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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.4 no.2 Ribeirão Preto Aug. 1996

 

Qualidade e quantidade: a consciência na ciência e na filosofia contemporâneas(1)

 

 

Sergio L. de C. Fernandes

Universidade Gama Filho. Depto. de Psicologia
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Depto. de Filosofia

 

 

A INVENÇÃO RECENTE DA CONSCIÊNCIA

A revolução científica - a única que conhecemos, até hoje - deixara de fora a vida e a mente. Se considerarmos que a revolução data, digamos, do século XVI - para adotarmos uma data "média" -, a vida só viria a incorporar-se à ciência três séculos mais tarde, com Darwin, e, no sentido estrito, quatro séculos mais tarde, com a microbiologia do século XX. Quanto à mente, só seria concebida como um "fenômeno biológico" neste século (Crook, 1980; Ornstein, 1991; Humphrey, 1992 etc). Mas o que se incoiporou à ciência foi a "mente inconsciente", não a consciência. Esta incorporação não se deu apenas na Biologia, mas na Psicologia, com Freud, na Ciência Política, com Marx, e, a partir da década de 60, com as novas formas de behaviorismo psicológico chamadas de "cognitivismo".

Ainda hoje, parece bem claro à maioria dos cientistas que se pode explicar praticamente tudo o que importa na "mentalidade inteligente", sem trazer à baila a consciência. Há "pensamento" inconsciente e subconsciente. A ausência de "fenomenologia" em casos de "visão cega" (Critchley, 1966; Weiskrantz, 1986, 1988), "agnosia", "percepção subliminar", "escuta dicotômica" (Lackner e Garret, 1973) e todos os casos de aprendizagem inconsciente em pacientes incapazes de adquirir novas memórias conscientes, a partir de lesões no lobo temporal médio, é evidência bastante, sem que precisemos mencionar a Psicanálise (Man*, 1982; Flanagan, 1992; Bornstein e Pittman, 1992). A consciência, no estado atual do desenvolvimento da ciência, não é necessária para:

(...) receber, processar e estocar informação; tomar "decisões " ou fazer "escolhas " baseadas na aplicação de procedimentos efetivos àquela informação; executar movimentos físicos complicados e precisos, baseados naquela informação, naquelas decisões e naquelas escolhas; e exibir e comunicar tais informações, decisões e escolhas. (Hodgson, 1991, p.170).

A mente, por sua vez, só pôde incorporar-se à ciência às custas de uma "revolução subsidiária" contra o cartesianismo. Descartes havia legado à sua posteridade dois dogmas, pelo menos: o primeiro, que todo estado mental é um estado consciente; o segundo, que a "consciência" é uma "propriedade intrínseca", "simples", "não-analisável", dos estados mentais (1964-75, VII, 246: "nenhum pensamento pode existir em nós sem que dele tenhamos consciência lat. esse conscius\ fr. avoir connaissance de - no momento mesmo em que ele existe em nós"; VII, 160: "a palavra 'pensamento' aplica-se a tudo o que existe em nós ... imediatamente"; e VII, 107, 232, 246; III, 273; VIII, 1, 7 etc.).

Como poderia uma propriedade puramente qualitativa, atômica, nãoanalisável, homogênea, fenomenologicamente imediata, incorrigível, privada, particular, pessoal, subjetiva, inefável - pois o que nos permitiria identificá-la não seria intersubjetivamente comparável - tornar-se objeto de explicações científicas? Seria algo que eu conheço, e o leitor conhece, com absoluta certeza, mas que nem eu, nem o leitor podemos compartilhar, no sentido estritamente qualitativo, de modo que o que eu conheço, quanto ao meu "estar consciente", só eu conheço; e o que o leitor conhece, quanto ao seu "estar consciente", só ele conhece. Não é sem razão que a "revolução" cartesiana, que fundou a Filosofia Moderna, tem sido às vezes chamada de "Catástrofe Cartesiana". Kathleen Wilkes cita um manuscrito inédito de N.A. Hayes (Oxford), o qual explica exatamente porque se trata de uma "catástrofe": de acordo com os dogmas cartesianos, "um sistema", diz Hayes, "que aprende sem que os produtos de sua aprendizagem estejam à disposição de processos que possam inspecioná-los, relatá-los e, se necessário, modificá-los, está essencialmente fora de controle" (Wilkes, 1988, p.24). Nas palavras de Rorty:

Enquanto os corpuscularistas estavam ocupados drenando dos planetas, das rochas, dos animais, suas naturezas intrínsecas, e expulsando causas formais e finais, os filósofos cartesianos tiveram de trabalhar duro (sob os olhares incrédulos de gente como Hobbes e Gassendi) para criar a "consciência" como um refúgio para as noções aristotélicas de substância, essência e intrinsicalidade. Mas foram bem sucedidos. Graças aos seus esforços, mesmo depois que os conteúdos coloridamente diversos da natureza aristotélica foram difamados, todos juntos, num rodamoinho de corpúsculos - uma grande substância chamada "matéria" -restou, aqui embaixo, uma outra substância: a mente ... Se o século XVII tivesse tratado as Meditações de Descartes apenas como um pedaço infeliz de aristotelismo residual, perdoável no autor de um grande tratado sobre mecânica corpuscular... Wundt, Helmholz e James... teriam descrito o que faziam (como Freud o fez no Projeto) como marcando lugares a serem preenchidos pela Neurologia do futuro. (1993, pp.193-4).

Com efeito, parece que o cartesianismo foi, para a mente e a consciência, o que a física aristotélica fora para as ciências da natureza. A consciência, na sua forma introspectiva, parece ser um desenvolvimento tardio da mentalidade humana, inexistente, por exemplo, na forma introspectiva à qual nos acostumamos, na época homérica (Jaynes, 1976). Já uma pesquisa linguisticamente orientada teria enorme dificuldade de encontrar, antes do século XVII, seja em línguas européias, seja em grego antigo, chinês ou croata, termos equivalentes a "mente" ou "consciência" (Wilkes, 1988). O que é "óbvio" e "central" para nós, hoje, é, historicamente, uma verdadeira "novidade". Embora o Oxford English Dictionary, de 1971, mencione a ocorrência do primeiro uso da palavra "consciente" no sentido de "introspectivamente cônscio" (consciência de si) num sermão de 1620, do Arcebispo de Ussher, em 1651, Hobbes ainda usava o termo na acepção etimológica de "conhecimento partilhado" {conscire,conscius\ Wilkes, 1988, p. 18; Humphrey, 1992,p.l 18):

Quando dois ou mais homens conhecem um e o mesmo fato, diz-se que eles estão (i conscientes " dele, um para o outro; o que eqüivale a conhecê-lo juntos ... Mais tarde, os homens fizeram uso da mesma palavra metaforicamente, para o conhecimento de seus próprios fatos secretos, e pensamentos secretos ... (Hobbes, Leviathan, Routledge, vol. 1, p.37; apud Wilkes, 1988, p.18).

Nicholas Humphrey compara a evolução da palavra consciência à evolução da palavra inglesa window: de "abertura por onde o vento entra", passou a "abertura por onde o vento não entra" (1992, p. 119). Em grego antigo, o termo mais próximo que se pode encontrar para "consciência" épsyche, cuja acepção mudou muito entre Homero e Aristóteles (Wilkes, 1988, p. 19), mas que significava, acima de tudo, "estar vivo" - em Aristóteles, a "forma" das coisas vivas. O "biológico" incluía o "psicológico", numa unidade mentecorpo (o "intelecto-agente" aristotélico não se distinguia do corpo, como se fosse algo "mental"). Wilkes destaca, dentre vários autores que notaram que os gregos ignoravam a "consciência" enquanto tal, a obra de Hamlyn,Aristotle's De Anima Books II, III (Clarendon, 1968, p. xiii, por exemplo).

A pergunta fenomenológica recomeça a insinuar-se: mas o que é que os gregos ignoravam? A transição entrepsyche e mente é feita por Descartes, já no "Discurso sobre o Método" (em Francês, 1637), mas, sobretudo, na "Segunda Meditação" (em Latim, 1641; Francês, 1642), que reuniu raros precedentes helenísticos, estóicos e agostinianos; mas o que, então, eu sou? Uma coisa que pensa (res cogitans). O que é uma coisa que pensa? Uma coisa que "duvida" etc. A mente tornava-se assim um palco privado de um teatro, o Teatro Cartesiano, no qual as coisas se passavam para um espectador, o Olho Interno.

Para o empirismo, o dogma era inquestionável: Locke afirma que "a consciência é inseparável do pensar ... e essencial a ele, sendo impossível para qualquer um perceber sem perceber que ele percebe ... e é isso que torna cada um o que ele chama de 'eu'" (Essay, apud Wilkes, 1988; Locke usa "self; embora o idioma inglês, como o português, disponha de quatro palavras para esta idéia, elas não são intertraduzíveis em todos os contextos; nem sempre "1" é o "Eu", nem sempre "me" é o nosso "mim", e o idioma português não conta com algo semelhante ao "self", em inglês. Do mesmo modo, há duas palavras para "consciência" em inglês: "consciousness" e "awareness", sendo esta última, como o "self", intraduzível para o português, no sentido estrito.). Nem Hurne foi abalado: "as percepções da mente são perfeitamente conhecidas" (Enquiries, apud Wilkes, 1988, id.). Ao que tudo indica, antes de Descartes ninguém duvidava e tampouco se preocupava com o fato de que a mente é algo imensamente maior do que a consciência; a consciência não era uma "linha divisória entre duas espécies radicalmente diferentes de coisas: mente e corpo, o mental e o físico" (Wilkes, p.24). Não há, com efeito, outra explicação para a exortação grega: "Conhece-te a ti mesmo!", que não o reconhecimento da opacidade da mente para si mesma.

 

A INVENÇÃO RECENTE DO INCONSCIENTE

Assim como praticamente todo o progresso científico depois da Revolução foi feito, como Russell disse certa vez (se me lembro bem, pois cito o de memória), "contra Aristóteles", todo o progresso científico no estudo da mente haveria de ser feito "contra Descartes" e, naturalmente, obrigatoriamente, pela postulação de uma forma ou de outra de "inconsciência" mental (Wilkes nota o aparecimento de unconscious(ness), em 1751; unbewusstsein e bewusslos, em 1776; e inconscient, em 1850).(2)

A consciência aparece em psicologia como algo intratável e que deveria ser descartado. No final do século passado, o biólogo Thomas Huxley estendia o que Descartes dissera sobre os animais ao ser humano, no artigo "Sobre a hipótese de que os animais são autômatos" (1874). Seríamos "espectadores inertes". A analogia tida como a "mais apta" para a consciência humana era, na época, a de um "ruído", um assobio barulhento de uma máquina a vapor (diríamos, hoje, de urna panela de pressão) que, embora acompanhasse o trabalho da máquina, não exercia qualquer influência sobre seu funcionamento. É como se a "alma" estivesse para o corpo assim como o gongo de um relógio está para as engrenagens, e a consciência apenas respondesse ao som do gongo.

William James que, em 1890 e 1892, revelara-se ao mundo como o brilhante psicólogo da "corrente da consciência", haveria de publicar, no começo deste século (1904), no primeiro número do Journal of Philosophy, Psychology and Scientific Method, o artigo "A Consciência existe?", no qual afirmava ser "consciência" o nome de uma "não-entidade" sem "nenhum direito a um lugar entre os primeiros princípios", de modo que a hora havia chegado para "descartá-la, aberta e universalmente". Sobre James, tanto o apologista quanto o detrator da consciência, veja o leitor, por exemplo, além de suas próprias obras, o livro de Owen Flanagan (Cap. 8) e o de Nicholas Humphrey (op cit., p.35; ed. bras., 15-16), ambos de 1992. Isto para não falar do neuropsicólogo Karl Lashley, que, em 1958, pôde cunhar solenemente, no volume 36 dos Anais da Associação para a Pesquisa das Doenças Nervosas e Mentais, num artigo sobre "A organização cerebral e o comportamento", o dictum: "nenhuma atividade da mente é jamais consciente "( activity of mind is ever conscious). Daí por diante, isto vem sendo tomado como axiomático pela ciência.

Mas, trata-se, obviamente, de uma espécie de "formação reativa", se o leitor me permite usar um termo psicanalítico: a ciência ainda não se livrou - e talvez jamais se livre - do dualismo cartesiano. O pai do behaviorismo, e inimigo de Descartes, J.B. Watson, aceitava explicitamente a distinção entre o mental e o físico, tanto quanto "entulhava" tudo no lado "físico" da distinção. E Freud, embora negando enfaticamente, em neurologia, o "localizacionismo" do século XIX (tributário da "glândula pineal" cartesiana) e, em psicologia, a equação entre o psíquico e o consciente (1966-74, XXIII, 270-86), aplicava todas as categorias fenomenológico-intencionais e conativas da consciência aos estados mentais inconscientes (XIV, 166-215, p. 168) e considerava a consciência uma qualidade "única, indescritível" de estados mentais (XXIII, 282), que "desafiava toda explicação" (id., 141-208, p. 157).

A rebelião contra Descartes vem-se caracterizando, em ciência, por uma "inversão" que lembra, irresistivelmente, a fábula na qual, desejosos, mas incapazes de obter o que desejamos, dizemos: "As uvas estão verdes". Na época em que Freud postulava o inconsciente, a idéia parecia prepóstera: os resquícios de auto-transparência cartesiana, em Freud, reduziam-se à "muleta" de que pensamentos, desejos etc. inconscientes permaneciam "pertencendo" a outros "eus" dentro do psiquismo:

Assim como mantenho meus esquemas secretos escondendo-os de você, meuldpode manter segredos escondendoos do meu Ego... [de fnodo que] dividindo o sujeito em muitos sujeitos, podia-se preservar o axioma de que cada estado mental deve ser o estado consciente de alguém, e explicar a inacessibilidade de alguns desses estados para alguns de seus presumidos donos, postulando outros donos interiores desses estados. Essajogadafoi utilmente obscurecida nas brumas do jargão, de modo que a questão fatídica de se é alguma coisa ser como um Super-ego, por exemplo, pôde ser mantida à distância. (Dennett, 1987, p.162).

A partir daí, fomos aceitando cada vez mais que toda a nossa "mentalidade", tanto cognitiva quanto conativa, é inconsciente - temos muitas "mentes", muitos "eus" (Ornstein, 1991) -, não necessariamente nos convolutos sentidos freudianos, mas no sentido neuro-psicológico. A consciência tornou-se, realmente, para a ciência, a ponta - diminuta - de um imenso iceberg mental, no qual um número astronômico de processos são até mais acessíveis a observadores científicos externos que à presumida "introspecção" cartesiana. A "muleta" dos homúnculos "conscientes" foi finalmente jogada fora, de modo que, agora achamos natural que nossas sub-mentes sejam todas inconscientes, ou, pelo menos, organizadas por sub-homúnculos cada vez menos conscientes. Com isso, consumou-se a "inversão" que caracteriza a rebelião científica contra Descartes: "..se, antes, a idéia mesma de mentalidade inconsciente parecia incompreensível, agora estamos perdendo nosso domínio da própria idéia de mentalidade consciente". (Dennett, 1987, p.162).

 

O CARÁTER QUALITATIVO DA EXPERIÊNCIA CONSCIENTE

De transparente "a si mesma" - uma idéia que julgo absurda -, a consciência, agora como uma "forma de inconsciência", torna-se "transparente" ao cientista que estuda a mente - outra idéia cujos aspectos absurdos pretendo mostrar. A idéia mesma de "auto-referência" é paradoxal, como sabemos pelo paradoxo do mentiroso: "Esta sentença é falsa". Do mesmo modo, a idéia mesma de "consciência de si" é paradoxal: não posso ter "consciência" de mim mesmo, sem que esse "mim mesmo" deixe de ser "eu mesmo" e passe a ser um "outro". Se a consciência depender, para existir, de alguma forma de "autoconsciência", então a consciência não é nada parecido com o que estamos acostumados a pensar que ela é - ainda que fenomenologicamente -, ou seja, com o que o nosso uso de indexicais parece implicar.

Mas vamos supor que a consciência seja sempre hetero-consciência. Ainda assim, pode-se hoje explicar a inteligência, a memória, a competência lingüística etc. sem a consciência. E não se trata de mera contingência do estado atual da ciência: em princípio, é possível sempre conceber um organismo que se comporte exatamente "como se" fosse consciente, sem sê-lo. Se o leitor duvida disso, olhe em volta: todos os seus companheiros neste mundo são exemplos do que acabo de lhe dizer.

Quanto aos "acompanhamentos", contudo, a questão fenomenológica permanece, agora, acrescida da forma "atualizada" da noção de "intencionalidade": nada de "diretividade", "atos" etc; mas, simplesmente, como podem estados mentais que, além de inconscientes, são, em última instância, "estados cerebrais", ser sobre coisas ou estados de coisas existentes ou não-existentes? A questão ainda mais "séria" é: para quem os estados seriam conscientes, se o fossem? Se o forem para um ou outro subsistema cerebral, eles ainda não poderão ser julgados "conscientes", pois um sistema monitora outro, que monitora outro, com o resultado de subsistemas que monitoram outros, e de sub-subsistemas ... etc, até chegarmos ao campo quântico. Mas não há, no cérebro, nenhum subsistema específico que possa ser privilegiado como "o" subsistema consciente. Que parte do cérebro tem uma "vida interior"? O que é um "eu"? Mais ainda, supondo-se o inessencialismo, o que seria "aquilo" que é "inessencial"?

O grande problema, para a ciência, é que a experiência consciente parece "puramente qualitativa". Ora, é característico de um "fenômeno" puramente qualitativo que ele seja irredutível a "formas de expressão" ou "descrição". Ele seria imune, digamos assim, a todas as falácias descritivas. Não é só que o que eu sinto (uma "vivência", digamos) se "perde" de algum modo quando tento comunicá-lo a outrem. É que o que eu tenho consciência de sentir pode "perderse" também quando o transformo em palavras para mim mesmo, ou seja, quando penso sobre o que sinto, sub-vocalizo, batizo o que sinto com um nome etc. Como decidir se há alguma coisa como "experiência consciente", independente não só da "linguagem" no sentido estrito, mas de qualquer comportamento intencional, ou seja, sinalizador, expressivo, descritivo ou argumentativo ("linguagem" no sentido amplo)? Pergunte o leitor a si mesmo: ele "sente" o que não sabe ou não consegue expressar, ou sua expressão, ainda que "privada", é que "cria" o que ele "sente"?

Na perspectiva cartesiana, a consciência é "uma fonte última de evidência, cuja característica pode ser totalmente especificada sem referência àquilo para o quê ela é evidência" (Davidson, 1989, p.162). A identificação da mente ao cérebro, a = b, jamais provaria algo de interessante, e muito menos a identificação da consciência (c) à mente, como "passo" para identificá-la ao cérebro: c = b, logo c = a. Feyerabend já notara, em 1963, que as "teorias da identidade mente-corpo" eram todas mal concebidas, pois a identidade pode ser lida, tanto da esquerda para a direita quando da direita para a esquerda. Se eventos mentais têm características físicas, então eventos físicos, como processos cerebrais, têm características mentais, ou não-físicas (Feyerabend, 1963, p.295; Em, Rosenthal (Org.) 1991, p.266 e Lycan (Org.) 1990, p.204). Evidentemente, isto não prova que o juízo de identidade material "processos mentais = processos cerebrais" é falso. Mas, se for verdadeiro, o juízo projeta um ente, uma realidade que pode apresentar-se sob dois aspectos: o mental e o físico (não é esta a conclusão que Feyerabend tira, mas ele trabalhava, suponho, com uma ontologia "físicalista"). Ora, isto parece-me ir de encontro ao "monismo anômalo" de Davidson, uma das "posições" teóricas mais difíceis de entender, no "espaço" contemporâneo da Filosofia da Mente, mas que Rorty interpreta do seguinte modo:

Se a mente é o cérebro sob outra descrição, então tanto a mente quanto o cérebro são igualmente incapazes de não se engrenar um ao outro. O máximo que uma redescrição em termos mentalistas, e não neuronais, poderia fazer, seria descrever ligações cada vez mais complicadas, não eliminá-las. (Rorty, 1993, p.194)

É tão verdadeiro, portanto, dizer que o mental "age sobre" o físico quanto dizer que este "age" sobre aquele. Por outro lado, os dados da neurociência contemporânea desautorizam qualquer coisa parecida com uma correspondência biunívoca entre "padrões" de atividade neuronal e "estados" mentais conscientes. O cérebro é globalizante em suas funções, de modo que uma alteração em qualquer de suas partes parece repercutir no todo. Sem entrarmos na controvérsia em torno do "paradigma holográfico", podemos hoje afirmar, com Hodgson, que "não se pode conceber um mundo no qual os micro-eventos associados com (digamos) uma faca cortando pão ocorram, mas não os macroeventos;... no caso da consciência, entretanto, parece o inverso. Pode-se conceber um mundo no qual eventos cerebrais objetivos ocorrem, mas eventos mentais não ocorrem" (1991, p. 170). Parece-me que o "darwinismo neural", de Edelman, refuta qualquer tipo de teoria da identidade entre estados mentais e estados cerebrais. São múltiplas, de qualquer modo, as relações mente-corpo: dependência, covariação, superveniencia (novo termo para "emergência"), identidade token-token, identidade type-type, redução, autonomia, eliminação. Pensar hoje em termos de "correspondência biunívoca", contudo, é impossível.

O problema da ineliminabilidade do aspecto qualitativo, ou fenómenológico, ou "analógico" da experiência consciente consiste, portanto, em que será sempre possível que comportamentos (por exemplo, verbais) coincidam, em "presença" de experiências conscientes divergentes, de modo que o poder da neuropsicologia para produzir evidências discriminativas entre hipóteses "qualitativas" (V. Fernandes, 1995, 2.7.) é limitado em princípio: todas as hipóteses conflitantes sobre aspectos qualitativos da experiência consciente podem ser empiricamente (comportamentalmente) equivalentes. Diante disto, um "verificacionismo" neo-wittgensteiniano dogmático poderia sempre optar pelo "comportamento", ou a "heterofenomenologia", ou o "ponto de vista da terceira pessoa", de modo a negar a existência do que "não faz diferença", ou seja, o aspecto fenomenológico da experiência.

Não se pode entender uma linguagem, ou o que ela significa, sem entender suas condições de verdade, ou seja, em quais circunstâncias seus enunciados seriam verdadeiros ou falsos. Mas não se pode entender em quais circunstâncias um enunciado é verdadeiro ou falso sem entender, em primeiro lugar, seu significado. O "verificacionismo" propõe que a "discriminação" empírica ou experimental seja criterial para o significado. Se o verificacionista se propuser, entretanto, a levar a sério a fenomenologia, como o "heterofenomenólogo" Daniel Dennett se propõe, ele terá de, de algum modo, desacreditar a "autoridade dos relatos na primeira pessoa", não por desconsiderá-los, mas por considerá-los, em última instância, como feitos na terceira:

Não é que primeiro alguém entre num estado de ordem superior de auto-observação, criando um pensamento de ordem superior, de modo que possa, então, relatar o pensamento de ordem inferior, expressando o pensamento de ordem superior. Ao contrário, o estado de segunda ordem (melhor "informado") vem a ser criado pelo próprio processo de editar o relato. Nós não aprendemos primeiro nossa experiência no Teatro Cartesiano e, então, com base naquele conhecimento adquirido, temos a habilidade de modelar relatos para expressá-la; nosso ser capaz de dizer como é a base para nossas crenças de ordem superior. (Dennett, 1991, p.315).

Com efeito, a teoria dennettiana da consciência caracteriza-se por soluções tão radicais quanto sofisticadas (bem mais sofisticadas do que as formas cruas de "materialismo eliminativista"), para os problemas que toda teoria explicativa da consciência deve enfrentar. Lembre-se o leitor que, em ciência, trata-se de explicação, não de compreensão, pois só as explicações aumentam nosso "espaço de manobra" manipulador (o poder). Mas, a parcialidade das explicações consiste, em ciência, em que uma coisa só se pode explicar em termos de outra coisa, jamais em seus próprios termos.

Para o problema da unidade da experiência consciente, a resposta de Dennett é de que "não há nenhuma corrente de consciência definitiva, única, porque não há Quartel General Central, nenhum Teatro Cartesiano onde 'tudo se une' para inspeção de um Produtor Central de Sentidos" (1991, p.257). Não havendo um "onde" e um "quando" acontece a união, caímos, como veremos adiante, embora Dennett ainda não o reconheça (ele está, no momento, escrevendo um livro de biologia), num holismo bio-psicológico.

Para o problema da organização simbólica, ou seja, o problema do que eu chamo de Identificações Secundárias (Fernandes, 1995), ou ainda o problema das frames, mitos, cenários, contextos etc, sua resposta é de que

em vez de um fluxo único (não importa quão largo), há canais múltiplos, nos quais circuitos especializados tentam, num pandemônio paralelo, cumprir suas tarefas, criando múltiplos esboços. A maior parte desses esboços fragmentários de 'narrativa' desempenha papéis de curtaduração na modulação da atividade ...(p.258).

Não havendo uma única "versão final", ou "objeto" identificado final, intencional, da consciência (o "eu" para Dennett é como um "centro de gravidade narrativa"), mas sim edição on Une, incessantemente revista, os "objetos" da consciência são, em última instância, projeções inconscientes "virtualmente" conscientes.

A consciência intencional é biologicamente "lenta", e muito recente para ser hard-wired no cérebro, que, afinal, não foi "selecionado" para ela. Trata-se, portanto, de um "fenômeno" de seleção de grupos neuronais (Edelman, 1987: Neural Darwinism; 1989; 1992) pelo "ambiente" que chamo de Segunda Natureza (Fernandes, 1995): "alguns [desses esboços fragmentários de 'narrativa'] são promovidos a novos papéis funcionais, em rápida sucessão, pela atividade de uma máquina virtual no cérebro. Sua serialidade não é hardwired no seu design, mas o resultado da sucessão de coalizões de especialistas" (Dennett, 1991, p.258). Os "especialistas básicos" (grupos neuronais e seus padrões funcionais) são parte de uma herança animal, e não se desenvolveram para executar ações como ler, escrever etc., mas para o processamento, a transformação, o recrutamento oportunístico, a ampliação por micro-hábitos idiossincráticos, a auto-exploração e a "cultura" de memes, ou seja, unidades mínimas de replicação simbólica (idéias) ou transmissão cultural, análogos aos genes (Dawkins, 1976, p.206). A consciência é, portanto, um "fenômeno" cultural baseado em evolução biológica, e funciona como uma coalizão de agências semi-independentes, módulos, ou homúnculos (demônios? gênios?). É como o porta-voz ou relações públicas de uma grande organização freqüentemente, ele é "o último a saber" .

O grande problema para a ciência, eu dizia, é que a experiência consciente parece "puramente qualitativa". Poder-se-ia pensar, um tanto injustamente, que se trata de um problema criado pelo empirismo, ou seja, pela doutrina de que as qualidades são "subjetivas". Existe, realmente, um problema criado por um erro empirista, como veremos mais adiante, mas não é bem este. Se as qualidades fossem de algum modo concebidas como "objetivas", teriam efeitos comportamentais detectáveis. Mas para que uma qualidade tenha "efeitos comportamentais detectáveis", enquanto qualidade, ou bem será necessário conceber o "comportamento" de modo "qualitativo", ou bem teremos de recair na problemática atual da ciência, que tenta explicar os qualia em termos de quanta. Ora, o que queremos dizer com "comportamento agressivo", por mais "qualitativamente inclinados" que sejamos? Ou o "construto" se manifesta ou não se manifesta. Se se manifesta, essa manifestação, ou é identificada ao construto (colapso da "distância" construtoevidência), perdendo este seu conteúdo e poder preditivo, ou a manifestação não é identificada ao construto, para possibilitar o teste das hipóteses em que o construto ocorre. Não havendo aquela identificação, ou seja, havendo testabilidade, a manifestação (comportamento, sintoma, indicador) não terá a mesma "qualidade" que o construto expressa. A doutrina empirista não pode, portanto, ser descartada por meio de uma versão platônica ou realista dos universais e das qualidades. A noção de "comportamento" como algo distinto do "qualitativo", ou, pelo menos, do "puramente qualitativo", ou ainda, como algo que, além de uma dimensão qualitativa, tem necessariamente uma dimensão quantitativa (medida) é fundamental para a vida humana, porque há realmente uma assimetria fenomenológica entre a maneira pela qual nos damos conta dos nossos estados mentais e a maneira pela qual nos damos conta dos estados mentais de outrem. Pela análise que fiz, em Filosofia e Consciência (1995, p. 163), da possibilidade de "fingir", "enganar" etc., o leitor pode inteirar-se de que, no meu entender, essa assimetria é "estritamente" fenomenológica.

No entanto, numa perspectiva transfenomenológica e comportamental, temos acesso aos nossos próprios estados mentais por análogos comportamentais nossos. Jamais estamos "fenomenologicamente" presentes a nós mesmos. Só o podemos estar "transfenomenologicamente". Apesar, portanto, de o comportamento dever ter uma dimensão quantitativa, sua dimensão qualitativa, como indicador de construto, é inescapável. Qualquer lista de disposições comportamentais é potencialmente infinita e vulnerável a contra-exemplos (tente o leitor conceber a lista de "disposições a se comportar" de maneiras al, a2,an , que corresponda ao estado qualitativo de "estar com dor de cabeça", por exemplo). Tais listas só podem ser tornadas finitas - e, portanto, úteis para todos nós que usamos na vida diária a milenar psicologia folclórica para nos entendermos uns aos outros - por meio de "cortes", em última análise arbitrários, e que reintroduzem necessariamente a mesma terminologia mentalista (não comportamental) que pretendíamos explicar. Em outras palavras, qualquer tentativa de explicar qualidades em termos quantitativos, ou será infinita (não algorítmica) ou circular. Deve haver, portanto, alguma coisa errada na nossa concepção da distinção entre quantidade e qualidade, além de um mero "dogma empirista". E compreender como a consciência pode inserir-se - melhor: harmonizar-se - na natureza (Primeira e Segunda), ou compreender a natureza da consciência, depende de nossa compreensão da distinção entre qualidade e quantidade.

 

PODE A QUANTIDADE IMITAR A QUALIDADE?

No começo de A Consciência Explicada (1991), Dennett descreve um "Jogo de Salão chamado Psicanálise" (p.10 e seguintes.). O grupo explica ao bobo que, enquanto este estiver lá fora, sem poder ouvir o que o grupo vai combinar, alguém vai contar um sonho recente. Ao voltar, caberá ao bobo descobrir quem teria sonhado aquilo, por meio de perguntas que o grupo possa responder com "sim" ou "não". Durante a ausência do bobo, o anfitrião explica ao grupo que ninguém contará sonho algum: as respostas às perguntas do bobo serão afirmativas, se a última letra da pergunta estiver na primeira metade do alfabeto (com 26 letras, até m) e negativas, se estiver na segunda metade (de n a z) devendo essa regra admitir exceções somente para evitar contradições com respostas anteriores (por exemplo, se o bobo perguntar se o sonho é sobre uma garoto, a resposta é sim; mas se, mais tarde, por distração, perguntar se há no sonho pessoas do sexo feminino, o grupo deverá responder "sim", apesar do o final).

O bobo, que representa, no jogo, nossas "expectativas" (hipóteses, teorias ou mesmo o inconsciente), ou nossa "fome epistêmica", que reage aos "dados" com ciclos (cerebrais) de confirmações e desconfirmações, recebe uma série, senão aleatória, no mínimo arbitrária, de respostas ou "dados". Desconsiderando os casos nos quais o jogo termina rápido em algum absurdo, os "ruídos" nos canais de "recepção" ampliarão desmesuradamente os ciclos de testagem/geração de hipóteses, de modo que o sistema entrará, por feed-back positivo, num "modo" alucinatório. Aparecerá uma história qualquer ("bizarra e freqüentemente obscura ... de desventuras lúdricas"), que o bobo "interpretará". Conhecendo previamente as pessoas do grupo, ele dará um palpite sobre quem teria sonhado "aquilo" (uma pessoa neurótica, muito perturbada etc), só para ouvir do grupo que é ele próprio, o bobo, o autor do sonho (quem, afinal, propôs incluir os três gorilas junto com a freira, no barquinho a remo?). Mas o sonho não tem intenção autoral, ou autor. Difere das metamorfoses voláteis dos sonhos sonhados apenas pela regra de não-contradição - nos sonhos, as "contradições" seriam mudanças no mundo sonhado. O sonhador, no jogo, é o "isso"-que-sonha: mas seria diferente o sonhador no sonho? Suas observações seriam sonhadas, de um modo ou de outro. Adaptando ao nosso alfabeto e à nossa língua outro exemplo de Dennett (1991, p. 15), poderíamos imaginar um seminarista obcecado por Deus e temas teológicos. Seguindo-se as mesmas regras, teríamos:

Pergunta: É sobre Deus?

Resposta: Não. ["Deus" termina com s]

Pergunta: E sobre meu pai?

Resposta: Sim.

Pergunta: Bem, é sobre a Criação?

Resposta: Não.

Pergunta: É sobre Deus?

Resposta: Não.

Pergunta: É sobre Deus-Pai?

Resposta: Sim.

Pergunta: Eu sabia que era sobre Deus! Ele nos salvará?

Resposta: Sim ...

Dennett é cauteloso acerca do que seu exemplo provaria, ou não provaria, mas seu jogo aparece num contexto no qual ele parece estar discutindo a fenomenalidade da consciência - ao construirmos um oásis com grãos de areia, não poderíamos jogar fora a escada por onde descemos do oásis aparente ao grão de areia real. Nem um só degrau!

Dennett pretende, é claro, preparar o leitor para a sua versão do "funcionalismo homuncular", ou seja, a teoria de que o que chamamos de "intencionalidade" ou "consciência" não depende do "hardware" - poderia aparecer numa máquina virtual - e que os aspectos "qualitativos" da experiência consciente não são "propriedades intrínsecas", mas relacionais, explicáveis por organizações funcionais de nível inferior (menos conscientes, ou "homunculares"). Mas seu "jogo" aparece em seqüência à sua crítica à idéia do "gênio maligno" cartesiano. Qualquer tentativa de imitar a qualidade com a quantidade, os qualia com os quanta, o "analógico" com o "digital", enfrenta, mais cedo ou mais tarde, "explosões combinatórias", de modo que qualquer coisa menos que uma "potência infinita" seria obrigada a introduzir réplicas ou análogos qualitativos, para garantir o realismo das virtualidades. O leitor notará, aqui, a semelhança do que agora focalizamos, com o que discutimos há pouco acerca do behaviorismo e os aspectos qualitativos da experiência consciente. A quantidade, os quanta, suponhamos, "estão" no cérebro. Mas tente o leitor imaginar como um gênio maligno poderia iludi-lo acerca da existência do mundo, inclusive o próprio corpo do leitor etc, manipulando seu cérebro. O gênio teria de calcular os sinais que normalmente partem dos sistemas neuronais internos, pois não haveria nada "externo" - antes de se produzir a ilusão - para organizar percepções e propriocepções. Mas o número de feed-backs seria astronômico, embora teoricamente finito. Pois, cada reação do leitor à cada manipulação do gênio, as possibilidades ramificariam-se, tornando-se logo computacionalmente intratáveis. Dennett menciona a fábula do imperador que concorda em recompensar o camponês que salvou sua vida, com um grão de arroz no primeiro quadrado do tabuleiro de xadrez, dois no segundo, quatro no terceiro etc, de modo que deverá ao camponês 26 4 grãos; ou o caso dos novelistas "aleatórios" franceses, cujas novelas devem ser lidas do seguinte modo: depois de ler o primeiro capítulo, jogase cara ou coroa e, dependendo do resultado, lê-se o capítulo 2a ou 2b, depois o 3aa, 3ba, ou 3bb etc, jogando cara ou coroa ao final de cada capítulo; esses novelistas trataram de restringir as possibilidades de escolha do leitor, no mínimo para que este pudesse levar o livro para casa (5n). Toda "ilusão interativa" gerando explosões combinatórias, ou o gênio maligno teria de ser infinitamente potente, ou teria de tornar sua ilusão dependente dos "interesses" de sua vítima - lendo, talvez, oniscientemente, sua mente, e antecipando o que ele vai "decidir" -, ou ainda, contar apenas com a "fome epistêmica" da vítima e proporcionar-lhe estimulação "arbitrária", como no jogo de salão. Indo muitíssimo além do que Dennett iria, temos aí uma versão "kantiana" do Aparecimento do Mundo, como um fenômeno de "ilusão interativa" (o leitor certamente já assistiu a um bom espetáculo de mágica!?).

Não é, portanto, "correto" dizer que a quantidade "imita" a qualidade, se, com isso, estamos querendo dizer que o que se chama de "qualidade" nada mais é do que um "efeito" de arranjos quantitativos. A "falácia descritiva" pode, no entanto, ser usada para defender duas "metafísicas" da consciência, radicalmente opostas. Pode-se cometê-la, como Searle o fez - e, suponho, antes dele, Leibniz -, para defender alguma versão da "Teoria da Propriedade Intrínseca" acerca da consciência; ou pode-se cometê-la, como, por exemplo, Rosenthal o faz, para defender alguma versão da "Teoria da Propriedade Extrínseca" (Rosenthal, 1986; 1991; 1993; Dennett o critica em 1991,314-20. Mas veremos tudo isso mais adiante).

Considero inaceitável qualquer teoria da consciência que a tome como "propriedade intrínseca" de estados mentais, não porque não reconheça a distinção entre o qualitativo e o quantitativo, mas pela simples razão de que não acredito que haja "propriedades intrínsecas" (ou "essências reais"). Para mim, qualquer propriedade de uma coisa é uma propriedade extrínseca, ou seja, não necessária, ou contingente. Como diria Dennett, "se a vida de alguma criatura dependesse de juntar a lua, queijo azul e bicicletas, você pode estar bem certo de que a Mãe Natureza daria um jeito de a criatura 'ver' essas coisas como 'intrinsecamente' da mesma espécie" (1991, 381 n2). De modo que o que quer que seja que a consciência for, ela não o é "intrinsecamente" - seja lá o que for que se queira dizer com isso -, não porque seja "arbitrário" o que ela seja, mas porque me escapa completamente o sentido de ser alguma coisa "intrinsecamente", quando tratamos da realidade, dos entes ou dos existentes. O que nos parece necessário, ou intrínseco, é função de esquemas conceptuais ou hábitos.

Isto não me exime, contudo, de atender à fenomenologia do "parecer necessário". Concebendo a "consciência intencional" como uma "forma de inconsciência", não tenho porque brigar com teorias contemporâneas que pretendem desmascarar o que chamamos de "consciência" como uma "ilusão" ou um "efeito" de algum tipo. Na verdade, um "efeito" de outra coisa. Mas tampouco isto me exime de atender à fenomenologia, ou seja, ao porquê nos iludimos, ao porquê pensamos que somos conscientes quando estamos naqueles "estados mentais" aos quais o folclore e a psicologia folclórica atribuem "consciência". ("Se o que eu quero, quando tomo vinho tinto, é informação sobre suas propriedades químicas, por que não leio o rótulo apenas?", pergunta Shoemaker; in Dennett, 1991, p.383).

 

ESBOÇO DE UMA TEORIA DA "CONSCIÊNCIA INTENCIONAL"

Desenvolvi uma teoria da consciência em Fernandes, 1995. Se eu quisesse expressá-la numa terminologia, digamos, próxima à da ciência contemporânea, eu diria que o que chamamos de "intencionalidade" de um sistema cognitivo qualquer - pois não é necessário que a intencionalidade só esteja presente em "seres humanos" - é função do uso de indexicais ("eu", "aqui", "agora" etc.), pelo sistema. Esse uso é, por sua vez, uma função contínua decrescente em direção à pura sintaxe (tokens) e crescente em direção à semântica (íypes e "sentidos"). A sintaxe é sempre "transparente"; a semântica, sempre opaca. O que se quer dizer com "a sintaxe imita a semântica" é análogo ao que sempre - desde Darwin - se pretendeu dizer com "a seleção natural imita a transmissão hereditária de caracteres adquiridos".

A função "... é intencionalmente consciente de ..." tem valores que eu chamo de "formas de inconsciência". Já a expressão "consciência de si" é uma contradictio in terminis. Só se tem "consciência" intencional de um objeto. O caso em que esse objeto é reconhecido como o que indexicalmente referimos, ou seja, "eu", não constitui exceção.

Suponha agora o leitor uma série de eventos mentais "instantâneos", ou "momentâneos", portanto atemporais, cada um compondo, pelas identificações primária e secundária, um "sujeito" e um "objeto", e, por isso, gerando o que se chama de "irreversibilidade", ou "temporalidade", como projeção das identificações. Neste caso, cada "sujeito" como que transmitiria ao seguinte a totalidade do que chamamos de sua "memória". Dessa maneira,

embora pareça-me agora que eu sou um único sujeito que teve e continua a ter, ao longo do tempo, uma longa série de experiências, posso bem ser meramente um sujeito existindo brevemente numa sucessão de sujeitos, cada um transmitindo suas experiências ...ao próximo ... Nada na minha experiência pode assegurar-me do contrário. (Hodgson, 1991, p.410, meu grifo).

Lembrar-se é re-categorizar, ou reforçar padrões sensoriais iniciais, por reativação global da atividade cerebral; de modo que toda lembrança é uma recriação. E a recriação é incessante. Cada grupo neuronal reage de maneira irrepetível, mesmo a estímulos que julgamos "idênticos". Se houvesse qualquer tipo de "armazenamento" -per absurdum, pois, no mínimo, não há espaço para isso! - o conteúdo armazenado reestruturaria totalmente o cérebro, de modo que temos o paradoxo: se houvesse armazenamento, não haveria "o armazém". (V. Rosenfíeld, 1988). Ainda que abandonemos o "presente pontual", que uso, aliás, como mero artifício - sem compromisso com o mito agostiniano - e consideremos que o "presente" consciente tem uma certa "duração" - o que é verdade (Poppel, 1989, por exemplo) -, teríamos de enfrentar o problema do "tempo real" (duração em relação a quê?) e, de qualquer modo, poderíamos sempre reaplicar a "pontualidade" para analisar a duração do presente, por menor que seja. E "pontualidade" é a-temporalidade. Como admite Hodgson (1991), não só nossas "memórias" podem ser memórias de "outrem", mas também podem ser memórias de "experiências que ninguém teve":

Concebivelmente, a pessoa (e, de fato, o mundo) pode ter acabado de brotar para a existência, completa com memórias de um passado aparente, (id.) Pode-se considerar ...o sujeito consciente das experiências como meramente um efeito ou propriedade ou atributo da experiência, edependentedela.(\99\,p.422;NB: Hodgson está discutindo tais doutrinas.)

Nosso uso de indexicais pode bem ter um valor adaptativo. Por um lado, esse valor pode ser negativo: mutantes totalmente conscientes seriam extremamente lentos. Tente o leitor estar conscientemente atento para todos os seus processos cerebrais, digestivos, musculares etc. e veja se sobra algum "tempo" ou "atenção" para entender o que lê. É claro que o que peço é impossível: o cérebro não foi feito para introspectar, mas sim para relacionar adaptativamente o organismo ao ambiente. Nosso "acesso consciente" ao nosso corpo é mínimo, comparado com o que ele faz, limitando-se a propriocepções selecionadas como "interessantes". Pedir a alguém que me "treine" em alguma coisa (piano, por exemplo) é pedir-lhe que me ajude a tornar inconsciente, ou passar para o "piloto automático", aquilo que é consciente, ou executado pelo "piloto manual". Uma vez "treinados", podemos executar certa tarefa inconscientemente, de modo a poder voltar o foco de nossa atenção para outras coisas (no caso do piano, para a "interpretação"). Por isso, aliás, "educação" e treinamento são coisas distintas, pois a verdadeira educação visaria o contrário do que visa o treinamento, ou seja, visaria a ampliação da consciência. Mas, a menos que se educar seja transformar-se num yogi que controla seus batimentos cardíacos etc, essa re-imersão na natureza tem de ser altamente seletiva, de modo que dependerá forçosamente de treinamento, embora se distinga dele. A natureza (primeira e segunda) nos "treinou": por exemplo, o que nosso corpo faz é para nós, em grande parte, inconsciente. Excelente treinadora: nosso inconsciente - e nossa inconsciência - são imensos. Mas, terá sido boa educadora?

Por outro lado, o valor adaptativo do uso de indexicais pode ser positivo: o que se considera hoje um "algoritmo darwiniano" (Edelman, 1987; 1989; 1992; Cosmides e Tooby, 1987) pode bem corresponder a algum tipo de controle serial (analógico), sobreposto a controles multiprocessadores paralelos (digitais não-lineares) e selecionado para aumento de velocidade de discriminação qualitativa (pois, quanto a aspectos quantitativos, a consciência é notoriamente "lenta": tente o leitor extrair a raiz quadrada de 7869001457!). No sentido qualitativo, a consciência intencional pode ser uma vantagem, digamos, "econômica", pois põe à disposição do organismo, em milésimos de segundo, em vez de em milênios, análogos representacionais para discriminações específicas. De qualquer modo, trata-se de algo parecido com a ponta de um iceberg, "visível" sobre vasta e intensa atividade, resultando no que Hume chamava de "vivacidade". Auto-exortação, auto-lembrança, capacidade rastreadora de "esquemas habituais" etc. (Jaynes, 1976; Crook, 1980) podem maximizar "utilidades" como as aptidões biológicas (fugir, comer, lutar, copular) e conativas básicas (medo, ira, surpresa, nojo, felicidade e tristeza).

Uma coisa, porém, é o uso desenvolto que, na dimensão estritamente pragmática da linguagem, fazemos de indexicais como "eu"; outra, a compreensão desse uso. Não seria "esquizofrênico" referirmo-nos a nós mesmos na terceira pessoa, seria, antes, talvez, um sinal de compreensão do que se passa. Fica, evidentemente, não desvendado o mistério: quem "se" identifica?

O suposto "curto-circuito" urobórico que se costuma chamar de "consciência de si" não passa de uma identificação entre um organismo, uma "alma desencarnada" etc. e sua imagem especular, "eu sou x", "estou ali, no espelho", "sou o que penso que sou" etc. Trata-se de um erro, um erro grosseiro, fruto de total ignorância do que se passa conosco e erigido, quando muito, no auge de nossas "luzes", à categoria de "ilusão irresistível". "Uma identificação entre ... e ...": pois bem, mas quem a faz? Poder-se-ia pensar que o "sujeito" é, "ao mesmo tempo", o que identifica e o produto da identificação, ou seja: "eu existo". Mas, tanto esse produto quanto o sujeito são "pensamentos". Um pensamento da forma "eu" é que faz as identificações. Mas, um "pensamento da forma eu" não é ninguém. Não deveríamos dizer, portanto, que esse pensamento (eu) se identifica a si mesmo, como se houvesse uma função "... =..." na qual o lugar da esquerda pudesse ser preenchido por um "ente" distinto do pensamento.

O que parece misterioso é que, assim como se pensa, ordinariamente, que o movimento tem de ter um "sujeito do movimento", pensa-se, analogamente, que uma identificação tem de ter um "sujeito da identificação", ou pior, um autor, aquele que se ilude, aquele que é ignorante etc. Com efeito, quando identificamos a com è, somos "nós" que fazemos ou somos os "autores" da identificação. Eis um fato biológico traduzido em jogo de linguagem. Acontece que, quando "acreditamos" na realidade, ou existência do ente "eu", é este "ente" que está projetado para fora da identidade, como o "assunto" sobre o qual ela versa, se for verdadeira. Nesta identificação, portanto, não há "autor". Há uma identificação como maneira que nós temos de falar da mente e do pensamento. Se quisermos "postular" um "autor", não será nenhum "eu transcendental", "ego puro" etc., mas o pensamento, tout court, ou o que se chama de "mente", como realidade biológica. Pois se fosse um "ego" trans-empírico, "ele" não poderia jamais ser "pensado", "concebido" etc. Se é pensado - e como se tem "pensado" sobre ele! -, se tem sido concebido por diversas versões do "idealismo absoluto", então é mais um objeto. E aquela identificação-semidentificador que eu chamei, em Filosofia e Consciência, de "Identificação Primária". Já as "Identificações Secundárias" dependem da primária, de modo que são mais naturalmente tomadas como tendo a autoria do que esta última criou, ou seja, do "personagem", ou "sujeito a ..."

 

O QUE ANDA DIZENDO A CIÊNCIA?

Benjamin Libet, ao longo dos últimos 30 anos, vem publicando uma série impressionante de resultados científicos acerca da "origem da decisão consciente de agir" (Libet, 1965; 1982; 1985a; 1985b; 1987; 1989; Líbete/a/, 1979 etc). Só um cartesiano poderia surpreender-se com esses resultados ou fazer deles um cavalo de batalha em defesa do dualismo (Popper e Eccles, 1977; Foster, 1991). Esses experimentos em si mesmos e as interpretações de seu autor têm sido discutidíssimos (Dennett, 1991, Churchland, 1981a; 1981b; Honderich, 1984; Harnad, 1982; Ornstein, 1991, etc). Mas, algumas coisas parecem claras. Libet tomou o comportamento como criterial para o "quando" um estado mental torna-se consciente. No caso, o comportamento verbal. Sendo a ordem temporal subjetiva uma "edição" ad lib dentro de quanta ou janelas, ou limites de sustentação de uma "integração intencional", será sempre discutível a adoção de qualquer "linha" ou "fronteira" divisória final entre o "consciente" e o "inconsciente". Mas já que temos de adotar alguma linha divisória como criterial, para que surjam as evidências contra as quais podemos testar nossas hipóteses, não vejo por que não aceitar relatórios verbais.

Ora, Libet descobriu o óbvio, para quem compreendeu o Erro de Descartes, e acompanha minimamente o desenvolvimento da neuropsicologia contemporânea: a "consciência" não é nenhum "primeiro motor". Mas, quem pensaria, hoje, que os "antecedentes causais" da consciência deveriam todos ser, por sua vez, "conscientes"? Quem pensaria, hoje, que somos verdadeiramente um "eu consciente", o agente que tem suas "verdadeiras" razões, seus "verdadeiros" motivos para fazer o que faz? Além de o que chamamos de "eu" ser uma construção bio-psicológica e social, não somos a mesma pessoa a cada momento. Esta "mesma pessoa" é uma "ilusão" ou uma "realidade virtual" projetada pelo cérebro. Temos muitas "mentes" e não há aqui "ninguém" suficientemente permanente para "se dar conta" de qual delas está de "plantão". Certo: cada uma dessas mentes atua como se estivesse ali desde sempre ("sempre que nos entendemos", ou "desde que me dei conta de mim mesmo"), mas, ao que tudo indica, há um sentido muito importante no qual there's nobody home!

O mundo pelo qual nosso cérebro foi selecionado já não existe mais, pois há milênios modifica-se aceleradamente no plano da evolução dos memes, sem que tenha havido, desde então, uma única mutação genética significativa em termos macrobiológicos. As características do nosso cérebro foram, entretanto, recrutadas de estruturas desenvolvidas para outros usos. Nossa prematuridade ontogénica, a plasticidade e a redundância estrutural do cérebro fazem com que o "meio" (primeira, mas há dois milênios, sobretudo, segunda natureza) o selecione. O que chamamos de nosso "intelecto" deve ser uma vantagem marginal de outras adaptações. O que chamamos de nossa "racionalidade" é uma "re-acionalidade" adaptada ao uso cultural (Dennett, 1984 e Ornstein, 1991). Nosso córtex redundante e plástico já estava pronto muito antes da linguagem e da cultura, de modo que nossas reações são irracionais: o "emocional" e o "inconsciente" são os principais sistemas reguladores da mente humana, num meio "estranho" criado como um subproduto dessa mesma mente -, em que projetamos exossomaticamente "ideais de racionalidade". O intelecto que criou a lógica e a matemática, e os computadores, são uma faceta marginal da nossa mente, cujo pensamento organiza-se quase que totalmente em torno de emoções.

"Experimentar", "recordar" e "sonhar" são edições virtuais on Une, de um alucinador fantasticamente sofisticado (em privação sensorial, ele continua a "editar"; no útero, passa praticamente todo o tempo em sono REM). As "fiações" desse alucinador não terminam em nenhum "local" específico. Mas sua complexidade exigiu formas de controle diversificadas e unificadoras, que pressupõem identificações primárias e secundárias. Essas formas de controle, por sua vez, não foram selecionadas para fazerem a neurociência de si próprias, de modo que, quando tentam fazê-lo, geram um contraste entre o que chamamos de "fenomenologia" e o que aparece como real. O leitor sabe que, por mais que creia nisto tudo que estou dizendo, essas crenças não bastam para que ele se "sinta" inconsciente. E não é isso, obviamente, que se pretende, mas sim compreender a nossa condição total. No entanto, por exemplo, a descontinuidade da consciência do leitor, e da minha, é transfenomenalmente revelada pela nossa anosognosia (Mc Glynn e Schacter, 1989), "supressões sacádicas" (Brooks et al, 1980) etc., para não falar da vasta literatura neuropsicopatológica (propagnosia, cegueira visual, visão cega, e o caso Zazetsky - Luria, 1972; Sacks, 1983, 1985; Humphrey, 1991; Dennett, 1991; Põppel, 1989 etc).

Enquanto as fronteiras dos quanta temporais não são "percebidas", não temos senso de "descontinuidade" consciente, e nosso "senso de continuidade" é feito para resistir a intervalos longos (sono, coma etc, Sacks, 1983), de modo a reconectar-se do ponto em que se "apagou". Como vimos no capítulo precedente, entretanto, tudo isto diz respeito à "forma de inconsciência" que chamamos de "consciência intencional", que conserva, apesar de tudo, a marca da sua verdadeira natureza, pois, como até Dennett reconhece, fenômeno logicamente,

Do interior, a consciência parece ser um fenômeno tudo-ou-nada - uma luz interna que, ou está acesa, ou está apagada [em Filosofia e Consciência vimos que não é ela que se apaga, mas o senso de "eu"]. Concedemos que às vezes estamos sonolentos, ou desatentos, ou dormindo e, ocasionalmente, até usufruímos de uma consciência anormalmente elevada, mas quando estamos conscientes que estamos conscientes não é um fato que admita graduação. (1987, p.161).

Pelo que se depreende dos experimentos de Libet, aproximadamente 0,5 segundos é o tempo que o cérebro leva para "editar" conscientemente a simultaneidade entre o que ele "decidiu" fazer (potencial de prontidão), sem que o soubéssemos, e o que "nós", fenomenologicamente, temos consciência de desejar voluntariamente fazer. O cérebro dá início a nossas ações cerca de 0,5 segundos antes (no tempo "real") que tenhamos consciência de que "vamos querer fazer aquilo" e, quando (no tempo "real") nos damos conta de que "queremos fazer aquilo", e o fazemos, o cérebro faz com que, temporalmente, nosso "sentido de eu" se perceba como agente. Só podemos "vetar" conscientemente ações após 0,5 segundos do seu início "real". Os atletas partem e garantem que ouviram o tiro de partida antes de partir, mas partiram antes de "ouvi-lo". Há fenomenologia sem informação: quando "vemos estrelas" após termos levado um soco no olho; ou informação (processada) sem fenomenologia: quando vivemos normalmente a vida quotidiana.

Não há dúvida de que "nós" podemos entrar em miríades de "estados qualitativamente discriminativos" ("qualitativamente", aqui, significa apenas "rapidissimamente" ou "velocissimamente"). Pensamos que "temos consciência intencional" do mundo. Mas a última palavra sempre esteve com o cérebro. Com efeito, as magnitudes, as únicas magnitudes sequer comparáveis, ainda que grosseiramente, às do Universo, são as do cérebro humano. E este ganha do Universo por várias ordens de magnitude. O número de partículas do Universo está estimado em IO87 (Churchland, 1989; apud Flanagan, 1992, p.37). Pois uma estimativa sóbria do número de estados neurais potenciais distintos do cérebro humano está em (1010)14, ou 10 100 000 000 000 000, número impossível de ser escrito em forma não-exponencial, pois o "10" teria de ser seguido de 100 trilhões de zeros (o cálculo foi feito por Paul Churchland, sempre trabalhando com as estimativas o mais conservadoras possível: 10 11 neurônios - o que já eqüivale ao número de estrelas na Via Láctea -; cada um com um número médio de sinapses emanando de cerca de 3.000 outros neurônios, donde cerca de IO14 possíveis conexões sinápticas distintas (1011 x 103); cada uma delas com de 1 a 10 níveis de ativação possíveis).

Flanagan considera que, ainda que 99% desses estados não sirvam a funções cognitivas relevantes, isso nos deixa com 0,01 x =10 100 000 00 0 000 000 = 10 99.999.999.999.997 Ainda que até 99,9 % sejam não-funcionais, isso nos deixa com 10 99 999 999 999 994 estados funcionais possíveis. Ainda que 99,9 % destes últimos sirvam a processos inconscientes, isso nos deixa com j Q99 999 999 999 994eS { ac j 0 S possíveis que sirvam ao que chamamos de "consciência". E os cérebros são tão iguais entre si quanto as folhas de um árvore, ou seja, muito diferentes. Considerando tudo isto, e tudo que nos revelam instrumentos como micro-eletrodos, Imagens por Ressonância Magnética e Tomografias por Emissão de Pósitrons, estamos diante de uma "realidade" que nos "aparece" como muitíssimo mais fantástica do que as "visões" da astrofísica. O cérebro é como um holon: não há mudança numa parte que não afete o todo. Se o número de seus estados possíveis é superior em várias ordens de magnitude, aos maiores números da astrofísica, então o número de seus padrões de ressonância possíveis é ... inconcebível.

Recentemente, dois detentores do Prêmio Nobel em Biologia, um deles, Francis Crick, em 1953, pela descoberta da estrutura do ADN; e outro, Gerard M. Edelman, em 1972, por pesquisas com anticorpos, voltaram-se para a neurociência, para desvendar o enigma da consciência (Crick e Koch, 1990; Edelman, 1987,1989,1992) . Isto para não falar do nosso físico Roger Penrose, que, depois de The Emperor's New Mind, publicou, em 1994, Shadows of the Mind. Alguns deles se reuniram, em abril de 1994, no Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Arizona, a outros neurocientistas, filósofos, psiquiatras, cientistas da computação etc, no que se passou como sendo "a primeira conferência científica interdisciplinar sobre a consciência", segundo uma reportagem de 1994 do Scientific American, e devem ter-se reunido em novembro do mesmo ano, na Conferência Anual da Sociedade de Neurociência, para o seu primeiro simpósio sobre consciência. Encontros desse tipo, sobre a consciência, têm proliferado, sobretudo em número de artigos, coletâneas e livros publicados.

Mas a ciência, em que pese suas "representações" fantásticas - e freqüentemente muito "úteis" - pode chegar muito facilmente ao ridículo. Que diria o leitor se lesse no jornal que uma equipe de astrofísicos, tendo descoberto alguma coisa "estranha" como a quantidade total de "matéria escura", ou um fabuloso quasar, ou flutuações quânticas no vácuo, declarasse ter descoberto ... Deus? Pois é algo parecido que fazem Francis Crick e seu assistente Cristof Koch. Antifuncionalistas, querem o impossível, ou seja, abrir "caixas pretas". Trata-se de uma impossibilidade em princípio, mas que aparentemente lhes passa, despercebida. O que se pode fazer, em ciência, é inserir novas caixas pretas dentro de outras, mas jamais abri-las. Neste sentido, toda teoria científica é "fenomenológica". Crick e Koch procuram algo ... eletrofisiológico, que resolva o que é considerado hoje o enigma "central", ou seja, o problema da unidade fenomenológica da experiência consciente. A teoria é pífia: seguindo uma conjectura de William James, eles pensam que a "unidade" deve, de algum modo, ser produzida por um único mecanismo subjacente que envolva atenção e memória curta. Munidos dessa teoria, encontraram correlações entre estados neurológicos de gatos anestesiados, que indicavam awareness, e padrões eletrofisiológicos de oscilação sincrónica, na faixa de 40 hertz, nos grupos relevantes de neurônios. Sustentados por tempo suficientemente longo, tais padrões incorporariam-se à memória, dando origem à fenomenologia!

Ora, é possível que a fenomenologia da experiência consciente seja tão variada que não haja sequer uma maneira de se conceber um único conceito de "consciência". Que conceito agruparia qualidades sensoriais nas cinco modalidades, estar acordado, humores, estados d'alma, lembranças, emoções, sonhos, intenções ou "estados intencionais" de todos os tipos, autoconsciência de todas as espécies, atenção, auto-controle, planejamento, auto-reflexão, exame de consciência etc? Talvez a consciência não possa ser projetada como uma "espécie natural", no plano da realidade. Além disso, a distinção entre "vida" e "não-vida" acabou de entrar virtualmente em colapso na ciência, e não vejo razão porque, logo agora, a distinção entre "consciente" e "não-consciente" deveria ser implementada de maneira "científica". Além do problema da heterogeneidade, há, como vimos, o problema central, da unidade, o problema do caráter não-local da experiência consciente, o problema das molduras (frames) cognitivas da organização simbólica, o problema da aparente irredutibilidade do aspecto puramente qualitativo (qualiá) e, como veremos mais adiante, o problema, estreitamente relacionado a este, do resíduo ineliminável de psiquismo subjetivo no ponto de vista. Além disso, a consciência tem sido usada, em ciência, tanto no papel de explicans quanto no papel de explicandum.

Digamos que pudéssemos classificar toda a fenomenologia relevante em dois níveis: consciência atenta (focal) e desatenta (difusa) ou semi-automática, mas cujos conteúdos sejam recordáveis em detalhe. Digamos que também possamos classificar toda a fenomenologia em dois tipos: consciência nãointencional (sensorial, emocional e, como vimos em Filosofia e Consciência, consciência de "entes" temporais; ou consciência da "realidade", ou de "existência"); e consciência intencional, à qual geralmente se pensa corresponderem intenções ou conteúdos abstratos, como os objetos das atitudes proposicionais, mas que, como mostrei em Fernandes (1995) na verdade só "intenciona" objetos momentâneos, atemporais. Suponhamos que pudéssemos dizer que toda a fenomenologia da experiência consciente pressupõe fronteiras, membranas, dualidades. A que teríamos chegado? A praticamente nada: de algum modo, o organismo como um todo torna-se, digamos, sensível, como um todo, a seus próprios estados ... ponto.

Dentre as teorias neurocientíficas, a de Edelman parece-me a mais interessante. Crick o acusa, é claro, de encobrir idéias não muito originais com jargão idiossincrático e obscuro. Na verdade, a teoria de Edelman assemelha-se muito à de Humphrey, e acredito que esteja na base da teoria dos múltiplos esboços de Dennett. A consciência emerge, pelo menos em parte, por pressões seletivas sobre grupos neuronais intercompetitivos, que favorecem a coordenação, pelo organismo, de duas espécies de organização nervosa: a que representa o interno (isto está acontecendo a mim) e a que representa o externo (isto está acontecendo lá fora). Esse favorecimento seletivo teria dado origem a um sistema discriminativo fenomenologicamente robusto, para manter a distinção entre o interno e o externo - note o leitor que isto pressupõe a identificação e, no nível lingüístico, o uso de indexicais - e as relações entre o interno e o externo.

As idéias fundamentais do "neurodarwinismo", ou "darwinismo neural" são: o genoma humano não determina o diagrama da "fiação" do cérebro; toda fiação é capaz de ser recrutada para novas funções complexas; um mesmo estado consciente é produzido por estados mentais diversos, intra e interindividualmente; as conexões neurais são globalizantes; grupos neuronais são selecionados durante a experiência do organismo, que não age apenas como "detonadora"; a retenção representacional (memória) da rede não envolve estocagem ou arquivamento, de modo que os grupos especializados estão sempre disponíveis para tarefas fora de sua especialidade; a seleção ontogenética, ao contrário da filogenética, dá ao sistema total fluidez e plasticidade (Flanagan, 1992; Rosenfield, 1988; e Edelman, 1987 e 1989).

No entanto, embora mais interessante que a teoria de Crick, a de Edelman, como toda teoria científica, não toca nos verdadeiros problemas filosóficos. O status quaestionis permanece idêntico ao que era: a experiência consciente é fenomenologicamente "privada", "intrinsecamente" qualitativa, imediata, permite inversões qualitativas inter e intra individuais, comportamentalmente indetectáveis, e parece impossível a um ser consciente a saber como é ser outro ser consciente 6, pois o máximo a que a poderia chegar seria saber como é, para ele, a, ser como o outro ser consciente b.

Pelo menos desde 1950, com a publicação, em Mind, do artigo de Farrell, Experience e, notoriamente, após a publicação do artigo de Thomas Nagel, What is it like to be a Bat? (1974; 1979) - para não falar do artigo de Sprigget, Final Causes - tornou-se habitual na literatura filosófica sobre a mente e a consciência a referência ao "resíduo" não-objetivável de "psiquismo" que certas regiões do espaço-tempo parecem possuir, como "o ser como aquilo" daquele ente. A fenomenologia total da experiência consciente poderia até ser transfenomenalmente "des-reduzida", mas "o como ser aquilo" de seres que se comportam como centros de interesses, ou seja, que parecem ter "razões" para fazer alguma coisa, ou que parecem ter um "ponto de vista", permaneceria incólume, reduzido ao campo puramente fenomenal exclusivo de um só ente. A consciência passou a ser um fenômeno suigeneris, que ocorre em seres que são de tal modo que "seja alguma coisa", ou faça alguma diferença para ele ser como é. Passou-se a encurralar toda a fenomenologia para esse canto obscuro do "como é ser x", que só pode ser conhecido, qualitativamente, por x. Trata-se, ainda, de um fenômeno psíquico, mas como que restringido ao seu mínimo limite, pois, como fenômeno, só aparece para aquele ser, que sabe como é ser o que ele é, de um modo que nenhum outro ser pode sabê-lo. O "Como é ser como ..." passou a ser uma função na qual o lugar da variável pode ser preenchido por "mim", "outra mente", "você", "uma máquina de Turing" (generalizada; Dennett, 1991, pp.209-226), "uma orquídea", "um gato", "um morcego" (Nagel, 1979), "um sistema planetário", "o planeta Terra" (V. Lovelock, 1979; 1987), "a floresta amazônica" etc.

 

COMO É SER THOMAS NAGEL?

Pode-se caracterizar o empirismo como a doutrina filosófica que identifica o "sujeito" empírico com o transcendental. Mas essa caracterização, além de admitir um dúbio "sujeito transcendental", não vai à raiz do empirismo. O erro empirista, a meu ver, é a identificação - absurda - entre realidade e aparência, na sua concepção de "experiência consciente". Neste sentido, o erro empirista é uma variante do erro de Descartes, pois identifica o psicológico "certeza" etc. - com o epistemológico - "verdadeiro" etc. -, e este com o ontológico: a realidade para o empirista pode,/?er absurdum, ser "apenas aparente".

Thomas Nagel começa seu livro The View From Nowhere (1986) formulando um problema que, como tal, não existe, não pode existir, ontologicamente falando: "Este livro", diz ele, "é sobre um único problema: como combinar a perspectiva de uma pessoa particular dentro do mundo com um ponto de vista daquele mesmo mundo, a pessoa e o seu ponto de vista incluídos".

Ora, no meu entender, a perspectiva de uma pessoa particular é (idêntica a) um ponto de vista daquele mesmo mundo, de modo que o problema não existe. Quando uma pessoa critica sua perspectiva como mera perspectiva, a pessoa necessariamente já inclui no mundo a si mesma e seu ponto de vista, ou seja, sua visão do mundo (conteúdo) e seu ponto (ela mesma como tendo aquela visão). Nosso impulso para transcender nosso ponto de vista particular é servido por nossa capacidade intencionalmente consciente (uma forma de inconsciência). Nosso ponto de vista particular é uma ilusão constitutiva, sistemática, irresistível, além de biologicamente condicionada: é a ignorância mesma, ou o avesso da verdadeira consciência. A capacidade reflexiva, pela qual a consciência intencional avança - em última instância, nas trevas - criticamente, enquanto recua sua identificação secundária para os tais planos que, relativamente a cada opacidade prévia, são chamados de transcendentais, é ainda o deslocamento do ponto cego, como pálido reflexo da transparência que, na identificação primária, projetou como resto a inconsciência. Por isso, nosso impulso para transcender nosso ponto de vista particular corresponde a uma capacidade que temos de, no circuito da ignorância, concebermo-nos a nós mesmos, ou seja, nosso ponto de vista e o que ele permite ver: a visão e o ponto que agora aparece, na sua opacidade, a outro ponto, que agora desaparece na sua transparência, ou cegueira.

De fato, a identificação secundária tem raízes tão profundas, que tem levado praticamente todos os filósofos a crerem nos slogans: "nenhuma consciência sem autoconsciência"; e "nenhuma autoconsciência sem a concepção de um mundo habitado por tal consciência". Mas tais slogans são inteiramente absurdos. Pois, não há autoconsciência, como já tentei explicar várias vezes, e, além disso, a consciência como tal não pode ser objetivada por ela mesma como parte do mundo. O que pode sê-lo, é o eu, não a consciência. Não é possível haver dois pontos de vista, como Nagel supõe, um subjetivo e outro objetivo, pois um ponto de vista é uma objetificação do mundo a partir de um ponto cego. Sendo esta cegueira transparente, a própria inconsciência, o subjetivo é uma categoria literalmente vazia. Descrever a subjetividade de alguém, ou seu mundo subjetivo é descrever suas formas de inconsciência, jamais uma suposta subjetividade consciente, pois não há tal coisa. Objetividade é justamente ponto de vista, jamais o que Nagel imagina fazer sentido com o jogo de palavras com que intitula seu livro, "o ponto de vista de lugar nenhum". A vista a partir de um ponto não pode ser, sem contradição, a vista a partir de nenhum ponto. De nenhum ponto, não há vista.

O que as pessoas costumam chamar de subjetivo é algo extremamente perverso. O termo é usado para indicar diferenças - perfeitamente objetivas, é claro - percebidas entre pontos de vista. Diz-se que a opinião de alguém é subjetiva para desacreditá-lo: o uso é político e trai uma ideologia positivista da pior espécie. Neste sentido, o termo é uma concessão de imunidade política, ou seja, uma concessão à irresponsabilidade e à inimputabilidade. Essa perversidade traduz-se na linguagem corrente, quando se diz que "gosto não se discute", e traduz-se na linguagem científica, quando vemos psicólogos clínicos crerem que lidam com o mundo subjetivo ou com a subjetividade de seus pacientes. A raiz da perversidade está, evidentemente, na incompreensão da distinção entre aparência e realidade, que nos leva a uma visão distorcida e incoerente da natureza da consciência humana. Uma coisa é a compreensão da consciência, que pode perfeitamente expressar-se em paradoxos, pois está de algum modo além da possibilidade de expressão; outra é uma concepção incoerente que funciona como ideologia. De qualquer modo, o que está além das possibilidades da expressão não é a subjetividade de alguém que se identifica na ignorância, mas a verdadeira natureza da consciência, que não inclui, como tal, nem objetividade nem subjetividade, mas as ilusões da permanência e da substancialidade ou essencialidade do eu.

Nagel diz que "não há esperança em tentar analisar fenômenos mentais de maneira tal que eles sejam revelados como parte do 'mundo externo'" (15). Ao contrário, digo eu, não se faz outra coisa! Nossa consciência intencional de acesso ao que julgamos ser nós mesmos só pode por-nos objetivamente no mundo, num movimento de natureza dupla, cujo outro lado é tirar-nos do mundo, como ponto cego. O que sai do mundo quando este aparece, incluindo a mim mesmo, não é o mim mesmo, e muito menos meus fenômenos mentais. O que sai do mundo é o vazio. O que esse vazio põe no mundo é a forma. Quando o "sair do mundo" é uma identificação secundária do tipo cartesiano, "eu sou isso", temos a subjetivação. Como poderia haver um ponto de vista interno? Se é um ponto de vista a partir do qual eu me vejo, como o ser que tem aquele ponto de vista, ou seja, como um ser que vê o mundo de tais e tais maneiras, então é claro que já estou incluindo-me e ao meu ponto de vista naquele mesmo mundo e, então, porque chamar tal visão de interna? Ela é tão externa quanto qualquer outra.

Talvez pudéssemos conceber um uso menos perverso de subjetivo, se aplicássemos o termo às estruturas cegas que se tornam opacas para serem criticadas. Mas, tais estruturas seriam agora identificadas e projetadas para fora de mim como existentes, ou reais, como um par de óculos que eu tiro do rosto, e elas não poderão mais ser separadas do mundo tal como nos aparecia quando as usávamos como pontos cegos. De modo que, Nagel erra outra vez quando afirma que, nesse movimento, "o mundo tal como nos aparecia" através daquelas estruturas, agora é visto como aparência (Nagel, 1986, p. 4): não é a "visão antiga", reconhece ele, que "vem a ser vista como uma aparência", mas o mundo como visto daquele modo. Mas, se agora temos diante de nós nossas estruturas prévias e o que elas eram capazes de fazer ver, tanto as estruturas quanto o que se vê, que se veria através delas, estão objetivados, ou seja, são objeto de juízos de identificação que põem ambas as coisas no mundo. A "aparência", aqui, são os objetos-momentâneos , "antigas estruturas que eu usava como pontos cegos", e "o que aquelas estruturas me faziam ver", identificáveis, cada um deles, como realidade.

Não há, portanto, o problema nageliano de combinar nossa antiga maneira de ver o mundo com a nova: a primeira, já está no mundo; a segunda não está no mundo, pois é nosso novo ponto cego. Quando objetivamos uma visão nossa, vêmo-la como aquilo que nos fazia ver o mundo como realmente sendo de tal ou tal maneira. Não há nenhum sentido no qual combinar isto com o que vemos agora, porque o que vemos agora é como as coisas realmente são, ou seja, vemos porque víamos o mundo de outra maneira. E isso é tal como é, até que recuemos novamente e objetifiquemos esta nossa nova visão de mundo. Só então poderia haver uma comparação entre "as antigas estruturas que eu usava como pontos cegos" e "o que aquelas estruturas me faziam ver", a partir, evidentemente, de meu novo ponto cego.

Raramente vi, num filósofo, a inteligência e a engenhosidade argumentativa postos a serviço de tamanhos equívocos, quanto em Nagel. Ele parece uma espécie de porta-voz das misérias da filosofia. Eu o estaria criticando, ainda que ele não fosse famoso e considerado importante, pois seus erros são instrutivos. Mas ele é famoso e considerado muito importante na filosofia da mente contemporânea.

Nagel acredita que não podemos ter "um ponto de vista completo sobre" o mundo, porque não podemos objetivar completamente nossos pontos de vista subjetivos. Ora, ou bem isto se reduz à trivialidade de que não podemos criticar tudo, porque não há crítica sem pressupostos, ou crítica sem que não sejamos críticos acerca daquilo que torna possível nossa crítica, ou bem significa que há realmente alguma coisa irredutível em como é ser uma subjetividade particular. Nagel quer - porque quer! - provar ao mundo e a si mesmo, a partir de pressupostos não-substancialistas, não-essencialistas e não-transcendentalistas, tão típicos da filosofia analítica - e tão de acordo com o que eu mesmo penso -, que algo como o "eu" é uma realidade irredutivelmente aparente, ou seja, não só uma contradictio in adjecto, mas uma contrafação desesperada do idealismo absoluto, feita por quem não pode aceitá-lo, por constrangimento ideológico. A filosofia analítica prestou-nos o grande serviço de desmascarar muitos rostos. Mas é preciso coragem para aceitar esses resultados - que começam, por exemplo, com Hume, que não podia encontrar seu "eu" por mais que o procurasse - e levá-los às últimas conseqüências, pois isto poderia representar, para um ser humano, a verdadeira compreensão da sua própria ignorância. Faltando essa coragem, ou evita-se tocar no assunto, ou o perseguimos obsessivamente como Nagel, até um ponto que se vê como extremamente perigoso, e desistimos, "morrendo afogados já na praia".

O que Nagel chama de "falsas reduções" (1986, p.7) do que para ele é a "subjetividade irredutível como parte da realidade" é, de fato, o interminável processo de recuos reflexivos e avanços críticos que constitui a natureza dessa forma de inconsciência que chamamos de intencionalidade. A "cegueira objetiva" que Nagel considera "mais conspícua na filosofia da mente ... do fisicalismo ao funcionalismo" está, enquanto "cegueira objetiva" (ou cegueira para o subjetivo), simplesmente correta. Pois, a realidade, ao contrário do que Nagel acredita, é - em todos os seus sentidos - realidade objetiva, não havendo possibilidade de haver realidade subjetiva, sem que, por aí mesmo, a tornemos, pela identificação, parte da realidade objetiva ela mesma. "A subjetividade da consciência", Nagel afirma, "é uma característica irredutível da realidade" (id.) Não pense o leitor que ele está a se referir à totalidade da fenomenologia da experiência consciente, pois ele concede que esta possa ser objetivada até o limite, além do qual subsiste o misterioso "eu":

E freqüentemente possível adotar um outro ponto de vista que não o próprio ...Há um sentido em que fatos fenomenológicos são perfeitamente objetivos: uma pessoa pode conhecer ou dizer de outra que qualidade a experiência da outra tem. Eles são subjetivos, entretanto, no sentido de que mesmo essa atribuição objetiva da experiência só é possível para alguém suficientemente semelhante ao objeto de atribuição, a ponto de ser capaz de adotar seu ponto de vista... (1974, pp.441-2)

Mas é trivialmente verdadeiro que, sendo este organismo e não outro, não posso "ter" o ponto de vista do outro. A biologia não nos seleciona de modo a que eu possa sentir a "sua" dor de cabeça, porque isso seria adaptativamente desvantajoso. Apesar disso, nossa mente bio-social é verdadeiramente transindividual, de modo que Nagel tem razão quando admite que a fenomenologia (nos meus termos) tem uma dimensão transfenomenológica. Essa transpessoalidade da mente biossocial é tão ... transfenomenal que, quando o leitor se tranca num quarto para pensar, sozinho e "por si mesmo", ou "consigo mesmo", sobre um problema "seu", é na verdade uma "multidão" que pensa com ele. É tão transfenomenal que, à parte o custo, a inutilidade, o desinteresse, ou problemas meramente técnicos, o leitor pode aprender como é ser Sergio Fernandes, ou até mesmo, após tê-lo aprendido, e se dispuser de um dispositivo interruptor para "desligar seu ponto cego anterior" e "adotar o ponto de vista de Sergio Fernandes como ponto cego", até mesmo... "ser" o Sergio Fernandes. O único obstáculo não meramente contingente, tecnológico etc, seria uma suposta substancialidade, ou essencialidade, ou intrinsicalidade qualitativa inerente ao meu "ser". As posições espaço-temporais que nossos corpos ocupam são um fato contingente, desprovido de qualidades intrínsecas, de modo que não somos nossos corpos, não porque sejamos uma alma, ou uma essência, ou uma substância imaterial, ou seja, não somos nossos corpos, não porque sejamos "incorporais", mas porque o "somos", ou o "sou", de "eu sou", o "eu" de "eu sou", é uma ilusão.

Minha análise de "como é ser x" é "como é ser x = como o mundo é para x", e o mundo é justamente aquilo sobre o que nos entendemos. Supondo-se que Nagel, como qualquer filósofo analítico, seja "guiado espiritualmente" por Wittgenstein, uma distinção filosófica, para ele, deveria fazer diferença. Mas qual é a diferença entre "como é ser x" e "como o mundo é para x"? Não há, portanto, nenhuma "subjetividade ineliminável de alguns aspectos de nossa própria experiência, os quais só posssamos apreender subjetivamente" (1986, p.26), porque não há apreensão subjetiva. Toda apreensão é objetiva, porque pressupõe a identificação secundária do "eu".

Descrição fenomenológica é algo que pode ser feito, tanto na primeira, quanto na terceira pessoa. Posso dizer ao leitor como é que pehso que o mundo lhe parece, às vezes, antes mesmo de o leitor se dar conta de que é assim que o mundo lhe parece (e vice-versa). A "incompletude" que Nagel alega haver em qualquer descrição objetiva do mundo (p.13) é uma "incompletude" ambígua. Se o que fica de fora é a subjetividade organísmica, biológica, então, é trivial que toda descrição objetiva do mundo seja incompleta, até porque uma teoria física não poderia explicar e, a fortiori, prever o ato pelo qual ela é pensada ou escrita. As gravuras de Escher representando a faixa de Möbius ilustram, no entanto, a aparente continuidade da natureza e a ilusão da transcendência. Os aspectos qualitativos da experiência intencionalmente consciente podem ser ilustrados como resultado do involvimento contorcido da natureza, em dobras e redobras, como as que constituem a tri-unidade anatômica (reptílica, mamífera e neo-mamífera) e funcional (sensorial, motora e interneuronal) do cérebro humano.

Se visualizarmos a natureza como uma linha, sem solução de continuidade, o cérebro poderia ser representado por um fractal de Mandelbrot... ou uma curva "neo-lafferiana": vendo-se as dobras ou formas irregulares que parecem iguais em todas as escalas, a fractalidade pode ser aplicada a cada neurônio. Engolidas pelo grande atrator estranho (caótico) que é o Universo, só poderíamos prever o funcionamento do nosso cérebro se pudéssemos conhecer com precisão infinita suas condições iniciais. Mas para conhecer alguma coisa com precisão infinita precisamos de atenção infinita. E uma atenção infinita impede,o que quer que seja, de acontecer - pode até acontecer, mas levaremos um tempo infinito esperando que aconteça. Além disso, uma atenção infinita, infinitamente prolongada, colapsa necessariamente, é insustentável. E é de desatenção, ou ignorância, que as coisas acontecem. Vendo-se as dobras, eu dizia como padrões dentro de padrões ad infinitum, como se fosse uma curva, o fato de que possamos fixar com precisão geométrica seus fins extremos não significa que as regiões intermédias tenham trajetória regular (Gardner, segundo Dennett, 1991 ).(3) Isto pode significar que, entre o input sensorial de um sistema vivo e o output motor, por exemplo, não há nenhuma linha divisória (onde e quando) entre a inconsciência e a consciência. Há tão pouca razão - nenhuma - para que o hardware cerebral se torne objeto para si mesmo, quanto há razão - nenhuma para que seu software superveniente (Kim, 1993; Horgan, 1993) não perceba o que ele mesmo faz tão objetivamente quanto o resto do mundo por ele percebido.

Voltando à incompletude da descrição objetiva do mundo, ela é ambígua porque, se for, ou biológica, ou "gõdeliana", reduz-se a uma tautologia. Mas se não for biológica, e significar que uma explicação de algo necessariamente deixa este algo de fora, então, outra vez, trata-se de uma trivialidade. Não se explica água em termos de água, mas de H20 ou qualquer outra coisa, e nem por isso nos parece sensato dizer que deixamos a água de fora de sua explicação. Apreender o conceito de H20 não significa molhar-se ou beber água. Apreender uma experiência não é experimentá-la. Apreender é muito mais lento do que experimentar. É falso que você só pode conhecer o gosto do sal ao experimentálo. Mas provando-o, você o apreende cognitivamente de modo muitíssimo mais veloz. Sendo muito complicado um ser humano provar o outro, no sentido, não de que podemos comer juntos um saco de sal, mas no sentido em que provamos o sal, então é claro que nossa apreensão da fenomenologia da experiência consciente de outrem não é imediata. Mas isso não prova nada sobre uma obscura subjetividade misteriosamente residual no Universo. Nagel, portanto, está certo quando afirma que "a idéia mesma de realidade objetiva garante que tal visão não compreende tudo" (p.13), mas está errado em pensar que isto se deva à nossa suposta subjetividade ("nós mesmos", diz ele, "somos os primeiros obstáculos a tal ambição"). A investigação dita transcendental, por exemplo, pode bem ser incompletável em princípio, mas não porque não podemos objetivar alguma subjetividade, pois podemos, tanto quanto o quisermos, mergulhar toda nossa suposta subjetividade dentro de um mundo. Mesmo uma alma desencarnada - se há tal coisa - poderia objetivar-se totalmente lá no seu mundo astral. Se a dita dimensão transcendental da nossa subjetividade parecenos coisa do outro mundo, ou ultra-mundana, ou sobrenatural, não é porque ela pertença a um outro mundo, ou a um mundo dos estados essencialmente ou intrinsecamente subjetivos, mas porque ela não pertence a mundo nenhum: é, simplesmente, não-mundana.

Nagel está certo em reconhecer o caráter "não-local" da fenomenologia da experiência consciente, ou seja, nos meus termos, seu caráter virtual. Nos seus momentos mais especulativos, ele chega a dizer que tal "base geral nãolocal" deve presumivelmente ser inerente aos "constituintes gerais do Universo e às leis que o governam". Concordo. Mas sua especulação o leva a imaginar que nós temos, no sentido forte de ter, não um - o que já seria problema bastante -, mas dois eus, pelo menos, ou seja, o impessoal ou objetivo e o mais humano (creaturely), de modo que nós temos "de ser a criatura que submetemos a exame, num certo distanciamento" (p.9). Ora, isso é o erro de Descartes agindo como um verdadeiro entorpecente na mente de um filósofo, em pleno final do século XX. Não só há um sentido em que ninguém tem de "ser" o que quer que seja que ele pense que é, mas também, se resolvemos "ser" alguma coisa (não nos ensina a literatura romântica infantil inspirada em Gabriel Mareei, que se deve "ser", em vez de "ter"?), então há um sentido - e como é terrível! -, no qual podemos sempre enganar-nos acerca do que somos. Agora diga-me o leitor: haveria alguma diferença metafísica entre corrigir sua opinião errada acerca de si próprio e corrigir sua opinião errada acerca de outrem? Se houvesse -per absurdum -, tal diferença metafísica só poderia ser uma maneira única de uma mente única objetivar o mundo. Mas porque haveriam de ser incomensuráveis as pressuposições inerentes aos atos intra ou inter objetificadores? Afinal, é o próprio Nagel que admite que

(...) a generalização do conceito de experiência, além da nossa capacidade de aplicá-lo, não contradiz a condição de aplicação que ele tenta transcender, ainda que alguns exemplos, como a atribuição de dor a um fogão, realmente ultrapassem os limites da inteligibilidade, (p. 23)

Muito bem dito, só que não vejo porque a atribuição de dor a um fogão - à parte contingências meramente antropológico-culturais - ultrapassaria os limites da inteligibilidade.

Nagel parece, lamentavelmente, estar lutando o tempo todo com a questão: "Qual a diferença entre minha idéia dos sentimentos de alguém, e minha idéia de alguém tendo sentimentos?" Mas minha idéia de alguém subjetivamente tendo sentimentos e justamente minha idéia objetiva dos sentimentos de alguém, de modo que não há nenhuma diferença aqui, seja lógica, seja conceptual: se diferença há, é meramente prática. Certo: dado o nosso conceito de experiência, não há experiência sem auto-atribuição de experiência; este é o legado cartesiano que Kant nos transmitiu, sob o nome de "unidade sintética a priori de apercepção", que usou na sua famosa "Refutação do Idealismo" (Fernandes, 1985, 6.1.1.), e que funciona como um dique a manter a mística represada, do outro lado da filosofia. Mas, então, o que é auto-atribuição de experiência? Se pressupõe minha Identificação com um sujeito empírico da experiência, então todas as auto-atribuições de experiência são heteroatribuições, e Kant não poderia ter criticado Descartes por ter confundido a unidade de uma substância com a substância de uma unidade. Mas se não pressupõe minha identificação com um sujeito empírico da experiência, tampouco poderia pressupor minha identificação com um sujeito transcendental, pois este não se pulveriza no espaço-tempo: não tem sentido dizer que eu sou um sujeito transcendental, ou que ele se manifesta como um sujeito universal de toda experiência espaço-temporal, pois o sujeito transcendental simplesmente não se identifica. O que quero dizer, caro leitor, quando digo que a sua dor de cabeça não dói na minha?

É o próprio Nagel quem admite que "só um verificacionista dogmático negaria a possibilidade de formação de conceitos objetivos que vão além da nossa capacidade corrente de aplicá-los" (p. 24). É ele quem admite que podemos estar errados acerca de nossa identidade (p. 36). É ele quem admite até que o Argumento da Linguagem Privada, de Wittgenstein, não implica a incorrigibilidade com relação às nossas sensações (p.36); contradizendo, aliás, o que acabara de dizer uma página antes, no sentido de que devemos ser capazes de nos identificar "sem observação externa" (p. 35). Suas análises penetrantes da noção de "eu objetivo"(pp. 60-66) levam-no da admissão de que "o verdadeiro eu não tem ponto de vista" (p. 61), à conclusão de que sua ligação especial com seu eu empírico é irrelevante para o conhecimento de como deve ser o mundo de nenhum ponto de vista para que ele lhe apareça ao seu ponto de vista (p. 62). E vai longe a ponto de admitir que ele lida com a informação que ele recebe de seu eu empírico, do mesmo modo como ele faria "se a informação estivesse vindo (a ele) indiretamente". Sobretudo, é neste contexto que ele afirma que não dá àquela informação "indireta" qualquer "estatuto privilegiado em comparação com outros pontos de vista", acrescentando a seguinte nota:

A idéia do eu objetivo tem algo em comum com o "sujeito metafísico"do Tractatusde Wittgenstein (5.641), embora eu não chegue a excluí-lo do mundo inteiramente. O sujeito metafísico é o limite lógico que atingimos se todos os conteúdos da mente, incluindo os seus pensamentos objetivos, são atirados no mundo como propriedades de Thomas Nagel. O eu objetivo é o último estágio do sujeito que se distancia, antes que ele encolha ao ponto sem extensão. Ele também tem bastante coisa em comum com o ego transcendental de Husserl, embora eu não compartilhe do "idealismo transcendental" com o qual a sua fenomenologia está comprometida. Tampouco aceito o solipsismo do Tractatus. (62 n3)

Agora, pois, diga-me o leitor como se pode nadar tanto, para morrer afogado antes de chegar à praia?

Nagel crê no acesso privilegiado que temos a "nós" mesmos pela introspecção:

O que eu sou é o que quer que seja que é de fato a sede das experiências da pessoa Thomas Nagel e sua capacidade de identificar-se e re-identificar-se e a seus estados mentais, na memória, na experiência e no pensamento, sem contar com a espécie de evidência observacional que outros precisam usar para entendê-lo (p.41, ênfase minha).

Ou: "Uma experiência visual é um estado cujas propriedades fenómenológicas me capacitam a identificá-lo sem observação externa de mim mesmo" (p. 46, ênfase minha). Se o leitor me acompanhou, estou certo de que ele está a ponto de descobrir o que é que verdadeiramente detém a mente de Nagel! Num desespero eivado de auto-contradições, ele exerce sua competente amizade como uma criança imatura que se agarra a um brinquedo chamado "PIEMS" ("Propriedade Intrínseca Exclusiva da Minha Subjetividade") e é capaz de tudo, menos de largá-lo: "E meu!". O que o detém é o dogma empirista de que, na introspecção, desaparece a distinção entre aparência e realidade: "A idéia de mover-se das aparências para a realidade parece não fazer nenhum sentido", no caso de experiências conscientes (1979, p. 174); "a maneira como o mundo é", ele diz, "inclui aparências ..." (1986, p. 26); "no caso da sensação", balbucia, "a realidade é ela mesma uma forma de aparência" (p. 36); ao criticar a teoria do aspecto dual, ele é capaz até de farejar alguma coisa de "muito suspeita" na idéia "de aparências como parte da realidade" (p. 31), só para confessar-se, em seguida, "incapaz de dizer o que poderia estar errado com ela". Bem, é mais ou menos isso o que venho tentando fazer neste artigo. Se a aparência - em qualquer sentido - for concebida como parte da realidade - em qualquer sentido, mas, sobretudo, quando se tratar da experiência consciente -, então não se pode compreender a pergunta "Quem sou eu?", logo não se pode atender à exortação "Conhece-te a ti mesmo!", e tampouco se pode estabelecer a psicologia como ciência, por impossibilidade absoluta de reconhecermos seu objeto.

 

OS PERPLEXOS SEM GUIA

Dizem que os filósofos gostam de usar cisnes como exemplos e costumam considerar que todos os cães se chamam Fido, mas, recentemente, uma mulher chamada Maria tornou-se peça importantíssima da dialética qualia versus quanta, em Filosofia da Consciência. Maria é o maior cientista do mundo especializada em cores, segundo Frank Jackson (1982,1986), e um dos "personagens conceptuais" mais discutidos nos últimos dez anos. Ela morou, desde que nasceu, numa dessas "bolhas" de isolamento ambiental, na qual tudo é exclusivamente preto, branco e cinza. (Além de Jackson, sigo, aqui, Flanagan, 1992, p. 97 e seguintes). Sendo o maior cientista em cores do mundo, ela sabe tudo que se passa fisicamente com um cérebro quando o "sujeito fenomenológico" que abriga o cérebro - sim, por que seria o inverso? - tem a experiência de ver o vermelho, embora Maria, ela mesma, só tenha tido tal experiência quando escapou da "bolha" para o nosso mundo. O que Jackson pretende mostrar, na excelente versão de Flanagan, é que

já que propriedades fenomenais não são captadas pelo conjunto mais completo de descrições da atividade cerebral subjacente a essas experiências, propriedades fenomenais não são explicadas por, nem podem ser identificadas a, propriedades físicas. (Flanagan, 1992, p.97)

Jackson supõe, é claro, que, ao escapar para o mundo colorido, Maria adquira, na experiência direta, novos conhecimentos sobre cores. Ora, se ela já possuía, ex hipothese, todo o conhecimento físico sobre cores, então há qualidades não-físicas - quem sabe, intrinsecamente fenomenológicas - na experiência consciente.

Mais famoso ainda que o argumento de Jackson, na literatura atual, só mesmo o "espectro invertido", que vem sendo usado como gedankenexperiment em defesa da irredutibilidade da fenomenologia, já não tanto contra o "físicalismo", mas contra o "funcionalismo". É uma ironia que a fenomenologia, que se caracteriza pela redução, tenha estabelecido a existência de qualidades que seus inimigos oficiais, os filósofos analíticos consideram irredutíveis. É claro que os dois sentidos de redução são, no caso, completamente diversos: a "redução" fenomenológica de uma qualidade ao campo transcendental da intencionalidade da consciência e a "redução" analítica de uma qualidade ao campo transfenomenal da intersubjetividade. Mas, os usos e abusos do termo redução, sobretudo na filosofia analítica, sugerem o seguinte contorcionismo lingüístico: vitoriosos os adeptos dos quanta, poder-se-ia dizer que teriam logrado "des-reduzir" o "reduzido"; vitoriosos os adeptos dos qualia, poder-se-ia dizer que teriam logrado "re-reduzir" o "reduzido".

Acontece que a literatura a respeito do espectro invertido tornou-se tão extensa e convoluta - nauseantemente convoluta - que, não só é possível ler-se, atualmente, um artigo sobre este problema, em que este último se perde quase que completamente de vista num mar de tecnicalidades, réplicas e tréplicas etc, mas também seria necessário, hoje em dia, um livro inteiro para se apreciar adequadamente o status quaestionis. Pode-se rastrear o problema no mínimo até Locke, e algumas das "peças" mais recentes são, dentre inúmeras outras, Shoemaker (1975), Block (1980 e 1992) e Dennett (1991).

O apelido para "fenomenologia da experiência consciente" tornou-se, na filosofia analítica contemporânea, Qualia, tout court. E já desde o início deste artigo venho manifestando minha opinião sobre este assunto, reiteradamente, mas abstendo-me de me envolver na literatura. Resumindo, mais uma vez, esse labirinto de questões, ou emaranhado de posições, eu diria que ele se origina de crenças errôneas. Em primeiro lugar, da crença de que há introspecção; em segundo lugar, da crença de que o verificacionismo - a tese geral que erige a intersubjetividade como criterial para experiência consciente - desqualifica necessariamente a fenomenologia da experiência.

A primeira crença é errônea, pois o nosso acesso a "nós mesmos" é biológica e logicamente extrospectivo, só gerando a falsa fenomenologia do acesso privilegiado por causa da nossa incompreensão da identificação basicamente nossa incompreensão do Erro de Descartes. Portanto, levo em conta a fenomenologia: parece haver introspecção. Mas também parece haver Papai Noel. A segunda crença é errônea porque é a intersubjetividade, e não a subjetividade, que é fenomenologicamente ineliminável, um reduzido irredutível, ou impossível de ser "des-reduzido". A fenomenologia da experiência consciente já é intersubjetiva e pública, desde a origem, no organismo individual. E, ainda que houvesse uma diferença essencial entre auto e hetero atribuição de experiências, esta última dependeria, fenomenologicamente, do comportamento, sob pena de condenar a fenomenologia ao solipsismo. A intersubjetividade, longe de desqualificar a experiência, é, portanto, o que a qualifica verdadeiramente. Ou bem o leitor sabe o que sente e, ipsofacto, poderia expressálo, ou expressa-o sem sabê-lo. Mas, neste último caso, como falar de qualia? Seria por acaso o inconsciente humano "vivido" qualitativamente pela consciência?

As duas crenças errôneas que acabo de descrever, tomadas em conjunto, geram o "grande problema": será sempre possível conceber-se seres que, externamente, ou comportamentalmente, sejam em tudo semelhantes a nós, exceto pelo fato de serem inconscientes, ou seja, exceto pelo fato de não haver "ninguém em casa ..." Não, não me refiro a robôs ou a zumbis de filmes de terror, pois estes não são em tudo semelhantes a nós. Refiro-me ao leitor, à minha mãe etc, ou seja, a todos os nossos semelhantes. O "grande problema" dos qualia é, portanto, uma nova versão do "Problema (da Existência) das Outras Mentes". Ora, qualquer coisa menos que um saudável e compassivo behaviorismo, neste caso, é o primeiro passo, ou para o racismo, o nazismo e o fascismo - que o leitor me permita poupar-lhe os detalhes -, ou para o ridículo epifenomenalismo do "apito da panela de pressão", à la Huxley. O melhor antídoto filosófico para esses venenos é uma boa dose de Teste de Turing "generalizado". Pode parecer a certos fenomenólogos muito contundente chutar o calcanhar do positivista, como se fosse um "calcanhar de Aquiles", negando-lhe o direito de erigir indicadores comportamentais em criteriais para o aspecto qualitativo da experiência consciente, mas esse fenomenólogo precisa saber que, com isso, ou é incoerente, ou chuta a própria mãe. Eu, minha mãe, e o leitor, sem algum behaviorismo criterial, somos zumbis no sentido "técnico", ou seja, a enganar a todos durante o tempo que for necessário, toda vez que eu, ou ela, ou ele, formos "o outro", para mim, para ela, ou para ele.

Se a interminável controvérsia sobre qualiatmde a aparecer, no espectro invertido, para criar problemas para o funcionalismo (Block, 1980), na vida de Maria, a grande cientista, tende a aparecer para criar problemas para o fisicalismo. Num caso, haveria qualia indetectáveis pelo comportamento; no outro, não haveria qualia detectáveis no cérebro humano. Já vê o leitor que, em ambos os casos, a falácia descritiva anda solta, fazendo suas vítimas. Se o objetivo da ciência natural (Primeira e Segunda Naturezas) é a des-centração do ponto de vista, ou sua objetividade, ou ainda a desantropomorfização de suas teorias, ele deveria relativizar inteiramente seu uso de metáforas mecanicistas ou vitalistas, comportamentais ou fenomenológicas, quantitativas ou qualitativas. Afinal, há uma só evolução, se há alguma. As máquinas feitas pelos homens são extensões exossomáticas, tanto quanto a casa de marimbondos ou a colmeia de abelhas. Um poste ou um edifício, à parte românticas preferências estéticas, não são menos naturais que os montes de terra erguidos pelas saúvas.

Quando nos convém - em termos de poder preditivo - a natureza é morta; quando nos convém, a máquina é viva. Nada, além de dogmas obscurantistas e ideologias pseudo-humanitárias, impede-nos de mecanizarmos a vida, ou animarmos a máquina, para melhor compreendê-las. Nem a explicação, nem a compreensão podem prescindir de metáforas. Poderíamos dizer, sem hipocrisia, que a matéria, no seu mais alto grau de complexidade, é viva, e nas suas mais altas velocidades relativas, é qualitativamente sensível. Do mesmo modo, a vida, no seu menor grau de complexidade, é material, e, nas suas mais baixas velocidades relativas, qualitativamente insensível. Se obtivermos maior poder preditivo sobre uma máquina animando-a com teorias organicistas, tanto melhor: o fantasma que, na nossa concepção infantil imaginamos "habitá-la", terá uma "psicologia".

Fora do comércio de antigüidades e obras de arte, não tem cabimento - e é politicamente incorreto - sair por aí dividindo o mundo em coisas falsas e autênticas; em imitações e coisas reais, como se houvesse essências e a elas tivéssemos acesso para decidir a questão. O que é imitação para uns - como os judeus e os negros, para Hitler e seus asseclas, eram "imitações" de seres humanos -é coisa verdadeira para nós. Só posso atribuir consciência à minha mãe pelo seu comportamento. Sendo este tipo de evidência criterial, não precisamos pendurar na epistemologia um "princípio de caridade". Mas, se o comportamento não bastar, então só o milagre da compaixão ou o medo da punição me farão respeitar o direito dos outros. Desde que tenhamos a coragem de compreender isso, defenderemos os direitos políticos de qualquer coisa que se comporte como humana.

Mas se obtivermos maior poder preditivo sobre um ser humano desanimando-o com teorias mecanicistas, também tanto melhor: é preciso que conheçamos a natureza verdadeiramente mecânica de certas coisas que inconscientemente nos determinam. "Desanimá-lo" não é "desumanizá-lo". Há aspectos da humanidade do ser humano que são melhor compreendidos se não postulamos nenhum fantasma a habitá-lo. Basta de romantizar a distinção entre qualidade e quantidade!

Todo mundo sabe que as generalizações estatísticas não se referem a casos particulares. Mas são utilíssimas, se compreendemos sua natureza matemática. Todo mundo sabe que as experiências conscientes são qualitativas. Mas nos deixariam solus ipse se não compreendêssemos sua natureza comportamental. Todo mundo sabe que uma descrição lingüística não pode eqüivaler a uma experiência. Por outro lado, se formos cegos, mudos e surdos, tampouco haverá riqueza na experiência (leia a vida de Helen Keller).

A questão do caráter virtual de toda realidade deve ser tratada de modo análogo. Não pode a quantidade imitar a qualidade? Pois se a imitação for competente, aí temos a genuína qualidade. Não pode a qualidade imitar a quantidade? Pois se a imitação for competente, aí temos a base da matemática e da geometria. Não pode o darwinismo imitar o lamarckismo? Não pode o mecânico imitar o teleológico? Não pode uma máquina de Turing universal imitar qualquer outra máquina? Não pode o cérebro imitar o mundo? Não pode o digital imitar o analógico? (Ouça o leitor seus CDs e veja os quadros de Van Gogh no seu 486!)

Aprendemos mais sobre o que concebemos como inteligência, ou humanidade, ou consciência, quando desidentificamos essas coisas de seus suportes ou hardwares. É um salutar exercício de desantropomorfização e dessubstancialização. Ora, "descoladas" de seus suportes, essas coisas podem aparecer em suportes alternativos e nunca dantes suspeitados. E é assim que deve ser. Do mesmo modo, aprendemos mais sobre qualidade quando a distinguimos de quantidade. Mas paguemos o preço: tanto uma quanto outra, podem aparecer e alternar-se, onde jamais poderíamos imaginar. Não há mal algum em quantificar, e mal nenhum em qualificar. Felizmente, pois o método experimental não poderia investigar qualidades enquanto tais, e a fenomenologia não poderia investigar quantidades enquanto tais.

Não, o "reino da quantidade" não é um "sinal dos tempos". O "desencantamento do mundo" não nos tira nada que realmente valha a pena. E, depois, estamos livres para re-encantá-lo quantas vezes quisermos. E falso que Maria, a nossa super-cientista, saiba tudo que fisicamente se pode saber sobre o vermelho, justamente porque ela aprende algo novo ao vir para o nosso mundo e ver uma maçã. O que lhe faltava era velocidade (outra quantidade, e composta!): ela desconhecia o papel funcional da velocidade de processamento cerebral de informações quando o organismo opera no modo indexical da primeira pessoa. Essa velocidade é física, e ela devia saber disso muito bem, quando vivia em seu mundo preto, branco e cinza. Se não sabia, era a sua física que era incompleta.

Que a velocidade de processamento (reverberações de padrões oscilatórios neuronais) não seja expressável em termos da física não prova nada. A física não pode lidar, nem com infinitudes (a não ser pelo método das "médias aproximadas"), nem com explosões combinatórias (a não ser por simplificação algorítmica, via "atalhos" qualitativos). É um fato biológico que só tenhamos "apreensão perceptual" na primeira pessoa. Mas. se é biológico é contingente, poderia ser de outro modo. "Experiências desincorporadas" foram seletivamente "eliminadas", assim nos parece, mas leia a vida dos yogis e dos místicos. O que eu posso saber, no caso limite, é como é ser você, não "como é ser você para você", que é simples confusão lingüística. Mas esta confusão lingüística separa os seres humanos uns dos outros, fazendo-os esquecer que no limite não há diferença entre eles. O limite da fenomenologia, o limite da epoche é a contingência do sistema nervoso humano.

Assim como a existência nada acrescenta:

Por quaisquer que sejam, e por quantos predicados possamos pensar [apreender cognitivamente] uma coisa ainda que a determinemos completamente - não lhe fazemos o mínimo acréscimo quando, além disso, declaramos que essa coisa é [existe] (Kant, 1978a, B 628), também a "posse" de uma coisa nada lhe acrescenta.

De modo que ao dizermos "esta experiência é minha", não acrescentamos nada a "esta experiência". Um ponto de vista só tem conteúdo intencional se for um type, ou seja, partilhado no universo intersubjetivo da mente transindividual. Se for um token, não terá conteúdo algum. A indexicalidade é fonte, não de diferenças qualitativas, mas de ignorância, no sentido fundamental das identificações primária e secundária. O que acontece quando tratamos a nossa experiência consciente como um token? Todo mundo sabe que não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, e não temos duas vezes a mesma experiência (eis a noção de objeto momentâneo). Mas o que acontece quando cremos que este fato acrescenta à nossa experiência uma característica exclusiva? O que acontece é que excluímos os outros, e isso pode ser o primeiro passo para a utilização deles como meios, e não como fins em si mesmos. E, se esta característica exclusiva for a propriedade "minha experiência consciente"? Pior ainda. A introspecção nada me revelará sobre sua natureza. O exame do meu cérebro nada me revelará sobre sua natureza. A observação do meu comportamento nada me revelará sobre sua natureza. E isso que queremos preservar na redução fenomenológica? Esse tipo de controvérsia filosófica é nauseante. O que estou fazendo é dar ao leitor uma notícia resumida a respeito desses assuntos, pois afinal não estou eximido de discutir a literatura relevante. Mas o leitor saberá apreciar meu sacrifício de tratar dessas coisas, pela própria náusea que certamente elas lhe provocam. Pois saiba o leitor que, na filosofia analítica, esse tema virou uma verdadeira indústria nas mãos de Curriculum Builders: "Você já leu o último artigo de Fulano sobre qualia" "Ah, então você está desatualizado!" Pode ser a velhice - quem sabe? -, mas já não tenho paciência para essa espécie de "filosofia". Não terminarei, entretanto, este trabalho, com uma nota de acrimonia. Há, na literatura atual da filosofia analítica, esforços realmente interessantes, que ultrapassam a esterilidade e a mesquinhez dos debates em torno de qualia. Um deles é a obra de David M. Rosenthal (1986, 1991, 1993 etc.).

 

AS TEORIAS DE ROSENTHAL E DENNETT

Se, por meio de um processo sub-perceptual, ou não inferencial, um dos nossos estados mentais causar um pensamento (inconsciente, de segunda ordem),(4) sobre outro estado mental (também inconsciente), o organismo terá consciência deste último, que é um "pensamento (inconsciente) de ordem inferior", ou de "primeira ordem".

Trata-se de uma propriedade extrínseca de estados mentais inconscientes, o tornarem-se interativamente (eu diria indexicalmente) intermonitoradores: essa propriedade secundária é, para Rosenthal, a consciência intencional, como a conhecemos. Sem ser, nem um efeito nem uma causa, a consciência intencional está entre causas e efeitos, na sua interface (Rosenthal, 1993, p.911). Temos tanta razão - ou seja, nenhuma - para identificar um estado mental com um estado consciente quanto para identificar coisas reais com o que "alguém percebe" (Rosenthal, 1986, p.329).

O que fixa as extensões dos nossos termos não são as essências dos nossos estados mentais. Rosenthal não comete o erro fundamental do empirismo, de confundir aparência e realidade, no que se chama de "fenomenologia da experiência consciente". Não vale o esse est percipi para estados sensoriais (1991, p. 15): estes são independentes da consciência, de modo que não há porque perguntar qual é a "propriedade" que só pode ocorrer conscientemente, ou qual é a "propriedade" da consciência que seria "intrínseca" a estados sensoriais (p. 16), pois há estados sensoriais que ocorrem inconscientemente. Podemos querer algo, ou pensar que algo é de tal modo ou outro, sem nos darmos conta disso. Às vezes, só reconhecemos que estamos tristes ou zangados depois que outra pessoa nos mostra que estamos. É fato conhecido que há percepção sensorial inconsciente (Lackner e Garret, 1973). Até mesmo dores podem ocasionalmente passar despercebidas, por exemplo, quando nos distraímos e as sentimos intermitentemente. Não sendo "de bom tom" ficar apontando para estados mentais inconscientes dos outros, os fatos para os quais acabamos de apontar tendem, no entanto, a ser ignorados.

Por outro lado, costumamos pensar que certos estados mentais são mais conscientes que outros - em ordem decrescente: dores e cócegas; sensações perceptuais; emoções; estados intencionais como pensamentos ou desejos. E não temos virtualmente nenhum interesse em sensações corporais inconscientes (pp. 17-18), seja no nosso corpo ou no de outra pessoa, ao passo que temos o máximo interesse em pensamentos ou desejos inconscientes, pelo papel que lhes atribuímos na explicação do comportamento. O fato de que classificamos estados sensoriais baseados naqueles que são conscientes também contribui para nos esconder a independência entre estado sensorial e consciência: fazemos o mesmo com entes e, no entanto, projetâmo-los para fora da aparência, na realidade, como possuidores de propriedades duráveis, independentemente de serem percebidos. "Assim como podemos dizer de objetos não-vistos qual seria sua aparência, também podemos dizer como seria estar em estados sensoriais não atualmente conscientes" (pp. 19-20; 20 n5).

A noção mesma de realidade implica sua transfenomenalidade. Propriedades especiais de objetos físicos não correspondem intrinsecamente a propriedades das correspondentes sensações visuais, e o mesmo vale para cores e outras modalidades sensoriais (pp.22-23), inclusive sensações corporais: "Qualidades sensoriais são propriedades de estados de organismos, cujas famílias mantêm certas relações sistemáticas com propriedades de objetos físicos e processos aos quais o organismo pode responder" (Rosenthal, 1991, p.26). Note-se que a consciência não figura nesta definição.

Explicamos melhor as coisas atribuindo-lhes propriedades relacionais, ou extrínsecas, que atribuindo-lhes propriedades intrínsecas. No caso da consciência, seria impossível explicá-la em termos de propriedades nãorelacionais, pois teríamos de explicá-la em seus próprios termos, o que eqüivaleria a considerá-la desprovida de estrutura, ou seja, simples e inanalisável. A única possibilidade de atribuir estrutura a tal coisa seria dizer que ela é "sobre si mesma", mas isto é incoerente. Por exemplo: se separarmos qualidades primárias de qualidades secundárias e quisermos que somente estas últimas sejam verdadeiramente qualitativas, porque reveladas pela consciência, ao passo que as primeiras seriam apenas propriedades físicas, não genuinamente qualitativas, como poderíamos identificar as verdadeiramente qualitativas? Elas são objetos-momentáneos, atemporais, que só podem ser destacadas uma única vez! Qualquer identificação da qualidade projeta-a no mundo transfenomenal, lá mesmo onde queríamos que só estivessem o primário, o físico, o quantitativo (Descartes diria, o "extenso").

Quando negamos cor verdadeiramente qualitativa a objetos físicos é porque pensamos, erroneamente, que a qualidade é meramente aparente. Na verdade, no entanto, a qualidade é real, embora toda realidade seja virtual. Esse raciocínio vale para toda característica qualitativa de propriedades mentais de estados sensoriais: elas não lhe são intrínsecas (p. 27). Há, portanto, qualidade inconsciente, assim como há qualidade real. Dentre estas, as que são conscientes, não o são, por sua vez, em virtude de alguma qualidade. Logo, devem sê-lo em virtude de alguma relação entre estados mentais inconscientes. Para os fenomenólogos: não haveria porque a consciência revelar essências de estados sensoriais, se tais estados não são necessariamente conscientes, pois saber como é "estar num estado sensorial não é a única maneira de compreender a natureza das qualidades sensoriais" (p. 29). Podemos compreendê-las implementando a distinção transfenomenológica entre aparência e realidade, por meio de umahomomorfia entre propriedades percebidas e objetos físicos. "A aparência de estados mentais não coincidirá automaticamente com a sua realidade" (1986, p.475).

A teoria rosenthaliana de consciência intencional "salva as aparências" fenomenológicas, mas explicando a consciência em termos do que não é ela mesma, como deve ser, ou seja, em termos de relações entre estados mentais inconscientes. Nossa consciência intencional é uma forma de inconsciência. Aliás, coisas como obras de arte e fenômenos como atos de fala também podem ser sobre outra coisa, ou ter conteúdo proposicional, embora não sejam estados mentais. Mas explicar a consciência intencional, ou seja, nos meus termos, a inconsciência iterativa, ou indexical, das identificações secundárias, em termos de estados mentais inconscientes é ainda explicar a inconsciência em termos da inconsciência. Em Filosofia e Consciência (1995) mostrei como surgem as formas de inconsciência a partir da estrutura da consciência. Meu caminho, portanto, é contrário ao de Rosenthal, pois eu parto da consciência e busco compreender a inconsciência como efeito estrutural da consciência, enquanto Rosenthal parte da inconsciência e busca compreender a consciência intencional como relação entre estados inconscientes. Afora isso, a teoria rosenthaliana é, sob muitos aspectos - assim como a Dennettiana - compatível com a que desenvolvi em Filosofia e Consciência.

Derrubado o dogma cartesiano de que todos os estados mentais são conscientes, os conscientes são aqueles nos quais temos consciência de estar, ou seja, são aqueles que causam, ou se fazem acompanhar de um pensamento inconsciente de segunda ordem. Este último só seria ele mesmo consciente se fosse o objeto de um outro pensamento de terceira ordem, e assim por diante, mas esse deslocamento é raro, pois é muito difícil sustentar mentalmente um pensamento sobre um pensamento que, por sua vez, também é um pensamento. Pensamentos reflexivos de ordem superior são tão reveladores de essências dos pensamentos de ordem inferior quanto um pensamento de que há uma mesa diante de mim pode ser revelador da essência de mesa (Rosenthal, 1986, p.475), ou seja, não há nenhum privilégio na reflexão. A consciência intencional ordinária não tem nada de introspectiva, mas envolve apenas a ocorrência de estados mentais na corrente da consciência - foi Descartes quem confundiu o ser consciente de um estado mental com nossa consciência introspectiva dele. Já o desdobramento reflexivo ou introspectivo é, como vimos, uma verdadeira extrospecção, de modo que, em estados meditativos, pode deixar de ser um corte na corrente ordinária, para desaguar nela como um afluente num rio. Somente se os pensamentos de ordem superior fossem eles mesmos conscientes é que eles poderiam explicar a introspecção. Mas nenhum pensamento é em si mesmo consciente: a consciência intencional é que é o pensamento de que estamos num determinado estado mental, quando refletimos. Estar normalmente consciente, sem refletir, é ter o pensamento inconsciente de segunda ordem sem o de terceira ordem.

Rosenthal opta por um modelo não-perceptual, mas intencional - embora não necessariamente reflexivo -, de consciência, porque no modelo perceptual não poderíamos jamais saber qual é a misteriosa qualidade que a consciência introduziria, enquanto distinta das qualidades sensoriais que as percepções já tem e que, como vimos, são independentes da consciência. (Será o sentido que usamos para ver o que vemos o mesmo sentido da visão? Aristóteles, de Anima, III, 2, 425b 13-4; Rosenthal, 1981, p. 16). Já no modelo intencional propriamente dito, trata-se de um pensamento, inconsciente, não baseado em observação e não produzido por inferência. Como até Humphrey, para quem "ser consciente" é "ter sensações" (Humphrey, 1992 p. 120), admite, pensar pode ser também algo "que fazemos", derivativamente, do que fazemos quando sentimos, embora sua teoria seja inteiramente baseada em reverberações de circuitos de feed back que ele chama de "sentições", quando centrais, e de "sentimentos", quando superficiais no corpo, e ele defenda uma versão "invertida" do cartesianismo, do tipo Sentio, ergo sum (p. 115): "Pensamentos conscientes", ele afirma, "são tipicamente 'ouvidos' como imagens de vozes na cabeça - e sem este componente sensorial eles seriam abandonados" (p. 116).

Na verdade, nós costumamos agrupar estados sensoriais e estados intencionais, não só por causa das evocações sensoriais dos pensamentos, mas, sobretudo, porque em ambos os casos nós fixamos as extensões de nossos termos "por meio de estados aos quais nós temos acesso não-inferencial e nãoobservacional" (Rosenthal, 1986, p. 475). Entre as teorias de Humphrey e a de Rosenthal, a deste último parece-me mais adequada. Tampouco é a "atitude" proposicional, duvidar, imaginar, crer, perceber etc., que, no pensamento de ordem superior, torna o pensamento de ordem inferior "consciente", mas o conteúdo proposicional assertório de que "estou no estado x" (1991, 32 n.18). Ora, isso não exige recursos conceptuais sofisticados, de modo que é possível em crianças, animais superiores etc, com exceção do desdobramento reflexivo (pp. 34-35): há, portanto, pensamento sem linguagem. Crianças pequenas têm pensamentos de ordem superior sobre seus estados sensoriais, logo têm sensações conscientes, ainda que não tenham consciência dos seus estados intencionais. Crianças pequenas e animais superiores podem estar em estados mentais, pois têm "mente", e podem estar conscientes de seus corpos e de eventos exteriores, sem estarem conscientes de seus estados mentais. Estar consciente de um estado mental é distinto de estar consciente de um estado sensorial, embora ambos sejam estados mentais.

A porta está aberta, na teoria rosenthaliana, para a ciência: "a introspecção tem o prestígio que tem como fonte de informação, do mesmo modo que a percepção sensorial era uma fonte mais central de conhecimento sobre a realidade física, antes do florescimento das ciências sistemáticas relevantes"..., de modo que "temos tão pouca razão para supor que estados mentais não têm uma natureza não-introspectiva, quanto para crer que a natureza dos objetos físicos é inteiramente perceptível" (1991, p. 475). E somente devido à nossa ignorância que cremos numa coincidência entre aparência e realidade no caso da consciência intencional. O resquício de "transparência, translucidez, ou clareza" (Fernandes, 1995), que permanece na consciência intencional, como a marca da natureza imutável, inalterável, da consciência, consiste não em auto-transparência, mas no fato de que os pensamentos de ordem superior não são usualmente conscientes, ou seja, não são usualmente objetos de pensamentos de ordem ainda superior. Se considerarmos, além disso, que no topo de qualquer hierarquia de pensamentos haverá sempre um pensamento inconsciente, e que não é o pensamento de ordem inferior, ele mesmo, que é intrinsecamente consciente, entendemos melhor porque a consciência intencional resiste à objetivação no mundo. Com efeito, quando procuramos a consciência só encontramos seus objetos e são estes que podem alterar-se (por meio de identificações), jamais a consciência ela mesma. O resquício de "inconsciência, opacidade, ou obscuridade" (Fernandes, 1995), que permanece na consciência intencional, como a marca da identificação primária, consiste em que "a única maneira de um pensamento ser sobre um estado mental particular é ele ser sobre alguém estando naquele estado" (Rosenthal, 1991, p.469). Vê-se melhor, assim, porque a identificação secundária é parte da estrutura mesma da consciência, mas sob a forma de ilusão irresistível. Pois, é da forma mesma do pensamento inconsciente de ordem superior ser um pensamento, cujo conteúdo é o estar alguém num certo estado, que, no caso da intencionalidade, é um pensamento de ordem inferior. O resto do trabalho da ilusão, ou seja, um trabalho em que o enganado é cúmplice do enganador (ilusão interativa), é o uso reiterativo dos indexicais.

Para Dennett, à maneira dos físicos quânticos, "não há fatos fixos sobre a corrente da consciência, independentes de sondagens particulares" (Dennett, 1991, 138, p. 275). A "máquina virtual" edita e revê o que edita, on Une, de modo que não há um onde nem um quando um estímulo se torne consciente e, menos ainda, uma "versão final" do pandemonio de múltiplos esboços que competem inconscientemente entre si... pelo que não vale a pena, digo eu, pois é impossível, na teoria de Dennett, que um deles ganhe realmente a disputa. Já para Rosenthal, à maneira dos psicólogos clássicos, "quando um estado mental é consciente, alguém está consciente de estar naquele estado" (Rosenthal, 1993, p.912). Sendo possível inferir-se que estamos num certo estado mental inconsciente, o pensamento de ordem superior não pode depender de qualquer inferência da qual estejamos conscientes, e tampouco é usual que ele mesmo seja consciente. Relatar verbalmente que estamos num determinado estado mental de ordem inferior é expressar um pensamento de ordem superior. Relatar este último é expressar um outro, e assim por diante.

No entanto, ao contrário da interpretação dennettiana da teoria de Rosenthal, para este, pensamentos de ordem superior não envolvem crenças de ordem superior (Rosenthal, 1993, p. 916, n. 7). Nenhum deles é intrinsecamente consciente. Para ambos, Rosenthal e Dennett, a consciência intencional não é um produtor central de significados. A aparente unidade deve-se mais às ligações psicossociais das narrativas que construímos, do que a fatores puramente organísmicos. Ou, em termos de Rosenthal, a unidade deve-se a pensamentos de ordem superior que subsumem grupos de estados mentais, ou a ocasionais pensamentos de terceira ordem, que conectam vários pensamentos de ordem inferior. As narrativas de Dennett são as expressões lingüísticas de Rosenthal. Nem o comportamento nem a introspecção, são criteriais para a consciência, mas, sim, a memória, como edição on Une (mais ou menos à maneira de Edelman). Isto me parece inadequado. Pois, a memória, ainda que, basicamente, uma produção imaginativa presente de virtualidades, pressupõe as noções de deixar traços significativos ou de ter efeitos mentais. Ora, sabemos que estados mentais inconscientes também produzem efeitos mentais. Logo, não acredito que a memória seja a melhor pista para desvendarmos o mistério da consciência intencional. Em Filosofia e Consciência, desenvolvo uma teoria que, em vez de pressupor o tempo, ou que compreendamos o que é o tempo, explica-o como gerado pela própria estrutura da consciência.

Ambos, Rosenthal e Dennett, concordam com que zumbis são impossíveis: nada poderia ter todos os nossos estados intencionais e, apesar disso, não ter estados conscientes, ou seja, nada indistinguível, em princípio, de uma pessoa consciente poderia não ser consciente. A categoria de objetivamente subjetivo é, no entanto, inaceitável para Dennett e aceitável para Rosenthal. Para Dennett, sua admissão permitiria estados de consciência nos quais se poderia distinguir "a maneira como as coisas realmente, objetivamente parecem" de "a maneira como as coisas parecem parecer" (1991, p. 132). Já Rosenthal vê razões para distinguir "parecer" e "parecer parecer", pois essa distinção que, para Dennett parece absurda, é, para ele, necessária para impedir o colapso da consciência numa "propriedade intrínseca" de estados mentais (1993, 916 n.5). Dennett recusa-se a atribuir propriedades representacionais a estados mentais conscientes, ao passo que, para Rosenthal, tais propriedades existem e podem ser inconscientes, pois podemos "errar em todos os níveis", a respeito do conteúdo de nossa consciência (Cf. Nisbett e Ross, 1980; Nisbett e Wilson, 1977): "fatos sobre em que estados mentais estamos distinguem-se de fatos sobre como estamos conscientes deles", ou seja, fatos sobre os pensamentos de ordem superior (Rosenthal, 1993, p.917).

O ponto mais importante da crítica de Dennett a Rosenthal está em que a teoria deste último não explica - tampouco a de Dennett - como é que só alguns dos inúmeros processos sub-perceptuais (não-inferenciais) do cérebro causam pensamentos de segunda ordem. Isto parece a Dennett requerer do cérebro uma organização mais centralizada do que os fatos permitem:

Pensamentos de ordem superior podem eles mesmos ser inconscientes (o golpe de mestre de Rosenthal), mas eles têm de ser, de algum modo, mais globalmente influentes que os efeitos de auto-monitoramento mais locais e comezinhos que lotam o cérebro. Como poderia esta distinção ser feita? (Dennet, 1993, p.928)

Desse modo, estamos novamente diante de um grande quadro-negro cheio de fórmulas teóricas brilhantes e muito bem encadeadas, mas que, num dado ponto, lá pelo meio, tem uma lacuna para onde o mestre aponta, dizendo: "E, aqui, ocorre um milagre".

Os tais estados mentais de ordem superior - os que tomam outros como alvo - fazem dos de ordem inferior estados conscientes, como se alguém, diz Dennett, ficasse famoso por um breve lapso de tempo. Seria isso, realmente, a fama? (O leitor já se viu na TV, anonimamente, por um minuto?) Pois esta parece ser a implicação da teoria de Rosenthal: ainda a tela, ainda o Teatro Cartesiano, ainda a consciência como alguma propriedade que tem fronteiras nítidas, no cérebro e no mundo. Consciência é celebridade cerebral. Só que no cérebro não há tela, não há palco, e não há platéia. Só há um pandemônio de scripts, sem contra-regras. "Assim como um Hall da Fama é uma formalidade redundante (se você já é famoso, a eleição é supérflua; e se você não é, a eleição provavelmente não fará a diferença), assim é a "entrada" para o Hall das Celebridades Cerebrais" (p. 929). "Fama instantânea" é uma contradição em termos. Do mesmo modo, parece impossível, para Dennett, detectarmos um piscar instantâneo da consciência, pois esta edita o tempo on Une, suponho eu, em quanta ou janelas de indeterminação. Nada que possa ser medido por um "fenomenômetro", ou que pressuponha um "espectador".

 

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(1) Este artigo é uma versão abreviada do capitulo 4 de Fernandez 1995.
(2) Cf. White, L.L. (1984). The Unconscious Before Freud. New York: Basic Books, citado por Wilkes (1988).
(3) Proceedings of the Aristotelian Society, 1971.
(4) Gardner, M. (1981). The Laffer Curve and Other Laughs in Current Economics. Scientific American, 245.