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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.4 no.3 Ribeirão Preto dez. 1996

 

Estratégias metacomunicativas nas interações criança - criança

 

 

Angela Uchoa Branco

Universidade de Brasília

 

 

O objetivo do presente texto consiste em situar a questão da metacomunicação no plano teórico-conceitual e, em seguida, apresentar e discutir alguns episódios metacomunicativos observados em crianças de 3 anos de idade, analisando a dimensão funcional e co-construtiva das estratégias utilizadas.

A comunicação humana é um fenômeno multi-modal e multi-funcional, o qual ocorre no contexto de um sistema que relaciona as pessoas em interação, continuamente engajadas na co-construção dos significados contidos no processo comunicativo (Fogel, 1993; Valsiner, 1994). A simples regulação mútua entre os indivíduos não é suficiente para a caracterização do fenômeno como processo comunicativo (Messer, 1994), sendo fundamental a presença de elementos coconstrutivos, sob a forma de potencial criativo (Fogel, 1993) ou "intersubjetividade" (Trevarthen, 1993). Outras abordagens acerca da questão da comunicação e da linguagem podem ser encontradas no universo teórico da Psicologia, da Lingüística e das ciências afins (Lemos, 1981; Pêcheux, 1984; Orlandi, 1988; Kleiman, 1989; Maingueneau, 1989; Arrivé, 1994), porém, a perspectiva aqui adotada tem por propósito retomar, no plano conceituai e metodológico, a questão da comunicação e da metacomunicação a partir de uma orientação sistêmica co-construtivista (Wozniak, 1986, 1993; Valsiner, 1987, 1989, 1994a, 1994b; Ford e Lermer, 1992; Fogel, 1993; Fogel e Branco, no prelo).

A comunicação dá-se através de canais múltiplos, os quais refletem as variadas dimensões do fenômeno expressivo, implicando a co-construção de uma dança semiótica que envolve os participantes da experiência comunicativa. Todo evento comunicativo possui dois objetivos funcionais distintos e complementares: 1. a comunicação do conteúdo, isto é, a informação que é veiculada entre os indivíduos, e 2. a comunicação dos indicadores, regras ou instruções necessários à interpretação do conteúdo, em termos do processo interativo ou relacional entre os indivíduos, que podem, inclusive, alterar o conteúdo da própria mensagem (Watzlawick, Beavin e Jackson, 1967; Bateson, 1972; Leeds-Hurwitz, 1989). Por exemplo, certas afirmações feitas em tom de brincadeira, em geral, tendem a não ser consideradas como verdadeiras. Colocando a questão na perspectiva da co-existência de dois níveis comunicativos, é possível referir ao plano da informação ou conteúdo e ao plano da metacomunicação, onde ocorrem uma comunicação a respeito de como a própria comunicação deve ser interpretada ou compreendida, havendo, portanto, a indicação da natureza ou qualidade específica do frame interacional (Fogel, 1993), que contextualiza o conteúdo sendo comunicado.

Em resumo, quando é possível identificar uma interação social entre dois indivíduos, ou seja, quando ocorre algum tipo de regulação mútua entre eles, a troca de informação que se dá no processo flui simultaneamente em dois planos funcionalmente distintos. O reconhecimento e conseqüente análise da dimensão metacomunicativa, no entanto, são relativamente recentes, tendo sido particularmente discutidos por Watzlavick e col. (1967) e Bateson (1972). Antes disso, a tendência era considerar o fenômeno da comunicação como um todo; fenômeno que envolvia um intrincado complexo de sinais verbais e não verbais partilhados pelas pessoas em interação. Esta tendência pode até mesmo ser observada em Watzlavick e col. (1967), pois, ao mesmo tempo em que os autores introduzem a importante noção de metacomunicação em sua análise, em muitos dos seus exemplos referem-se exclusivamente à comunicação como fenômeno global, não destacando o componente metacomunicativo (ou "relacional") ali presente.

No plano da comunicação do conteúdo, a troca de informação que ocorre entre os indivíduos abrange um universo ilimitado de possibilidades, e dá-se particularmente por meio da linguagem verbal e da gestualização simbólica partilhada culturamente. No plano da metacomunicação, as informações trocadas entre os indivíduos fluem simultaneamente ao processo comunicativo, e referem-se ao tipo, natureza ou qualidade da própria interação entre eles, ou seja, os indivíduos indicam, sinalizam ou avaliam o frame interativo, ou o contexto específico da sua interação.

De uma forma geral, podemos dizer que a comunicação dos conteúdos se dá de uma maneira mais explícita e elaborada pela linguagem convencional, seja ela verbal ou manifesta por meio da gestualização simbólica partilhada pelos integrantes de uma certa cultura. O plano da comunicação de conteúdos é, portanto, de natureza lingüística. Watzlavick e col. (1967) sugerem o termo comunicação "dialógica" para designar esta forma comunicativa, enquanto que comunicação "analógica" representaria a modalidade metacomunicativa ou relacional. A comunicação analógica faria uso, basicamente, de recursos nãoverbais tipicamente imprecisos, tais como expressões faciais, posturas, sinais paralingüísticos (como entonação de voz etc), e assim por diante.

A comunicação dialógica (ou lingüística) ocorre entre os indivíduos de maneira episódica, quando estes se engajam em trocas lingüísticas de qualquer natureza. A metacomunicação, no entanto, flui continuamente ao nível da dimensão não-verbal e paralingüística, através dos múltiplos canais da expressividade humana (expressões faciais, postura, olhar, movimentos do corpo, toque, entonação da voz, ritmo da fala etc). E neste sentido que passamos a interpretar a afirmação de Watzlavick e col. (1967) de que é impossível a "não comunicação". Os autores citam o exemplo de pessoas silenciosas em um elevador, onde, na realidade, estão metacomunicando-se - "não pretendo interagir com você". Leeds-Hurwizt afirma que "Nós não podemos pronunciar as palavras por elas próprias, sem entonação..." (1989, p. 151), o que indica a permanente existência de um plano metacomunicativo, cuja possibilidade de interpretação ocorre ao longo de um contínuo de complexidade.

A Figura 1 busca representar a concepção segundo a qual os dois planos - o da comunicação lingüística e o da metacomunicação - se relacionam. Conforme vemos na figura, ocorre, no entanto, que em muitas ocasiões a metacomunicação expande-se no sentido de envolver o plano da linguagem convencional, partilhada pelos membros de uma certa cultura. Neste caso, a metacomunicação apresenta-se, portanto, também no plano explícito e elaborado, no qual geralmente a comunicação lingüística se dá, passando a ser denominada metacomunicação lingüística.

 

 

Pode-se supor, inicialmente, que uma simples distinção entre os canais verbal e não verbal definiria, respectivamente, os dois planos sugcridos, comunicação lingüística e metacomunicação. Isto, porém, não ocorre, pois o que diferencia ambos os planos é a existência ou não de um código lingüístico, o qual está presente em muitas formas de comunicação não-verbal (como gestos, sinalizações etc), não vinculadas à questão relacional. O próprio silêncio, ou mesmo pausas observadas no discurso de uma pessoa, podem comunicar conteúdos específicos referentes a questões não relacionais (Ohnuki-Tierney, 1994). De acordo com o modelo proposto, estas trocas não verbais fazem parte do plano da comunicação lingüística. Quanto ao nível da metacomunicação, este, por sua vez, transcende a simples comunicação não-verbal, na medida em que resulta de complexa interação entre os indicadores não verbais e os elementos do contexto geral, no qual ocorre a comunicação. No caso da metacomunicação lingüística, esta se dá especificamente pelas verbalizações.

A metacomunicação lingüística, como referimos anteriormente, ocorre quando há uma expansão da metacomunicação para o plano da linguagem. Neste caso, estamos diante de um fluxo paralelo de metacomunicações, que tanto podem ser congruentes quanto contraditórias entre si. Exemplificando, vejamos o caso da esposa que percebe que o marido está "estranho" e resolve propor-lhe conversar a respeito. Ele pode, eventualmente, concordar que algo não vai bem no relacionamento e, juntos, resolverem buscar compreender a situação e procurar uma solução. Ele pode, entretanto, negar a existência de qualquer problema ao nível da metacomunicação lingüística, fazendo de conta que tudo está muito bem, porém demonstrando, ao nível da metacomunicação não-lingüística, que o problema continua.

O caso do double bind (dupla mensagem ou duplo vínculo), analisado por Bateson e Watzlawick, entre outros, representa exatamente a possibilidade de uma incongruência ou mesmo contradição entre os dois planos de troca de informação entre os indivíduos, quando da expansão da metacomunicação para o plano da comunicação. É o caso, freqüentemente encontrado em situações relatadas pela psicopatologia, em que mensagens discrepantes, geralmente carregadas de conteúdo emocional, podem ser identificadas nas interações familiares, por exemplo. Como a mãe que diz amar seu filho e, ao mesmo tempo, rejeita sua proximidade, demonstrando desconforto e mal-estar no contato físico com a criança.

Ao penetrar o campo da comunicação lingüística (como no caso indicado pelas setas na Figura 1 - metacomunicação lingüística), a metacomunicação acaba por representar uma espécie de reflexão ou avaliação da(s) interação(ões) entre os indivíduos. Em alguns casos, tem seu foco na interação imediata, mas muitas vezes vai além desta interação e refere-se ao nível da própria relação que, segundo Hinde (1976), resulta da história das interações passadas entre os indivíduos. A libertação do "aqui-e-agora", proporcionada pelo uso da linguagem verbal, permite ainda a reflexão ou avaliação acerca do papel de fatores contextuais na determinação da qualidade da relação inter-individual. Em resumo, a metacomunicação lingüística pode referir-se à interação imediata (metacomunicação episódica), à relação (metacomunicação relacional), ou ao papel do contexto (metacomunicação contextual) nos processos interativos.

A avaliação do frame interativo, ou da própria relação, pode dar-se ao longo de um contínuo de complexidade semiótica, que varia desde uma simples avaliação de natureza não-verbal (como por exemplo um sorriso), indicativa do tipo de frame interativo, até avaliações extremamente elaboradas, nas quais os indivíduos utilizam-se de recursos da linguagem simbólica de forma complexa e abrangente (seria o caso de uma discussão de alto nível acerca dos rumos de um relacionamento conjugai, por exemplo). O componente "avaliação", apesar de presente de diversas maneiras em quase todo processo metacomunicativo, pode ser considerado particularmente importante nos processos de metacomunicação lingüística.

A análise dos processos metacomunicativos vem sendo realizada a partir do conceito de frame (Bateson, 1972; Goffman, 1974; Fogel, 1993). Os frames delimitam o significado intersubjetivo do discurso e das ações, especificando o contexto interpretativo e qualificando as informações criadas no episódio da interação. Os frames são especialmente sensíveis aos componentes afetivos da experiência social e podem ser situados ao longo de um contínuo, que vai dos padrões interativos caracterizados pela convergência de "orientação de objetivo" (goal orientatiori) até padrões tipicamente divergentes. A noção de convergência e divergência nas "orientações de objetivo", apresentadas pelos indivíduos em interação, refere-se ao grau de compatibilidade entre tais "orientações" e tem sido por nós utilizada no contexto de outros trabalhos (Branco e Valsiner, 1992; no prelo), com o objetivo de melhor descrever o caráter dinâmico e complexo dos processos co-construtivos.

Bateson (1972) chamou a atenção para o fenômeno da metacomunicação observando a brincadeira de luta em crianças e animais. Nesta situação, gestos e ações normalmente utilizados em contextos divergentes (como no conflito ou antagonismo) são empregados no âmbito de frames característicamente convergentes, o caráter de brincadeira sendo principalmente sinalizado através de indicadores não-verbais (entre as crianças, também marcadores verbais podem ser utilizados na indicação do contexto lúdico, como, por exemplo, quando uma criança diz para a outra: "É só de brincadeira, tá?").

O número de estudos que buscam investigar as características e o papel da metacomunicação nas interações criança - criança é bastante reduzido, geralmente limitando-se ao estudo de situações de "faz-de-conta" (por exemplo, Robinson e Robinson, 1983; McLoyd, Warren e Thomas, 1984; Pratt e Kerig, 1986; Leeds-Hurwitz, 1989; Fein, 1991; Mello, 1994). A partir do interesse teórico-conceitual nos processos de metacomunicação, do qual resultou um trabalho conjunto com o professor Alan Fogel, da Universidade de Utah (Fogel e Branco, no prelo), vimos procurando analisar as estratégias metacomunicativas que se dão nas interações criança-criança, em diferentes contextos.

Os exemplos apresentados a seguir consistem em episódios observados nas gravações em video que realizamos durante estudo experimental dos processos de canalização cultural em contextos de cooperação e competição (Branco e Valsiner, 1992, 1993; Branco, no prelo). Este estudo foi realizado com crianças de 3 anos de idade, organizadas em duas tríades, formadas por dois meninos e uma menina, que, ao longo de nove sessões experimentais, eram supervisionadas em atividades estruturadas de forma cooperativa ou competitiva. No momento, estamos realizando projetos visando investigar os processos metacomunicativos ao longo das sessões, com base em uma perspectiva qualitativa e microgenética, e os exemplos aqui apresentados têm por objetivo ilustrar as análises dos padrões metacomunicativos observados. Os três episódios selecionados para apresentação representam segmentos metacomunicativos que poderiam implicar transição entre frames de convergência e divergência, e são aqui apresentados com o objetivo de demonstrar a extensão e o significado dos padrões metacomunicativos nas interações entre crianças.

No primeiro exemplo, William, Frederico e Priscila estão brincando com uma grande caixa de papelão. Frederico e Priscila cobrem o corpo de William com a caixa, todos estão rindo e emitindo vocalizações que soam como reclamações (do tipo "Ai!"), mas de forma distorcida, como se estivessem "reclamando de brincadeira". De repente, William sai da caixa, sua postura é mais rígida, a expressão facial é de desagrado e ele reclama em diferente tom de voz dizendo "Pára!" e afastando-se deles. Priscila, então, sorri para William e entra ela própria debaixo da caixa. William pára de reclamar, e volta à brincadeira, colocando a caixa sobre Priscila junto com Frederico. Vocalizações e risinhos voltam à cena.

Aqui observamos vários sinais metacomunicativos, indicando a qualidade lúdica do episódio, particularmente os risos e a qualidade distorcida das vocalizações do tipo "reclamar de brincadeira". O momento de uma possível transição entre um frame convergente para divergente ocorre quando William demonstra desagrado (talvez por sentir-se machucado pela pressão exercida pelos colegas com a caixa sobre seu corpo). Neste momento, a mudança súbita em seu comportamento inclui sair do papel em que estava, dizer "Pára!" com um tom de voz indicativo de aborrecimento e a expressão facial carregada. Porém, a reação de seus colegas não completa, de fato, a transição. Priscila, com seu sorriso, seu olhar e seu gesto de agora ela própria assumir o papel de "ser coberta pela caixa", demonstra disposição em enfrentar a mesma situação que provocou desconforto em William de forma alegre e lúdica, e exibe uma conduta que atua como um convite para brincar outra vez. Isto tem como efeito imediato o retorno do menino à brincadeira. O comportamento dos colegas não contribuiu para a co-construção de um frame divergente e, pelo contrário, promoveu o retorno de todos ao frame anterior. A efetividade dos sinais metacomunicativos presentes neste exemplo revela, pois, a poderosa influência da metacomunicação no curso dinâmico das interações sociais.

No segundo exemplo, Frederico e William estão brincando de massinha e conversando no contexto de um frame convergente. Um pouco de massinha gruda nos dedos de William e este lança seu braço abruptamente para a frente algumas vezes, na direção de Frederico. Frederico parece interpretar este movimento como uma possível forma de ataque e muda sua expressão facial e corporal imediatamente. William percebe, olha para Frederico, começa a rir, vocalizando "Uau!". Frederico aos poucos altera sua postura e sua expressão facial, ficando mais relaxado, e aproxima-se de William para ver o que este está fazendo. A expressão de desconforto desaparece e a conversa entre eles continua.

O aspecto mais interessante demonstrado por este exemplo é o "erro" de interpretação feito por Frederico. O movimento do braço de William, abrupto e aparentemente direcionado, sugere a possibilidade de um ataque, o que implicaria a imediata configuração de um frame divergente entre ambos. As estratégias empregadas por William para metacomunicar a Frederico que o frame ainda é o mesmo (riso, olhar, vocalizações) mostra-se eficiente, com o retorno à conversa entre eles.

O terceiro exemplo consiste em mais uma rápida negociação da qualidade dos frames: William e Frederico haviam feito cada qual uma construção com bloquinhos de madeira. Estão, no momento, brincando de correr juntos pela sala. Vão na direção da construção de Frederico, e William, aparentemente de forma acidental, derruba a construção de Frederico. Este se zanga imediatamente e diz "Não!", alterando o tom de voz e a expressão fisionômica. William olha para Frederico, sorri e diz com tom de voz tranqüilo "Eu caí!". Frederico ainda apresenta expressão de aborrecimento em sua fisionomia e no tom de voz, e diz "Você não podia!". William inclina sua cabeça e, continuando a sorrir, diz "Eu caí!", e imediatamente acrescenta " Vamos, Frederico, vamos cair?". Frederico finalmente diz "Vamos!", os dois levantam-se, correm em direção à construção de William, derrubam-na, e saem rindo e caindo um sobre o outro.

Este exemplo é de certa forma similar ao anterior, mas aqui um novo elemento está presente: já que a ação de William tem uma séria conseqüência (a destruição da construção do colega), uma explicação verbal torna-se necessária, no sentido de deixar bem claro o caráter não-intencional do ato. À medida que William explica, seu olhar, sorriso e entonação de voz indicam sua disposição em continuar brincando junto, e o convite para brincar, derrubando a sua própria construção, marca de forma definitiva a sua "orientação de objetivo", imediatamente partilhada por Frederico. Este exemplo é particularmente interessante também pelo fato de estas crianças estarem acostumadas às sessões experimentais de brincadeira cooperativa, sendo esta sessão a primeira na qual lhes foi solicitado realizar tarefas individuais. Ao destruir suas respectivas construções, as crianças alteram as regras do contexto e fazem valer a sua própria "orientação de objetivo", qual seja, brincar juntos em contexto de interação convergente.

Os exemplos acima descritos revelam a presença significativa da metacomunicação entre crianças. Múltiplos canais são empregados na co-construção dos frames interativos, de forma complexa e criativa (Fogel, 1993), determinando a qualidade dos padrões observados ao longo de uma gama de possibilidades de convergência e de divergência nas "orientações de objetivo" dos indivíduos em interação. A utilização de expressões não-verbais é particularmente importante, envolvendo postura, gestos, configuração fisionômica e a dimensão paralingüística das vocalizações e verbalizações apresentadas pelas crianças. O tom de voz parece ser especialmente significativo na indicação da convergência ou divergência do frame. Além disto, a ocorrência de perguntas de confirmação do tipo " Tá bom, fulano?", "Você não acha, fulano?" parece indicar a necessidade de dar prosseguimento à interação em sintonia de "orientação de objetivo" com o colega, deixando clara a disposição para uma coconstrução convergente. Até mesmo o uso de convenções do tipo pedir licença foram utilizadas espontaneamente pelas crianças, pela mesma razão funcional.

Gestos observados por Montagner (1978), como a inclinação da cabeça em contexto afiliativo e a freqüente ocorrência da imitação (Nadei e Baudonnière, 1981; Eckerman, 1994), puderam ser verificados em nossas observações. O valor funcional da imitação foi muitas vezes revelado, quando esta atuava como precursora de longos episódios convergentes ou então quando atuava como forma de re-estabelecer a convergência após um movimento, ou mesmo um episódio, tipicamente divergente. Outra estratégia interessante, utilizada pelas crianças, consistiu na referência verbal a um padrão relacional de amizade, isto é, as crianças fizeram uso da metacomunicação lingüística como forma de indicar a convergência na "orientação de objetivo". Por exempio, William aproxima-se de Frederico e diz: "Amigo, amigo, você me dá um desse?", com macio tom de voz e apenas tocando com o dedo o objeto. Ao invocar a relação de amizade, William busca influenciar a decisão do colega em concordar com a solicitação feita, proposta que se completa com estratégias metacomunicativas não-verbais, visando o mesmo propósito interacional.

Alguns episódios observados indicam também a existência do fenômeno de duplo vínculo (Bateson, 1972; Rieber, 1989), anteriormente referido neste trabalho para designar a ocorrência de mensagens conflitivas no sistema de comunicação. Por exemplo, uma das crianças da outra tríade, em várias ocasiões, apresentou sinais metacomunicativos de difícil interpretação, gerando uma certa ambigüidade, que pareceu provocar desconforto na outra criança. Em certa ocasião, Paulo bateu forte com um objeto de espuma na cabeça do colega, ao mesmo tempo em que ria e vocalizava alegremente. Em resposta a este comportamento, o colega alternou ações convergentes e divergentes, finalmente chorando e reclamando da situação, o que levou o adulto a interferir. Tais episódios demonstram as dificuldades apresentadas por algumas crianças em co-construir frames interativos bem definidos.

Mesmo que essas dificuldades possam ser mais freqüentemente observadas em certas crianças, indicando problemas específicos de competência social, a perspectiva adotada em nosso trabalho aponta para a necessidade de se estudar e compreender o sistema interacional, tomando-se como unidade de análise a relação, enfim, os processos comunicativos e metacomunicativos que são co-construídos pelos indivíduos em interação. Os principais fatores que contribuem para a configuração da qualidade das interações e das relações sociais, segundo uma perspectiva co-construtivista, devem ser buscados no sistema, e não em cada participação individual.

Finalizando, gostaríamos de retomar algumas das principais proposições teórico-conceituais aqui apresentadas:

A comunicação humana é extremanente complexa, dá-se através de múltiplos canais relacionados de forma sistêmica e envolve tanto a comunicação de conteúdos específicos quanto a metacomunicação, isto é, a comunicação sobre o próprio processo comunicativo.

O papel do contexto é também fundamental e tem especial participação na co-construção dos significados das informações criadas durante o processo.

A metacomunicação dá-se continuamente, definindo de forma dinâmica e co-construtiva os frames interativos que provêem o contexto para a interpretação das ações dos indivíduos.

A dimensão não-verbal é de central importância na definição da qualidade convergente ou divergente dos frames, porém é freqüente a ocorrência da metacomunicação lingüística, mesmo entre crianças na idade pré-escolar.

Concluindo, é fundamental que haja o reconhecimento do papel central dos processos metacomunicativos no estudo das interações sociais e o reconhecimento da necessidade de investigar tais processos a partir de uma abordagem microgenética, capaz de revelar sua dinâmica co-construtiva, no âmbito do fenômeno da comunicação.

 

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