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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.4 no.3 Ribeirão Preto dez. 1996

 

Pesquisa básica versus pesquisa aplicada

 

 

Ronald João Jacques Arendt1

Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrado em Psicologia/Instituto de Psicologia

 

 

O Boletim da Sociedade Brasileira de Psicologia de março de 1995 traz um comentário sobre a pesquisa básica versus aplicada. "Sem dúvida, este é um assunto já visto (algo parecido com filmes em canais de TV por assinatura) e, aparentemente, fonte de polarizações ultrapassadas", escreve o redator. Entretanto, a relevância social que faz convergir objetivos e temas de pesquisa, nos setores básicos e aplicados, está entre os interesses da comunidade científica. Análises do caso brasileiro seriam bem vindas, particularmente quando se discute a resolutividade da pesquisa cientifica no tratamento dos problemas da sociedade, conclui ele.

Pretendo, neste artigo, seguir o programa proposto pelo redator e discutir temas como a relevância social da pesquisa científica no Brasil, colocando em discussão, porém, a polarização entre "pesquisa básica" e "pesquisa aplicada", particularmente no que diz respeito à produção acadêmica na Psicologia Social. Devo, de início, afirmar que questiono esta polarização da produção científica. Desde a reunião de 1992 da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia), na qual participei do grupo de trabalho de "Pesquisa Básica", venho procurando problematizá-la. Não é que não exista uma instância mais básica e outra mais aplicada no âmbito da investigação científica, embora não seja muito difícil demonstrar a fragilidade desta argumentação. Meu objetivo é mais geral: diria que existe uma arquitetura institucional universitária caracterizada por práticas específicas de pesquisa que pressupõem esta polarização, que poderia ser entendida como um analisador - no sentido que é dado a este conceito pela Análise Institucional - destas práticas. Assim, concordo com o redator do Boletim da SBP quando ele observa que apenas aparentemente esta dicotomia é fonte de polarizações ultrapassadas; ela permanece extremamente atuante. Ocorre que esta arquitetura institucional, à qual me referi, tem conseqüências drásticas na postura dos pesquisadores universitários e na filosofia de concessão de fomentos de pesquisa. O ponto que gostaria de ressaltar é que devemos esforçar-nos para analisá-la cuidadosamente e encontrar meios de efetivamente ultrapassá-la.

Uma metáfora poderá tornar mais clara a exposição desta arquitetura institucional. No início deste século, um jovem poeta solicitou ao já experiente escritor Rainer Maria Rilke (Rilke,1967) um parecer sobre sua incipiente produção. Ele ja havia encaminhado seus poemas a diversos jornais, não tinha tido sucesso em publicá-los e estava aflito por um retorno a respeito do seu trabalho. Os conselhos de Rilke ao jovem poeta merecem especial atenção:

1. Num primeiro momento Rilke solicita ao jovem poeta que ele se pergunte por que razão decidiu redigir poemas, se necessita redigi-los. Se a resposta for sim, que então construa sua vida a partir desta decisão.

2. Em seguida, Rilke sugere evitar, de início, temas muito consagrados. Estes seriam os mais difíceis, pois contribuir originalmente num campo no qual já foi publicado grande número de trabalhos exige muito mais esforço do que temas simples do quotidiano de um autor.

3. Finalmente, se o seu quotidiano parecia-lhe pobre, ele não deveria culpá-lo, mas culpar-se a si; ele não havia sido capaz de perceber suas riquezas, não havia sido poeta suficiente, pois para o sujeito criador não existem contextos pobres, indiferentes. Reportando-se ao primeiro conselho Rilke conclui ponderando que talvez o postulante a poeta venha a dar-se conta de que deveria abrir mão de sê-lo. Isto, afinal, não seria um problema, pois o sujeito convencido de que não poderia ser poeta iria encontrar seus próprios caminhos e dedicar-se a outras atividades.

Proponho tomar os conselhos de Rilke como referência, considerando, entretanto, a ocupação de docente universitário no lugar da de poeta. Antes, porém, de efetuar a análise dos conselhos de Rilke, julgo necessário incluir alguns comentários sobre a instituição universitária. Buarque (1995) denuncia a universidade brasileira como ilha de saber num oceano de ignorância, prisioneira da hierarquização do trabalho intelectual e da rede de títulos (um jovem doutor em musicologia ganha mais e é mais reconhecido do que o compositor cuja obra estudou, já que este provavelmente não teve tempo para obter um título de doutor). Segundo Buarque, entre os pensadores gregos conhecer era perceber o lado trágico do processo que cada um vivência no cosmo, era sentir o drama da relação entre o objeto e o estudioso. Para ele, os universitários perderam a capacidade de emocionar-se diante do trabalho que realizam, substituíram a tragédia por um saber burocrático, a emoção pela carreira, deixando de sentir prazer com o trabalho. É significativo observar que a mesma conclusão advém da análise de Lourau (1995) sobre a universidade contemporânea. Para Lourau, o perfil do pesquisador provém do modelo proposto no início do século XIX por Humboldt: a universidade deve dar prioridade à pesquisa, o que coloca em segundo plano sua missão inicial de formação. Entretanto, observa Lourau, os anos 60 testemunharam uma contradição não prevista pelos humboldtianos: a universidade de massa. Na França e em numerosos outros países, os orçamentos do estado não conseguiam manter em conjunto as duas missões de ensino e pesquisa. A institucionalização da pesquisa torna-se um fato. O que ocorre com a paixão pela pesquisa? Como pode ela libertar-se das pressões míticas do curriculum vitae, julgamento último do estatuto de pesquisador? O sistema favorecerá mais suas qualidades de gestor de recursos do que sua paixão pela descoberta. Na universidade humboldtiana, tornada universidade de massa, não é simples ensinar a uma multidão de alunos os rudimentos da postura do pesquisador. Tarefa sofrida e muitas vezes vã, observa Lourau, pois a maioria destes estudantes não se destina nem à pesquisa nem ao ensino, mas busca uma inserção profissional numa sociedade que nega a contradição, o devir, institucionalizando as categorias do desemprego, da exclusão ou da marginalidade. As ciências do homem estão fortemente implicadas nesta institucionalização cega, o que não facilita a formação em pesquisa. A paixão do pesquisador torna-se um luxo, conclui Lourau (salvo nas disciplinas "de ponta", tecnológica e politicamente rentáveis).

Percebe-se nas análises de Buarque e de Lourau uma perplexidade pela substituição do prazer, da emoção, da paixão pelo saber burocrático e institucionalizado na prática docente. Ora, é precisamente sobre este tema que incide o primeiro conselho de Rilke: o docente precisa ter prazer em dedicar-se ao ensino ou à pesquisa, precisa emocionar-se com uma aula bem dada, precisa ter paixão em rastrear um tema de investigação. Uma vez tomada a decisão de ingressar nos quadros de uma instituição universitária, é fundamental associar o aspecto trágico da prática docente ao trabalho sistemático, ao adestramento, à troca de experiências com seus alunos e com os docentes mais maduros, para atingir o domínio do simples e do complexo. É este o sentido do segundo conselho de Rilke. Um jovem professor deve iniciar mapeando o cotidiano de seu campo de estudo, deve ser capaz de perceber as suas riquezas; será necessário possuir o talento que se expressará na capacidade de estabelecer relações, de propor dúvidas, colocar questões, problemas. Este é o sentido do terceiro conselho de Rilke e cabe aqui a questão ética por ele levantada: o postulante a docente que se dê conta de que não tem o physique du rôle acadêmico deveria buscar outros caminhos que não os universitários.

Paixão, experiência e talento seriam, então, fatores imprescindíveis na constituição de um docente de qualidade. Um docente recém concursado poderá ter paixão e talento, mas faltará a ele a experiência; um docente em fim de carreira terá experiência e talento, mas poderá ter perdido a paixão. A universidade teria de organizar-se para permitir o amadurecimento do primeiro e evitar o desinteresse do segundo. Há, entretanto, um terceiro caso que merece uma atenção especial: a do docente com paixão e experiência, mas sem talento para desempenhar determinadas funções que lhe são impostas. É o que ocorre na universidade humboldtiana descrita por Lourau: com a priorização da pesquisa sobre a atividade de formação, passa-se a exigir de todo o docente um investimento, tanto no ensino quanto na pesquisa. Fazer pesquisa na universidade tornou-se um status e uma fonte de renda. Como diretor de uma unidade de ensino, na UERJ, freqüentemente me aparecem alunos dos primeiros períodos solicitando bolsas de pesquisa. Em geral, eles não procuraram conhecer os projetos desenvolvidos pelos professores, desconhecem se há vagas disponíveis e a sistemática para sua obtenção, mas "querem fazer pesquisa", no vazio.

A universidade não deveria desejar apenas o docente pesquisador. Há excelentes professores que deveriam ser incentivados a permanecer bons professores, e que não são obrigatoriamente bons pesquisadores, assim como estes não são obrigatoriamente bons professores. Nada impede que um docente atue nas duas instâncias, mas minha observação, que pode até ser incorreta, aponta para um docente com preferência por uma ou outra atividade. O problema é que as pressões para que o docente apresente produção acadêmica não deixam o bom professor, que gosta de ler e estudar para simplesmente dar aula, aprofundar-se em seus estudos; ele tem de produzir. Aí ele deixa de fazer o que gosta e vai pesquisar qualquer tema para suprir a demanda de produção. Já outro docente gosta de ler para aprofundar-se em investigações, sem estar tão preocupado com o ensino. Mas vem a arquitetura institucional universitária e diz que ele tem de dar aula na graduação, na pós-graduação, senão ele torna-se elitista, cria feudos. As origens desta situação são várias, mas podemos frisar alguns pontos: em primeiro lugar, a insistência de julgar-se, genérica e quantitativamente, o candidato a vagas de concurso público - as pressões míticas do curriculum vitae - sem que se aprofunde a análise de seu talento, de suas aptidões e interesses específicos; em segundo lugar, a grande ênfase no item produção avaliado em termos quantitativos e não qualitativos (Kant, em nosso sistema de avaliação de produção acadêmica, estaria perdido. A Crítica da Razão Pura valeria quase o mesmo ou menos que um artigo publicado em revistas especializadas). Ora, estes critérios adotados pelas agências de fomento à pesquisa têm sua origem no sistema acadêmico que optamos por instituir.

A criatividade do docente que se dedique à pesquisa fica tolhida por esta arquitetura institucional universitária que, querendo lutar contra os feudos, involuntariamente os cria. Haverá, então, os pesquisadores "que produzem", que recebem fomento: pesquisadores "A", que se dedicam às questões teóricas, conceituais, experimentais realmente sérias, "básicas", um tanto distanciadas por sua própria definição - da realidade social; e os profissionais que simplesmente "aplicam" este básico já pesquisado aos problemas sociais. Minha tese é que esta divisão é falsa, produzida pela institucionalização da pesquisa e por uma concepção incorreta subjacente da produção acadêmica e científica. O que deveria nortear a atividade de um pesquisador não é se a sua investigação é básica ou aplicada, mas as questões que ele levanta, sua linha de pesquisa, o conjunto de suas problematizações. A ciência não é um detetive que proceda a uma busca de indícios que, numa demonstração prática, permitam provar que uma teoria é culpada ou inocente, verdadeira ou falsa, aplicável ou não a uma realidade factual que está "lá" para ser investigada. A ciência é constituidora de um campo problemático e ir à prática é uma decisão teórica. Uma ciência como a Psicologia não deve ser prática, no sentido do soll moral normativo. Esta posição é uma manobra política autoritária: a realização de um monopólio de uma psicologia "científica", que subentende uma "reserva de mercado" da produção científica e legitima a distinção entre o básico e o aplicado, legitima o prático como a possibilidade de realização do aplicado. Seria o caso de perguntar: qual ciência, qual aplicação? Há n ciências, n aplicações.

Considere-se a Psicologia Social como constituidora de n campos problemáticos: as crenças e atitudes, a cognição social, as representações sociais, os grupos e instituições, entre outros desdobramentos possíveis. Cada campo estabelece uma certa metodologia de acesso aos dados sociais que pressupõe um espaço conceituai determinado. E no contexto deste espaço conceituai que o investigador avançará em sua linha de pesquisa. Nada impede, aliás, que estes campos interfiram uns nos outros e que, nestas interseções, possam ser colocados novos problemas. Hoje, quase como um modismo decorrente da arquitetura institucional universitária, a qual estou problematizando, emergiu uma subdisciplina da Psicologia Social: a Psicologia Comunitária, freqüentemente visualizada como aplicação da Psicologia Social, entendida como a ciência básica.

A expressão "Psicologia Comunitária" é recente - surgiu há não mais de 20 ou 30 anos, no bojo da assim chamada crise da Psicologia Social. Com os importantes e decisivos acontecimentos sociais da década de 60, em nível mundial e nacional, emerge uma insatisfação, um desconforto entre cientistas sociais frente à neutralidade do modelo empírico-analítico. Na Psicologia, a introdução de variáveis históricas e políticas nas concepções teóricas exige do pesquisador um posicionamento que ele percebe em outras áreas, como a Antropologia ou a Educação popular, que, aliás, desenvolvem novas metodologias de pesquisa, como, por exemplo, a pesquisa participante e a pesquisa-ação. No Brasil, esta insatisfação expressa-se numa crítica à instituição acadêmica da psicologia: o que se ensina e se aprende na universidade é elitista, é restrito à classe média e à alta, que serão as únicas beneficiárias do instrumental técnico desenvolvido, já que são as únicas com poder aquisitivo para sustentar seus custos. Urge que se saia dos limites impostos pelos muros da instituição do ensino superior. Compreende-se, especialmente no contexto de um país submetido a um governo militar repressor, a ida às favelas, às zonas operárias, à zona rural; compreende-se também, uma indignação causada pela carência experimentada nos contextos visitados, um engajamento político-militante do psicólogo. Se a Psicologia Comunitária surgiu a partir de uma preocupação legítima em sua origem, ou seja, romper com o afastamento das práticas acadêmicas dos problemas da sociedade, colocando em discussão a "resolutividade da pesquisa científica" em sua solução, não fica claro o papel do pesquisador/cientista/psicólogo em sua intervenção na assim dita "comunidade" (termo, aliás, extremamente vago, conceitualmente falando), já que são vagos os referenciais teóricos e pouco rigorosos os referenciais metodológicos.

O problema é que os profissionais que assumiram a nova disciplina fortemente politizados e justamente indignados com a extrema necessidade dos grupos em estudo - aceitaram rapidamente demais sua função de profissionais da prática. Esta concepção da Psicologia como aplicação retira do seu âmbito a reflexão teórica e introduz a questão do político. Será que numa prática engajada, militante, o psicólogo estaria sendo mais político do que estudando uma tecnologia qualquer numa universidade? Contra a neutralidade, caiu-se numa prática sem muita reflexão à custa de um aprofundamento teórico e metodológico. A manutenção da dicotomia básico/aplicado introduz uma fragmentação na psicologia social, na qual, de um lado, se encontrariam os pesquisadores "puros"; do outro, os "engajados". Entretanto, fragmentando a Psicologia Social e cunhando um termo sempre associado à carência e à falta, reforça-se um jogo de poder no qual cada um fica em seu lado da dicotomia e o pesquisador "puro" pode dizer: já que vocês, da Psicologia Comunitária, são engajados, militantes e envolvem-se com este tipo de problemas, não haveria por quê nós, que fazemos pesquisa básica em Psicologia Social, nos imiscuirmos nestes assuntos. Uma análise sistemática da produção nesta nova área da Psicologia permite constatar, nos trabalhos publicados, além de uma base teórica e metodológica extremamente frágil, uma certa "melancolia" nos relatos de pesquisa dos autores e uma certa mágoa pelas coisas não estarem dando certo (a culpa é do sistema, da falta de cidadania, da não-participação). No meu entender, tais pesquisas não avançam não por conta destes argumentos, sem dúvida irrefutáveis, mas porque foram mal formulados, com um design de pesquisa inadequado. Conclui-se que o campo emergente não foi, ainda, pensado como um campo problemático, entre outros da Psicologia Social, e que é preciso construir e sistematizar seu espaço conceituai próprio e a metodologia dele decorrente.

Fundado em seu projeto de resgatar o conceito de razão, Rouanet (1987) denuncia, num ensaio polêmico, o "novo irracionalismo brasileiro". Segundo ele, as características dos modelos político e econômico aplicados no Brasil nos últimos anos - dependência externa, autoritarismo, elitismo - estimularam a emergência de três estados de espírito: o anti-autoritarismo, o anticolonialismo e o anti-elitismo. Tais tendências, eminentemente racionais e legítimas em sua origem, revelaram-se extremamente permeáveis a um "estranho exército, composto em sua maioria de pessoas que se consideram de esquerda ou pelo menos de oposição ao sistema". Nestas condições, o anti-autoritarismo redundaria em uma recusa da teoria e o anticolonialismo em uma recusa da cultura estrangeira, o que se desdobraria em dois casos: ou pensar o Brasil "sem a influência perturbadora de qualquer a priori" ou interpretá-lo segundo uma teoria deduzida diretamente de nossa realidade. O anti-elitismo, finalmente, redundaria em desqualificar a cultura superior, em nome da cultura popular, sustentando a existência de um "apagamento das fronteiras" entre a alta cultura e a cultura de massas. Rouanet termina suas reflexões colocando como tarefa do pensamento crítico proclamar-se anti-autoritário, enquanto repúdio a um sistema social de dominação, em grande parte fundado na ignorância dos dominados, mas não o repúdio à autoridade do saber; anticolonialista, enquanto exclusão da cultura de massas, mas não da cultura estrangeira, e anti-elitista, enquanto rejeição de uma política oligárquica que reserva a arte, a literatura e a filosofia para a fruição de uma minoria, mas não a rejeição da arte, da literatura e da filosofia.

É possível identificar as três tendências analisadas acima, por Rouanet, na Psicologia Comunitária. A disciplina rejeita o autoritarismo do modelo de pesquisa tradicional, operado por um pesquisador alheio às questões sociais, onipotente, que tudo decide (design, amostra, instrumentos experimentais); rejeita o elitismo de uma Psicologia dirigida exclusivamente às classes média e alta: pesquisar ao nível da pesquisa-ação, aprender com as populações carentes, que têm tanto a nos ensinar quanto nós a eles, dado que não somos donos do saber; e rejeita, finalmente, o colonialismo na Psicologia, propondo-se a criar uma Psicologia Brasileira, ajustada às realidades comunitárias (é significativo ressaltar o subtítulo de um encontro de Psicologia Comunitária realizado recentemente em Fortaleza: "Psicologia Comunitária e Nordestinidade"). Tais "estados de espírito" são legítimos em sua origem, mas terminam por rejeitar em bloco todo um campo de conhecimentos, valendo para a Psicologia a mesma argumentação utilizada por Rouanet para a cultura: quanto ao anti-autoritarismo, deve-se rejeitar a dominação fundada no desconhecimento de modelos teóricos em Psicologia, mas não a autoridade do saber psicológico construído pela investigação; quanto ao anticolonialismo, deve-se sem dúvida construir uma abordagem teórica ajustada ao contexto social específico da comunidade em estudo, mas não rejeitar estudos fundados em concepções estrangeiras que podem fornecer um referencial fecundo para abordar problemas nacionais; e, quanto ao anti-elitismo, deve-se respeitar o conhecimento advindo dos grupos marginalizados, mas que, precisamente porque estão marginalizados, têm limitações que devem ser superadas no contato com a instituição universitária.

Concluindo, diria que, tanto na institucionalização da pesquisa, questionada por Buarque e Lourau, quanto no irracionalismo brasileiro denunciado por Rouanet, ocorre uma radicalização de posições que, ao propor grandes dicotomias, permanece na dicotomia e legitima a posição oposta que pretende desconstruir. O resgate do conceito da razão sugerido por Rouanet, combinado ao resgate da paixão, do talento e da experiência sugerido por Rilke, abre caminhos que poderão contribuir para desmontar os dualismos nos quais se sustenta a arquitetura institucional universitária que procurei discutir neste artigo.

 

Referências Bibliográficas

Buarque, C. (1995) Universidade: notas para uma autocrítica necessária. Revista ADVIR, 6, 4-48.         [ Links ]

Lourau, R. (1995) Chercheur surimplié. L 'Homme et la Société, 115, janvier-mars, 39-46.         [ Links ]

Rilke, R.M. (1967) Briefe an einen Jungen Dichte. München: Insel Verlag.         [ Links ]

Rouanet, S.P. (1987) As Razões do Iluminismo. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

(1) Endereço para correspondência: Rua Morais e Silva, 106/301 20271-030 Tijuca, Rio de Janeiro