SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número2A prática educacional com crianças surdocegas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.11 no.2 Ribeirão Preto dez. 2003

 

 

Nova concepção de deficiência mental segundo a American Association on Mental Retardation-AAMR: sistema 2002I

 

The new conception of mental deficiency according to the American Association on Mental Retardation-AAMR: 2002 System

 

 

Erenice Natália Soares de CarvalhoI; Diva Maria Moraes de Albuquerque MacielII

I Universidade Católica de Brasília
II Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Sistema 2002 da American Association on Mental Retardation propõe princípios básicos para definição de deficiência mental, diagnóstico, classificação e planificação de sistemas de apoio. A proposta teórica é funcionalista, sistêmica e bioecológica, incluindo as dimensões intelectual, relacional, adaptativa, organicista e contextual. A deficiência mental é considerada condição deficitária, que envolve habilidades intelectuais; comportamento adaptativo (conceitual, prático e social); participação comunitária; interações e papéis sociais; condições etiológicas e de saúde; aspectos contextuais, ambientais, culturais e as oportunidades de vida do sujeito. O paradigma de apoio proposto enfatiza a natureza e a intensidade dos apoios e sua influência na funcionalidade do sujeito. Questões relacionadas aos instrumentos de registro, avaliação e diagnóstico são discutidas. Revelam necessidade do estabelecimento de parâmetros conceituais e avaliativos consensuais para a aplicação de estratégias quantitativas e qualitativas válidas de investigação que permitam a identificação efetiva da deficiência mental e a eficiência do atendimento dessa população específica.

Palavras-chave: Deficiência mental, Necessidades especiais, Educação especial.


ABSTRACT

The 2002 System of the American Association on Mental Retardation presents basic principles to define mental deficiency, diagnosis, classification, and the design of support systems. The theoretical proposal is functionalist, systemic, and bioecological, including intellectual, relational, adaptational, organicist, and contextual dimensions. Mental deficiency is conceptualized as a deficit condition that entails intellectual abilities; adaptive behavior (conceptual, practical, and social); community participation; social roles and interactions; etiological and health conditions; contextual, environmental, cultural aspects and life opportunities for the individual. The support paradigm proposed emphasizes the nature and the intensity of support, as well as its influence over the level of functionality of the individual. Issues related to record, evaluation and diagnostic instruments are discussed. They reveal the need for the establishment of consensual conceptual and evaluative parameters in order to allow for the application of quantitative and qualitative strategies that can be valid for investigation purposes, for they enable an effective identification of mental deficiency as well as the efficiency of the assistance provided to this specific population.

Keywords: Mental deficiency, Special needs, Special education.


 

 

A concepção de deficiência mental como fenômeno caracterizado por incompetência generalizada e limitações no funcionamento individual vem sendo há muito notificada por estudiosos do assunto, evidenciando-se ainda em nossos dias. Fundamenta-se no julgamento clínico e na literatura especializada, como indicam os atuais sistemas categoriais de doenças e transtornos mentais, como a Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento – CID-10, publicação da Organização Mundial de Saúde-OMS e o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM-IV, publicação da Associação Psiquiátrica Americana-APA.

A deficiência mental está inserida em sistemas categoriais há séculos, figurando como demência e comprometimento permanente da racionalidade e do controle comportamental. Essa compreensão pode ter contribuído para a manutenção de preconceito e influenciado pensamentos e atitudes discriminatórios acerca da deficiência mental, como se verifica em muitas sociedades modernas. Denunciar o estigma da loucura e da incompetência associados a esse fenômeno é imperativo para estudiosos da área, pesquisadores e profissionais que atuam na intervenção.

Coerente com a prática classificatória e categorial, a deficiência mental tem sido identificada como uma condição individual, inerente, restrita à pessoa. Essa posição encontra fundamento nas perspectivas organicistas e psicológicas, atribuindo-se pouca importância à influência de fatores socioculturais.

O diagnóstico da deficiência mental está a cargo de médicos e psicólogos clínicos, realizando-se em consultórios, hospitais, centros de reabilitação e clínicas. Equipes interdisciplinares de instituições educacionais também o realizam. De um modo geral, a demanda atende a propósitos educacionais, ocupacionais, profissionais e de intervenção.

O registro do diagnóstico destina-se a finalidades diversas, como elegibilidade para intervenção; benefícios e assistência previdenciária; proteção legal; acesso a cotas para emprego e outras. Justifica a alocação de recursos materiais e financeiros para programas de atendimento. Desse modo, como instrumento clínico e legal, o diagnóstico está incorporado às práticas sociais.

A realização do diagnóstico requer instrumentos e recursos que garantam resultados confiáveis. Os manuais de psiquiatria e os sistemas internacionais de classificação estão entre os referencias que mais orientam esse procedimento. Entrevistas de anamnese e testes psicológicos (particularmente de mensuração da inteligência) são as técnicas mais utilizadas, associando-se ao julgamento clínico, para a condução do processo.

Mendes, Nunes e Ferreira (2002) analisaram 356 produções discentes nacionais de pós-graduação na área de educação durante o período de 1981 a 1998. A deficiência mental foi uma temática destacada nesses estudos. Identificaram 55 trabalhos, entre teses e dissertações, que elegeram como foco a caracterização da pessoa com necessidades especiais, sua identificação e diagnóstico, vindo a demonstrar a importância desse processo, particularmente para fins de encaminhamento educacional. Evidenciou-se a necessidade de aperfeiçoamento do processo de diagnóstico, considerado precário pelos autores dos trabalhos acadêmicos. A construção de instrumentos avaliativos foi uma necessidade ressaltada nos estudos, estando a finalidade educacional mais uma vez pontuada. Outra questão levantada foi a importância do diagnóstico precoce, bem como a necessidade de preparação dos profissionais - particularmente dos médicos - para conduzir adequadamente a comunicação da deficiência aos familiares.

A deficiência mental é uma condição complexa. Seu diagnóstico envolve a compreensão da ação combinada de quatro grupos de fatores etiológicos - biomédicos, comportamentais, sociais e educacionais. A ênfase em elementos dessas dimensões depende do enfoque e da fundamentação teórica que orientam a concepção dos estudiosos.

Em outra vertente, alguns autores questionam a própria existência da deficiência mental, entendendo-a como uma categoria socialmente construída (Amaral, 1992; Ribas, 1992; Tunes e Piantino, 2001). Ou um mito a ser abandonado (Smith, 2003).

Esses questionamentos perpassam a concepção de deficiência mental, sua identificação e a forma de fazê-lo. A análise da questão no que diz respeito ao diagnóstico, demanda retorno ao panorama histórico da deficiência, bem como a apreciação crítica dos recursos disponíveis que vêm sendo adotados para sua realização. É nessa direção que este artigo se orienta.

 

1. Conceitualização e classificação da deficiência mental: antecedentes históricos

No séc. XIX iniciaram-se efetivamente os estudos científicos sobre a deficiência mental. Segundo os historiadores, o que se tem do período anterior é inconsistente acerca da concepção e caracterização do fenômeno (Patton, Payne e Beirne-Smith, 1990).

Desse modo, optou-se por abordar, neste trabalho, o panorama histórico da deficiência mental a partir do séc. XVIII. Ressalva-se, que foi no decurso do século anterior que a ênfase sobre os aspectos deficitários da deficiência mental foi substituída pelo sentimento de humanidade e valorização pessoal (González-Pérez, 2003). Segundo Misès (1977), o Traité du goitre et du crétinisme, escrito por Fodéré em 1791, constitui a primeira obra importante sobre o tema, sedimentando as produções subseqüentes.

Pessotti (1999) realiza interessante revisão histórica sobre os diferentes sistemas de classificação das doenças mentais. Seu estudo permite situar a deficiência mental entre os diversos sistemas, desde sua inserção inicial. A natureza psicopatológica da deficiência mental teve sua inscrição no século XIX, quando Pinel acrescentou o idiotismo à categorização de alienação mental em sua obra clássica Traité Médico-philosophique sur l’alienation mentale, de 1809. O idiotismo de Pinel não era concebido como loucura, mas significava “carência ou insuficiência intelectual” (Pessotti, p. 57).

A classificação de Pinel foi adotada e ampliada por Esquirol em Des maladies mentales considerées sous ses rapports médical, higiénique et médico-legal, de 1838. A imbecilidade ou idiotia, como descritas por Esquirol, deviam-se a causas maturacionais. Afirmava que “os órgãos responsáveis pelas atividades intelectuais jamais se desenvolveram normalmente.” (Pessotti, op. cit., p. 61). Essa posição foi reforçada por Beaugrand na obra Aliénation, de 1865, onde distingue loucura de idiotia, sendo a última incluída dentre “os estados de insuficiência radical de algumas aptidões intelectuais e morais” (Pessotti, p. 97). Beaugrand lhe atribui causa orgânica, congênita, de origem encefálica e provocadora de parada do desenvolvimento. Essa concepção veio a influenciar as demais classificações da época.

Ao final do séc. XIX a concepção de deficiência mental estava associada à perspectiva exclusivamente organicista, de natureza neurológica, identificada pelo atraso no desenvolvimento dos processos cognitivos. Distinta da concepção de doença mental. Essa herança ingressou no séc. XX, de maneira hegemônica.

O Tratado de Psiquiatria de Bleuler, em 1955, já incorpora aspectos dinâmicos às chamadas doenças mentais. Abre espaço para questões subjetivas, admite a perspectiva de multicausalidade e aceita a diversidade de expressões sintomatológicas. A deficiência mental figura como distúrbios congênitos da personalidade, inscrito na categoria das oligofrenias, assim entendidas como “estados deficitários congênitos e precocemente adquiridos” (Pessotti, op. cit., p. 171).

É interessante considerar que as concepções históricas estão na base de atuais idéias sobre deficiência mental (Patton e cols., 1990), particularmente quanto às concepções clínicas, à perspectiva desenvolvimentista precoce e à centralidade no déficit. As tendências para mudança na direção de uma perspectiva multidimensional já estão em andamento, como se explicita a seguir.

 

2. Sistemas Atuais de Classificação

2. 1. Sistema 2002 da American Association on Mental Retardation - AAMR

Sediada em Washington, a AAMR foi criada em 1876. Desde então, vem liderando o campo de estudo sobre deficiência mental, definindo conceituações, classificações, modelos teóricos e orientações de intervenção em diferentes áreas. Dedica-se à produção de conhecimentos, que tem publicado e divulgado em manuais contendo avanços e informações relativos à terminologia e classificação.

Desde o primeiro manual, editado em 1921, revisões se sucederam na seguinte ordem cronológica: 1933, 1941, 1957, 1959, 1961, 1973, 1977, 1983, 1992 e o atual, de 2002, a ser tratado neste trabalho.

Embora secular e influenciando sistemas de classificação internacionalmente conhecidos como o DSM-IV e a CID-10, a AAMR não é igualmente conhecida em nosso país. Sua incipiente indicação em trabalhos específicos da área, quando comparada aos sistemas DSM-IV e CID-10, evidenciam essa constatação. As razões parecem não se dever a questões de credibilidade ou à falta de reconhecimento de sua significativa contribuição. Deve-se, talvez, à pouca divulgação de suas produções entre especialistas e pesquisadores brasileiros.

O atual modelo proposto pela AAMR, o Sistema 2002, consiste numa concepção multidimensional, funcional e bioecológica de deficiência mental, agregando sucessivas inovações e reflexões teóricas e empíricas em relação aos seus modelos anteriores. Apresenta a seguinte definição de retardo mental (expressão adota por seus proponentes):

Deficiência caracterizada por limitações significativas no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, como expresso nas habilidades práticas, sociais e conceituais, originando-se antes dos dezoito anos de idade.” (Luckasson e cols., 2002, p.8)

Depreende-se da definição que a deficiência mental não representa um atributo da pessoa, mas um estado particular de funcionamento. O processo de diagnóstico, segundo o Sistema 2002, requer a observância, portanto, de três critérios: (a) o funcionamento intelectual; (b) o comportamento adaptativo, e (c) a idade de início das manifestações ou sinais indicativos de atraso no desenvolvimento.

Para que o diagnóstico se aplique, é necessário que as limitações intelectuais e adaptativas, identificadas pelos instrumentos de mensuração, sejam culturalmente significadas e qualificadas como deficitárias. Alguns parâmetros influenciam essa qualificação: (a) os padrões de referência do meio circundante, em relação ao que considera desempenho normal ou comportamento desviante; (b) a intensidade e a natureza das demandas sociais; (c) as características do grupo de referência, em relação ao qual a pessoa é avaliada; (d) a demarcação etária do considerado período de desenvolvimento, convencionada e demarcada nos dezoito anos de idade. Os indicadores de atraso devem manifestar-se, portanto, na infância ou adolescência.

2.1.1. A concepção multidimensional do Sistema 2002: um modelo de cinco dimensões

A definição proposta e o modelo teórico multidimensional da AAMR (2002), explicam a deficiência mental segundo cinco dimensões, que envolvem aspectos relacionados à pessoa; ao seu funcionamento individual no ambiente físico e social; ao contexto e aos sistemas de apoio. São caracterizadas como se segue:

Dimensão I: Habilidades Intelectuais

A inteligência é concebida como capacidade geral, incluindo “raciocínio, planejamento, solução de problemas, pensamento abstrato, compreensão de idéias complexas, rapidez de aprendizagem e aprendizagem por meio da experiência” (Luckasson, op. cit., p. 40).

As habilidades intelectuais são objetivamente avaliadas por meio de testes psicométricos de inteligência. A dimensão intelectual, hegemônica no início do séc. XX, passa a constituir, no Sistema 2002, um dos indicadores de déficit intelectual, considerado em relação às outras dimensões. Desse modo, a mensuração da inteligência continua com muito peso, mas não é suficiente para o diagnóstico da deficiência.

Enquanto o Sistema 92 da AAMR adotava-se o valor do QI como índice de demarcação da avaliação intelectual, o Sistema 2002 o faz pela medida do desvio-padrão. Estabelece como ponto de definição duas unidades de desvio-padrão (2s) abaixo da média, em testes padronizados para a população considerada.

Os seguintes requisitos são recomendados no processo avaliativo: (a) a qualidade dos instrumentos de medida, considerando a validade dos testes e a adequação de seu uso; (b) a qualificação do avaliador para a aplicação e interpretação dos resultados dos testes empregados; (c) a seleção dos informantes quanto à sua legitimidade para fornecer dados sobre a pessoa que está sendo diagnosticada; (d) a contextualização ambiental e sociocultural na interpretação dos resultados do processo avaliativo; (e) a história clínica e social do sujeito; (f) as condições físicas e mentais associadas, que possam interferir nos resultados avaliativos das habilidades intelectuais.

Os critérios objetivos, próprios das medidas psicométricas e das escalas de mensuração, são recomendados pela AAMR, porém considerados insuficientes para o diagnóstico da deficiência mental em suas publicações mais recentes.

Os instrumentos recomendados pela AAMR para mensuração da inteligência são: a Wechsler Intelligence Scale for Children - WISC-III, Wechsler Adult Intelligence Scale - WAIS-III, o Stanford-Binet-IV, a Kaufman Assesment Battery for Children.

Dimensão II: Comportamento Adaptativo

O comportamento adaptativo é definido como o “conjunto de habilidades conceituais, sociais e práticas adquiridas pela pessoa para corresponder às demandas da vida cotidiana.” (Luckasson e cols., 2002, p. 14). Limitações nessas habilidades podem prejudicar a pessoa nas relações com o ambiente e dificultar o convívio no dia a dia.

As habilidades conceituais, sociais e práticas constituem áreas do comportamento adaptativo, explicadas a seguir.

(a) Habilidades conceituais – relacionadas aos aspectos acadêmicos, cognitivos e de comunicação. São exemplos dessas habilidades: a linguagem (receptiva e expressiva); a leitura e escrita; os conceitos relacionados ao exercício da autonomia.

(b) Habilidades sociais – relacionadas à competência social. São exemplos dessas habilidades: a responsabilidade; a auto-estima; as habilidades interpessoais; a credulidade e ingenuidade (probabilidade de ser enganado, manipulado e alvo de abuso ou violência etc.); a observância de regras, normas e leis; evitar vitimização.

(c) Habilidades práticas – relacionadas ao exercício da autonomia. São exemplos: as atividades de vida diária: alimentar-se e preparar alimentos; arrumar a casa; deslocar-se de maneira independente; utilizar meios de transporte; tomar medicação; manejar dinheiro; usar telefone; cuidar da higiene e do vestuário; as atividades ocupacionais – laborativas e relativas a emprego e trabalho; as atividades que promovem a segurança pessoal.

A definição de retardo mental proposta no Sistema 2002 diferencia-se do Sistema 92 quanto às habilidades adaptativas. Enquanto o Sistema 92 especifica essas habilidades em 10 grupos, a serem avaliadas sem instrumentos objetivos de mensuração, o Sistema 2002 indica a avaliação objetiva do comportamento adaptativo, categorizado em 3 grupos. Essa diferenciação pode ser constatada comparando-se as definições de deficiência mental dos dois sistemas (constantes nos itens 2.1 e 2.2.1 deste trabalho).

O Sistema 2002 indica para a avaliação do comportamento adaptativo a utilização de instrumentos objetivos de mensuração. Esses instrumentos, existentes em quantidade e diversidade nos Estados Unidos, não estão disponíveis com padronização brasileira. Os seguintes são recomendados: Vineland Adaptative Behavior Scales (VABS), AAMR Adaptative Behavior Scales (ABS), Scales of Independent Behavior (SIB-R), Comprehensive Test of Adaptative Behavior-Revised (CTAB-R) e Adaptative Behavior Assesment System (ABAS).

As limitações no comportamento adaptativo são determinadas quantitativamente, levando em conta os resultados obtidos nos instrumentos de mensuração. A exemplo dos testes de inteligência, a demarcação de referência situa-se em duas unidades de desvio-padrão (2s) abaixo da média do grupo de referência.

Cabe questionamento sobre o uso de instrumentos objetivos na avaliação das habilidades adaptativas, tendo em vista os componentes subjetivos, interativos e contextuais que constituem o comportamento adaptativo. Essa é uma questão aberta, a ser discutida.

Dimensão III: Participação, interações, papéis sociais

Essa dimensão ressalta a importância da participação na vida comunitária. Em relação ao diagnóstico da deficiência mental, dirige-se à avaliação das interações sociais e dos papéis vivenciados pela pessoa, bem como sua participação na comunidade em que vive. A observação e o depoimento são procedimentos de avaliação indicados para essa dimensão, tendo em vista a consideração dos múltiplos contextos envolvidos e a possibilidade diversificada de relações estabelecidas pelo sujeito no mundo físico e social.

Dimensão IV: Saúde

As condições de saúde física e mental influenciam o funcionamento de qualquer pessoa. Facilitam ou inibem suas realizações. A AAMR (2002) indica a necessidade de contemplar, na avaliação diagnóstica da deficiência mental, elementos mais amplos, de modo a incluir fatores etiológicos e de saúde física e mental.

Dimensão V: Contextos

A dimensão contextual considera as condições em que a pessoa vive, relacionando-as com qualidade da vida. Os níveis de contexto considerados estão de acordo com a concepção de Bronfenbrenner (1979), incluindo: (a) o microssistema – o ambiente social imediato, envolvendo a família da pessoa e os que lhe são próximos; (b) o mesossistema – a vizinhança, a comunidade e as organizações educacionais e de apoio; (c) o macrossistema – o contexto cultural, a sociedade, os grupos populacionais.

São considerados na avaliação diagnóstica as práticas e valores culturais; as oportunidades educacionais, de trabalho e lazer, bem como as condições contextuais de desenvolvimento da pessoa. São consideradas, também, as condições ambientais relacionadas ao seu bem-estar, saúde, segurança pessoal, conforto material, estímulo ao desenvolvimento e condições de estabilidade no momento presente.

A avaliação dos contextos prescinde da utilização de medidas padronizadas, prevalecendo critérios qualitativos e de julgamento clínico.

2.1.2. A concepção funcional do Sistema 2002: sistemas de apoio

A importância dos sistemas de apoio vem sendo enfatizada desde o Sistema 92 da AAMR. Os apoios são identificados como mediadores entre o funcionamento do sujeito e as cinco dimensões focalizadas no modelo teórico. Quando necessários e devidamente aplicados, os apoios desempenham papel essencial na forma como a pessoa responde às demandas ambientais, além de propiciarem estímulo ao desenvolvimento e à aprendizagem da pessoa com deficiência mental ao longo da vida.

Segundo sua intensidade, os apoios podem ser classificados em:

(a) intermitentes – são episódicos, disponibilizados apenas em momentos necessários, com base em demandas específicas. Aplicados particularmente em momentos de crise ou períodos de transição no ciclo de vida da pessoa;

(b) limitados – são caracterizados por sua temporalidade limitada e persistente. Destinam-se a apoiar pequenos períodos de treinamento ou ações voltadas para o atendimento a necessidades que requeiram assistência temporal de curta duração, com apoio mantido até sua finalização;

(c) extensivos – são caracterizados por sua regularidade e periodicidade (por exemplo, diariamente, semanalmente). Recomendados para alguns ambientes (escola, trabalho, lar), sem limitações de temporalidade.

(d) pervasivos – são constantes, estáveis e de alta intensidade. Disponibilizados nos diversos ambientes, potencialmente durante toda a vida. São generalizados, podendo envolver uma equipe com maior número de pessoas.

Para Turk (2003) o modelo de apoio proposto pela AAMR nos Sistemas 92 e 2002 representa um paradigma inovador. Dá sentido ao diagnóstico, cujo objetivo principal consiste em identificar limitações pessoais, a fim de desenvolver um perfil de apoio adequado, na intensidade devida, perdurando enquanto durar a demanda.

O apoio se aplica às seguintes áreas: desenvolvimento humano; ensino e educação; vida doméstica; vida comunitária; emprego/trabalho; saúde e segurança; comportamento; vida social; proteção e defesa.

Thompson e cols. (2002) validaram uma escala com uma tipologia de áreas de apoio, categorizada em quatro componentes: (a) experiências e metas de vida; (b) intensidade dos apoios necessários; (c) plano de apoio; (d) monitoramento do processo.

Segundo a AAMR (2002) a ênfase no sistema de apoio coaduna-se com o conceito de zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky (1994), considerando-se com base nesse conceito “a distância entre a independência da pessoa e os níveis assistidos de solução de problemas.” (AAMR, p. 146). Essa consideração muda a perspectiva da posição puramente quantitativa para uma concepção sócio-histórico-cultural, dando-lhe amplitude para direcionamentos epistemológicos e empíricos que podem inaugurar novas práticas sociais.

2. 2. Sistema 2002 da AAMR e outros sistemas atuais de classificação

2.2.1. Sistema 2002 da AAMR e DSM-IV

O DSM-VI é uma classificação categorial. Estabelece categorias descritivas com base em sintomas e comportamentos, agrupando-os em síndromes ou transtornos (não necessariamente mentais). A inclusão do retardo mental entre suas categorias deve-se a essa abrangência, não significando sua identificação como transtorno mental.

Publicado em 1994, o DSM-IV é posterior ao Sistema 2002 da AAMR. Desse modo, adotou do Sistema 92 a terminologia retardo mental, bem como sua definição:

Funcionamento intelectual significativamente abaixo da média, acompanhado de limitações significativas no funcionamento adaptativo, em pelo menos duas das seguintes áreas de habilidades: comunicação, autocuidado, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais, uso de recursos comunitários, auto-suficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde e segurança. O início deve ocorrer antes dos dezoito anos de idade. (Lucksson e cols., 1992, p. 5).

Para ajustar a categoria da deficiência mental ao formato de critérios, como aplica aos transtornos mentais incluídos em sua categorização, os autores do DSM-IV consideraram:

(a) as limitações do funcionamento intelectual, como critério A;

(b) as limitações nas habilidades adaptativas, como critério B;

(c) a idade de início das manifestações ou sinais da deficiência, como critério C.

A AAMR, em manuais anteriores e no Sistema 92, recomenda a medida de QI como critério quantitativo da deficiência mental, considerando como ponto delimitador o valor de QI £ 70-75. Esse critério também foi indicado pelo DSM-IV.

Por outro lado, o DSM-IV continua-se adotando uma classificação de deficiência mental proposta pelo manual da AAMR de 1959, definindo as seguintes categorias: (a) retardo mental leve (nível de QI 50-55 até aproximadamente 70); (b) retardo mental moderado (nível de QI 35-40 até 50-55); (c) retardo mental severo (nível de QI de 20-25 até 35-40); (d) retardo mental profundo (nível de QI abaixo de 20 ou 25).

O DSM-IV acrescenta uma categoria - retardo mental de gravidade inespecificada -, aplicando-a quando as condições deficitárias da pessoa não permitem mensuração da inteligência.

A principal distinção entre o Sistema 92 da AAMR e o DSM-IV verifica-se exatamente no uso dessa classificação para os níveis de deficiência. A AAMR vem desaconselhando essas categorias desde 1992 até o momento atual. Em seu lugar, recomenda uma categorização dirigida à intensidade das necessidades de apoio.

2.2.2. Sistema 2002 da AAMR e CID-10

A CID-10 consiste num sistema categorial de descrições diagnósticas com base na organização de síndromes. A exemplo do DSM-IV, declara-se um modelo ateórico e caracteriza-se por uma inspiração organicista. Sua afinidade com o DSM-IV resulta de intercâmbio entre seus elaboradores.

Em relação à deficiência mental, a CID-10 admite a mensuração de QI como definidora da deficiência e, com base nesse índice, aplica seu sistema de classificação. A exemplo do DSM-IV, adota a classificação proposta pela AAMR de 1959 a 1983, com algumas reformulações: (a) retardo mental leve; (b) retardo mental moderado; (c) retardo mental grave; (d) retardo mental profundo; (e) outro retardo mental; (f) retardo mental não especificado. Admitindo o caráter sumário da classificação, os autores da CID-10 admitem a necessidade de um sistema mais amplo e específico para a deficiência mental.

2.2.3. Sistema 2002 da AAMR e CIF

Proposta pela Organização Mundial de Saúde, a CIF foi publicada em 2001. É um instrumento de classificação utilizado como complemento à CID-10. Nesse ponto, ultrapassa a visão apenas médica e inclui a perspectiva societal e ambiental. Adota, como o Sistema 2002, o conceito de funcionalidade.

A CIF organiza-se em duas partes, com seus respectivos componentes:

Parte 1: (a) funções do corpo e estruturas do corpo – referindo-se às funções fisiológicas dos sistemas corporais (inclusive as funções mentais), bem como suas partes estruturais ou anatômicas, tais como órgãos e membros; b) atividades e participação. Quatro construtos estão relacionados à Parte 1: mudanças na função e na estrutura do corpo; capacidade e desempenho.

Parte 2: (a) fatores ambientais; (b) fatores pessoais. Um construto está associado à Parte 2: facilitadores ou barreiras existentes nos fatores ambientais.

A deficiência mental pode acarretar problemas significativos à pessoa nos seguintes aspectos: (a) em sua capacidade de realizar, por impedimentos na funcionalidade; (b) em sua habilidade de realizar, devido a limitações na atividade de um modo geral; (c) em suas oportunidades de funcionar no meio físico e social, devido a restrições de participação.

Além de fatores pessoais, a CIF abrange importantes domínios contextuais do convívio humano: o lar, a família, a educação, o trabalho e a vida social/social.

O Sistema 2002 da AAMR e a CIF têm em comum a perspectiva funcionalista, ecológica e multidimensional. Esse paralelo pode ter sido possível pela contemporaneidade de suas publicações.

 

3. Um olhar entre os sistemas

A definição de deficiência mental é convergente e consensual entre os diversos sistemas de classificação internacionais, uma vez que existe ação articulada entre seus elaboradores com essa finalidade.

A AAMR tem sido referência para os demais sistemas em relação ao diagnóstico e classificação da deficiência mental, conquanto sua última versão tenha sido posterior à publicação do DSM-IV e da CID-10.

Em relação à deficiência mental, verificam-se desvantagens conceituais e metodológicas na CID-10, admitidas pelos próprios elaboradores. A publicação recente da CIF pela OMS tende a suprir esse caráter restritivo da proposta, mas carece ainda de divulgação e apropriação por parte de especialistas e pesquisadores.

O DSM-IV utiliza contribuições teóricas da AAMR em seu sistema categorial de classificação, a exemplo da definição de deficiência mental do Sistema 92. Aplica, ainda, a classificação de deficiência mental proposta no manual de 1959, não recomendada desde 1992: (a) deficiência mental leve; (b) moderada; (c) severa; (d) profunda (acrescida a categoria inespecífica). Similarmente, a CID-10 adota a mesma classificação com discretas alterações.

Para os propósitos de classificação, a CIF complementa a CID-10, podendo fazê-lo também em relação ao DSM-IV.

Por outro lado, a associação entre o Sistema 2002 e a CIF merece a atenção dos profissionais, por oferecerem um referencial teórico importante para o entendimento da deficiência mental e constituírem instrumentos substantivos e compreensivos para o seu diagnóstico.

 

Considerações finais

Smith (2002) aponta uma particularidade subjacente aos sistemas de classificação de um modo geral. Trata-se do pensamento tipológico, segundo o qual certos grupos podem ser organizados com base em características compartilhadas, homogêneas, obscurecendo as diferenças individuais. Para o autor, a deficiência mental está sujeita a essa concepção tipológica, como se existisse uma “essência” da deficiência mental (Smith, p. 62).

Considerando-se a associação de vários fatores etiológicos ligados à deficiência mental e a evidência das interações individuais e contextuais envolvidas no conceito, esta homogeneidade é apenas suposta. Acrescida a possibilidade de outros transtornos associados, pode-se depreender que uma ampla gama de características pode distinguir as pessoas identificadas como deficientes mentais.

Para quem realiza o diagnóstico a visão dessas diferenças é tão importante quanto os padrões de similaridade que permitem sua constituição como uma categoria dentro dos sistemas categoriais.

A utilização dos sistemas internacionais, isolados ou combinados, pode oferecer aos profissionais que realizam diagnóstico elementos referenciais para sua atuação. O clínico defronta-se, entretanto, com os seguintes desafios:

(a) compatibilizar os pontos de convergência e divergência, entre os sistemas de classificação, no que diz respeito à definição e classificação de deficiência mental;

(b) utilizar instrumentos de mensuração de inteligência válidos e confiáveis, de modo a fundamentar a avaliação do funcionamento intelectual;

(c) sujeitar os instrumentos ao julgamento clínico, o que exige ampla experiência;

(d) promover o diagnóstico precoce da deficiência mental;

(e) comunicar apropriadamente o diagnóstico à família, de modo a favorecer o processo de aceitação da deficiência;

(f) atender à demanda de diagnóstico aplicável a finalidades educacionais;

(g) promover e apropriar-se de avanços na concepção e no diagnóstico da deficiência mental;

(h) posicionar-se quanto ao uso de critérios clinicamente convencionados e de referências unidimensionais sobre a deficiência mental, sejam de natureza estritamente biológica ou psicométrica;

(i) lidar com a complexidade de manuseio dos sistemas internacionais de classificação e com suas modificações.

Baseados em paradigmas em transformação, os sistemas disponíveis buscam formas de atualização e uniformização, de modo a aprimorar e padronizar sua abordagem das doenças, transtornos e outras condições. Visam à maior harmonização do que a pontos de divergência. Esses aspectos são vantajosos e favorecem sua aplicação clínica, além do atendimento às demandas institucionais.

Entender a deficiência mental como categoria diagnóstica é ponto de partida para eventos significativos, como identificação, intervenção, apoio, promoção de cuidados e atendimento a direitos. Esses procedimentos influenciam pessoalmente um numeroso contingente de pessoas com deficiência mental, bem como a qualidade de vida de seus familiares. É desafiador. Herdamos esse desafio do passado. Tornou-se agora nosso desafio.

 

Referências

Amaral, L. A. (1992). Sociedade x deficiência. Integração, 4 (9), 8-10.         [ Links ]

American Association on Mental Retardation. (1992). Mental retardation: definition, classification, and systems of supports. Washington, DC, USA: AAMR.         [ Links ]

American Association on Mental Retardation. (2002). Mental retardation: definition, classification, and systems of supports. Washington, DC, USA: AAMR.         [ Links ]

Associação Psiquiátrica Americana. (1994). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (4 ed.). Porto Alegre: ArtMed.         [ Links ]

Bronfenbrenner, U. (1979). The ecology of human development: experiments by nature and design. Cambridge, MA: Harvard University Press.         [ Links ]

González-Pérez, J. (2003). Discapacidad intelectual – concepto, evaluación e intervención psicopedagógica. Madrid: Editorial CCS.         [ Links ]

Luckasson, R.; Borthwick-Duffy, S.; Buntinx, W. H. H.; Coulter, D. L.; Craig, E. M.; Reeve, A.; Snell, M. E. et al. (2002). Mental Retardation – definition, classification, and systems of support. Washington, DC: American Association on Mental Retardation.         [ Links ]

Luckasson, R.; Coulter, D. L.; Polloway, E. A.; Reiss, S.; Schalock, R. L.; Snell, M. E. et al. (1992). Mental Retardation – definition, classification, and systems of support. Washington, DC: American Association on Mental Retardation.         [ Links ]

Mantoán, M. T. (1996). Ser ou estar: eis a questão – explicando o déficit intelectual. Rio de Janeiro: WVA.         [ Links ]

Mendes, E. G.; Nunes, L. R. O. de P. e Ferreira, J. R. (2002). Diagnóstico e caracterização de indivíduos com necessidades educacionais especiais: produção científica nacional entre 1981 1 1998. Temas em Psicologia da SBP, 10 (1), 11-25.         [ Links ]

Misès, R. (1977). A criança deficiente mental – uma abordagem dinâmica. São Paulo: Zahar.         [ Links ]

Organização Mundial da Saúde. (1993). Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10 – descrições clínicas e diretrizes diagnósticas. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Patton, J. R.; Payne, J. S. e Beirne-Smith, M. (1990). Mental Retardation. Ohio, USA: Merrill Publishing Company.         [ Links ]

Pessotti, I. (1999). Os nomes da loucura. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Ribas, J. B. C. 1992). Deficiência: uma identidade social, cultural e institucionalmente construída. Integração, 4 (9), 4 -7.         [ Links ]

Smith, J. D. (2002). The myth of mental retardation: paradigm shifts, disaggregation, and developmental disabilities. Mental Retardation, 40 (1), 62-64.         [ Links ]

Smith, J. D. (2003). Abandoning the myth of mental retardation. Education and Training in Developmental Disabilities, 38 (4), 358-361.         [ Links ]

Tunes, E. e Piantino, L. D. (2001). Cadê a Síndrome de Down que estava aqui? o gato comeu... São Paulo: Autores Associados.         [ Links ]

Turk, V. (2003). Mental retardation: definition, classification, and systems of supports, 10th end. Journal of Intellectual Disabilitly Research, 47, p. 400.         [ Links ]

Thompson, J. R.; Hughes, C.; Schalock, R. L.; Silverman, W.; Tassé, M. J.; Bryant, et al. (2002). Integrating supports in assessment and palnning, Mental Retardation, 40 (5), 390-405.         [ Links ]

Vygotsky, L. S. (1994). A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

World Health Organization. (2001). International classification of functioning, disability, and health – ICF. Geneva: WHO.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Erenice Natália Soares de Carvalho
SQS 216 – Bloco F – Apto 103
CEP: 70 295-060 - Brasília-DF
E-mail: erenice@terra.com.br.

Enviado em Novembro/2003
Aceite final em Março/2005

 

 

I Trabalho apresentado na mesa redonda Deficiência mental: diagnóstico, classificação e sistemas de apoio segundo o modelo 2002 da American Association on Mental Retardation – AAMR, na XXXII Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Florianópolis – SC, outubro de 2002.