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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.11 no.2 Ribeirão Preto dez. 2003

 

 

A prática educacional com crianças surdocegasI

 

Educational practice with deaf-blind children

 

 

Fátima Ali Abdalah Abdel Cader-NascimentoI; Maria da Piedade Resende da CostaII

I Centro Universitário do Distrito Federal
II Universidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa descreve e analisa três fases de um procedimento de intervenção com duas crianças surdocegas pré-lingüísticas. O estudo foi desenvolvido em uma escola especial de Brasília e nas residências, durante nove meses. O objetivo foi implementar e avaliar procedimentos de intervenção com os sujeitos, baseados na abordagem co-ativa de van Dijk e na perspectiva sócio-histórica. Os resultados sugerem que as estratégias propostas por van Dijk na década de 60 mostraram-se eficazes quando associadas a práticas de sala de aula que privilegiaram o uso simultâneo de vários recursos alternativos de comunicação (Libras, gestos, movimentos corporais coordenados, Tadoma, escrita, fala, objetos de referência etc.). As alunas, que inicialmente apresentaram uma comunicação expressiva elementar, no final da pesquisa, passaram a apresentar novas competências comunicativas baseadas no uso de sinais, escrita, bem como melhoraram no desempenho nas suas tarefas, concentração e comunicação, passando a demandar mais informações do seu meio.

Palavras-chave: Criança surdocega, Comunicação, Ensino especial, Movimento co-ativo.


ABSTRACT

This research describes and analyzes three phases of an intervention procedure with two deafblind pre-linguistic children. The study was carried out at a special school in Brasilia and at their residences, for nine months. The objective was to implement and evaluate intervention procedures with the subjects, based on the co-active van Dijk approach and on the socio-historical perspective. Results suggest that the strategies proposed by van Dijk in the ‘60s were effective when associated with classroom practices that favored the simultaneous use of several alternative communication tools (Libras, gestures, coordinated body movements, Tadoma, writing, speech, reference objects, and so on). The students, who initially demonstrated elementary expression communication, evidenced new communicative competences at the end of the research, based on the use of signs and writing, having improved their performance in their tasks, their concentration and communication, and having started to demand more information from their environment.

Keywords: Deaf-blind children, Communication, Special education, Co-active movement.


 

 

O presente estudo refere-se à questão do desenvolvimento da comunicação e do processo de escolarização de crianças surdocegas pré-lingüísticas, sem outros comprometimentos aparentes. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa de intervenção em sala de aula, com o objetivo de implementar e avaliar procedimentos de intervenção baseados na abordagem co-ativa e na perspectiva sócio-histórica. O objetivo da intervenção consistiu em criar novas competências e desenvolver novos repertórios de comportamento envolvendo a aprendizagem de vários recursos de comunicação. A pesquisa foi desenvolvida numa escola especial pública de Brasília, durante um período de nove meses e envolveu duas crianças surdocegas.

Considerou-se no desenvolvimento deste estudo que o sujeito é antes de tudo uma pessoa, singular, única e dinâmica, conseqüentemente, a intervenção precisa ser específica e dinâmica; e, que seu desenvolvimento dependerá essencialmente das modalidades de atividades de como são propostas no meio escolar e familiar.

 

Revisão teórica

Os registros sobre a educação da criança surdocega, relatam nomes de pessoas que conseguiram aprender a ler e escrever. Em geral, as informações são imprecisas em relação ao perfil dos surdocegos e ao método empregado na comunicação receptiva e expressiva. Para Amaral (2002) a história da educação dos surdocegos sempre esteve próxima da educação de surdos. Assim, o método gestual desenvolvido na França e o oral na Alemanha sofreram algumas adaptações, entre elas: acrescentou-se, a percepção tátil ou a alteração do espaço de sinalização segundo a condição visual do surdocego.

Collins (1995) aponta Victorine Morriseau como a primeira mulher surdocega a receber educação formal, em Paris, em 1789, sendo a França pioneira na instituição da educação formal para esta população na Europa. Keller (1961) relata que a educação de Laura Brigdgmam iniciou-se quando esta tinha oito anos em 1837, na Escola Perkins, nos Estados Unidos pelo professor Dr. Samuel Gridley Howe. O trabalho com Laura consistia na utilização da soletração manual para a transmissão e recepção das informações. Este recurso de comunicação influenciou e contribuiu para o desenvolvimento de programas educacionais em diferentes países, entre eles a Alemanha em 1887.

Outros casos são relatados na literatura, o mais conhecido deles é a história de Helen Keller (1880-1968), educada a partir dos sete anos em 1887, pela professora Anne Mansfield Sullivan parcialmente cega, sendo a primeira surdocega a concluir ensino superior. O método de comunicação utilizado foi a soletração das unidades de cada palavra através do alfabeto manual (Keller, 2001).

Freeman (1991) comenta que os distintos graus de surdez e as inúmeras possibilidades de deficiência visual, quando aparecem associadas geram, inicialmente, quadros singulares de comportamento, necessitando de atendimentos específicos.

A abordagem co-ativa de van Dijk (1968) apresenta procedimentos que podem possibilitar condições adequadas ao desenvolvimento da comunicação em surdocegos pré-lingüísticos. Esta abordagem parte do princípio que as atividades propostas precisam ser realizadas em conjunto com a criança, através do movimento de mão sobre mão. Para isto é fundamental o envolvimento afetivo dos participantes. A relação afetiva promoverá um ambiente no qual a criança sentir-se-á com uma margem de segurança para poder participar das atividades. O autor ao abordar os vários níveis de comunicação reporta-se às seis fases, identificadas por ele como: nutrição, ressonância, movimento co-ativo, referência não representativa, imitação e gesto natural. Estas fases constituem-se em um processo dinâmico de incorporação de estímulos sociais, podendo ser seqüenciais ou cumulativas.

Segundo Writer (1987) a nutrição consiste no desenvolvimento do vínculo social acolhedor entre a criança e o professor. Para McInnes e Treffry (1997) este vínculo acontece gradualmente, podendo ocorrer um processo interativo com oito etapas, no qual a criança surdocega: (1) resiste à interação; (2) permite e a admite; (3) colabora passivamente; (4) demonstra prazer e satisfação em participar; (5) responde aos estímulos; (6) acompanha e a orienta; (7) imita condutas; (8) inicia por si mesma a interação. Todas estas etapas pressupõem a cumplicidade afetiva e competências profissionais adicionais necessárias a interação com crianças surdocegas.

No campo pedagógico a ressonância consiste na realização de uma atividade conjunta na qual criança e professor se percebem agindo juntos. O objetivo é despertar no outro a consciência dos efeitos de seus movimentos no corpo do interlocutor. Para tanto, faz-se necessário promover a variação do binômio: contato físico e interrupção da atividade, como lembram McInnes e Treffry (1997).

O movimento co-ativo consiste na orientação da mão da criança pelo professor no estabelecimento de contato com o objeto do conhecimento. Faz-se necessário que a mão do professor esteja em contato com o objeto, mantendo a mão da criança sobre a sua. Gradativamente, o professor vai permitindo que a criança entre em contato com o objeto do conhecimento. O objetivo é ampliar a ação motora do surdocego no ambiente.

Durante a fase da referência não representativa introduz-se o uso do objeto de referência como um recurso mediador da interação. O objetivo é relacionar determinados objetos com as atividades a serem realizadas (Bloom, 1990). A apresentação do objeto inicialmente precisa ser contextual; depois se promove sua descontextualização, passando a utilizá-lo como uma referência que antecipa a atividade programada. Para tanto, o objeto reduzido ou simplificado, precisa ter uma equivalência simbólica com o real e com a atividade a ser desenvolvida.

A quinta fase é a imitação, representa a continuação do movimento co-ativo de forma mais rica, uma vez que o surdocego começa a re-criar os elementos simbólicos assimilados a fim de conseguir a satisfação de suas necessidades.

O gesto natural é a última fase descrita por van Dijk (1968). Nesta fase, o surdocego começa a criar seus próprios gestos para representar algo que deseja conquistar. Transforma os movimentos corporais em instrumento de comunicação. Assim, os primeiros gestos a serem utilizados no trabalho com surdocegos devem imitar um jogo motor, no qual todo o corpo participa da identificação do objeto ou da situação. O que importa é representar os objetos a partir do que se pode fazer com eles, tornando claro o que se pretende realizar, executar em um momento específico. Outro passo necessário é o nível co-ativo dos gestos naturais, isto é, o professor deverá repetir muitas vezes de forma atraente e lúdica o movimento do gesto, antes da criança ser capaz de realizá-lo de forma independente. Muitas vezes, é necessário que os gestos e os sinais sejam realizados no próprio corpo da criança. Quando esta conseguir realizar o gesto sem ajuda, evidenciará que possui condições de falar sobre algo que está ausente. Neste estágio, o mediador deverá estimular a expressão da criança por meio de perguntas.

Percebe-se que em todas as fases desenvolvidas e descritas por van Dijk (1968), há uma ênfase nas indicações táteis como uma forma de viabilizar às crianças o acesso às informações através do movimento e das sensações, maximizando e otimizando seus sentidos remanescentes. Proporcionam-se, assim, novas condições da relação entre as influências recíprocas dos fatores biológicos (habilidades e recursos que a criança dispõe) e sócio-culturais, na aprendizagem de novos repertórios de comportamentos das crianças surdocegas (Vygotsky, 1988).

Para o desenvolvimento desta abordagem na prática escolar, é necessário um programa educacional cuidadosamente determinado. A organização do ambiente de trabalho ajuda o surdocego a memorizar a disposição dos materiais permanentes facilitando sua orientação e mobilidade no espaço da sala de aula. O estabelecimento da rotina é fundamental porque viabilizará melhores condições para a criança evocar, combinar e se orientar nas atividades do dia, podendo futuramente antecipar as atividades mediante o objeto de referência da mesma. Para isto é importante colocar estes objetos em um espaço definido (caixas de memória, mesa), segundo a seqüência das tarefas a serem desenvolvidas no dia, de tal forma que quando a criança chegar à sala de aula possa tomar conhecimento da programação. Após a realização da atividade, o objeto de referência é retirado do local, indicando o fim da atividade (McInnes, 1999).

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo duas crianças surdocegas, pré-lingüísticas, do sexo feminino, sem outros comprometimentos aparentes, porém com atraso no desenvolvimento da comunicação. As crianças eram de famílias com baixo nível socioeconômico. As duas residiam em cidades do Distrito Federal distantes cerca de 35 Km de Brasília.

A identificação das alunas será 9I e 7G, os números representam a idade cronológica de cada uma durante o período de coleta de dados e as letras foram aleatórias. O comprometimento auditivo e visual em ambas foi decorrente da Síndrome da Rubéola Congênita. A 9I possui oito anos de experiência escolar na rede pública de ensino especial e a 7G, três anos.

A 9I possui surdez profunda (106dB em orelha direita e 111dB em orelha esquerda, nas freqüências da fala 500, 1000 e 2000Hz). Enquanto 7G possui surdez profunda (130dB em ambas orelhas). As alunas não apresentavam capacidade auditiva funcional para ouvir e interagir com o ambiente. Desta forma, não respondiam ao chamado verbal, bem como não conseguiam emitir palavras que pudessem ser compreendidas. Além disto, apresentavam dificuldade em compreender as informações, defasagem para atender solicitações, seguir orientações, manter um diálogo e antecipar situações. Elas não responderam a perguntas simples realizadas (pela pesquisadora, professora e família) em sinais, gesto e fala, por exemplo: O que é isto? Quantos têm? Que dia é hoje?

Em relação à deficiência visual a 9I tem atrofia de olho direito e apresenta catarata e glaucoma de ângulo fechado em olho esquerdo de difícil controle. Realizou quatro cirurgias de glaucoma (aos 4, 7, 8 e 9 anos), com prognóstico de perda total de visão. A 7G foi submetida a quatro cirurgias de catarata (aos 9 meses, 4, 5 e 7 anos), apresenta visão apenas no olho direito.

Quanto à funcionalidade visual a 9I apresentava impedimento no campo visual periférico, dificuldades para detalhes, dificuldades de leitura de impressos com letra Arial menor que fonte 48 ou impressos apagados, necessitava do sistema braile para leitura e escrita. A aluna 7G apresentava impedimento no campo visual central, necessitava de material impresso bem marcado. Ambas apresentavam dificuldades em visualizar a lousa a mais de 1 metro de distância, sem sair do lugar (baixa acuidade visual para longe); realizavam acomodação e adaptação visual para identificar objetos de modo incomum (muito perto do globo ocular); realizavam aproximação dos objetos a 10 cm do globo ocular, percebiam sinais a 20 cm de distância. No caso da 9I era comum identificar sinais e letras do alfabeto dactilológico através do toque. Ressalta-se que o resíduo visual das alunas podia ser aproveitado no trabalho escolar, de orientação e mobilidade e no desempenho de atividades de vida diária, desde que o material fosse adaptado.

As alunas apresentavam dificuldade em compreender as informações, defasagem para atender solicitações, seguir orientações, manter um diálogo (com gestos ou sinais) e antecipar situações. Elas não responderam a perguntas simples realizadas em sinais, gesto e fala, por exemplo: O que é isto? Quantos têm? Que dia é hoje?

Descrição do local e dos materiais utilizados

As atividades realizadas durante este estudo foram desenvolvidas em locais habituais para as alunas: a sala de aula e em suas residências. Utilizaram-se, também, espaços públicos como: passeios em shopping, zoológico, “fast food”, lojas, parque da cidade, etc. Estes passeios contaram sempre com a presença de alguém da família.

Os materiais foram planejados e confeccionados em parceria com a professora de sala, segundo a necessidade de cada situação de aprendizagem, entre eles: ficha de chamada em lixa e em botões de camisa na cor preta (simbolizando os pontos do sistema braile), fichas com diversos alfabetos, fichas tridimensionais da rotina-diária com objetos de referência colados em papel cartão preto nas dimensões de 17 X 10 cm. Os objetos colados nesta base variavam de acordo com as atividades do dia. Assim, na ficha de segunda-feira foram colados miniaturas de lápis, colher, instrumento musical e pedaço de toalha, indicando as atividades de: sala de aula, lanche, música e natação.

Organizaram-se, também, seis caixas de memória, confeccionadas com potes de sorvete com capacidade para dois litros. As caixas foram identificadas com os números de 1 a 6 com sua respectiva representação. Dentro das caixas eram colocados os objetos e materiais referentes às atividades programadas. Foram confeccionados, também, cartões tridimensionais de identificação de ambiente. A base destes cartões foi feita em papel cartão preto nas dimensões de 22 X 17cm. Em cima desta base foram coladas miniaturas de objetos que faziam referência à atividade desenvolvida no interior da sala, por exemplo, colocou-se uma boneca simbolizando a sala de atendimento a bebês.

Após haver obtido dos pais, o termo de consentimento e participação no estudo, foram desenvolvidas três fases de investigação: uma avaliação inicial do repertório das alunas em comunicação e conhecimentos relacionados à pré-escola, a intervenção e uma avaliação posterior à intervenção. Foram realizados 130 encontros num total de 650 horas de atividade de campo, durante nove meses.

Avaliação inicial

A avaliação inicial consistiu na realização de entrevistas com os pais, visita as residências, leitura e análise de exames clínicos e relatórios educacionais, bem como na aplicação de tarefas próprias da sala de aula, respeitando as características individuais de aprendizagem de cada aluna. Foram avaliadas cinco áreas do desenvolvimento: AVD, coordenação motora, linguagem, socialização e cognição. A avaliação inicial foi realizada no mês de abril.

Durante a avaliação inicial buscou-se avaliar os seguintes aspectos do desenvolvimento: orientação temporal (fazem uso do calendário, qual a noção de tempo que as alunas possuem?), orientação espacial (orientação e mobilidade), conceito corporal (conhecem e registram todas as partes do próprio corpo), atividade de vida diária (são independentes?), estimulação auditiva (percebem, localizam, discriminam sons? Quais?), leitura (reconhecem letras, palavras em códigos diferentes?), escrita (realizam escrita espontânea, fazem uso de pseudoletras ou letras?) e matemática (conhecem os algarismos? Quantificam?).

As áreas mencionadas possibilitaram avaliar os recursos de comunicação receptiva e expressiva utilizados pelas alunas. Observou-se nas atividades como elas manipulavam os objetos: se o faziam ao acaso, isto é, se os utilizavam inadequadamente, não distinguindo nem analisando como são; ou se utilizavam os objetos de maneira funcional; ou ainda, se os manipulavam de forma criativa e simbólica; ou então, se brincavam com os objetos reinventando coisas do mundo.

Todas as atividades foram apresentadas para as alunas por meio dos seguintes recursos de comunicação: sinal, gesto, fala, expressão facial e corporal, contração ou relaxamento da musculatura, objetos de referência, escrita impressa e em braile e exemplos, isto é, muitas vezes foi necessário demonstrar o que estava sendo solicitado.

Intervenção

Após uma análise prévia do desempenho e das habilidades das alunas durante a avaliação inicial, deu-se prioridade na intervenção as seguintes áreas do desenvolvimento: linguagem (exposição a vários meios de comunicação alternativa), socialização (ampliação dos contatos com ambientes e pessoas), cognição (ênfase em atividades envolvendo conceito corporal, leitura e escrita, matemática, orientação espacial e temporal), orientação e mobilidade. Trabalharam-se as áreas: AVD, motricidade, treino de visão subnormal (TVS) e treino auditivo com base na integralização dos conteúdos.

O método da estimulação multi-sensorial (EMS), foi enfatizando durante a intervenção uma vez que prevê a apresentação diferenciada da mesma informação através da ação, do pensar e do fazer associados ao conteúdo emocional e motivacional, conforme destaca Bruner (1976). Neste processo, teve-se o cuidado de conhecer e determinar a via de sentido mais eficiente para cada aluna (9I por meio da via tátil-cinestésica e 7G pela via visual). Exemplificando o método da EMS: contornava-se o corpo de uma aluna na lousa, depois a estimulava para que contornasse com seu dedo a forma desenhada. Através desta atividade combinava a estimulação tátil-cinestésica do toque e do traçado com a visual. Quando ocorria dispersão visual, dirigir o olhar para outros estímulos, a pesquisadora se aproximava e segurava na cabeça da aluna, de modo que seus olhos fossem direcionados para o desenho. Combinando com a aproximação realizava-se o encorajamento verbal estimulando a audição através da vibração do corpo.

Tendo em vista o método da EMS planejou-se as atividades de modo a articular os conteúdos presentes em uma mesma tarefa. Para tanto, estabeleceu uma rotina de trabalho que teve por objetivo situar as alunas num espaço e num tempo definidos e concretos, conforme Cader e Costa (2000). Foram programadas e executadas as seguintes atividades: (a) música e oração de entrada (realizada por toda escola), (b) orientação espacial (quantificação das portas e leitura das indicações táteis do percurso); (c) conversa de roda (temas selecionados com a família); (d) calendário (compreensão da mudança cíclica dos dias); (e) chamada (identificação do próprio nome); (f) merenda; (g) recreio, e (h) novidades (passeios, dramatização de histórias, jogos com e sem a participação dos pais).

As atividades tiveram em comum os seguintes procedimentos: (a) demonstração contextual por meio da representação corporal do conteúdo; (b) segmentação de uma palavra (sinal) geradora presente na representação; (c) repetição da representação com ênfase na palavra (sinal); (d) apresentação do registro alfabético em escrita ampliada e braile associado a letras avulsas; (e) Tadoma (percepção tátil da fala); (f) fixação escrita no plano vertical e, depois no horizontal, conforme Séguin (1846 apud Costa, 1994); (g) representação sócio-cultural do significado; (h) fixação do registro escrito através de várias formas de ditado; (i) generalização e aplicação da aprendizagem.

No caso, do ensino de palavras, as atividades tiveram em comum os seguintes procedimentos:

1. demonstração contextual por meio de representação corporal total da situação (Cader, 1997). Exemplificando: o encontro vocálico "OI", não era introduzido como tal, mas como uma interação em uma situação contextual criada para este fim. Para isto a pesquisadora pegava a bolsa e avisava que ia sair, andar. De repente ela encontrava com uma amiga, a vê e a cumprimenta /Oi/ (fala acompanhada de sinal), dando dois beijos na face da mesma. Esta cena se repetia várias vezes, alternando os participantes, até que as alunas conseguissem entender o significado social e cultural da palavra /oi/. Neste exemplo, têm-se: (a) movimento, ação global; (b) fala; (c) dactilologia; (d) sinal; (e) representação cultural e social do ato (beijos na face, de acordo com o costume local);

2. segmentação da palavra em unidades. Realizava-se a aproximação das letras avulsas ou das fichas contendo o registro das letras. No caso citado da palavra ”oi”, realizava-se a aproximação das unidades (o e i) acompanhada da emissão “oi”. A emissão da unidade "o" era prolongada até que a união entre a vogal "o" e "i" ocorresse, conforme procedimento descrito por Costa (1997);

3. repetição da brincadeira, usada no item 1 encontro casual (no caso de duas amigas);

4. apresentação do registro alfabético em escrita ampliada associada a letras avulsas;

5. percepção tátil da produção do som. A aluna posicionava sua mão na face da pesquisadora, quando esta realizava a marcação fonológica das unidades da palavra e da associação das mesmas;

6. fixação do registro escrito da palavra no plano vertical (lousa), depois no horizontal;

7. representação contextual, social e cultural do significado durante o recreio;

8. fixação do registro escrito no plano horizontal, mediante diferentes formas de ditado:

- ditado oro-tátil (a pesquisadora falava e a aluna realizava a leitura oro-tátil);

- a aluna emitia o som e a pesquisadora ou professora registrava-o;

- realizava-se a leitura do registro escrito: sinal, fala e dactilologia;

- ditado dactilológico (realizava-se a soletração digital e a aluna registrava);

- aluna soletrava a palavra e a pesquisadora ou professora a registrava;

- pesquisadora ou professora realizava o sinal e a aluna registrava a palavra;

- aluna realizava a leitura do registro através do sinal, fala, dactilologia.

Caso houvesse alguma correção, as alunas eram orientadas a realizarem a comparação entre o modelo correto e o próprio registro.

9. generalização e aplicação da aprendizagem. No exemplo citado da palavra "Oi", a pesquisadora estimulava as alunas a cumprimentarem pessoas conhecidas na escola. Para isto, juntas, durante o recreio, a pesquisadora cumprimentava as pessoas de forma que as alunas conseguissem acompanhar o movimento do sinal. Depois cada aluna era estimulada a repetir a ação, através dos seguintes passos:

- marcava a soletração dactilológica da palavra "oi";

- realizava o sinal no espaço, tendo a mão da aluna sobreposta à mão da pesquisadora;

- tocava com o dedo indicador a parte inferior dos lábios de cada aluna, impulsionando-o para frente, para lembrá-la da emissão da palavra. Este procedimento fez-se necessário na interação com crianças cegas;

10. registro escrito em braile, mediante o uso do brailex e larabraile (materiais produzidos pela instituição Laramara situada em São Paulo), e máquina braile modelo Perkins.

Portanto, o procedimento mencionado priorizou a ação (movimento e representação), estimulou à síntese visual (gráfica), a síntese oro-tátil (vibração da emissão verbal). Além disto, incentivou a utilização de diferentes formas de registro (soletração dactilológica, braile digital, fonológica, gráfica, letras avulsas), representação em Libras, aplicação e generalização do significado contextual, social e cultural da palavra. Buscou-se manter uma rotina de trabalho marcada pela regularidade e freqüência destes procedimentos, com vistas a ampliar e diversificar o vocabulário. A título de exemplo descrever-se-ão outras atividades que fizeram parte da rotina.

1. Música. Teve por objetivo familiarizar os sujeitos com a seqüência, o ritmo e a melodia dos sinais e com a atividade comum aos demais alunos da escola. A interpretação em Libras era realizada pela pesquisadora, que ficava em frente à aluna (9I), no mesmo nível. Nesta posição, realizavam-se as seguintes etapas: (a) marcação de cada sinal de forma lenta; (b) repetição dos sinais através do movimento co-ativo; (c) realização dos sinais no campo visual ou no braço, mão da aluna; (d) indicação da música, através do sinal de referência.

2. Orientação espacial. Teve por objetivos (a) explorar as relações entre os objetos no espaço; (b) locomover-se; (c) quantificar as portas existentes a partir de um referencial; (d) identificar o espaço através dos indícios táteis e cinestésicos associados à via visual durante a locomoção, conforme lembram Huebner et al. (1995). As alunas eram estimuladas e orientadas a respeito das pistas táteis presentes na parede e no piso da escola, bem como quantificar as portas. Assim, com a mão fechada e tendo a mão da pesquisadora abarcando a mão de uma aluna, liberava-se para cada porta um dedo da mão da aluna e os demais permaneciam na posição original. No início, esta atividade foi realizada de maneira co-ativa, com ajuda total, depois com ajuda parcial, por fim a realização era independente.

Outra técnica consistiu no uso de objetos de referência para identificar as salas da escola segundo a modalidade de serviço oferecido.

O objetivo foi proporcionar as alunas à oportunidade de comparar os objetos, identificar a mudança do espaço físico e orientar-se em relação à seqüência de atividades e a modalidade do atendimento, bem como se deslocar de uma sala para outra de forma autônoma. Deste modo, elas eram estimuladas a encontrar salas, ou ainda, a levarem ou buscarem material em salas diferentes.

3. Conversa de roda. Teve por objetivo ampliar o vocabulário em sinais, palavras e expressões mediante a alternância de turnos de conversação. Inicialmente, estes momentos se restringiram a perguntas realizadas pela pesquisadora com indução das respostas.

4. Calendário. Teve por objetivo possibilitar às alunas condições para se situarem em relação a: (a) atividade (começo, meio e fim); (b) sucessão das situações de aprendizagem em espaços distintos e com outros profissionais; (c) renovação cíclica dos períodos (dias da semana, meses), e (d) compreensão do caráter irreversível do tempo (segunda-feira já passou). Enfatizou-se um tempo dinâmico, envolvendo relações de passado, presente e futuro dos acontecimentos. Para tanto, utilizaram-se os seguintes materiais: ficha tridimensional (3D): rotina diária e do tempo; ficha 2D nomes: dia, mês e ano; calendário adaptado e caixa de memória, conforme descritos anteriormente.

A atividade do calendário foi dividida em três partes: (a) tempo; (b) dia da semana e do mês, e (c) organização da caixa de memória. O item referente ao tempo foi explorado em seis etapas, são elas: (1) pegar as fichas 3D-tempo; (2) ir para o pátio; (3) selecionar as fichas representativas do dia (sol, frio etc.); (4) retornar à sala de aula; (5) representar na lousa e depois no papel as condições do dia; (6) guardar as fichas. Inicialmente, as etapas eram orientadas pela pesquisadora, depois pela professora, no final as alunas as realizavam sem ajuda.

O item referente ao dia da semana e do mês consistiu em um processo de sete etapas: (1) realizar a identificação e reconhecimento de cada ficha 3D: rotina diária; (2) marcar o dia da semana; (3) estabelecer a correspondência entre o sinal e nome; (4) soletrar o nome do dia; (5) identificar as atividades do dia; (6) identificar e distinguir o dia com uma fita; (7) guardar as fichas 3D: rotina diária no quadro de pregas. No final do primeiro semestre estas fichas passaram a orientar a organização das caixas de memória, só depois desta organização que as fichas (3D: rotina diária) eram guardadas no quadro de pregas.

5. Chamada. Esta atividade era realizada com fichas 2D: nomes (lixa e braile), e teve por objetivo trabalhar a leitura e escrita no nível da palavra mais próxima das alunas, despertando o interesse pelo próprio nome, reconhecendo-o enquanto uma identidade pessoal e intransferível. A chamada constituiu-se em uma estratégia de ensino para conteúdos específicos, entre eles: (a) reconhecer as letras do alfabeto e do sistema braile; (b) comparar letras no próprio nome; (c) comparar letras entre nomes diferentes; (d) relacionar letra impressa com a dactilologia; (e) relacionar letra impressa com o fonema (via Tadoma); (f) quantificar as letras e /ou vogais iguais; (g) identificar a letra inicial e final; (h) realizar o registro espontâneo do nome; (i) copiar o nome com apoio visual, tátil e com ajuda, etc..

O procedimento consistia na apresentação de uma ficha por vez. Às vezes as fichas eram apresentadas na mesa, outras vezes realizava-se a atividade em pé, no mesmo plano das alunas. Realizava-se a leitura do nome através da soletração manual, do movimento labial acompanhado de sons e da marcação do segmento da leitura (da esquerda para direita). Com isto introduzia-se o segmento da leitura e a representação da composição quirêmica do sinal em Libras para a palavra “nome”. Durante toda a atividade questões eram realizadas: "de quem é este nome?" "Nome é seu?" "É seu?" "Este nome é dela?". Após a identificação e registro as fichas eram colocadas no quadro de pregas.

Avaliação final

Na avaliação final realizou-se entrevistas com os pais e aplicou atividades semelhantes àquelas da avaliação inicial, porém com um maior grau de dificuldades, no mês de dezembro. Assim, com relação ao conceito corporal, foi solicitado às alunas que desenhassem no papel a representação do corpo humano, tendo sido dado apenas o comando.

Quanto à leitura foi disponibilizado letras (em vários alfabetos) e palavras já ensinadas na escola. Avaliou-se a capacidade das alunas em reconhecer, decodificar e conceituar as palavras contextualizadas (rótulos) e isoladas.

A escrita foi avaliada através do registro escrito de uma situação vivenciada em sala (escrita espontânea) e do ditado de palavras conhecidas pelas alunas. Em matemática avaliou-se a distinção dos numerais de letras, relação entre quantidade e sua representação numérica, organização da seqüência de 1 a 6 na ordem crescente e decrescente, registro da seqüência numérica de 1 a 10, agrupamento em diferentes bases (3, 4 e 5), participação em jogos respeitando as regras dos mesmos, reconhecimento e identificação dos antecessores e sucessores de 1 a 6.

 

Resultados e Discussão

Para analisar os dados utilizaram-se a abordagem qualitativa (análise de conteúdo - Lüdke e André, 1986; Marcuschi, 1998) e quantitativa (freqüência e percentagem). Procedeu-se a uma análise específica do desempenho de cada aluna, nas atividades propostas durante as fases da pesquisa. Os resultados foram quantificados segundo as menções estabelecidas (B para baixo desempenho, M para médio desempenho e A para alto desempenho).

Foram realizados 130 encontros com as alunas, num total de 650 horas. Nestes encontros, verificou-se que a 9I freqüentou 58% e a 7G apenas 14% do previsto. Vale ressaltar que ambas residem em cidades satélites de Brasília, a uma distância aproximada de 40 (9I) e 30 (7G) km da escola. Apesar da distância, os locais são de fácil acesso, neste sentido a distância não pode ser considerada uma justificativa para o não comparecimento às aulas, pois elas possuíam passe livre com direito a acompanhante.

Em decorrência das dificuldades dos pais em garantir a presença da filha 7G às aulas foi sugerido à família que a aluna passasse a usar o transporte da Associação de Deficientes Visuais de Brasília. Apesar do receio da mãe, os pais aceitaram a sugestão. Assim, no segundo semestre 7G passou a utilizar o referido transporte e sua freqüência passou de 28% para 39% no segundo semestre. Apesar do índice não chegar a 50% nota-se que houve um maior comparecimento às aulas, sendo que suas faltas passaram a serem justificadas pela família.

Este contexto configurou-se em uma variação na intensidade e duração dos atendimentos oferecidos a 7G, fato não previsto no projeto inicial da pesquisa. Assim, apesar dela ter freqüentado apenas 123 horas-aulas de um total de 650, apresentou um bom aproveitamento em todas as áreas do desenvolvimento enfatizadas durante este estudo. Esta informação permitiu inferir que apenas a intensidade e duração dos atendimentos, por si só não são determinantes da aprendizagem e desenvolvimento, mas sim a qualidade e as condições pedagógicas dos atendimentos oferecidos no espaço escolar e familiar. A Figura 1 apresenta os resultados obtidos por 7G nas avaliações de abril e dezembro.

 

Figura 1. Desempenho da aluna 7G, nas áreas avaliadas durante a pesquisa.

 

Observa-se na Figura 1 que a 7G obteve em abril um desempenho, predominantemente, baixo em todas as áreas do desenvolvimento avaliadas, principalmente, em: coordenação motora fina, linguagem, socialização e cognição. Este resultado é compatível com os comportamentos apresentados no início deste estudo, entre eles: mostrava-se apática em relação ao espaço escolar e às pessoas, produzia barulhos intensos e constantes ao manipular objetos, não possuía o hábito de fechar (ou encostar) a porta do banheiro ao utilizá-lo. Em qualquer espaço da escola, tinha o hábito de levantar a roupa para arrumar as peças do vestuário de baixo. Os recursos de comunicação expressiva utilizados restringiam-se a: gritos, birra, choro, movimentos corporais, pontapés, gestos naturais, bem como possuía o hábito de conduzir as pessoas pelo braço para alcançar o objeto de seu desejo.

Em relação às atividades de vida diária 7G, durante a avaliação inicial, apresentou um melhor desempenho, provavelmente, as características intrínsecas desta área contribuíram com este resultado. Como o universo social da 7G era restrito ao contexto familiar no qual as dificuldades de comunicação eram o principal conflito vivenciado e descrito pela família, o resultado apresentado em abril evidencia o que a 7G conseguiu aprender e desenvolver segundo as condições sócio-culturais dadas.

Apesar de sua baixa freqüência no primeiro semestre letivo, há um progressivo e surpreendente resultado no desempenho da 7G em dezembro, em todas as áreas do desenvolvimento. Entre as mudanças comportamentais destacam-se: atenção compartilhada, interesse em aprender sinais mediante a imitação e repetição dos mesmos de forma contextualizada ou não. Passou a fazer uso da letra inicial do nome de algumas pessoas para referir-se a elas em sua ausência ou presença.

Em decorrência das alterações positivas no comportamento apresentado pela 7G, notou-se a redução de fatores estressantes presentes no ambiente familiar, principalmente em relação às condições de interação dos pais com a filha, como se pode perceber nas falas: “agora eu entendo minha filha”; “minha filha agora é outra. Eu falo para ela ficar sentada, ela fica” (mãe).

O desempenho da 9I nas avaliações realizadas em abril e dezembro nas áreas do desenvolvimento enfatizadas durante a coleta de dados, consta na Figura 2.

 

Figura 2. Desempenho da aluna 9I nas áreas avaliadas durante a pesquisa.

 

Observa-se na Figura 2 que a 9I obteve em abril conceitos mais altos nos comportamentos relacionados a AVD e motor. Em relação à linguagem, socialização e cognição alcançaram conceitos baixos com destaque para a área da linguagem. Estes resultados são compatíveis com os comportamentos apresentados durante a avaliação inicial, entre eles: dificuldades na realização de movimentos adequados para a higiene bucal; produção de barulhos através da ação de arrastar os objetos permanentes da sala de aula; desinteresse em conhecer os detalhes dos rótulos de produtos como cor, forma, cheiro ou pistas táteis; desconhecia o significado das pistas táteis permanentes na escola, apesar de já freqüentá-la há dois anos.

Além dos comportamentos mencionados, a 9I apresentava atenção compartilhada, desde que o adulto utilizasse vocativo de chamada, suas respostas aos estímulos eram induzidas. Quando não conseguia entender a informação ela imitava os sinais, gestos e movimentos do interlocutor. Durante a intervenção, demonstrou respostas progressivas evidentes em relação ao processo de aprendizagem dos conteúdos.

A partir de agosto 9I passou a utilizar e combinar os recursos distintos de expressão (gesto, registro escrito, sinal, dactilologia, fala, representação funcional da situação) nas interações no meio familiar e escolar. Com isto houve uma redução do estresse dos pais em relação às condições de interação com a filha, conforme mostra as falas: “agora é mais fácil entendê-la”; “agora eu posso sair e falar aonde eu vou, que ela fica me esperando. Ela agora me entende” (mãe).

Portanto, os resultados evidenciaram um progressivo e evidente desenvolvimento das possibilidades de intervenção com surdocegos. Situações inesperadas como a baixa freqüência da 7G nas atividades de sala de aula geraram indícios de que a combinação das variáveis: (a) diversificação das experiências vivenciadas em relação ao local, tema e situações; (b) interação entre profissionais e a família; (c) respeito à diversidade e as condições apresentadas inicialmente pelas alunas e suas famílias; (d) orientação teórica de van Dijk, principalmente, às fases de nutrição e movimento co-ativo; contribuíram com a aprendizagem e desenvolvimento obtido pelas alunas no final da coleta de dados.

Ao longo do desenvolvimento deste estudo foi possível constatar que não há distinção na relação triádica entre professor, aluno surdocego e conhecimento desde que seja: (a) respeitados as características e necessidades; (b) oferecidas condições adequadas de acesso à informação, mobilidade e comunicação; (c) otimizados os recursos de comunicação apresentados pelos alunos mediante procedimentos adequados.

Com este estudo foi possível constatar a necessidade de se proporcionar ao professor regente apoio e formação em serviço em relação à aprendizagem e ao aperfeiçoamento de competências específicas e necessárias no trabalho com alunos surdos (conhecimento da Libras); com cegos (sistema braile, sorobã e técnicas de adaptação e ampliação de material), e com surdocegos (objeto de referência, movimento co-ativo, ressonância, técnica de adaptação de sinais e letras, Tadoma). Todo este quadro precisa estar em um espaço pedagógico no qual alunos, pais e profissionais possam crescer como seres que se respeitam.

Enfim, os dados evidenciaram que: quando a criança surdocega possui no seu ambiente familiar e escolar uma reciprocidade e disponibilidade na utilização diversificada de recursos de comunicação, suas condições de aprendizagem se ampliam melhorando suas interações com seu meio físico e humano e, conseqüentemente, deste para com ela.

A teoria de van Dijk (1968) mostrou-se básica na estimulação da aprendizagem de sistemas alternativos de comunicação em crianças surdocegas, desde que consideradas suas particularidades e as especificidades de seu contexto histórico, social e cognitivo. Neste processo, é importante não perder de vista que qualquer deficiência influencia o estabelecimento das relações interpessoais e exige a organização de novos padrões de interação. Para isto, as fases de nutrição, ressonância, movimento co-ativo e uso do objeto de referência consistiram nos pilares básicos para o apoio e a ampliação dos recursos de comunicação utilizados pelos participantes deste estudo.

A realização dos movimentos co-ativos na apresentação de objetos, gestos, sinais ou dactilologia se mostrou uma estratégia bastante eficiente na medida em que proporcionou uma margem de segurança para as alunas explorarem de forma sistematizada o ambiente próximo, bem como contribuiu com a superação das dificuldades de configuração das mãos na realização dos sinais ou das letras do alfabeto dactilológico.

Os dados obtidos durante a intervenção levaram a redefinir o papel do objeto de referência na comunicação com surdocegos, uma vez que, inicialmente, não era possível compatibilizar a atenção das alunas em relação à informação funcional do objeto com os complementos da interação entre os participantes. Foi necessário primeiro canalizar a atenção das alunas para a pesquisadora, desenvolvendo assim a atenção compartilhada e, só depois, apresentar o objeto de referência. Com isto, evitou-se a interação privilegiada entre sujeito e objeto presente no comportamento apresentado pela 7G, e introduziu-se a importância do outro na exploração do objeto do conhecimento.

Durante a pesquisa foi possível constatar que as alunas demonstravam motivação para a conversação, sendo os movimentos coordenados à forma encontrada por elas para exteriorizar o interesse no estabelecimento e manutenção das relações interpessoais. Provavelmente, esta característica que emergiu nos resultados seja pertinente à tese de Chomsky (1973) sobre a existência nos seres humanos de uma programação inata destinada a desenvolver aptidões para a linguagem.

Porém, a presença apenas da motivação para a conversação não promoveu uma interação prazerosa. A motivação constituiu-se no passo inicial do processo, no entanto a função cultural da comunicação demonstrou que: (a) o apoio às intenções comunicativas das alunas, interpretando suas contribuições com base no contexto imediato e no objeto; (b) a exposição delas aos modelos alternativos de conversação; (c) a participação em experiências de interação apropriadas e adaptadas às particularidades da surdocegueira, evitando sua exclusão das atividades promovidas no âmbito escolar e familiar; foram condições que contribuíram com a ampliação dos recursos de comunicação das alunas. Este fato repercutiu positivamente no ambiente familiar promovendo novos padrões de interação. Enfim, não há um único fator desencadeador do desenvolvimento da comunicação, mas uma série de situações que se relacionam, determinam e reforçam-se mutuamente promovendo formas específicas de comportamento.

Os resultados nas áreas de AVD e motricidade (coordenação e controle dos grandes e pequenos músculos) mostraram que a surdocegueira não comprometeu o acesso das alunas a estes conhecimentos e, principalmente, a aprendizagem e desenvolvimento de habilidades a eles relacionadas. No entanto, quando se passa do nível do contato com objetos concretos e manuseáveis para o nível abstrato das relações e interações entre indivíduos da mesma espécie e do conteúdo cultural, verifica-se que o grau de acesso pelos surdocegos altera-se. Esta alteração evidencia a necessidade de adaptação que promova as condições adequadas de aprendizagem. Este resultado confirmou o que a literatura da área evidencia como uma das principais implicações da surdocegueira: acesso à comunicação expressiva e receptiva (Watkins e Clark, 1991; Wheeler e Griffin, 1997).

 

Considerações finais

A teoria do crescimento da consciência simbólica de van Dijk viabilizou condições específicas para promover o desenvolvimento da comunicação entre a criança surdocega e o ambiente, rompendo a barreira imposta pela deficiência. As duas participantes deste estudo passaram a compreender e fazer uso do vocabulário da língua de sinais e da dactilologia, no entanto para atingirem este nível precisaram compreender a existência, as funções e os efeitos da comunicação no meio e, isto, foi possível pela via gestual e só depois pelo sinal.

Evidenciou-se com este estudo a importância dos programas educacionais especializados destinados a oferecer o máximo de oportunidades com atividades variadas para que os surdocegos possam engajar-se de forma ativa e criativa no ambiente. Para isto, é necessário ter o veículo de contato com eles. Somente depois de vencer o isolamento no qual se encontra é que os programas poderão ser desenvolvidos em sua essência. Desta forma, todo o trabalho inicial precisa concentrar-se no desenvolvimento da habilidade de comunicação.

Em fim, este estudo permitiu constatar que a aprendizagem de recursos alternativos de comunicação é possível com repercussão nas outras áreas do desenvolvimento humano. Isto leva a afirmar que se o objetivo do trabalho educacional for à comunicação, então a exposição dos surdocegos a todos os recursos possíveis e disponíveis de comunicação é o meio mais viável e promissor para atingir a meta. Se o objetivo da educação for a aprendizagem da linguagem oral, o Tadoma se mostra um método eficiente para alcançar esta meta. No entanto, se o objetivo da educação for sua escolarização, então neste caso, sua exposição a recursos variados e distintos de comunicação pode não ser o melhor caminho. Este fato demanda a realização de pesquisas básicas na busca de novas descobertas.

 

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Endereço para correspondência
Fátima Ali Abdalah Abdel Cader-Nascimento
Via Washington Luís, km 235 – Caixa Postal 676
CEP: 13565-905 - São Carlos – SP
E-mail: pabdalah@bol.com.br.

Enviado em Novembro/2003
Aceite final em Março/2005

 

 

I Trabalho apresenta XXXIII reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Belo Horizonte, MG, outubro de 2003.
Apoio financeiro: FAPESP e CAPES