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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.4 no.3 Ribeirão Preto dez. 1996

 

Representações sociais: teoria e pesquisa do núcleo central

 

 

Celso Pereira de Sá

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia Rua São Francisco Xavier, 524 Cep. 20559-900 - Rio de Janeiro, RJ. Fax: (021) 537-2154. E-mail: cpsa@uerj.br

 

 

O termo representações sociais designa tanto um conjunto de fenômenos quanto o conceito que os engloba e a teoria construída para explicá-los, definindo um vasto campo de estudos psicossociológicos. Inaugurado por S. Moscovici, em 1961 (Moscovici, 1976), como uma tentativa de renovação temática, teórica e metodológica da psicologia social, o campo começou a receber mais atenção na Europa somente a partir dos anos 70. Durante os anos 80, além de transpor as fronteiras européias, inclusive em direção ao Brasil, foi confrontado por uma forte oposição crítica acadêmica.

A primeira metade da presente década tem testemunhado a dissipação das restrições críticas, ao mesmo tempo em que se verifica uma significativa intensificação dos esforços de elaboração teórica e de aperfeiçoamento metodológico. Tende-se hoje a considerar a proposição original de Moscovici uma grande teoria das representações sociais, ou seja, "uma concepção geral (...) que orienta o esforço de pesquisa" no campo, a qual "deve, não obstante, ser completada por descrições detalhadas de processos que sejam compatíveis com a teoria geral" (Doise, 1993, p.161).

Parecem ter constituído importantes condições para tal processo evolutivo a gradativa cessação das cobranças quanto a uma definição precisa dos termos teóricos, bem como das discussões envolvendo uma inadvertida confusão entre os fenômenos, a teoria e a crítica metateórica das representações sociais (De Rosa, 1994). A definição das representações sociais como "uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e compartilhada, que tem um objetivo prático e concorre para a construção de uma realidade comum a um conjunto social" (Jodelet, 1989, p.36), embora não atenda plenamente às exigências de rigor e precisão antes levantadas e se mostre suficientemente ampla para abrigar diferentes perspectivas sobre o pensamento social, parece ter trazido algo como uma trégua conceituai ao campo. Igualmente, as proposições específicas dos processos de ancoragem e de objetivação não parecem suscitar, hoje em dia, tanta controvérsia quanto antes, subordinadas que passaram a ser ao princípio mais geral da familiarização (Moscovici, 1984).

Além disto, afastaram-se também entraves em questões como a origem da teoria e os objetos concretos a que ela possa se aplicar. De fato, a distinção taxonômica proposta por Moscovici (1988) entre representações hegemônicas, emancipadas e polêmicas, identificando sob o primeiro rótulo os fenômenos estudados por Durkheim como representações coletivas, contribuiu bastante para o esclarecimento das semelhanças e diferenças entre os trabalhos teóricos dos dois autores e de seus respectivos objetos privilegiados de estudo. Quanto à legitimidade de diferentes objetos de representação, parece ter ficado igualmente esclarecido - pela reconsideração sistemática das condições de emergência das representações estabelecidas por Moscovici (1976), dispersão da informação, focalização e pressão à inferência - que "não há porque existir uma representação social para cada objeto em que possamos pensar" (Ibañez, 1988, p.34).

A palavra de ordem hoje parece ser libertar-se de algo como mera exegese dos textos de Moscovici e de descartar a consideração de questões menores, para fazer efetivamente avançar a teoria e a pesquisa em todas as direções para as quais a vitalidade do campo venha a apontar, como, de resto, sempre declarou desejar o seu inaugurador. A teoria do núcleo central, conquanto proposta já em 1976 por J.C. Abric, na Université de Provence, somente começou a ter maior influência no campo das representações sociais a partir do início destes anos 90, quando surgiram as condições para maior reconhecimento dos esforços de elaboração teórica e metodológica complementares à grande teoria.

O presente trabalho propõe-se a apresentar e discutir a natureza e a relevância das contribuições do que se convencionou chamar de O Grupo do Midi (do Sul da França, do Mediterrâneo) ao estudo das representações sociais. Duas abrangentes coletâneas de estudos, organizadas respectivamente por Abric (1994a) e por Guimelli (1994a), da Université de Montpellier, são indicadas como importantes fontes originais para dar-se conta do estado atual da sistematizacão teórica e metodológica proporcionada pelo Grupo, na medida em que se configuram como um nítido resultado cumulativo e autocorretivo das elaborações precedentes e da extensa produção empírica desenvolvida sob tal perspectiva.

 

A SOLUÇÃO TEÓRICA BÁSICA E SUAS ORIGENS

A noção de núcleo central de uma representação social foi proposta, segundo Abric (1994b), sob a inspiração de proposições anteriores de F. Heider e de S. Asch, no âmbito da Psicologia Social Norte-Americana, quanto à organização centralizada dos fenômenos de atribuição e de formação de impressões. Uma fonte mais próxima é, entretanto, a própria grande teoria de Moscovici, com a importância genética que confere, na explicação das representações sociais, à constituição de um núcleo figurativo, ou seja, uma reorganização imagética de elementos cognitivos privilegiados. Esses elementos, descontextualizados em relação à estrutura original do objeto representado e a suas condições conjunturais, gozariam de considerável autonomia na moldagem do conhecimento sobre tal objeto e tudo o que com ele possa ser relacionado.

Não obstante, a teoria do núcleo central não limita o âmbito explicativo do constructo ao processo de formação das representações, aplicando-se tanto ao estudo das representações já constituídas quanto ao de sua transformação. Tampouco insiste no caráter figurativo do núcleo, atribuindo aos elementos que o compõem uma natureza puramente cognitiva, tanto sob formas descritivas quanto valorativas. São provavelmente tais expansões explicativas que autorizaram Flament (1989) a vislumbrar para essa abordagem complementar o papel de "tornar a teoria das representações sociais mais heurística para a prática social e para a pesquisa" (p.204).

É possível, entretanto, que uma ênfase inicial excessiva sobre o núcleo central em si, como admitido mais tarde por Flament (1994a), tenha bloqueado por algum tempo o desempenho pleno de tal papel. De fato, a valorização do núcleo como "um subconjunto da representação composto de um ou alguns elementos cuja ausência [a] desestruturaria (...) ou lhe daria uma significação completamente diferente" (Abric, 1994a, p.73) e uma ocupação quase exclusiva com a pesquisa empírica de tais elementos levaram a que se negligenciassem a composição global da representação e as funções cumpridas pelos elementos periféricos.

Mais recentemente, os teóricos do núcleo central (Abric, 1993, 1994c; Flament, 1994a) deram-se conta dessa negligência e trataram de corrigi-la. Podem-se atribuir ambas, a negligência e a correção dos rumos, à mesma disciplina metodológica e ao caráter cumulativo da produção acadêmica do Grupo do Midi (Sá, 1996). Vale a pena apreciar como a nova versão mais bem explicitada é colocada sob a forma de uma solução teórica para problemas empíricos concretos, corroborando assim a vocação da teoria para proporcionar um caráter mais heurístico ao campo de estudos das representações sociais.

O problema fundamental que a teoria do núcleo central pretende resolver coloca-se nos seguintes termos: as representações sociais apresentam duas características amplamente constatadas, mas aparentemente contraditórias, cuja evocação é sempre desconcertante para os estudiosos do campo, que não podem fazer outra coisa senão admiti-las. São elas as seguintes, segundo Abric (1994b): "as representações são ao mesmo tempo estáveis e móveis, rígidas e flexíveis" (p.77); e "as representações são consensuais, mas também marcadas por fortes diferenças interindividuais" (p.78).

A possibilidade de sua solução residiu basicamente em convir que se tratam, a rigor, das próprias características estruturais das representações e de seu modo de funcionamento. Para enfim explicá-las, Abric (1994b) propôs que a representação social, conquanto constitua uma entidade unitária, é regida por um sistema interno duplo, em que cada parte tem um papel específico mas complementar ao da outra.

Haveria assim, em primeiro lugar, um sistema central, constituído pelo núcleo central da representação, ao qual são atribuídas as seguintes características: 1. é marcado pela memória coletiva, refletindo as condições sóciohistóricas e os valores do grupo; 2. constitui a base comum, consensual, coletivamente partilhada das representações, definindo a homogeneidade do grupo social; 3. é estável, coerente, resistente à mudança, assegurando assim a continuidade e a permanência da representação; 4. é relativamente pouco sensível ao contexto social e material imediato no qual a representação se manifesta. Suas funções são gerar o significado básico da representação e determinar a organização global de todos os elementos.

Em segundo lugar, haveria um sistema periférico, constituído pelos demais elementos da representação, que, provendo a "interface entre a realidade concreta e o sistema central" (Abric, 1994b, p. 79), atualiza e contextualiza as determinações normativas e consensuais deste último, daí resultando a mobilidade, a flexibilidade e a expressão individualizada das representações sociais. O sistema periférico apresenta, portanto, as seguintes características: 1. permite a integração das experiências e histórias individuais; 2. suporta a heterogeneidade do grupo e as contradições; 3. é evolutivo e sensível ao contexto imediato. Sintetizando, suas funções consistem, em termos atuais e cotidianos, na adaptação à realidade concreta e na diferenciação do conteúdo da representação e, em termos históricos, na proteção do sistema central.

O que, portanto, poderia aparecer na pesquisa empírica como contradições, em nível conceituai, vem a ser explicitamente reconhecido como inerente aos fenômenos de representação social e satisfatoriamente explicado pela teoria do núcleo central. Trata-se, por certo, de uma solução teórica, que, se parece satisfatória do ponto de vista de sua estrutura lógica interna, não foi ainda suficientemente submetida à crítica metateórica nem teve tempo para acumular um corpo razoavelmente volumoso de evidências empíricas a seu favor. Na verdade, testemunha-se aqui uma significativa parte do processo global a que Moscovici (1988) chamou de "um fenômeno em busca de uma teoria", para caracterizar a gradativa construção da teoria das representações sociais.

Neste sentido, tendo pecado inicialmente por dar excessiva importância estruturalista às cognições centrais, o Grupo do Midi parece hoje redimir-se plenamente disso, não apenas ao conceder igual ênfase aos elementos periféricos, mas também ao destacar sua complementaridade funcional e, principalmente, ao possibilitar a exploração teoricamente informada da comparação entre duas representações ou entre dois estados sucessivos de uma mesma representação, em termos da articulação entre os dois sistemas internos e das relações entre representações e práticas sociais. É da contribuição da teoria do núcleo central a tais estudos que tratará a seção seguinte deste trabalho.

 

A ARTICULAÇÃO ENTRE OS SISTEMAS CENTRAL E PERIFÉRICO

A simples postulação teórica de dois sistemas, apresentando características que correspondem exatamente aos aspectos manifestados pelos fenômenos que se quer explicar, pode ser aceita apenas como uma solução inicial do problema. Era necessário ainda precisar as diferenças entre os elementos cognitivos de um e outro de tais sistemas, assim como a natureza de sua complementaridade, com base em um critério externo à teoria em si. Isto é o que foi proporcionado por Flament (1994a, 1994b), ao propor o argumento que se tenta sumariar a seguir.

Inicialmente, o autor convém que "uma cognição é prescritiva e/ou descritiva", para prontamente concluir que "no domínio das representações sociais, os dois aspectos estão a cada vez presentes, distinguíveis em nível discursivo, mas não no nível cognitivo" (Flament, 1994b, p.3 7-3 8). De fato, dada sua natureza de pensamento prático, voltado para "o domínio do ambiente social, material e ideal" (Jodelet, 1984, p.361), as cognições que o integram devem prover sempre alguma prescrição de conduta em relação ao objeto representado.

Flament distingue em seguida entre prescrições absolutas ou incondicionais eprescrições condicionais, caracterizando estas últimas nos seguintes termos familiares: "em geral deve-se fazer isso, mas em certos casos (...) devese fazer outra coisa" (1994a, p.91); ou "em tal condição, é preciso fazer isso; em tal caso particular, pode-se fazer aquilo" (1994b, p.3 8). A partir desta distinção, o autor propõe o que ele chama divertidamente de "uma inovação quantitativa", qual seja, a de que "ao menos no domínio das representações sociais, as prescrições são maciçamente condicionais", como uma decorrência da proposição mais séria de que "as prescrições tendem a aparecer no nível discursivo como incondicionais, enquanto no nível cognitivo elas são em sua maioria condicionais" (Flament, 1994b, p.38).

Isto quer dizer que, quando as pessoas emitem julgamentos aparentemente absolutos, com freqüência já se encontram neles embutidas, embora não de forma manifesta, diversas alternativas condicionais consideradas legítimas ou mesmo algo como uma condicionalidade genérica ou aberta. É esta hipótese da condicionalidade que proporciona um critério externo para distinguir entre as cognições do núcleo central, que seriam absolutas, e as cognições periféricas, que seriam condicionais. Ao mesmo tempo, confere-se assim maior plausibilidade à dinâmica das relações entre os elementos cognitivos dos dois sistemas, como proposta pela teoria.

Tal hipótese permitiu, inclusive, introduzir uma saudável complexificação na proposição estrutural da teoria, ao respaldar a distinção feita anteriormente por Flament (1989) entre representações autônomas - que possuiriam um núcleo central, ou seja, o "lugar de coerência" da representação de um dado objeto estaria no mesmo nível desse objeto - e representações não autônomas, cujo "lugar de coerência" se encontraria nas representações de outros objetos mais ou menos ligados ao objeto representado. A questão é assim esclarecida pelo mesmo autor, à luz da hipótese da condicionalidade:

Se o conjunto das prescrições absolutas de uma representação socialforma um sistema único .falaremos de núcleo central e diremos que a representação é autônoma (...). Ao contrário, se as prescrições absolutas formam diversos conjuntos organizadores, falar-se-á de uma representação não autônoma. (Flament, 1994b, p.44).

Duas outras das principais contribuições da teoria do núcleo central para o campo das representações sociais - o estudo comparativo das representações e o da transformação destas a partir das práticas sociais - adquirem também maior consistência em função do respaldo assegurado pelo novo critério.

Quanto aos estudos comparativos, a teoria do núcleo central sustenta que duas representações ou dois estados sucessivos de uma mesma representação devem ser considerados distintos se, e apenas se, seus respectivos núcleos centrais tiverem composições nitidamente diferentes. Caso contrário, ou seja, se as diferenças se apresentam apenas no nível dos seus sistemas periféricos, trata-se de uma mesma representação que se manifesta diferentemente em função de diferentes condições circunstanciais, de ordem grupai ou interindividual. Ou, dizendo de outra maneira, as manifestações da representação diferem apenas quanto às cognições periféricas condicionais, mas não quanto às cognições absolutas do sistema central, que proporcionam o significado básico da representação e organizam globalmente os elementos periféricos, tanto os que se atualizam em uma das manifestações quanto os que o fazem na outra.

Quanto à transformação das representações, a teoria propõe atualmente o seguinte esquema descritivo seqüencial, devido a Flament (1994b, p.49): "modificação das circunstâncias externas; modificação das práticas sociais; modificação dos prescritores condicionais; modificação dos prescritores absolutos (núcleo central)".

Isto não quer dizer que, uma vez iniciado o processo nas instâncias externas das circunstâncias concretas e das práticas sociais modificadas, ele deva ir obrigatoriamente até o efetivo surgimento de uma nova representação. Na verdade, Flament (1994b) considera que tal esquema possui "virtudes mais pedagógicas do que heurísticas" (p.50) e propõe uma explicação que leva mais explicitamente em conta a noção de condicionalidade. Diz ele que tudo se passa de tal modo que cada indivíduo envolvido no processo possa dizer: "Nas circunstâncias, eu faço alguma coisa não habitual, mas eu tenho boas razões para isso" (ibid). Tais boas razões são nitidamente cognições condicionais que justificam a emergência de novas práticas, as quais, por seu turno, refletem mudanças circunstanciais no ambiente. Se essas novas condições e práticas persistem e, principalmente, se são percebidas como irreversíveis, o núcleo central pode chegar de fato a ter sua composição alterada e, portanto, surgir uma representação realmente diferente do objeto. Em caso contrário, as modificações menores no âmbito do sistema periférico podem ser suficientes para manter a estrutura básica da representação bem adaptada às condições conjunturais prevalentes.

As proposições da teoria do núcleo central quanto aos estudos de comparação transversal e longitudinal das representações sociais colocam em evidência a relação entre práticas e representações de maneira bastante explícita (ver Abric, 1994d). Delas decorre a importante implicação metodológica de que não basta buscar inferir as representações a partir de seus suportes discursivos manifestos. E preciso articular esses dados com aqueles provenientes da investigação das práticas vigentes no grupo sob estudo, porque estas são as principais fontes das cognições condicionais, que se manifestam mais prontamente no discurso espontâneo. E, como ensina Flament (1994a), "o discurso espontâneo dos sujeitos está longe de revelar a complexidade das representações sociais" (p.l 15). É, pois, com esse problema crucial do acesso às representações que se lidará a seguir.

 

OS MÉTODOS E TÉCNICAS DE PESQUISA DO NÚCLEO CENTRAL

A teoria e a pesquisa do núcleo central fundamentam-se, desde suas origens, sobre uma perspectiva metodológica experimental. De fato, como rememora Abric (1984), a primeira hipótese acerca do núcleo central foi formulada em função dos resultados de um experimento de laboratório, por ele realizado, sobre competição e cooperação, segundo o modelo do dilema do prisioneiro (para uma descrição dessa situação de jogo ver Rodrigues, 1992, p.258). Tratou-se de uma das primeiras tentativas de levar o estudo das representações sociais ao laboratório, na qual se induzia o sujeito a pensar que estaria jogando contra um oponente humano ou contra uma máquina. Embora os lances de ambos os oponentes fossem idênticos, o sujeito se comportava diferentemente em relação a eles, com base na representação de homem e de máquina que trazia de sua inserção cultural cotidiana, fora do laboratório. O exame de tal variável dependente, associado à pesquisa verbal concomitante do conteúdo daquelas representações, levou o autor a concluir que "a representação do oponente era organizada em torno de um componente central envolvendo uma característica comportamental: reatividade" (Abric, 1984, p. 182). A reatividade estando presente, como no caso do oponente humano, configurava um estado de coisas onde a cooperação era antevista e admitida, o que não ocorria quando a reatividade estava ausente, como na representação da máquina.

O desenvolvimento posterior da teoria foi igualmente beneficiado por essa perspectiva experimental, na medida em que têm sido sempre os resultados não esperados da pesquisa conduzida de acordo com a teoria que têm possibilitado, ou mesmo obrigado, a melhor elaboração teórica subseqüente. E, com freqüência, os experimentos são planejados mesmo para testar a teoria.

Isto não quer, entretanto, dizer que a pesquisa do Grupo do Midi não incorpore e não valorize os métodos não experimentais de coleta de dados. Abric (1994e) é taxativo nesse sentido: "a entrevista em profundidade (mais precisamente a entrevista diretiva) constitui (...) um método indispensável a todo estudo sobre as representações" (p.55).

Por outro lado, embora estabeleça "a metodologia da coleta dos dados como um ponto-chave que determina prioritariamente o valor dos estudos sobre as representações" (Abric, 1994e, p.59), o montante da análise ou tratamento dos dados, a abordagem do núcleo central não pode satisfazer-se com uma descrição do conteúdo das representações. Em vez, portanto, de submeter os dados resultantes de questionários, entrevistas, observações, análise de textos etc. a um trabalho imediato de análise, seja ela de tipo quantitativo ou qualitativo, a ênfase metodológica básica do Grupo obriga à interposição de uma etapa que, se não é sempre rigorosamente experimental, guarda algo de seu espírito de saudável ceticismo quanto às aparências imediatas e espontâneas dos dados.

Uma boa ilustração de tal disposição cética pode ser dada retomando a crítica teoricamente informada de Flament (1994a) com que se terminou a seção precedente: "o discurso espontâneo não é a representação social" (p. 116). A representação não é revelada em toda a sua complexidade pelos sujeitos, diz ainda o autor, "senão se lhes coloca boas questões!" (Flament, 1994a, p.l 16). Essa exigência não se refere apenas à formulação das perguntas nos questionários ou nas entrevistas iniciais, mas caracteriza principalmente os procedimentos da etapa intermediária a que se aludiu há pouco, que variam, como se verá, de uma atraente simplicidade e oportunidade até uma sofisticação mais propriamente experimental.

No nível mais simples, considerando que um dos objetivos principais da pesquisa é a colocação em evidência do núcleo central, Abric (1994e) informa que muitas das técnicas desenvolvidas recentemente no Midi "repousam todas sobre um mesmo princípio", que ele assim explicita e justifica:

... o princípio metodológico permite reduzir em grande medida a parte de interpretação ou de elaboração pelo pesquisador e torna, portanto, a análise dos resultados mais fácil e mais pertinente. (Abric, 1994e, p.71).

A rationale óbvia é que, numa segunda apreciação mais refletida de seu discurso espontâneo, os sujeitos tendem a destacar o essencial (o núcleo central, por hipótese) em relação ao circunstancial (ou, nos termos da teoria, os elementos periféricos). Esse mesmo princípio - formulação de boas perguntas numa segunda (ou já terceira?) etapa da coleta de dados - tem sido levado, entretanto, a uma crescente sofisticação que não se afigura como estritamente técnica, mas envolve uma louvável articulação entre teoria e método.

Nesse sentido, Moliner (1994) considera útil uma distinção entre métodos de levantamento dos possíveis elementos do núcleo central, que permitiriam apenas a formulação de hipóteses quanto à constituição desse núcleo, e métodos de identificação, planejados para testar aquelas hipóteses, de modo a possibilitar o acesso à efetiva configuração do núcleo. No que se refere à articulação com a teoria, o autor propõe distinguir ainda entre propriedades quantitativas e propriedades qualitativas das representações sociais, estando os métodos de levantamento associados às propriedades quantitativas e os de identificação às propriedades qualitativas.

As propriedades qualitativas são: o valor simbólico dos elementos do núcleo central em relação ao objeto representado; o poder associativo que tais elementos apresentam em relação aos demais elementos da representação. Estas propriedades seriam ditadas diretamente pela teoria das representações sociais. Já as propriedades quantitativas seriam meras conseqüências ou manifestações óbvias das anteriores, englobando: a saliência ou freqüência com que os rótulos verbais das cognições centrais aparecem no discurso espontâneo, que pode até ser igualada pela de algumas cognições periféricas; a conexidade dos diferentes elementos de uma representação entre si, que deve ser elevada por parte dos elementos centrais, mas que pode também assim ser manifestada por outros elementos circunstancialmente em evidência.

Para a identificação definitiva dos elementos do núcleo central são, portanto, necessários procedimentos adicionais de pesquisa que permitam ir além das medidas de freqüência e/ou dos índices de correlação (ou da original análise de similitude privilegiada anteriormente pelo próprio Grupo) dos diferentes itens isolados no discurso dos sujeitos. O mais expedito de tais procedimentos consiste no questionamento de cada um dos elementos inicialmente levantados.

Uma breve ilustração da técnica de questionamento pode ser encontrada na pesquisa de Sá, Souto e Mõller (1996) sobre a representação social da ciência por consumidores e por não consumidores da vulgarização científica no Rio de Janeiro. Inicialmente, utilizando uma versão modificada do método de evocação de palavras de Vergès (1992), em que se combinam a freqüência e a ordem com que diferentes palavras ou expressões são evocadas em associação à palavra-estímulo ciência, foram levantadas as seguintes cognições como possíveis elementos dos núcleos centrais de cada uma das representações:

CONSUMIDORES NÃO CONSUMIDORES
Desenvolvimento Medicina
Conhecimento Natureza
Tecnologia Estudo
Pesquisa Desenvolvimento
Descoberta Ecologia
Medicina Pesquisa
Cultura Cultura
Estudo Tecnologia
Vida Vida
Ciências exatas Conhecimento
Responsabilidade Melhoria de vida
Novidade Corpo
Interesse Carência
  Ciências naturais
  Descoberta
  Invenção
  Inteligência

Embora parecesse haver, em princípio, uma boa superposição entre os núcleos centrais das representações dos dois grupos (elementos em comum em itálico), faltava ainda verificar se os diversos elementos levantados em um e em outro dos grupos pertenciam efetivamente aos núcleos centrais das suas representações.

O questionamento consistiu em propor a amostras de consumidores e de não consumidores a pergunta: Pode-se dizer que uma dada atividade é científica se ela..., que se completava com a alusão a cada um dos elementos a serem testados em um e em outro grupo, como, por exemplo:

não produz tecnologia? (para consumidores e não consumidores);

não envolve muita responsabilidade? (apenas para consumidores);

não resulta em melhoria das condições de vida? (para não consumidores).

Ficaram assim confirmados como pertencendo ao núcleo central os seguintes elementos (cujas respostas negativas foram estatisticamente significativas):

CONSUMIDORES NÃO CONSUMIDORES
Desenvolvimento  
Conhecimento Conhecimento
Pesquisa Pesquisa
Descoberta Descoberta
Cultura  
Estudo Estudo
Responsabilidade  
Novidade  

Estes resultados tiveram importantes implicações para as conclusões do estudo, as quais não podem ser aqui suficientemente desenvolvidas. Falta, da mesma forma, espaço para uma apresentação detalhada dos dois mais recentes e sofisticados métodos de identificação do núcleo central. Para um relato mais completo daquele estudo ilustrativo e para uma primeira aproximação a estes métodos, cabe remeter o leitor ao livro (Sá, 1996), o qual se procurou resumir no presente texto. Não obstante, uma breve notícia sobre tais métodos de identificação anunciados, com suas referências originais, não pode deixar de ser ora apresentada.

O método da indução por cenário ambíguo, desenvolvido por Moliner (1993), procura englobar o levantamento dos possíveis elementos do núcleo central e a sua identificação definitiva em um procedimento unitário. Tanto a verificação da saliência quanto do valor simbólico dos diversos elementos são provocados, em etapas distintas, com procedimentos especialmente adaptados a cada um dos propósitos, mas sempre a partir de uma descrição intencionalmente ambígua do objeto. Isto de modo que se possa dar lugar a duas diferentes condições experimentais e que os sujeitos possam retroceder de uma representação inicial em face de uma nova informação que se revele eventualmente incompatível com ela (pelo uso da técnica de questionamento). Para exemplificar, um cenário ambíguo com tais propriedades foi elaborado por Moliner (1993) em sua pesquisa sobre a representação social da empresa: "Desde há muitos anos, SOLITEC reúne várias dezenas de pessoas com competências e interesses muito diversos. Cada uma dessas pessoas contribui à sua maneira para o funcionamento dessa organização, que é reconhecida como uma das mais importantes da sua especialidade" (p. 12).

O outro método, dos esquemas cognitivos de base, elaborado por Guimelli e Rouquette (1992), procura ir além da conexidade quantitativa detectada pela análise de similitude - em que as relações entre os elementos são englobadas todas na vaga idéia de que eles "vão juntos" - para chegar a uma especificação mais fina de tais relações. Neste sentido (ver também Guimelli, 1994b), considerando que o sujeito associa dois itens lexicais pelo viés de um operador de relação, o modelo propõe a formalização de 29 diferentes conectores, organizados em cinco famílias primitivas estáveis denominadas esquemas cognitivos básicos: léxico, vizinhança, composição, prática e atribuição. O poder associativo de uma cognição indutora é traduzido pelo cálculo de um índice de valência, que se define (no mesmo sentido que a química dá ao termo, como quer Guimelli, 1993) como a propriedade de uma dada cognição para entrar em maior ou menor número e diversidade de relações com outras cognições do sistema representacional.

 

CONCLUSÃO

É freqüente no estudo das representações sociais algo como uma prática assumida da reticência e da imprecisão, em face da complexidade e fluidez dos fenômenos estudados e na esteira, talvez, da recusa histórica de Moscovici em proporcionar uma definição precisa de seus termos, por receio de que isso pudesse provocar uma cristalização prematura do campo que estava sendo inaugurado. Não obstante, a abordagem do núcleo central revelou-se sempre, provavelmente em função de sua ênfase experimental, preocupada com a explicitação dos conceitos, proposições teóricas e operações metodológicas.

De fato, a imprecisão não é justificada pelo Grupo do Midi como parte de uma estratégia intencional ou pela complexidade do fenômeno, mas é assumida como real limitação (ainda que provisória) da teoria para explicar os fatos ou mesmo apreender o significado de certas evidências empíricas inesperadas. A rigor, tais aspectos intrigantes e desafiantes dos variados fenômenos de representação social só se apresentam porque são produzidos pela orientação impressa inicialmente à pesquisa pela própria teoria do núcleo central.

E ao seu caráter cumulativo, de contínua reelaboração teórica e refinamento metodológico, que se devem os atuais encaminhamentos da teoria do núcleo central para a solução de diversas questões relevantes ou polêmicas no campo das representações sociais. A principal solução teórica proporcionada foi, por certo, a que tratou da articulação entre a dimensão básica de estabilidade e consensualidade das representações e suas modulações circunstanciais e individualizadas, interpretando-a em termos de relações de complementaridade entre cognições absolutas centrais e cognições condicionais periféricas acerca do objeto representado.

Não menos importante, entretanto, é o fato de ter possibilitado o estudo da comparação - transversal e longitudinal - entre diferentes representações sociais, ou seja, entre representações de um mesmo objeto mantidas por diferentes grupos ou por segmentos de um mesmo grupo sob diferentes conjunturas histórico-sociais. É, portanto, nessa mesma linha de raciocínio teórico que se inserem os estudos sobre a transformação das representações sociais, os quais, concebidos como uma comparação entre estados sucessivos de uma mesma representação, permitiram o exame do papel desempenhado no processo pelas modificações concretas do ambiente e pelas práticas sociais modificadas que as acompanham.

A abordagem do Grupo do Midi situa-se explicitamente, de acordo com a distinção proposta por De Rosa (1994), no nível teórico de uso do termo "representações sociais", ou seja, ocupa-se das manifestações concretas dos próprios fenômenos de representação social, com o propósito de prover explicações internamente lógicas e coerentes com os dados empíricos externos.

A diferença, portanto, de outras contribuições pertinentes do campo, que se situam mais propriamente no nível metateórico ou de apreciação crítica da grande teoria, a teoria do núcleo central parece qualificar-se, melhor talvez do que qualquer outra, a desempenhar o papel de teoria complementar relevante para o desenvolvimento do campo, pela forma consistente e teoricamente informada com que tem construído seus objetos de pesquisa e respectivas metodologias de acesso.

 

Referências Bibliográficas

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