediatas e delas temos percepção e sentimento pré-reflexivos. Entretanto, como seres racionais, temos necessidade de analisá-las e refletir sobre elas para adquirir conhecimentos inteligíveis a seu respeito - nisto consiste a maneira racional de existir. Por meio dela, elaboramos um conjunto de conceitos relacionados por princípios coerentes que nos permitam explicálas e compreendê-las. Isto nos fornece elementos, de certo modo, objetivos para conhecermos o nosso existir no mundo e elaborar uma "teoria" sobre o mesmo, que nos possa oferecer alguma segurança, tanto para explicar as situações que já vivemos ou estamos vivendo quanto para planejar as nossas futuras ações.

"Embora cada um de nós tenha um modo peculiar de compreender as situações, somos todos seres humanos vivendo num mesmo mundo, havendo aspectos comuns em nossa existência, que nos permitem conviver e partilhar das mesmas experiências. Em outras palavras, existe uma realidade concreta, palpável, da qual todos fazemos parte, embora, possamos dar-lhe um colorido pessoal, com nossa maneira peculiar de ser. Agimos de acordo com o nosso modo de compreender as situações, mas nossas ações só serão eficientes se forem adequadas à realidade dos acontecimentos; temos necessidade de averiguar se os estamos percebendo e compreendendo adequadamente". (Forghieri, 1993a, p. 39)

Paradoxos do existir

Vivenciamos nossas experiências de forma imediata e pré-reflexiva, com sentimentos mais ou menos intensos de preocupação e angústia, ou de bem-estar e tranqüilidade, mas também refletimos sobre tais experiências, para delas obter um conhecimento racional que seja adequado às situações vividas.

Diferentemente de um objeto dentro de um armário, o ser humano encontra-se no mundo num determinado lugar, mas tem consciência e compreensão de sua própria existência. Além de estar num lugar em determinado momento, poderá transferir-se para outro quando assim o quiser; e tanto pode estar próximo do local onde se encontra situado quanto pode, pelo seu pensamento, estar longe deste e próximo de outro, do qual se encontra fisicamente distante.

A pessoa tem a capacidade de transcender à situação imediata, podendo tanto estar envolvida com esta quanto com suas próprias lembranças e prospecções. Sua vida não se limita ao lugar e ao tempo concretamente presentes, pois se encontra também aberta às suas inúmeras possibilidades de existir.

A existência humana encontra-se cheia de aspectos que são, de certo modo, contrários e coexistentes. Assim, embora racionais, vivenciamos também, pré-reflexivamente, o fluxo de nosso existir imediato, e este tanto nos pode afligir quanto tranqüilizar; alegramo-nos e entristecemo-nos; somos livres, mas também somos determinados pelos condicionamentos; amamos e odiamos; somos voltados para o nosso semelhante, mas também cuidamos de nosso próprio bem-estar; convivemos com as outras pessoas, mas, nem por isso, deixamos de confrontar-nos com a nossa própria solidão.

Finalmente, somos vivos, mas também mortais. Vivemos e morremos, de certo modo, simultaneamente, pois a cada dia que passa a nossa existência tanto vai se ampliando quanto vai, a cada momento, tornando-se mais curta. No decorrer de nosso existir, caminhamos a cada dia para viver mais plenamente, assim como para morrer mais proximamente.

A própria coexistência de opostos é que nos dá o verdadeiro significado de cada um dos pólos que, de certo modo, se opõem, mas que em nossa vida cotidiana constituem uma totalidade. Assim, a tristeza adquire o seu verdadeiro sentido quando já vivenciei a alegria, a angústia, ao ser confrontada com a tranqüilidade, o cansaço, com o descanso, as obrigações, com o lazer e viceversa. Se consigo sentir-me verdadeiramente alegre é porque já me tenho sentido profundamente triste; se consigo sentir plenamente a ternura de uma convivência amorosa é porque já conheço a angústia de minha solidão.

E acontece ainda que, no contínuo fluxo do nosso existir, os acontecimentos estão constantemente mudando de sentido, chegando mesmo a passar de um significado para o seu oposto. Assim, o que é novo vai tornando-se velho com o decorrer do tempo; o que era ignorado torna-se sabido com o conhecimento; o que era difícil fica fácil ao ser compreendido; o que era prazeroso ao ser compartilhado, torna-se melancólico na solidão.

O nosso existir é realmente cheio de incertezas, pois decorre num fluxo crivado de paradoxos e de riscos, que nos dificultam ter segurança para agir. A insegurança permanece mesmo quando procuramos apoiar-nos nas experiências passadas, agindo em termos do que já conhecemos, pois, o presente é também abertura para o futuro e este contém sempre imprevistos que vão além daquilo que já sabemos. Temos a evidência disto no próprio fluir da existência: em raros momentos ela decorre exatamente como havíamos planejado.

A saúde e o adoecimento existencial

O ser humano é um ser-no-mundo, existe sempre em relação a algo ou a alguém e compreende suas experiências atribuindo-lhes significado.

Além de compreender suas experiências, o ser humano vive num certo espaço e em determinado tempo, mas os experiência com uma amplitude que ultrapassa estas dimensões objetivas, pois tem capacidade para transcender à situação imediata. Seu existir abrange não apenas aquilo que é e está vivendo em dado lugar, num determinado instante, mas também as múltiplas possibilidades às quais se encontra aberta a sua existência.

"A essência fundamental do homem sadio caracteriza-se precisamente pelo seu poder de dispor, livremente, do conjunto de possibilidades de relação que lhe foi dado manter com o que se lhe apresenta na abertura livre de seu mundo". (Boss, 1976, p. 14)

"Tanto a abertura como a liberdade de escolha são fenômenos fundamentais que se revelam diretamente, não requerendo qualquer comprovação". (Boss, 1983, p. 123)

Entretanto, a abertura originária às suas possibilidades não se realiza facilmente, pois o ser humano defronta-se, no decorrer de sua vida, com restrições, obstáculos e inseguranças que podem dificultar essa realização. O ambiente, as intempéries, as adversidades, as doenças, os condicionamentos, as imprevisibilidades do futuro são exemplos de limites aos quais todas as pessoas estão sujeitas. E acresce, ainda, que a facticidade da existência restringe a presença concreta do indivíduo, em determinado momento, num único lugar e permite-lhe fazer apenas uma coisa de cada vez. Por isso, ele não consegue realizar todas as suas possibilidades; precisa fazer escolhas entre elas, e cada escolha implica muitas renúncias.

Enfim, amplas possibilidades de existir, inseguranças e limites à atualização dessas possibilidades fazem parte dos paradoxos da existência e revelam o quanto o ser humano precisa ter "coragem para ser" (Tillich, 1972, p.2) coragem para viver a sua existência.

Entretanto, durante a existência podem surgir situações de vivências de intensa contrariedade e angústia, durante as quais a pessoa não consegue ter coragem para envolver-se e sintonizar-se com elas. Conseqüentemente, não consegue, também, atribuir-lhes significados e compreendê-las, para integrálas à totalidade de sua existência, dentro da qual elas poderiam ser consideradas à luz de suas amplas potencialidades e possibilidades de existir. A pessoa, então, passa a tentar distanciar-se e alienar-se de suas vivências de contrariedade e angústia e evitar situações que poderiam provocá-las. Se esse modo de comportar-se for ficando freqüente, essas situações, que são inevitáveis, vão continuar ocorrendo e acumulando-se, sem significados e compreensão necessários. Então, a pessoa passa a viver de forma progressivamente mais restrita e empobrecida, reduzindo o campo de suas experiências, minimizando a atualização de suas potencialidades, do conhecimento do mundo e de si mesma. Assim, essa pessoa vai sentindo-se cada vez mais contrariada e insatisfeita consigo e com o seu mundo, tornando-se existencialmente doente.

"A essência de todos os sofrimentos humanos fundamenta-se nofato de que a pessoa perdeu a capacidade de se decidir livremente acerca de suas possibilidades de comportamento normal". (Boss, 1975, p. 24)

O ser humano mantém essa sua capacidade quando consegue ter coragem para envolver-se e sintonizar-se com as situações de vivências de contrariedade e angústia, para lhes dar significado e compreendê-las, integrando-as à totalidade de sua existência. Desse modo, ele vai, gradativamente, abrindo-se às suas possibilidades de existir e descobrindo os seus melhores recursos para enfrentar e tentar resolver aquelas situações. E quando, embora se esforçando, não consegue resolvê-las, reconhece seus próprios limites e abre-se a outras possibilidades, lançando-se em novas situações. É assim que o ser humano vai conseguindo ser saudável existencialmente: vivenciando ora momentos de grande satisfação e bem-estar, ora momentos de angústia e aflição, mas tendo como pano de fundo a predominância de uma tênue tranqüilidade, a tranqüilidade de estar conseguindo ter coragem para seguir em frente na sua existência, abrindo-se às suas possibilidades, atualizando, ao máximo possível, as suas potencialidades e, conseqüentemente, ampliando cada vez mais a compreensão e o conhecimento de si e do mundo.

Ser saudável existencialmente não consiste, pois, num estado permanente de intensa satisfação, mas numa vivência global de tênue tranqüilidade, na qual estão contidos sentimentos paradoxais de aflição e de bem-estar, que se articulam dialeticamente; na coragem para assumir os riscos das situações e no reconhecimento de estar conseguindo enfrentá-las, do melhor modo possível, a cada momento da existência.

 

PESQUISAS FENOMENOLÓGICAS

Iniciei-me, a partir de 1980, no campo desta modalidade de pesquisa, com o intuito de averiguar enunciados da abordagem fenomenológica da personalidade, bem como de tentar obter esclarecimentos sobre as indagações referidas na Introdução deste artigo.

Nesse período de cerca de 15 anos, realizei oito pesquisas; em algumas procurei averiguar as peculiaridades da vivência de bem-estar e tranqüilidade, ou de contrariedade e angústia, em outras, a relação entre ambas; e, nas últimas, a influência dessas vivências na saúde ou no adoecimento existencial.

Apresentei os resultados dessas pesquisas em 15 eventos científicos nacionais e dois internacionais (Roma e Lisboa); seus resumos foram publicados nos anais dos congressos dos quais participei e suas referências bibliográficas podem ser encontradas em Forghieri (1993a.). Entre essas pesquisas, incluo aqui a referência a três delas, por terem sido publicadas na íntegra: Forghieri (1989; 1993b, 1994).

Em revisão da bibliografia que fiz sobre pesquisas fenomenológicas no campo da Psicologia (Forghieri, 1992), não encontrei investigações sobre os temas acima referidos realizadas por outros autores.

A metodologia que tenho utilizado nas pesquisas fundamenta-se em formulações sobre o método fenomenológico extraídos dos filósofos Husserl (1986) e Merleau-Ponty (1973, 1971) e nas aplicações destas ao campo da psicologia feitas pelo psiquiatra europeu Binswanger (1963,1973) pelos psicólogos americanos Colaizzi (1985) e Giorgi (1985), bem como na minha própria maneira de compreender tais formulações e a sua aplicação à pesquisa psicológica. Na psicologia, não há o intuito de se

"(...) chegar a um esclarecimentofilosófico-fenomenológico da estrutura transcendental da existência, mas, sim, empreender uma análise existencial ou empírico fenomenológica de formas concretas de existência". (Binswanger, 1973, p.436)

O material de estudo de todas as pesquisas constituiu-se de relatos pormenorizados de sujeitos sobre suas vivências de bem-estar e tranqüilidade ou de contrariedade e angústia. Os procedimentos utilizados para a análise compreensiva dos relatos foram, resumidamente, os seguintes:

1. Leitura atenta de todo o relato de cada sujeito, para captar seu sentido global.

2. Releitura de cada relato, para registrar as frases que se referiam às vivências de bem-estar e tranqüilidade ou de contrariedade e angústia, e o significado dessas vivências para o sujeito.

3. Averiguação, com cada sujeito, da etapa anterior, para conferir com ele os significados atribuídos às vivências e proceder às correções e/ou complementações que se tornassem necessárias.

4. Comparação, entre todos os sujeitos, dos dados obtidos na etapa anterior, tendo em vista a captação e explicitação dos elementos comuns à maioria deles.

5. Articulação entre os elementos comuns à maioria dos sujeitos e elaboração da descrição dos resultados.

Os resultados acumulados das oito pesquisas que realizei, com um total de 80 sujeitos, permitiram-me a confirmação de várias formulações do enfoque fenomenológico da personalidade e forneceram alguns esclarecimentos sobre as vivências de bem-estar e tranqüilidade e de contrariedade e angústia, e de sua influência no sentido de favorecer ou dificultar o desenvolvimento da saúde existencial. Isto possibilitou-me chegar à elaboração dos enunciados formulados a seguir.

1. 0 bem-estar e tranqüilidade e a contrariedade e angústia são dois tipos contrastantes de vivência que acontecem, inevitavelmente, no decorrer da existência dos seres humanos.

2. Cada uma dessas vivências apresenta qualidades próprias, quando experienciadas com intensidade. A vivência do bem-estar e a tranqüilidade revelou-se como de abertura e plenitude, durante a qual a pessoa se encontra envolvida e em sintonia com a situação, compreende globalmente o seu existir, visualiza amplas possibilidades de prosseguir existindo e com liberdade para fazer escolhas. Inversamente, a de contrariedade e angústia revelou-se como vivência de fechamento e restrição, durante a qual a pessoa se encontra distante e alheia à situação, não consegue compreendê-la e integrá-la ao seu existir; visualiza poucas ou nenhuma possibilidade de prosseguir existindo, sente-se oprimida e sem condições de fazer escolhas.

3. As enunciações do item anterior revelam, num primeiro momento, que a vivência de bem-estar e tranqüilidade tende a facilitar, e a de contrariedade e angústia tende a dificultar o desenvolvimento da saúde existencial.

4. Outros dados das pesquisas, entretanto, revelaram que, quando a pessoa adquire coragem para enfrentar e tentar superar a situação de contrariedade e angústia, gradativa e seqüencialmente ela começa: a envolver-se e estabelecer sintonia com a situação, a compreendê-la, a descobrir e a utilizar suas potencialidades para superá-la. Desse modo, a vivência de contrariedade e angústia vai, aos poucos, transformando-se em vivência de bem-estar e tranqüilidade, passando, então, a contribuir para o desenvolvimento da saúde existencial.

5. Levando em conta o item anterior, aliado ao fato de que a vivência de contrariedade e angústia é inevitável no decorrer da existência, o desenvolvimento da saúde existencial passa a ser considerado favorecido tanto pela vivência de bem-estar e tranqüilidade quanto, também e necessariamente, pelo enfrentamento e superação da vivência de contrariedade e angústia.

6. 0 adoecimento existencial ocorre quando a pessoa, sentindo-se muito ameaçada pelas vivências de contrariedade e angústia, passa freqüentemente a tentar, e, de certo modo, conseguir manter-se distante e alienada de tais vivências que, conseqüentemente, se acumulam sem a necessária compreensão, dificultando, e às vezes até impedindo, que ela visualize suas amplas possibilidades de existir e suas potencialidades.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os enunciados descritos, que confirmam formulações do enfoque fenomenológico da personalidade e fornecem esclarecimentos sobre alguns aspectos relativos à saúde e ao adoecimento existencial, revelam pontos significativos sobre o tema deste artigo.

O primeiro deles diz respeito ao equilíbrio psicológico, o qual é, freqüentemente, considerado sinônimo de saúde existencial, mas que sob o prisma fenomenológico apresenta-se de modo paradoxal no desenvolvimento desta. Isto porque, nesse enfoque, o existir humano saudável é constituído de momentos de equilíbrio psicológico, com vivências de bem-estar e tranqüilidade, mas que não são constantemente mantidos, pois se alternam com inevitáveis instantes ameaçadores de contrariedade e angústia, que vão sendo superados à medida que a pessoa adquire coragem para enfrentá-los e superá-los. Desse modo, ela recupera o equilíbrio psicológico, que será, novamente, arriscado para ser, outra vez, conquistado, e assim sucessivamente no decorrer da sua existência.

Outro ponto significativo, relacionado ao anterior, diz respeito à possível contribuição deste trabalho para os profissionais que atuam na área da terapia. É o ponto que revela a influência das vivências de contrariedade e angústia no desenvolvimento tanto da saúde quanto do adoecimento existencial. A diferença entre cada uma dessas ocorrências relaciona-se, no primeiro caso, ao enfrentamento e à superação daquelas vivências e, no segundo, ao distanciamento e à alienação das mesmas.

Isto conduz ao surgimento, para os terapeutas, da seguinte indagação: como propiciar ao cliente as condições para que ele tenha coragem de enfrentar e superar as vivências de contrariedade e angústia? É uma indagação que pode encontrar várias respostas diferentes, dependendo da abordagem teórica que fundamentar a atuação do terapeuta.

Numa perspectiva fenomenológica, o ponto de partida para que isto aconteça é a presença genuína do terapeuta diante do cliente.

"O quê esperamos nós quando desesperados, e mesmo assim, procuramos alguém? Esperamos, certamente, uma presença por meio da qual nos é dito que o sentido ainda existe". (Buber, 1982, p. 47).

Afinal, desde o início de nossa vida aprendemos a vivê-la, a enfrentar os riscos e a compreendê-la junto a alguém... alguém que esteve genuinamente presente e, assim, acolheu-nos e encorajou-nos a dar os primeiros passos nessa difícil e perigosa caminhada que constitui a nossa existência! Haveria, ainda, muitas coisas a dizer sobre este assunto, mas que não caberiam neste artigo; procurei dizê-las num texto anterior (Forghieri, 1984b).

Os enunciados e reflexões aqui apresentados são frutos tanto de estudos e pesquisas quanto de vivências profissionais e cotidianas de alguém que se tem defrontado com a difícil tarefa de tentar ajudar outras pessoas a viverem saudavelmente, mas que, também, ainda está lutando para fazê-lo em sua própria existência.

Eles não constituem respostas completas e definitivas para a profunda questão relativa à saúde e ao adoecimento existencial; revelam, apenas, pistas para a compreensão de alguns de seus aspectos, não chegando, portanto, a abrangê-la em sua totalidade. A jornada no sentido de tentar esclarecê-la requer, ainda, infindáveis estudos, pesquisas, vivências e reflexões. Afinal,

"A vida é, e continuará sendo, um mistério... podemos, apenas, vivê-la em sua total plenitude, mas não conseguimos captá-la, completamente, de forma racional'. (Binswanger, 1973, p.491)

 

Referências Bibliográficas

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