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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.12 no.1 Ribeirão Preto jun. 2004

 

 

Novas opções, antigos dilemas: mulher, família, carreira e relacionamento no BrasilI

 

New options, old dilemmas: women, close relationships, marriage, and career in Brazil

 

 

Maria Lúcia Rocha-Coutinho

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que vimos desenvolvendo acerca da identidade da mulher brasileira de classe média urbana e de como elas estão percebendo a maternidade, os relacionamentos afetivos, a sexualidade, o casamento e a carreira profissional, entre outros aspectos importantes de suas vidas. Foram entrevistadas 25 estudantes universitárias de 18 a 28 anos, inscritas em diferentes cursos. Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra e os textos delas resultantes foram submetidos a uma análise do discurso a partir das seguintes categorias: maternidade; sexualidade; família; relacionamentos; relação com o corpo e aparência física; carreira e profissão. A análise das entrevistas apontou para o fato de que novas atitudes e comportamentos por parte das mulheres são vistos por elas, não só como possíveis mas também desejáveis. Contudo, sua aceitação ainda esbarra nos antigos discursos definidores das identidades feminina e masculina, resultando na coexistência de discursos contraditórios e, muitas vezes, conflitantes. Para nossas entrevistadas, a mulher de hoje deve ser múltipla: profissional competente, culta, inteligente, boa dona de casa, mãe zelosa, sem deixar de cuidar da aparência e investir na saúde.

Palavras-chave: Discurso, identidade, gênero.


ABSTRACT

This paper presents part of the results of a research project on the identity of the urban middle class Brazilian women, and on how they perceive maternity, close relationships, sexuality, marriage and career, among other aspects of their lives. We interviewed 25 university students, aged 18 to 28, and enrolled in different courses of private and public universities of Rio de Janeiro, Brazil. The interviews were taped recorded and transcribed and the resulting texts were analyzed according to the following categories: maternity; sexuality; family; close relationships; physical appearance; professional career. The discourse analysis pointed to the fact that new attitudes and behaviors on the part of women are seen as not only possible, but also as desirable. However, their acceptance conflicts with old discourses that used to define women's and men's identities. As a result, for our interviewees, contemporary women should be multiple if they want to fulfill theirs and society's expectations: a competent professional, a cult, intelligent and sensuous woman, a good housekeeper and mother, and an affectionate companion.

Keywords: Discourse, identity, gender.


 

 

A Cinderela dos anos 90

Este artigo apresenta parte dos resultados de uma pesquisa que vimos desenvolvendo acerca da identidade da mulher brasileira de classe média urbana e de como elas estão percebendo a maternidade, os relacionamentos afetivos, a sexualidade, o casamento e a carreira profissional, entre outros aspectos importantes de suas vidas.

A identidade está sendo tomada aqui não como algo fixo, imutável, mas, ao contrário, como um construto, historicamente elaborado, que dissolve as heterogeneidades, as diferenças, através do uso de um discurso que organiza características fragmentadas em um todo coerente que acaba por definir uma instância mais geral, como é o caso da feminilidade ou a masculinidade. Assim, características esperadas, ou próprias de algumas mulheres, tais como "fragilidade", "intuição", "abnegação", "altruísmo", "docilidade", "sensibilidade", entre outras, acabam por definir a chamada "identidade feminina", isto é, acabam por ser vistas como parte de uma "natureza feminina".

Esta identidade social unificada, nos parece, é, e sempre foi, uma abstração, embora desempenhe importante papel na construção das identidades individuais. Segundo Hall (1997):

the notion that identity has to do with people that look the same, feel the same, call themselves the same is nonsense. As a process, as a narrative, as a discourse, it is always told from the position of the Other"1(p. 49).

Assim, para este autor, a identidade de um indivíduo "is always in part a narrative, always in part a kind of representation. It is always within representation ... It is that which is narrated in one's self"2(p. 49).

Identidades, portanto, são, na verdade, continuamente formadas e transformadas em relação aos nossos Outros, de acordo com as formas como temos sido representados nos sistemas culturais que nos rodeiam. Sujeitos que fazem parte de grupos marginalizados – tais como as mulheres, os negros, os índios, entre outros – sempre tiveram suas identidades construídas pelo seu Outro, o "colonizador", e, portanto, só podem vir a se representar através da recuperação de suas histórias, há muito escondidas por trás do discurso do "colonizador".

Um importante papel exercido pelos movimentos de liberação contemporâneos – tais como o Movimento Feminista e o Movimento Negro, por exemplo – tem sido a desconstrução da identidade que foi, para estes grupos, construída pelo seu Outro "colonizador" (no caso das mulheres, pelos homens no patriarcado) e as tentativas de reconstrução de uma identidade, ou melhor, de identidades que melhor se adeqüem a seus modos de ser, a suas próprias narrativas. Desta forma, mais recentemente, como assinalou Hall (1997):

The emergence of new subjects, new genders, new ethnicities, new regions, new communities, hitherto excluded from the major forms of cultural representation, unable to locate themselves except as decentered or subaltern, have acquired through struggle, sometimes in very marginalized ways, the means to speak for themselves, for the first time. And the discourses of power in our society, the discourses of the dominant regimes, have been certainly threatened by this de-centered cultural empowerment of the marginal and the local (p. 34)3.

Nas sociedades contemporâneas, em que mudanças rápidas e constantes vêm ocorrendo, os sistemas globais de significado e de representação cultural, que coexistem com os sistemas locais (a esse respeito, ver, por exemplo, Ianni, 1997; Ortiz, 1994), propagam-se a uma velocidade incrível, tornando a ilusão de uma identidade unificada ainda mais intrincada.

Os sujeitos contemporâneos confrontam-se com uma multiplicidade de identidades possíveis e mutáveis, com as quais eles podem, pelos menos de forma provisória, se identificar. O sujeito, assim, que costumava viver a ilusão de uma identidade unificada e estável, está experimentando agora, nem sempre de forma consciente, uma identidade fragmentada, composta, não de uma identidade unitária, mas sim de múltiplas e, freqüentemente contraditórias, identidades.

A definição da identidade feminina sempre caminhou paralelamente a uma maciça discriminação das mulheres. Isto porque, a partir dela, foram negadas às mulheres todas as capacidades socialmente valorizadas e que sempre garantiram a primazia dos homens na vida pública. Assim, perspicácia intelectual, pensamento lógico, capacidade e interesses profissionais e políticos, por exemplo, traços geralmente associados aos homens, sempre foram vistos como antifemininos, afastando as mulheres das esferas de poder e influência social.

Embora importantes transformações no papel e na posição da mulher em nossa sociedade tenham ocorrido nos últimos anos, é preciso não superestimar a profundidade dessas mudanças, nem tampouco acreditar que as desigualdades entre homens e mulheres nos espaços público e privado tenham sido erradicadas.

A verdade é, de fato, bem mais complexa e muito trabalho necessita ser levado adiante. É nosso ponto de vista que uma melhor compreensão das mulheres da geração atual – que estão constituindo ou por constituir família e ingressando em faculdade ou profissão – pode contribuir para alterar mitos e estereótipos a respeito da mulher brasileira hoje.

Sem dúvida, como conseqüência do questionamento da limitação da mulher aos papéis de esposa, mãe e educadora, e com a entrada da mulher, especificamente a da classe média, no mercado de trabalho – uma vez que a mulher das classes populares quase sempre trabalhou para garantir a sua sobrevivência e a sobrevivência da família -, a identidade feminina teve que ser alterada, não sem grandes dificuldades, para incluir este novo papel: o de trabalhadora e pessoa com uma carreira profissional

Contudo, o que se pode observar é que as mulheres continuam a sofrer discriminação, ainda que velada, no espaço público: geralmente seus salários são mais baixos do que os dos homens, elas têm menor acesso do que eles às garantias trabalhistas, com freqüência não ocupam postos de chefia, e continuam sendo, de certa forma, segregadas em "guetos" ocupacionais, isto é, a maioria ainda está ligada a trabalhos educacionais, assistenciais e à prestação de serviços. Para muitos pesquisadores, inclusive, é o caráter complementar e secundário da atividade feminina na esfera produtiva – caráter este muitas vezes reforçado pelas próprias mulheres -, aliado, é claro, à inexistência de infra-estrutura de apoio, como creches, que, em grande parte, permite e legitima esta condição discriminatória no mercado de trabalho.

Acreditamos que, de forma diferente da discriminação aberta do passado, os mecanismos de exclusão hoje em dia são freqüentemente mais sutis. Estudos como os que foram realizados por Crosby (1982, 1984) e Tsui e Gutek (1984), por exemplo, mostram que, mesmo em países onde a discriminação contra a mulher, quando comprovada, pode ser severamente punida, como é o caso dos Estados Unidos, o salário médio das mulheres ainda é inferior ao salário de homens que exercem a mesma função e o número de mulheres ocupando posições de maior poder e prestígio nas empresas é também inferior ao número de homens, mesmo quando as mulheres aparentemente recebem mais promoções do que os homens, o que aponta, inclusive, para o fato de que o efeito real das promoções para as mulheres pode, em muitos casos, ser relativamente pequeno.

Parece assim que, ainda hoje, as mulheres continuam a enfrentar barreiras em sua busca por empregos melhores e mais gratificantes. Estas barreiras, em grande parte, são decorrentes de estereótipos tradicionais de gênero que, apesar de terem sofrido mudanças nos últimos anos, parecem ainda reforçar a idéia de que mulheres e homens têm características distintas e foram "talhados" para tipos diferentes de trabalho. Além disso, elas podem ser provenientes também de dificuldades estruturais por parte das próprias mulheres em contrabalançar carreira e maternidade, esta última um dos pila- 4 Novas opções, antigos dilemas lares da antiga identidade feminina4.

Isto é, é bem possível que as mulheres atuais, assim como suas mães e avós, ainda relutem em abandonar o controle e poder que sempre tiveram, mantendo e reforçando a idéia de que a mãe é insubstituível no cuidado de seus filhos porque só ela, que os gerou e pariu, sabe como desempenhar bem esta tarefa (a esse respeito, ver Rocha-Coutinho, 1994).

De qualquer forma, na prática, o que se pode observar é que o discurso social, apesar de ter incorporado este novo papel – o de profissional interessada e competente – à identidade feminina e de ter, até certo ponto, questionado a doutrina da maternidade como essência, mudou muito pouco a sua definição de mulher. Isto é, ele continuou e, nós acreditamos, continua a atribuir à mulher todos os encargos com a casa e a família, tributário ainda a características que, no fundo, a sociedade considera até agora como essencialmente femininas. Ou seja, na verdade, a identidade feminina não foi substancialmente alterada, mas sim ampliada para incluir este novo papel da mulher.

Como conseqüência da incorporação deste discurso, para muitas mulheres brasileiras a família permanece uma prioridade, mesmo que para isso elas tenham que sacrificar possíveis satisfações em termos de crescimento profissional. Desta forma, freqüentemente sem se dar conta, a mulher continua a contribuir para a preservação do esquema machista que prevaleceu na sociedade tradicional e contra o qual ela própria, ainda que amiúde apenas no nível do discurso, se rebelou. Assim, é possível que a mulher atual continue a ser levada a se dividir e multiplicar, carregando, como suas mães, uma imensa culpa por não estar se desempenhando como gostaria nas duas esferas, culpa esta difícil de ser resolvida.

 

Método

Com essas questões em mente, entrevistamos 25 mulheres universitárias do Rio de Janeiro, com idades variando entre 18 e 28 anos, com o objetivo de observar, entre outras coisas, como as contradições presentes no discurso social acerca do papel e da posição da mulher na sociedade vão se apresentar nas suas expectativas com relação à família (maridos e filhos), à casa, ao trabalho e a si mesmas.

Optamos por entrevistar universitárias vinculadas a diferentes cursos, por nós agrupados em: área bio-médica; área tecnológica; área de ciências humanas e sociais; área de letras e artes; e área de ciências jurídicas e econômicas. Com isso, estamos incluindo não apenas campos profissionais em que a mulher vem atuando regularmente, como é o caso das letras e artes e das ciências humanas e sociais, como também áreas tradicionalmente masculinas, em que ela tem tido pouca participação, como é o caso das engenharias.

As mulheres foram entrevistadas em separado, nos locais e horários de sua conveniência. As entrevistas tiveram uma estruturação invisível, ou seja, apesar de os tópicos abordados terem sido estruturados a priori, nenhum roteiro escrito foi utilizado e a ordem de emergência destes tópicos foi determinada pelo próprio fluxo da conversa. Todavia, sempre que a entrevistada não abordava espontaneamente algum destes tópicos, o entrevistador formulava perguntas a ele relacionadas.

Fizemos uso de entrevistas abertas por acreditarmos que, ao se assemelharem a conversas, permitem que os sujeitos se sintam mais à vontade e descontraídos, possibilitando que se tornem visíveis certos processos íntimos que, por não serem muitas vezes conscientes, são freqüentemente desconhecidos dos próprios entrevistados. Além disso, elas permitem que os entrevistadores, a qualquer momento, esclareçam suas dúvidas ou levem os entrevistados a ampliar e desenvolver mais suas respostas através de perguntas.

Todas as entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra, preservando-se, de forma o mais fiel possível, o que foi dito (como, por exemplo, erros gramaticais, expressões coloquiais, gírias e palavrões, pausas, hesitações e ênfases). Além disso, foram inseridos comentários, sempre que importantes para nossos objetivos, acerca do que ocorreu nas situações de entrevista, como risos, tosse, nervosismo na fala, gesticulação exagerada, pausas, ênfases, entre outros.

Depois de transcritas as entrevistas, procedeu- se à análise do discurso a partir das seguintes categorias: maternidade; sexualidade; família; relacionamentos; relação com o corpo e aparência física; carreira e profissão. Tais categorias resultaram, em grande parte, da própria fala dos entrevistados, isto é, apesar de termos em mente algumas questões de análise, as categorias interpretativas emergiram dos próprios textos resultantes das transcrições das entrevistas, o que foi se tornando mais claro à medida que ouvimos e lemos repetidas vezes a fala dos entrevistados.

O critério básico adotado para analisarmos os dados foi o de selecionar os segmentos, ao longo de toda a entrevista, em que os sujeitos faziam referência, direta ou indireta, a cada uma dessas categorias. A seleção dos trechos de discurso utilizados na análise baseou-se, sem dúvida, em aspectos estabelecidos a priori no projeto de pesquisa, isto é, nas questões mais relevantes para nosso estudo. Contudo, como afirmamos acima, o foco final da análise emergiu dos textos resultantes das entrevistas5.

Este tipo de análise nos pareceu mais apropriado, uma vez que vai ao encontro de nossa postura básica em análise do discurso que vê o texto sempre como ponto central de qualquer análise e, assim, qualquer interpretação é, em grande parte, limitada por ele. Deste modo, embora nossa interpretação seja, sem dúvida, influenciada e direcionada por nossas posições teóricas e ideológicas, procuramos ler e analisar os discursos de dentro, a partir dos significados codificados na própria fala, para só então nos expandirmos para fora dela. Foi, então, a partir dos discursos das entrevistadas que tentamos inferir comportamentos esperados e/ou desejados e os sistemas ideológicos subjacentes a estes comportamentos (ver, a esse respeito, Schiffrin, 1996; Rocha-Coutinho, 1998).

A utilização de histórias orais – quer sob a forma de histórias de vida, quer sob a forma de entrevistas abertas que se assemelham a um "bate-papo", como as que utilizamos –, bem como o uso da análise do discurso para interpretar os textos delas resultantes, tem se mostrado especialmente útil nos estudos sobre mulheres. Se quisermos melhor entender como as ideologias dominantes – refletidas e reforçadas pelos diferentes tipos de discurso a que as pessoas estão expostas – estruturam as instituições e moldam a vida cotidiana das pessoas, é necessário ouvir não apenas o que as pessoas dizem de suas vidas concretas, mas também como elas falam sobre suas vidas.

A história oral se apresenta como umas das melhores formas de fazer com que as pessoas falem sobre suas vidas porque permite que o pesquisador explore tanto fatos e atividades como também a experiência emocional de seus sujeitos a esse respeito. Ao falar, as pessoas articulam suas experiências e refletem sobre os significados destas experiências para si próprias e para os outros. Deste modo podemos obter um quadro mais amplo de como a entrevistada se percebe no mundo, de como e a quê ela atribui valor, e do significado particular por ela atribuído a suas ações e a seu lugar no mundo.

Este ponto tem se mostrado especialmente importante nos estudos de mulheres. Para elas, a habilidade de valorizar seu próprio pensamento e sua experiência é, muitas vezes, bloqueada por dúvidas e hesitações quando sua experiência pessoal não está de acordo com os mitos e valores que dizem respeito a como uma mulher "deve" se comportar e sentir. Uma análise mais atenta da linguagem e dos significados de palavras importantes por elas utilizadas para descrever suas experiências nos permite melhor compreender como as mulheres estão se adaptando à cultura na qual estão inseridas.

Tal fato parece estar ligado à situação mesma das mulheres na sociedade que, como assinalam Anderson, Armitage, Jack e Wittner (1990) é, de certo modo, especial: de um lado, com freqüência, elas têm, pelo menos no nível aparente, aceitado os estereótipos que as definem como dependentes, passivas, voltadas para os outros e gentis e, de outro, estes traços são valorizados negativamente na sociedade mais ampla na qual se inserem e é muito difícil, senão quase impossível, para elas viver de acordo com estes estereótipos. Assim, os conceitos que dão forma às experiências pessoais das mulheres freqüentemente diminuem e alienam as mulheres e são, desta forma, muitas vezes, ao mesmo tempo, valorizados e desvalorizados pelas mulheres em suas falas, em uma tentativa de rejeitar e, ao mesmo tempo, se enquadrar no que delas é esperado e aceito socialmente. O padrão que, em suas mentes, elas continuamente repelem e, ao mesmo tempo, almejam alcançar é a imagem idealizada de como as mulheres devem pensar e sentir, imagem esta continuamente reforçada pela cultura mais ampla e por suas próprias famílias.

Deste modo, não nos parece suficiente saber, através de uma análise do conteúdo, que temas dominam a entrevista. Como observa Nancy Cott (em Anderson, Armitage, Jack e Wittner, 1990):

The meaning which women ascribe to their own behavior is reducible neither to the behavior itself nor to the dominant ideology. It is derived from women's consciousness which is influenced by the ideas and values of men, but is nevertheless uniquely situated, reflective of women's concrete position within the patriarchal power structure6 (p. 103).

É preciso, assim, ir além do conteúdo de suas falas, explorando também a forma mesma de seus discursos e o significado das palavras empregadas por nossas entrevistadas se quisermos melhor dar conta desta "duplicidade" mental de nossos sujeitos mulheres, isto é, sua oscilação entre a aceitação e a não aceitação, entre a valorização e a desvalorização dos estereótipos que as definem e que são negativamente avaliados na sociedade mais ampla. Uma escuta mais cuidadosa das entrevistas que temos realizado com mulheres e uma atenção maior à forma por elas empregada em suas respostas tem nos mostrado que, em suas falas, elas julgam não apenas a maneira como estão agindo, pensando e sentindo a respeito de algo, como também se referem a como elas deveriam se comportar, pensar e agir de acordo com as expectativas da cultura mais ampla7.

 

Resultado

Análise dos discursos

De maneira geral, podemos afirmar que o discurso social que exalta a igualdade de direitos e deveres convive, na fala de nossas entrevistadas, com imensas disparidades em relação aos papéis sociais exercidos por homens e mulheres. Esta questão perpassou todos os campos de atuação abordados nas entrevistas: a maternidade, a vida profissional, o relacionamentos amorosos, o exercício da sexualidade e a própria relação com o corpo e a imagem de si.

Uma das formas encontradas pelas entrevistadas para conciliar o antigo discurso sobre o feminino com o discurso mais moderno e atual foi situar as questões em termos de "escolhas pessoais". Isto é, as pessoas não mais precisam se submeter a papéis pré-estabelecidos. Elas têm liberdade de escolher como querem viver suas vidas, fazendo o que for melhor para elas. Este ponto aparece na decisão de ter ou não filhos, casar ou não casar, investir ou não em uma carreira profissional, tomar ou não a iniciativa nos relacionamentos amorosos, entre outras. As pessoas, assim, tanto podem escolher repetir o discurso anterior, "antigo", como optar pelo "moderno". Mas a opção das entrevistadas foi, geralmente, pelo meio termo, uma tentativa de conciliação entre os dois. Ou seja, o discurso da "escolha" situa a mulher entre possibilidades que causam impasses que não são vistos como tal.

A maternidade foi definida pela maioria das entrevistadas como a essência da condição do ser mulher ("O que é ser mulher... primeiro é ser mãe" A3; "Mãe é mulher, é mulher mãe" K6), e a inscrição da maternidade no seu corpo serve de base para o discurso que a situa em uma posição de maior "capacidade", maior predisposição para cuidar dos filhos e de crianças, de maneira geral. Nesse contexto, mesmo quando a importância na criação dos filhos é atribuída a ambos os pais, a responsabilidade pelo cuidado deles é vista em uma relação assimétrica em que ao homem parece ser destinado apenas o papel coadjuvante de auxiliar nessa tarefa:

Apesar de eu achar que pai e mãe têm que estar junto sempre e tal, acho que por a criança ter nascido de dentro dela, ela tem uma ligação maior. O filho tem uma confiança maior na mãe, entendeu? do que no pai... É óbvio que uma mãe tem um papel maior perante o filho do que o pai, mesmo por causa daquela coisa simbólica do cordão umbilical, que se rompeu, mas não rompe nunca, mais ou menos assim (K2). Filho, a mãe sempre cuida mais, eu acho que, é instinto, né?... eu acho que a mulher mesmo ela, ela quer assumir aquilo, ela, ela se sente responsável... Ela que quer. Já é aquele instinto mãe, eu tenho que proteger, é meu, e o homem não tem isso, né? o homem até ajuda, né? o homem até ajuda a cuidar, e tal mas aquele negócio de ficar querendo, sempre do lado, eu acho que é mais mãe (P2).

A expectativa da dedicação ilimitada da mãe ao filho, pelo menos nos primeiros tempos de vida, traz à tona uma contradição, já observada no discurso das mulheres da geração de suas mães, entre a antiga visão da maternidade, que confinava a mulher no espaço privado do lar, e a nova ênfase que é dada, no discurso social e no discurso das próprias mulheres entrevistadas, à inserção da mulher na esfera pública, ao investimento em uma carreira profissional. Ou seja, apesar de uma suposta escolha aberta às mulheres, o imperativo da independência financeira e da realização profissional confronta-se, na verdade, com o antigo discurso que reafirma a importância da permanência da mulher no espaço doméstico e que identifica maternidade e maternação (cuidados com os filhos).

O resultado, como no caso de suas mães, é uma tentativa de conciliação dos diferentes campos de atuação da mulher, conciliação esta que, apesar de ser sentida como difícil, é sempre vista como possível e natural, conforme se pode observar no trecho de discurso a seguir:

Eu já sei que eu não vou ser boa em tudo porque não tem a menor condição. Quer dizer, boa em tudo dá prá ser, não dá prá ser excelente, porque se eu for excelente de um lado vai ser difícil ser excelente do outro. Mas, assim, eu quero compartilhar, viver todas essas coisas, mas de forma, assim, não privilegiar um lado mais do que o outro, mas viver todas harmoniosamente, entendeu? (entrevistada P1).

Vemos aí como o discurso atual da "escolha" parece colocar a mulher diante de impasses que não são por ela percebidos enquanto tal, levando-a a buscar, de forma individual, como afirmado por diversas de nossas entrevistadas, uma vivência "harmoniosa" de todas essas suas múltiplas atribuições. Como no caso de suas mães, as soluções para este impasse são encaradas por essas mulheres como individuais e não sociais:

Quando os filhos são pequenos, numa idade até... Numa idade que não dê prá você colocar numa creche... até pelo menos uns dois ou três anos ..., eu acho que a mulher tem que parar de trabalhar sim, e ficar em casa (S7). Reduzir um pouco o turno [de trabalho] nos anos iniciais... de crescimento dos filhos (S6). Aí eu acho que ela tem que organizar o tempo dela com o tempo dela com o tempo dos filhos ou enquanto ela tá trabalhando os filhos estão na creche, na escolinha. Quando ela chegar, tem que arrumar um esquema dela sozinha, ou dela com o marido, dependendo, se tiver – de repente é mãe solteira –, organizar um tempo para que ela consiga fazer a comida, ou o marido ajude, vá buscar as crianças, vá fazer um trabalhinho com elas, dê atenção a elas, carinho e tal. Ela tenta conciliar o tempo que tem com o dos filhos da melhor forma possível (K3). Ah, eu... olha... é muito difícil cuidar de filho trabalhando... Deve tentar conciliar as coisas. Tem tempo prá tudo. Tempo a gente faz. Esse negócio de não tenho tempo, tempo a gente faz, entendeu? (N1).

Numa tentativa de, em grande parte, minimizar os efeitos dessas múltiplas exigências e da sobrecarga por elas acarretada, várias entrevistadas apontaram como recurso o adiamento da maternidade para quando a vida profissional estiver mais estabilizada e, assim, a mulher não precisar estar batalhando nas duas frentes ao mesmo tempo, podendo se dedicar mais integralmente à sua função de mãe:

Eu acho que tudo tem o seu momento, a hora que você olhou e falou assim: "Eu cumpri a minha missão com a minha carreira". Quer dizer, "Eu fiz o que eu tinha que fazer, eu cheguei num ponto em que eu, agora, eu acho que eu preciso ser mãe (P2).

Aliada a esta realização profissional, surge a importância de uma estabilidade financeira para que a mulher possa fazer sua opção pela maternidade. O melhor momento para ser mãe é, portanto, aquele em que estas duas condições são, pelo menos em parte, satisfeitas:

Eu acho que a hora ideal... meu Deus do céu... eu acho que (ri)... na minha opinião, eu acho que a hora ideal é depois que a mulher tá formada, que ela, que ela... já está com uma estabilidade prá que ela possa dar mais atenção ao bebê, ao filho.... Estabilidade financeira, emocional, ela já está madura, ela já sabe que é isso que ela quer (S1). Ninguém ia conseguir, no auge da minha carreira de repente me convencer que aquilo era hora "porque quero ter um filho" e bater o pé. Ia ser um problema.... Até prá poder pensar em ter filhos, em tudo isso eu acho que você precisa ter segurança financeira (S2). Tem que ter estabilidade, né? prá engravidar, prá você ter um filho tem que ter uma estabilidade, mesmo que você não queira casar, não queira o marido, você quer ter o filho sozinha, você tem que ter essa condição de estabilidade financeira (P2)

E, aqui, cabe assinalar a recorrência da idéia de estabilidade financeira como précondição para a maternidade no discurso das entrevistadas. Para a maioria delas, a mulher só deveria ter filhos quando pudesse, sozinha ou com seu companheiro, dar a eles tudo aquilo de que necessitam ou que elas acreditam ser importante. Parte dessa ênfase na estabilidade parece estar relacionada a sonhos da classe média, como proporcionar aos filhos cursos de inglês, informática, natação, etc.. Contudo, a estabilidade financeira funciona, para a maioria das entrevistadas, como um instrumento facilitador da tão almejada conciliação entre família e trabalho. Um exemplo disso seria a viabilização de se ter em casa uma empregada e/ou uma babá.

Quanto à opção de ser mãe, a maior parte das entrevistadas situou a questão em termos de "escolha pessoal", uma vez que, segundo elas próprias, outras opções e necessidades, como investir numa carreira profissional, estão abertas atualmente para a mulher. É possível, portanto, pelo menos no plano do discurso, que a mulher opte por não ter filhos e, mais do que isso, é um direito dela, até porque a maternidade, nessa visão idealizada que ainda sobrevive, implica numa disponibilidade muito grande por parte da mulher.

É interessante observar, no entanto, que a maioria das entrevistadas afirmou ser a maternidade sua escolha pessoal, mencionando, inclusive, a impossibilidade de sua realização sem filhos ("Eu, pessoalmente, jamais me realizaria sem ter um filho [ri], S2). Parece, portanto, que o discurso social, e de suas próprias mães, acerca da importância da maternidade para a vida da mulher foi incorporado por nossas entrevistadas. Assim, não ter filhos, mesmo para aquelas que afirmaram não gostar muito de criança, é associado à frustração, à falta de uma realização plena como mulher. Já começa a aparecer também no discurso de algumas mulheres a possibilidade de uma "produção independente", ou seja, ter filhos sem necessariamente ter um marido ou companheiro.

O discurso social que privilegia a inserção da mulher no mercado de trabalho, um dos signos da "igualdade" entre os sexos, parece ocupar também posição central no discurso das entrevistadas, seja na unânime importância dada ao exercício profissional, seja no descrédito concedido à limitação da atuação da mulher à esfera privada.

Eu acho que a pessoa não cresce enfiado dentro de casa, lá naquela vidinha dela, só sai prá ir ali na rua, fazer compras e voltar (K3). Eu acho assim que deve ser horrível você ficar em casa, sabe? fazendo a mesma coisa, todo dia, e, ainda, mais que isso, não ser reconhecida e não ser valorizada (K5).

Aspectos como realização, felicidade, crescimento pessoal e satisfação são situados em estreita correlação com o trabalho "fora de casa", trabalho este que, no entanto, apresenta algumas peculiaridades, fruto de sua coexistência com outra "prioridade", a família. E é justamente nessa interseção entre as duas "prioridades" ("Eu não posso priorizar só meu trabalho ou só minha família, porque assim eu não consigo ir bem com nenhum deles", A1) que vão se configurar os impasses que a mulher enfrenta em seu percurso singular de atuação que, por si só, já a situam bem distante da pretensa "igualdade".

O trabalho fora de casa ganha, para nossas entrevistadas, o estatuto de pré-condição para qualquer possibilidade de realização, algo próximo a um imperativo, que coexiste com outro imperativo, o de que a mulher deve ser responsável pela gestão da vida doméstica, incluindo-se aí o cuidado com os filhos. Tal fato traz conseqüências, tanto para as condições de trabalho que vão ser por elas buscadas - uma forma que procura conciliar as diferentes "prioridades" (como, por exemplo, a escolha de Endocrinologia ou Oftalmologia pelas estudantes de medicina, áreas que não envolvem tantos plantões nos finais de semana, o que impossibilitaria o freqüente e regular investimento na família, como se pode ver nos discursos a seguir) -, quanto para a definição do momento em que se deve abrir mão do investimento em uma delas, o trabalho, para favorecer a outra, a família:

Vou fazer Endocrinologia, porque, como falei, a minha primeira meta... é a família. Eu quero me dedicar à família, marido, filhos. E a Endocrinologia é uma área bem clínica, sem muita emergência, sem muito plantão (A4). Porque Pediatria você não tem sábado, domingo, feriado, Natal, Ano Novo, nada disso. E eu pretendo ter a minha família. Então, eu quero ter o sábado e o domingo prá ficar em casa, sem ter que sair toda hora, sem ter que fazer plantão, emergência. Em Oftalmologia, não tem emergência (A3).

Fica, então, um pouco mais clara a razão pela qual é apontado por elas, em diferentes níveis, que o casamento interfere no exercício profissional: com ele vêm maiores responsabilidades com a casa, necessidade de maior disponibilidade de tempo para dedicação ao marido, e, depois, aos filhos. Como disse uma de nossas entrevistadas, "se você não tiver uma estrutura, você não vai conseguir exercer bem a sua profissão e dar conta bem da sua casa", a não ser que a mulher se case com um homem especial, que seja companheiro e compreensivo. Podemos, assim, verificar aqui que nossas entrevistadas parecem manter e reforçar – ainda que sem se dar conta – a tão falada "dupla jornada" de trabalho feminina.

Não dividindo ainda responsabilidades no espaço doméstico, o homem continua a ser visto como o grande provedor. Assim, do mesmo modo que ela vê a participação do homem em casa como uma "ajuda", ela vê também sua participação na economia doméstica como um auxílio, especialmente na atual conjuntura econômica do país, que inviabiliza que apenas um membro do casal trabalhe fora:

Eu acho que isso não foi tanto uma conquista feminina; não, é uma necessidade mesmo. Tudo hoje em dia está muito caro... Aqui é divisão de despesas mesmo, por causa daquele grande problema que eu já te falei: necessidade... Tem que dividir, senão não dá (S5).

Contudo, mesmo que não se sintam inteiramente responsáveis pelo sustento da casa e da família, as mulheres entrevistadas, diferentemente da maioria das mulheres das gerações anteriores, desejam exercer a profissão. A importância concedida ao campo profissional foi, quase sempre precedida, no discurso das entrevistadas, por uma desvalorização do trabalho doméstico, ou melhor, por uma desvalorização da dedicação exclusiva a essa atividade, vista por elas como "limitadora dos horizontes" femininos. Aspectos como realização, felicidade, crescimento pessoal e satisfação são vistos em estreita correlação com o trabalho fora de casa, e comparados com a pequenez e a limitação da "vidinha" de dona de casa.

Ainda a respeito do exercício profissional e da legitimação da atuação da mulher no mercado de trabalho, nossas entrevistadas vêem como difícil a aceitação, por parte de seus companheiros, de que seu salário ou cargo seja maior ou mais importante do que o deles:

Tem homens que se sentem assim ultrajados, "pô, já pensou, você é um executivo, a sua mulher começa a ganhar mais que você, pô, alguma coisa tem de errado comigo, não é porque é ela que começou a ganhar mais, mas poxa, eu também tenho que fazer por onde". Tipo assim, ele sente é... pequeno ao lado dela (K1).

A inexistência de problemas, neste caso, entre o casal parece condicionado, novamente, a características especiais do homem, como ser sensível, compreensivo, aberto ao diálogo:

Depende do marido que ela vai ter. Se ela tiver um marido compreensível, ela vai poder fazer a profissão que ela quiser, mesmo que ela queira, de repente tenha que, é, viajar quatro dias e largar a casa. Agora, se ela não tiver um marido compreensivo, vai ser, vai ser difícil práquelas profissões diferentes (K3).

O impasse com o qual as mulheres se defrontam parece estar relacionado a uma "infração à norma social". Ou seja, podemos ver aí, a permanência do antigo discurso social, que não considera "normal" que as mulheres ganhem mais ou se dêem melhor em suas carreiras do que seus companheiros.

No que diz respeito à relação com o corpo e a aparência física, parece que a preocupação com a beleza foi distorcida e fundamentada por uma via mais indireta, a da maior valorização da saúde e dos meios que a promovem:

O corpo é uma máquina. Então, a gente tem que saber cuidar dele. Então, não só pela estética, mas pelo que a gente desempenha, né? (A2). É construída, eu acho que se você for educado prá, assim, educado, fisicamente, você vai fazer exercícios, não prá ficar bonito, mas prá ter saúde (K1).

Ou seja, a valorização do corpo pelo viés do discurso social da importância da saúde surge em oposição ao mero "culto ao corpo", que evidencia somente seu caráter estético, definido no discurso das entrevistadas pela negativa. Isto porque a preocupação estética é por elas situada como um padrão em grande parte delimitado externamente, ou seja, se impõe à mulher como uma exigência do outro, reforçando a antiga imagem da mulher tomada como objeto.

A antiga preocupação com a beleza física, a sensualidade e a "boa aparência" parecem, no entanto, mesmo que de forma contraditória, ainda fazer parte da vida da mulher:

Eu acho que tem um pouquinho de importância sim, sabe? gosto de me sentir bonita, prá me sentir desejável...Eu vejo que às vezes a mulher quer cumprir aquele papel, aquele modelo de mulher perfeita em termos estéticos (K5). Porque quando a pessoa que você está se relacionando, que você se mostra totalmente, aquela pessoa não te acha bonita, ou então fala que você não é bonita, e não sei o quê, afeta um pouco o que você acha de si mesma..., afinal de contas é prá ela que você está se mostrando, na maioria das vezes (K5).

O estar dentro do padrão de beleza atual parece influir muito na vida das mulheres entrevistadas, tanto na hora de "arranjar" um namorado ("Acho que os homens dão mais importância à beleza das mulheres do que à beleza deles", A3), quanto na hora de conseguir um emprego ("Mulher tem que ser mais bonita, mais elegante. Mulher quando vai fazer um emprego, as pessoas julgam pela roupa, pela maquiagem, pelos acessórios", A5), embora, no caso dos relacionamentos amorosos, esse padrão tenha força menor do que no caso do desempenho de atividades profissionais. Podemos dizer, contudo, que a beleza e sua importância são enunciadas agora de um outro lugar, como algo que não serve à rigidez dos padrões estabelecidos socialmente, mas que carrega, sobretudo, aspectos que são por elas definidos como "aparência", ser desejável, bem cuidada, elegante, saudável.

Uma interpretação possível para a forte ligação estabelecida por nossas entrevistadas entre beleza e saúde - em que é enfatizada a importância de uma atividade física – é que esta funcionaria como uma tentativa de desconstrução do discurso que antagoniza beleza e inteligência. A mulher inteligente "malha".

Assim, para as entrevistadas, já não basta ser "bela" ("Ela tem que ser inteligente e tem que ser muito bonita" A5). Como no caso da oposição família-maternidade, e ratificando o título de nossa pesquisa ("De Cinderela a Mulher Maravilha"), as mulheres entrevistadas almejam ser "mulheres maravilhas", ou seja, bonitas e inteligentes, "saradas" e cultas, sensuais e trabalhadoras e boas donas de casa e mães.

Cabe acrescentar, ainda, que algumas diferenças são apontadas por nossas entrevistadas no que diz respeito ao estatuto conferido à beleza para homens e mulheres. Em oposição ao que elas consideram ideal na mulher – ser bela, inteligente, sarada, culta, sensual – no homem, o que elas parecem valorizar é o "saber conversar", ser inteligente, saber conquistar e envolver uma mulher. Contudo, para a maioria delas, os homens estão começando a ter maior preocupação com sua aparência física, com tornar-se mais "desejável" para as mulheres, talvez como decorrência do fato de as mulheres de hoje serem mais exigentes. Como afirmou uma de nossas entrevistadas,

Você vê que hoje em dia também o homem se preocupa muito mais com a barriga – "Ih, tô barrigudo" -, eu não lembro disso há alguns anos atrás; os homens nem ligavam de estarem barrigudos, de não estarem. Eu acho que eles hoje sentem assim que é muito mais fácil de perder a mulher, ou de não serem tão desejáveis mais.

Uma série de mudanças são apontadas por nossas entrevistadas no que concerne a sexualidade, família e relacionamentos. Contudo, elas se apresentam ainda de forma bastante contraditória, o que parece situá-las muito mais enquanto atitudes desejadas e esperadas do que efetivamente levadas a efeito. Ainda vigora a importância de se encontrar a pessoa ideal e o amor foi apontado de forma unânime como essencial na relação homem-mulher:

O amor é fundamental no sexo... Eu gostaria muito de ter meu primeiro relacionamento e continuar tendo meu relacionamento sexual com a mesma pessoa (A1). Sexo prá mim só tem se tiver amor, se eu gostar da pessoa. Tem pessoas que fazem sexo sem ter amor pelo fato do prazer. Prá mim não, prá mim o sexo só tem que ter se tiver amor (K3).

A idéia do "príncipe encantado" permanece, ainda que com nova roupagem, assumindo a forma do "homem ideal", e apresentando características distintas. Segundo nossas entrevistadas, o homem ideal é aquele que sabe respeitar a mulher, é fiel, carinhoso, companheiro e cúmplice. Assim, aspectos como companheirismo, cumplicidade e respeito, mais do que o sexo e situação econômica estável, foram citados como indispensáveis para o bom andamento de uma relação:

Não sei se a sociedade que botou assim, sei lá, eu só sei que a gente liga muito mais praquelas outras coisas, a palavra de carinho, o companheirismo (K5). Sem sombra de dúvida, em qualquer relação, [o mais importante] é respeito... Ah... respeito. Acho que a base de tudo assim... eu não abro mão: respeito. Porque eu acho que o respeito ele carrega vários outros... conceitos. Porque se tem respeito, tem carinho; se tem respeito, tem divisão de responsabilidades; se a pessoa respeita, tem diálogo... entendeu? (S8).
A confiança e o respeito... Eu acho que é a base, porque em tudo o que eu vejo o respeito tá... como uma base. Se você... não mantiver uma espécie de faixa de respeito, com certeza não vai dar certo... isso em tudo na vida, né? É o respeito, a base de todo relacionamento é o respeito. A confiança, quando não tem isso, além do amor, é evidente, quando você não tem um respeito pela pessoa... não vale aquilo, você tá vivendo uma mentira... É... exatamente é... tendo respeito, uma pessoa que tenha caráter, essas coisas... Vou acabar falando aqui do príncipe encantado! (S8).

Quanto ao ideal do amor romântico, parece que ele encontra agora sua via de expressão na escolha do parceiro, na importância atribuída à primeira relação sexual e na unânime correlação entre sexo e amor. Assim, segundo as entrevistadas, é preciso ter maturidade para encontrar a "pessoa ideal". Da mesma forma, ainda que já não tenha tanta importância o fato de uma mulher ser virgem ou não, é preciso que ela tenha maturidade, responsabilidade para saber escolher a "hora certa" para a primeira transa:

Eu acho que isso é um assunto sério, um assunto sério... Você precisa pensar muito... antes de fazer, se é aquela pessoa. Não digo que "Ah, prá fazer, então faz só quando você casar comigo". Não é isso, mas tem que ter um certo respeito, né? Um... amor por aquela pessoa, não é fazer porque é legal, mas fazer porque você ama (S1). Ah...de novo: quem quer seja, quem não não quer, não seja [virgem]. Acho assim, importante": "tá preparada?" "Tô"... "Você quer? Tem noção das conseqüências?" Eu acho mais uma vez é responsabilidade (S8).

O casamento oficial parece ter perdido a importância para nossas entrevistadas, pelo menos em um nível mais geral, mas o papel do ritual e do aspecto simbólico da união mereceu destaque ("Eu sou meio tradicional, é porque eu gosto do ritual, sabe?", K2). Assim, todas as entrevistadas casadas passaram pelo ritual do casamento na igreja com festa e a maioria das solteiras afirmou querer casar na igreja, de véu e grinalda, e com tudo mais a que tem direito, ressalvando que cada mulher, no entanto, deve fazer sua própria escolha a esse respeito.

Parece fazer parte do imaginário moderno uma não definição de um padrão. As escolhas se apresentam com uma face pessoal, como se fossem totalmente desvinculadas do contexto social. Assim, antigos padrões sociais são escolhidos pelas entrevistadas com a ressalva veemente de que esta é uma opção pessoal e de que cada pessoa deve escolher aquilo que melhor lhe convém.

Quando perguntadas se a mulher deve ou não usar o nome do marido, as entrevistadas mencionaram que "tanto faz". Contudo, quando a pergunta foi personalizada, a maioria das solteiras disse que pretende mudar de nome ("A minha felicidade no casamento é de botar a aliancinha no dedo, usar o nomezinho de seu companheiro", K3) e todas as casadas acrescentaram o sobrenome do marido. Também em relação a morar junto ou em casas separadas, as entrevistadas afirmaram querer morar na mesma casa, ainda que insistindo na ressalva de que "depende de cada um". Podemos ver, assim, que formas consideradas "modernas" aparecem no discurso geral, coexistindo com formas antigas que são situadas no discurso das opções pessoais.

Também no que diz respeito à divisão de tarefas entre o casal, podemos observar este entrecruzamento de discursos contraditórios, em que, do homem, acaba se esperando, quase sempre, na verdade, uma ajuda:

Muito difícil [prá mulher conciliar tudo], contando com a colaboração, eu acho que é aí que a gente vê se o cara tá com a gente ou se não tá, colaborando. É, é na ajuda do outro, do parceiro, prá que nem você tenha que se anular, nem ele. É aquele meio termo, se é prá sacrificar, porque só a minha vida é que vai ser sacrificada? (S8). A mulher ainda tem um papel muito difícil, porque além de ter que trabalhar fora, ela ainda tem que ser mãe... o homem ainda que faça alguma coisa, ele faz muito pouco em relação à casa e tudo, em relação a filho, aí é ah, tipo assim, eu ajudo a tomar conta, mas na hora do aperto, quem segura é a mulher (K4).

Uma série de mudanças, pelo menos no nível discursivo, são apontadas como pilares dos novos papéis de homens e mulheres nos espaços público e privado. Podemos observar, no entanto, que a relação homem-mulher vem atualizar não apenas as nuances dessas mudanças, como também vem reeditar antigas atribuições, adaptando-as às novas exigências:

Hoje a mulher está um pouco mais sobrecarregada do que o homem, porque ao mesmo tempo em que ela foi preparada para o mercado de trabalho, ela ainda continua com a responsabilidade de cuidar da casa, né? Então, hoje em dia, a mulher, ela trabalha fora e trabalha dentro também, né? Hoje pro homem, ele não divide tanto as tarefas, né? Não... Eu acho que... eu acho que eles dividem assim, é... os rumos do casal, vão, as diretrizes eles dividem, né? Eles conversam, eles chegam a um acordo, mas cuidar da casa, não. Cuidar da casa é muito... muito mulher mesmo. Tem colegas minhas que estão casando agora, dizem que agora mudou. Não mudou não, elas fazem tudo sozinhas (S5).

Assim, o papel social desempenhado pela mulher, que delimitava sua esfera de atuação ao espaço privado do lar, foi bastante condenado pelas entrevistadas. Da mesma forma, foi enfatizada a igualdade entre homens e mulheres na tomada de decisões e na divisão de tarefas. Entretanto, pelo menos no que tange à divisão de tarefas, no decorrer das falas, como vimos acima, é visível o tom de ajuda atribuído à participação do homem no espaço doméstico, em que, muitas vezes, inclusive, ele é visto como incapaz para exercer esse tipo de atividade. Fica, então, ainda, com a mulher a responsabilidade por este espaço. As justificativas apontadas pelas entrevistadas para esse encargo da mulher ainda são de caráter naturalizador. A "ajuda" permite que a mulher conquiste mais espaço na esfera pública sem deixar de conservar seu antigo poder na esfera doméstica. Podemos ver aqui que, apesar do discurso destas mulheres enfatizar a necessidade de uma reordenação da divisão de tarefas e tomada de decisões, ele demonstra também sua dificuldade em abandonar aspectos tão firmemente ligados aos papéis femininos tradicionais.

A posição das mulheres em relação às questões sexuais tem sido vista como em acelerada mudança, envolvendo aspectos como a queda do tabu da virgindade, a tomada de iniciativa por parte da mulher e a busca de diálogo na superação das dificuldades e na obtenção do prazer. O papel atribuído ao sexo, no entanto, parece deter uma particularidade nessa geração. Herdeiras da revolução dos costumes, das lutas feministas e da liberação sexual, o discurso dessas mulheres traz novamente a marca da "escolha", ao mesmo tempo em que convive com a permanência de atribuições mais ou menos rígidas ligadas ao masculino e ao feminino. Ou seja, também a esse respeito, a mudança parece se situar mais no plano das atitudes desejadas e esperadas do que efetivamente levadas a cabo.

Da mulher, já não se cobra mais a virgindade. Todas as entrevistadas assinalaram que a virgindade não é relevante para a maioria dos homens e mulheres, e que, às vezes, ocorre, inclusive, o oposto ("A cobrança de ser virgem não existe; até pelo contrário, acho que o homem quer se casar com uma mulher que já tenha experiência", S7). Contudo, diferentemente do que se espera do homem, não se aceita que ela seja muito "rodada", isto é, que ela tenha tido muitos parceiros ("Acho que é assim, eles não estão mais fazendo questão que seja virgem; desde que não seja muito rodada, tá legal", S8). Parece que a preocupação com a virgindade cede lugar a uma preocupação com a escolha, tanto do momento certo para iniciar e manter uma vida sexual quanto do parceiro ideal:

A virgindade não é aquela coisa de ter o hímen ou não ter o hímen que é importante, entendeu? É coisa de você ter consciência do que você tá fazendo, teu primeiro relacionamento, teu primeiro ato sexual, o que você sente por aquela pessoa (K5).

O imperativo do sexo com amor aparece com toda a sua força. Ou seja, o amor deve acompanhar inevitavelmente o sexo:

Se você tem amor, é mais fácil do sexo dar certo... O amor é que faz a relação acontecer. Embora existam relações em que não há amor. Mas aí eu não chamo de relação, é só... sei lá, caso... alguma outra coisa, mas... Ah, é o amor que mantém a relação, né? (S6). Mas depois que passa a novidade [no sexo], o que sobra é amor. E o amor é duradouro (S5).

Não que o sexo não possa existir para a mulher fora de uma relação amorosa, mas o sexo pelo sexo, muito comum e enfatizado no caso dos homens, ainda não parece amplamente aceito pelas mulheres. A mulher tem o direito e busca o prazer ("Acho que ela [a mulher] lida bem com o prazer. Busca... prazer... É essencial", S6), mas não o considera o principal elemento para um bom relacionamento. Não é o prazer e sim o amor, de preferência duradouro, o que ela almeja:

[O amor é] muito importante... eu, eu diria até que o amor é mais importante que tudo, porque se você tá sem dinheiro, mas você gosta muito da pessoa e você, você vai, você, tipo assim, você vai de uma certa maneira tentar contornar o problema, assim como sexo, como qualquer outra coisa. Se você não tiver amor, qualquer coisinha, por menor que seja, vai ser sufi prá, prá estopim a guerra... "acabou, não quero mais" (S1). [O sexo] também é importante... É, não tanto quanto o amor, porque se ... se você tem amor, fica mais fácil do sexo dar certo, o contrário é mais difícil (S6).

Assim, parece que nossas entrevistadas ainda oscilam entre o direito que lhes cabe de exercer a sua sexualidade e a necessidade de se manter dentro da imagem idealizada de mulher. As diferentes posições assumidas em relação à sexualidade de homens e mulheres foram, em grande parte, justificadas por nossas entrevistadas a partir do antigo discurso de naturalização de certas características femininas em oposição às masculinas.

A tomada de iniciativa, apesar de aceita, continua a ser vista por nossas entrevistadas como uma atitude marcadamente masculina:

Mudança a gente até quer ver, mulher quer começar a tomar iniciativa, mas ela ainda gosta que o homem tome a iniciativa (K4).
Acho que o homem ou a mulher, tanto faz. Na prática, não. Ainda há muito daquele ... até mesmo vergonha, timidez de ambas as partas. Mas acho que da mulher há aquele pensamento: "O que ele vai pensar se eu chegar perto dele?" A primeira coisa que vem à cabeça é isso. O que aquele cara vai achar de mim se eu chegar e começar a paquerar? Mas acho que hoje em dia a gente já vê mais. Acho que não importa muito isso não... de eu paquerar, ele paquerar (A2).

Quando realizada pela mulher, a tomada de iniciativa deve assumir certas roupagens, como a sutileza e a discrição, para não "assustar o homem", como afirmou uma de nossas entrevistadas:

Eu acho que pode sim, chegar, dar a iniciativa, como o homem dá também, entendeu? Só que eu acho que por esses, por essas coisas da vida, de que a mulher é sempre isso, é sempre aquilo outro, eu acho que ela tem que chegar de uma forma sutil até prá não assustar o homem, porque tem homem que fica assustado, entendeu? Então eu acho que ela tem que chegar mais sutil, sabe? Prá não assustar, senão o cara, de repente, sei lá, vai pensar mal juízo dela, sabe? E tal (K3).

Como vemos, parece que antigas questões vêm recebendo também aqui novas roupagens.

 

Conclusão

De Cinderela a Mulher Maravilha

Como podemos observar na análise das entrevistas apresentada acima, a mulher brasileira atual parece ainda oscilar muito entre os dois modelos femininos a que esteve exposta: a "boa" mãe, que sobrepunha a família a qualquer outra atividade e a mulher independente, que pode e deve fazer "escolhas", inclusive se quer ou não ter filhos, e que divide com o homem todas as responsabilidades e tarefas.

Em seu discurso aberto, parece, por vezes, que a ideologia modernizante acerca da mulher, seu papel e sua posição na sociedade, vai prevalecer sobre a antiga visão do feminino. Assim, elas afirmam, sem hesitação, em um primeiro momento, por exemplo, que a mãe e o pai são igualmente responsáveis pelo cuidado dos filhos, que a guarda das crianças em caso de separação deve ficar com quem melhor puder e souber cuidar delas, a mãe ou o pai, e até que a decisão a respeito de ter ou não filhos e quando devem tê-los compete a ambos.

Mas – e sempre aparece a adversativa, mas em seus discursos -, logo a seguir se contradizem, afirmando que não há ninguém melhor do que a própria mãe para cuidar dos filhos, que a mãe é quem se sente e quem efetivamente tem maior responsabilidade sobre eles, e que, como a gravidez ocorre no corpo da mulher e é ela, portanto, quem terá sua vida mais afetada pelo nascimento deles, cabe, na verdade, à mulher decidir se quer ou não ter filhos.

Embutida nestas afirmações está, em grande parte, a visão, prevalecente no discurso das entrevistadas, da maternidade como essência da condição feminina, autorizando a mulher a tomar o exercício da maternidade como "naturalmente" seu. Desta forma, a mãe é sempre quem tem maior capacidade e predisposição para cuidar dos filhos.

Esta inscrição da maternidade no corpo da mulher, com a permanência da idéia do "instinto materno", parece perpassar todas as esferas de atuação da mulher, inclusive suas escolhas profissionais, levando-a a se dividir e multiplicar para dar conta de todas as tarefas. Isto porque, para nossas entrevistadas, a mulher deve sempre trabalhar, investir na carreira, buscando uma estabilidade financeira que, em última análise acaba por se tornar uma pré-condição para a vinda dos filhos.

O discurso social que privilegia a inserção da mulher no mercado de trabalho, um dos pilares da "igualdade" entre os sexos, parece ocupar posição central no discurso das entrevistadas, seja na unânime importância dada ao exercício de uma profissão, seja na desvalorização da dedicação exclusiva ao trabalho doméstico, vista como algo que limita os horizontes femininos. Aspectos como realização, felicidade, crescimento pessoal e satisfação são associados ao trabalho "fora de casa", trabalho este que apresenta algumas peculiaridades, uma vez que deve coexistir com a outra prioridade mencionada pelas mulheres, sua família.

Tal fato traz conseqüências tanto em relação às condições de trabalho que são buscadas – numa forma que procura conciliar as diferentes "prioridades"-, quanto na definição do melhor momento para abrir mão de uma delas, o trabalho, para favorecer a outra, a família. Fica, então, um pouco mais clara a razão pela qual a maternidade é adiada. Como se pode observar, é justamente nesta interseção carreira-família que vão se configurar os grandes impasses enfrentados pela mulher em seu percurso singular de atuação que, por si só, já a situam distante da pretensa "igualdade".

Uma série de mudanças foram apontadas por nossas entrevistadas no que diz respeito à sexualidade, família e relacionamentos, e à relação da mulher com o corpo e a aparência física. Contudo, como assinalamos, estas mudanças parecem ainda se situar muito mais como discurso e de atitudes desejadas do que de atitudes efetivamente levadas a cabo.

Parece, portanto, que novas atitudes e comportamentos por parte das mulheres são vistos por elas, não só como possíveis, mas também como desejáveis. Contudo, sua aceitação ainda esbarra nos antigos discursos definidores das identidades feminina e masculina, resultando na coexistência de discursos contraditórios e, muitas vezes, conflitantes. Para nossas entrevistadas a mulher de hoje deve ser múltipla: profissional competente, culta, inteligente, boa dona de casa, mãe zelosa, sem deixar de cuidar da aparência e investir na saúde.

Finalmente, como assinalamos acima, o discurso da "escolha" pessoal – isto é, o de que as pessoas não necessitam mais se submeter a papéis pré-estabelecidos, mas, antes, devem ter liberdade para escolher como devem gerir suas vidas, optando pelo estilo de vida que melhor lhes convier – parece situar a mulher diante de impasses que não são percebidos como tal, levando a mulher a encontrar individualmente a melhor forma de conciliar suas responsabilidades, de organizar sua vida, de modo a cumprir seus inúmeros afazeres.

Essa equilibrista da vida pode e deve contar com a ajuda do companheiro. O homem, no entanto, a despeito do discurso igualitário, continua, no fundo, a ser visto, por elas próprias, nesta relação assimétrica, como mero colaborador. E, cabe acrescentar aqui que, segundo nossas entrevistadas, para que a mulher possa circular mais facilmente por todas as suas esferas de atuação, seu companheiro necessita ser um homem "especial", isto é, sensível, compreensivo e aberto ao diálogo. Como se pode ver, as coisas parecem ter mudado mais no plano do aparente do que do real.

Podemos concluir afirmando que a mulher de hoje apenas multiplicou funções, mas ainda não dividiu responsabilidades. A sociedade atual exige, e a própria mulher acaba exigindo de si mesma, que ela seja múltipla. Assim, a Cinderela, que povoou a imaginação de tantas mulheres de gerações anteriores, acabou por se transformar na Mulher Maravilha, que a geração atual aprendeu a admirar e cultuar na infância.

 

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Endereço para correspondência
R. Engenheiro Cortes Sigaud, 187 apto. 401 - Leblon
CEP 22450-150 Rio de Janeiro, RJ
email: mlrochac@imagelink.com.br

Enviado em Novembro/2000
Aceite final Março/2005

 

I Trabalho apresentado no Simpósio Relações Sociais de Gênero: Possibilidades e Perspectivas de Análise Psicossocial, na XXX Reunião Anual de Psicologia das Sociedade Brasileira de Psicologia, Brasília, DF, 2000.
1 A noção de que identidade tem a ver com pessoas que se parecem, sentem a mesma coisa, se chamam o mesmo não tem sentido. Como um processo, como uma narrativa, como um discurso. Ela sempre é contada da posição do Outro.
2 ... é sempre em parte uma narrativa, sempre é em parte uma espécie de representação. Ela sempre está na representação… É aquilo que é narrado no eu de alguém
3 A emergência de novos sujeitos, novos gêneros, novas etnicidades, novas regiões, novas comunidades, até então excluídas das principais formas de representação cultural, incapazes de localizar-se, a não ser como descentrados ou subalternos, foi adquirida por meio da luta, algumas vezes de maneiras muito marginalizadas, dos meios de falar por si mesmas, pela primeira vez. E os discursos do poder em nossa sociedade, os discursos dos regimes dominantes, certamente foram ameaçados por esse poder cultural de-centrado e local.
4 Em trabalho que objetivou comparar as características estereotípicas associadas à mulher e ao homem brasileiros no passado, no presente e no futuro, por exemplo, Ferreira (2000) observou "uma tendência sistemática de mudanças na grande maioria das características atribuídas ao estereótipo da mulher, no sentido das características tradicionalmente masculinas estarem sendo incorporadas ao estereótipo feminino, e das características tradicionalmente femininas estarem diminuindo a sua importância na configuração desse estereótipo" (p. 136). Tal fato, contudo, não quer dizer que as mudanças percebidas pelos sujeitos entrevistados tenham sido de todo incorporadas ao discurso social. Diferentes visões podem conviver, especialmente em períodos de mudanças, como assinalamos anteriormente, em um mesmo momento nos diferentes discursos sociais, especialmente em sociedades complexas como as sociedades ocidentais modernas.
5 Para uma discussão mais aprofundada a respeito da construção de entrevistas e da análise do discurso delas resultante, ver Rocha-Coutinho, 1998.
6 O significado que as mulheres atribuem a seu próprio comportamento não redutível ao comportamento em si ou à ideologia dominante é derivado da consciência das mulheres que é influenciada pelas idéias e valores dos homens, mas está, ainda assim, situada de maneira única na concreta posição reflexiva das mulheres na estrutura patriarcal.
7 Mulheres entrevistadas acerca de sua separação, em que, de uma forma ou de outra, tenham "expulsado" seus maridos de casa (pedindo para ele sair ou, até mesmo, pondo os pertences deles do lado de fora da casa e trocando a fechadura), por exemplo, podem começar sua fala afirmando "Meu marido me abandonou". Esta contradição aparente em seus discursos e sua importância para uma melhor compreensão das mulheres e da "duplicidade" de suas mentes a que nos referimos, só pode, a nosso ver, ser mais bem trabalhada por uma análise que leve em conta não somente o conteúdo, mas também a forma e a função do discurso. Como se pode observar neste exemplo, não apenas "Meu marido me abandonou" é diferente de "Pus meu marido para fora de casa" como também de "Fui abandonada pelo meu marido". No 2º caso, a mulher é agente da ação, enquanto que no 1º e no 3º o marido é o agente e ela o paciente da ação, diferindo, estas duas, na ênfase dada ao agente (na 1º) e ao paciente (na 3º). Uma das funções do uso da 1ª frase pode ser situar-se na posição de vítima, esperada das e reforçada nas e pelas próprias mulheres.