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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.12 no.1 Ribeirão Preto jun. 2004

 

 

A Supervisão didática no contexto da formação psicoterapêutica

 

Supervision in the context of psychotherapy knowledge

 

 

Eliana Rigotto LazzariniI; Terezinha de Camargo VianaI; José Vanderlei dos Santos Rolim; Cássio Marcelo Batista Veludo; Ludmila Diniz

Universidade de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Destacamos neste artigo aspectos que consideramos fundamentais para o processo de ensino/aprendizagem em psicologia clínica, baseados em nossa experiência como supervisores para alunos de graduação em Psicologia na Universidade de Brasília. Enfocamos particularmente a formação do papel de terapeuta enfatizando nisto a relevância da supervisão. Destacamos o Psicodrama como método de trabalho e a utilização do role playing como técnica. Nosso objetivo mais amplo é contribuir para a reflexão sobre as características do ensino clínico, bem como sobre a qualidade da formação do psicólogo.

Palavras-chave: Psicodrama, supervisão, role playing, clima terapêutico.


ABSTRACT

The authors emphasize, in the present article, some fundamental aspects of the teaching process in clinical psychology based on their own experience as supervisors of psychology undergraduate students at the University of Brasilia. The authors focused on the learning of a therapist's role emphasizing the relevance of supervision of the student by other therapist. The authors also emphasize Psychodrama as a methodology for the training of clinical psychologists, as well as role playing as a teaching technique. Te authors major aim was to contribute to the discussion of the necessary features of the training of clinical psychologists learning and of the psychologist's qualification.

Keywords: Psychodrama, supervision, role playing, therapeutic environment.


 

Considerações iniciais

Este artigo se propõe a mostrar uma experiência de supervisão de estágio em grupo, com a utilização do Psicodrama como método de trabalho, no Centro de Atendimento e Estudos Psicológicos – CAEP - a Clínica/Escola do Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília. Este estudo compreende o período de 2000 a 2003, durante seis semestres consecutivos.

Pensamos, inicialmente, que alguns esclarecimentos sobre o funcionamento do CAEP se fazem pertinente. Trata-se de uma clínica-escola pública, que tem a função de proporcionar estágios para a formação clínica dos alunos e de prestar serviços à comunidade, oferecendo, também, campo para a pesquisa científica. De acordo com o Regulamento Interno (2001) específico "o CAEP, unidade especial de ensino teóricoprático, pesquisa e extensão do Instituto de Psicologia da UnB, tem por finalidade a prestação de serviços psicológicos nas áreas de clínica, educação e trabalho1" (p. 7), compreendendo atividades de atendimento clínico, ensino, pesquisa e extensão em psicologia, abrangendo as prestações de serviços no local ou fora dele, para as comunidades interna e externa.

O CAEP destaca-se como unidade especialmente configurada para a formação do aluno de graduação em Psicologia. Utiliza equipamentos e técnicas diferenciadas, sendo sua meta principal a capacitação do aluno (estagiário e de disciplinas), a produção de conhecimento especializado (pesquisas e atividades de extensão) e sua divulgação, com o intuito básico de promover a necessária e indispensável interação com a comunidade.

O Programa de Estágio Supervisionado é um programa que visa manter um espaço teórico- prático de estudo permanente oferecendo ao aluno campo de aprendizagem e atuação e, aos docentes, pesquisa e prática. De acordo com o Manual de orientação dos estágios realizados no CAEP (2001):

O Estágio Supervisionado Psicólogo insere-se na estrutura curricular do curso de Psicologia da Universidade de Brasília por meio de três disciplinas denominadas Estágio Supervisionado 1, 2 e 3, exigindo do aluno uma dedicação a 510 horas de prática profissional específica, sob supervisão sistemática dos professores/supervisores dos quatro departamentos do Instituto de Psicologia. O requisito geral para esse estágio é que o aluno tenha cumprido pelo menos 2/3 dos créditos do currículo dessa habilitação e que atenda aos critérios estabelecidos pelo professor supervisor, em função da especificidade das atividades previstas no estágio (p. 6).

A supervisão ocorre através do acompanhamento, pelo supervisor, do trabalho de atendimento clínico efetuado pelos alunos da graduação aos pacientes encaminhados pelo CAEP. A clientela para supervisão se caracteriza por alunos da graduação em fase de estágio que estejam cursando as disciplinas Estágio Supervisionado Psicólogo 1, 2 e 3. Participam também do programa alunos recém formados que fazem parte do Programa de Extensão de Estágio para alunos recém formados pela Universidade de Brasília.

O programa de Estágio Supervisionado em Psicodrama é uma das modalidades de estágio oferecida aos alunos, dentro das disciplinas citadas. O estágio consiste no atendimento psicoterápico com a utilização do Psicodrama, como método de trabalho, e participação nos grupos de supervisão. A modalidade de atendimento clínico (grupo ou individual) é efetuada pelos alunos a pacientes adolescentes e adultos.

O programa de estágio é semestral. O grupo de supervisão deve conter, preferencialmente, de oito a dez alunos. As sessões de supervisão se realizam semanalmente por duas horas o que possibilita que cada supervisionando possa trabalhar seu material clínico pelo menos a cada duas sessões.

Os alunos atuam, em seus atendimentos, geralmente, em duplas consagrando os papéis de Diretor em Psicodrama e de Ego Auxiliar. Além disto, para maior aproveitamento do espaço disponível para a prática de atendimento, um grupo de alunos participa também da sessão psicoterápica através da observação na sala de espelhos.

O contrato de trabalho estabelecido entre os participantes do grupo de supervisão, supervisores e alunos, é feito a cada semestre e prevê aspectos relativos à participação dos alunos no estágio, às normas de sigilo em relação aos pacientes e ao próprio grupo e à orientação sobre a elaboração do relatório de atendimento.

Durante as sessões de supervisão são utilizadas vivências, jogos e técnicas psicodramáticas com o objetivo de ampliar o "como fazer" próprio do papel que está em treinamento. O objetivo é que tais atividades e vivências desenvolvidas durante o processo, bem como a interação do grupo através dos comentários e do compartilhamento, possam provocar no supervisionando uma ampliação do conhecimento de si mesmo, o que vai favorecer uma melhor compreensão de sua identidade profissional.

Além do trabalho prático de supervisão, os grupos ainda têm a oportunidade de participar de debates teóricos. Para tanto, são marcadas sessões de supervisão, no decorrer do semestre, com esta finalidade. Considera-se que a tarefa teórica é tão essencial quanto a tarefa prática de supervisão para o processo de aprendizagem do papel de terapeuta.

Acreditamos que todos estes elementos relacionados acima possam favorecer a formação do papel profissional de psicólogo psicoterapeuta "o que possibilita tornar esse aprendizado uma experiência tão rica quanto complexa" (Aguirre e cols., 2000, p. 50).

 

A supervisão didática

A supervisão é um procedimento pedagógico, por isto o complemento ‘didática' que normalmente segue o termo, que figura como etapa acadêmica de um curso. É também, segundo Calvente (2002), uma aprendizagem especial porque tem como finalidade articular teoria e prática, constituindo-se uma matriz de aprendizagem. De acordo com o autor, a supervisão é um espaço de revisão conceitual, onde se permite aprofundar ou ampliar os conceitos à luz do material clínico que se está trabalhando; além disto é espaço de articulação e instrumentação técnica e também de treinamento do papel de terapeuta. Em suma é lugar de articulação da revisão conceitual, da técnica e do papel do terapeuta.

A supervisão pode ter como cenário de desenvolvimento a Instituição, com seus cursos e currículos organizados de forma processual e sistemática e visa fornecer ao estudante, em vias de finalização do percurso acadêmico, a formação necessária para o bom desempenho do futuro papel profissional.

Também na formação do psicólogo clínico, a supervisão tem como finalidade dar ao psicoterapeuta iniciante, de forma sistemática, o contexto relacional apropriado à reflexão sobre a situação psicoterápica. Além disto, a supervisão contextualiza o desenvolvimento ou a experimentação de um estilo próprio no desempenho do papel profissional, que é a marca do profissional em atuação.

Do ponto de vista da Instituição a supervisão em psicologia clínica se justifica pela conscientização para uma melhor interação entre teoria e prática na universidade e pela necessidade de abertura de um campo de formação, de pesquisa e de prática para os alunos de graduação. Justifica-se ainda pela contribuição, do ponto de vista institucional, para o aperfeiçoamento dos alunos de graduação e por uma atenção à demanda crescente da comunidade para os serviços de psicologia clínica.

No que diz respeito aos alunos, a supervisão se justifica nas situações em que o supervisionando identifica uma dificuldade própria em manejar uma determinada situação na relação com seu paciente e também quando deseja ver como um caso ou situação específica é trabalhado por outro profissional.

A este respeito, uma das condições mais importantes na aprendizagem do papel de terapeuta clínico passa necessariamente pela capacidade crescente do terapeuta iniciante de estabelecer, o que consideramos chamar de clima terapêutico em relação ao seu paciente. Entendemos clima terapêutico como a capacidade do terapeuta de poder acolher e aceitar seu paciente naquelas questões que são rechaçadas por ele mesmo ou pelo social. O clima terapêutico é um clima afetivo que favorece o amadurecimento psicológico permitindo estabelecer uma relação de respeito entre o terapeuta e seu paciente.

De acordo com Silva Dias (1994), "o estabelecimento do clima terapêutico é de exclusiva responsabilidade do terapeuta e está ligado ao seu grau de amadurecimento como profissional e como pessoa" (p.57). Desde este ponto de vista podemos afirmar que três aspectos são fundamentais para que o terapeuta, neste nosso caso específico o terapeuta iniciante, possa conseguir estabelecer o clima terapêutico, base do processo psicoterápico. São eles: psicoterapia própria, conhecimento teórico e supervisão. Acreditamos ser a integração deste tripé condição necessária para o entendimento, por parte do terapeuta iniciante, da dinâmica do paciente possibilitando assim uma separação entre seus próprios conteúdos emocionais e os conteúdos de seu paciente.

De acordo com Aguirre e cols. (2000) para poder empatizar com o paciente é necessário poder se colocar no lugar deste sem, porém, confundir-se com ele. Exemplos, retirados de relatórios finais dos alunos, podem ilustrar este fato. A supervisionanda/terapeuta PL com relação aos seus primeiros atendimentos com uma paciente diz:

Nas primeiras sessões, sentimos muita dificuldade em entrar verdadeiramente em contato com a paciente. Ela sempre trouxe o material a ser trabalhado de forma distante, teórica. Tínhamos a sensação de que havia decorado um script. Trazia os temas já prontos e a seqüência da fala. Não ouvia ou dava importância às nossas colocações, só queria seguir seu script.

A mesma supervisionanda falando sobre sua estratégia para lidar com o caso:

Eu, seguindo meu script controlei os temas trazidos pela paciente e direcionei os questionamentos em função do que acreditava ser o tema da sessão. Interrompi a sessão quando o tempo acabou. Ela ficou visivelmente irritada. Não falou nada ao final da sessão.

PL, julgando a sua atuação acima relatada, afirma:

Errei, confesso. Do ponto de vista da direção da sessão fiz errado. Escolhi pela paciente o tema a ser tratado e fui intransigente e até infantil. Mas, a sessão surtiu efeito em mim, de tal forma para que eu possa refletir.

Em outro exemplo ilustrativo a supervisionanda/terapeuta LS fala a respeito do encerramento abrupto do processo psicoterápico de um paciente:

Porém, além da defesa de não comparecer a algumas sessões, pude observar que essas faltas aconteceram, a partir do dia em que não fiz um acolhimento, escutando melhor as suas justificativas. Assim, tanto por suas defesas, quanto por falta de acolhimento, o processo terapêutico acabou.

A supervisionanda/terapeuta AF relata a necessidade da criação do clima terapêutico:

Nesse primeiro momento do processo terapêutico, buscamos criar esse clima (o clima terapêutico) principalmente por meio de jogos dramáticos (...). Ao longo do atendimento tenho utilizado o jogo como um instrumento de trabalho e o percebo como uma possibilidade realmente rica e promotora de oportunidades de coleta de dados, criação e fortalecimento de vínculo e introdução da cliente às técnicas do Psicodrama.

Estes exemplos são ilustrativos no sentido de mostrar como o estabelecimento do clima terapêutico, entre terapeuta e paciente, é relevante e como a supervisão pode auxiliar neste quesito.

Outra das tarefas primordiais da supervisão é a de procurar estabelecer um espaço de confiança através do contrato de sigilo entre os elementos do grupo de supervisão, tanto em relação ao material dos pacientes quanto ao que acontece dentro do grupo, no sentido deste ser um bom continente para as ansiedades que emergem no trabalho. O aluno pode transportar para a situação de atendimento do seu paciente um enquadramento similar ao vivenciado na supervisão, que garanta ao paciente as condições de sigilo, respeito e continência para com as dificuldades que este apresenta. Alguns exemplos podem ilustrar isso. A supervisionanda/terapeuta PL falando sobre a supervisão diz:

O papel das sessões de supervisão foi essencial na medida em que embasa o estagiário tanto teoricamente quanto no aspecto prático. Nas supervisões pude ver como eu estava implicada nos atendimentos. Meus sentimentos, medos, minhas semelhanças e diferenças com os pacientes e a interferência dessas semelhanças e diferenças na condução do processo. Pude compartilhar, nas sessões de supervisão muitas destas coisas, pois me senti em espaço de acolhimento e escuta, além de aprendizagem. Aprendi muito com a experiência e com as dúvidas de outros colegas e pude tirar o máximo proveito para a minha prática. Percebi a evolução dos atendimentos e a minha evolução como terapeuta. Aprendi, acima de tudo, que é possível ser (bom) terapeuta, apesar dos erros e medos enfrentados.

Sobre este mesmo aspecto da supervisão a supervisionanda /terapeuta LS fala:

Além disso, ao discutirmos os casos na supervisão, as pessoas expressavam o que as havia mobilizado, e então, a supervisão ocorria não apenas para o entendimento do processo terapêutico, mas de tudo que poderia estar mobilizando a cena e o próprio diretor/ terapeuta para que isso não interferisse no processo terapêutico do paciente.

O supervisionando/terapeuta JM também afirma que:

O trabalho em grupo de supervisão foi valioso pelo contexto de troca de impressões e experiências. Assim como os clientes são diferentes, os terapeutas também o são. Pude na supervisão, perceber dinâmicas diferentes de atuar e, pude também, aprender com isto.

 

Aspectos da supervisão didática

Um dos aspectos da supervisão consiste em compreender a relação terapeuta-paciente pela relação supervisor-supervisionando. Cabe ao supervisor o papel de levantar, junto com o supervisionando, o momento de atuação em que este se encontra com a finalidade de decidir pela intervenção que melhor se adapte a situação. O espaço de supervisão não pode ser confundido com o espaço terapêutico, por ser um espaço didático em sua essência.

Um segundo aspecto é que, didaticamente, a supervisão deve aprimorar a aplicação da técnica, da teoria, do método. As intervenções do supervisor favorecem a elaboração das situações vivenciadas no contexto da relação terapeuta- paciente cliente e são discutidas sob a luz da teoria e da técnica. No depoimento do supervisionando/terapeuta CM isto se expressa da seguinte maneira:

impressionante o quanto a experiência clínica habitua a visão do profissional para a percepção de detalhes nas sessões que passam despercebidos para terapeutas inexperientes como é o meu caso. Por vezes a simples entonação de voz, a repetição de palavras ou a omissão das mesmas indicavam caminhos que eu não pude perceber, mas que em supervisão, após o encadeamento da teoria, feito pelas supervisoras, tornavam- se claros aos meus olhos.

E ainda, o mesmo supervisionando acrescenta:

O que tem acontecido é que a sessão transcorre de maneira intuitiva e somente depois, em supervisão, é que as significações teóricas são construídas e os acertos, os erros e as propostas de encaminhamento são pontuados.

A teoria, enquanto conjunto de pressupostos ou paradigmas, fundamenta a compreensão da dinâmica do cliente e o trabalho do terapeuta. A supervisão neste sentido fala do "como entender" o objeto de trabalho e também do "porquê" da utilização das técnicas.

Um terceiro aspecto que diz respeito à técnica é que, na prática, a supervisão pode ser feita de duas maneiras: esporádica quando corresponde a um episódio conclusivo em si mesmo e processual quando há continuidade através de diversos seguimentos. É individual quando o supervisor trabalha com apenas um supervisionando ou grupal quando trabalha com vários. Os fatores que definem a escolha da atuação são o referencial teórico, o instrumental técnico, a experiência do supervisor e a demanda dos supervisionandos.

 

Teoria psicodramática e supervisão didática

Concordamos com Calvente (2002) quando diz que o psicodrama é um dos instrumentos mais adequados para integrar, na supervisão, o aspecto vivencial. De fato, a abordagem psicodramática, considerada aqui como método de trabalho, é um instrumento apropriado nas intervenções didático-técnicas da supervisão uma vez que possibilita a recriação das cenas e situações vivenciadas pelo terapeuta- aluno no contexto psicoterápico. O psicodrama se torna assim elemento poderoso, pois permite a elucidação da dinâmica do paciente para o supervisionando e para o grupo de supervisão, possibilitando melhor elaboração e decisão quanto aos procedimentos a serem utilizados.

Moreno (1975), criador do psicodrama, descreve como recursos inatos do homem os fatores espontaneidade e criatividade. Esses fatores, durante a vida do indivíduo, vão perdendo sua capacidade de atuação em função de condições adversas ambientais e sociais repassadas ao homem pelo seu átomo social (grupo familiar e social de influência) e pelas conservas culturais (normas e valores de um grupo ou sociedade).

Moreno se refere à espontaneidade como a capacidade do homem agir de forma adequada e criativa. Deve-se perceber nessa adequação um sentimento reforçador da liberdade inata, onde o homem vai buscar a espontaneidade adequada em si mesmo, permitindo a manifestação de seu potencial criativo, possibilitando respostas novas a situações novas ou antigas e tornando-se agente de seu próprio destino.

Moreno é o idealizador da sociometria e mais especificamente do conceito de papel ou teoria dos papéis, um conceito indispensável para o entendimento da teoria psicodramática. A teoria dos papéis diz, sobretudo, do conjunto de posições imaginárias assumidas pelo indivíduo desde seus primórdios, na relação com os demais.

O conceito de papel é fundamental na prática de supervisão. Segundo Moreno (1975) papel é considerado uma unidade cultural de conduta. De acordo com ele:

Cada papel aparece como uma fusão de elementos individuais e coletivos; resulta de duas classes de fatores: seus denominadores coletivos e suas diferenciações individuais. Pode ser útil distinguir a tomada ou aceitação do papel – quer dizer, o fato de aceitar um papel já feito e inteiramente constituído que não permite ao sujeito a menor fantasia com o texto estabelecido - o desempenho do papel – que tolera certo grau de liberdade - e a criação do papel - que deixa uma ampla margem à iniciativa do ator, como é o caso do ator espontâneo. Os aspectos captáveis daquilo que se chama "eu" aparecem nos papéis em que este atua. Os papéis e as relações entre os diversos papéis constituem a melhor revelação de uma determinada forma cultural..... O papel aparece antes de que surja o eu. Não são os papéis que emergem do eu, senão é o eu que pode emergir dos papéis (p.69).

Para Moreno (1957) o recém nascido muito antes de entrar no mundo da linguagem já desempenha seus primeiros papéis na forma de papéis psicossomáticos, nos quais as funções fisiológicas dão a característica do desempenho deste papel e portanto passam a ser os elementos principais. Falamos aqui "daquele que come", "daquele que dorme", "daquele que respira" e assim por diante. Quando os papéis colocam em cena a função mãe e conseqüentemente a de filho (a), a função de professor e sua contrapartida a de aluno, falamos de papéis sociais que são correspondentes às funções sociais assumidas pelo indivíduo na sua relação com o ambiente. Quando apresentam uma mãe específica, um filho específico ou um professor específico, chamamos a este papel de papel psicodramático, isto é, que surgem da atividade criadora do indivíduo. É através do papel psicodramático, segundo Moreno, que o indivíduo pode vir a treinar, modificar ou ampliar seus papéis sociais. É o que podemos chamar de um processo de aprendizagem.

É disto que trata a supervisão. Partindo destes referenciais teóricos, a supervisão com abordagem psicodramática visa, através da reconquista da espontaneidade e da criatividade e ainda do treino de papéis, o autoconhecimento necessário ao supervisionando para o embasamento do processo de preparação do seu papel social profissional. Em outras palavras, da mesma forma, ao se utilizar destes conceitos, a supervisão também confere ao supervisionando uma função de aprendizagem, uma vez que, ao levantar possibilidades, enseja a pesquisa das ações terapêuticas. O modelo de supervisão aqui adotado visa estabelecer o aprendizado, abrindo espaço para que o supervisionando possa desenvolver melhor seu papel.

Ainda sobre o conceito de papel, Bustos (2001) afirma que cada papel envolve um contrapapel que se denomina papel complementar, isto é, ao papel de mãe corresponde o complementar filho, ao de professor, o de aluno, e assim por diante. Para que haja complementaridade, segundo o autor, deve-se ter consciência do vínculo que une, mas que também diferencia, separa cada papel. Na supervisão falamos das categorias de papel de supervisor e supervisionando. O que os une são de fato vínculos complementares, mas assimétricos caracterizados pela polaridade na qual o grau de responsabilidade, para um e para outro, não é sempre o mesmo.

 

Role-playing – A construção do papel

Apoiada nas idéias de Moreno, a metodologia da supervisão com técnicas psicodramáticas enseja considerar a supervisão como parte integrante da construção do papel de terapeuta.

Moreno (1954) coloca que na construção de um papel, em primeiro lugar temos a assunção ou tomada de papel (role taking), depois o desempenho do papel (role playing), para chegar finalmente, à criação do papel (role creating). Calvente (2002), no que se refere à construção do papel de terapeuta, diz que:

Quando o estudante se sente identificado com seu papel, pode representá-lo com espontaneidade e vivenciá-lo de modo integrado com o restante de sua pessoa, o que lhe permite desempenhá-lo com estilo próprio e com uma quantidade cada vez menor de ansiedade. Seguindo a idéia moreniana, quanto menor a ansiedade, maior a espontaneidade e a criatividade e vice-versa (p.113).

Na supervisão com técnicas psicodramáticas trabalhamos especialmente com o desempenho de papéis ou role playing e com a utilização do próprio grupo em supervisão como matriz do aprendizado. Diz Naffah Neto:

O método do role playing: "interpretação de papéis" – transformados posteriormente por uma certa prática ideológica em "treinamento de papéis" – busca, como método, uma pesquisa, explicitação e transformação dos papéis, tomando-os em sua dimensão dinâmica ou interativa. A nosso ver ele representa uma derivação do teatro espontâneo da mesma forma que o sociodrama e o psicodrama foram derivações do teatro terapêutico. Mas na verdade, é menos específico que os métodos sociátricos: visa à educação e ao desenvolvimento da espontaneidade de uma forma mais global, enquanto o psicodrama e o sociodrama especificavam-se no "tratamento" das patologias. Por isso o role playing tornou- se o método central do psicodrama pedagógico ou educacional (1997, p. 197).

O psicodrama, por ser uma abordagem essencialmente grupal e de ação, favorece o compartilhar através da interação do grupo. Acreditamos que a troca de experiências e o apoio mútuo, acrescidos do uso constante de role playing permitem o aperfeiçoamento das capacidades do supervisionando.

Segundo Kaufman (1993), o termo role playing deve ser diferenciado, segundo sua utilização, em sentido lato ou estrito. De acordo com o autor em sentido lato, a expressão refere-se a jogo de papéis, representação teatral e, portanto, está presente nas várias formas de abordagem socionômica e, em sentido estrito, relaciona-se a uma das etapas de estruturação do papel e, também, ao jogo de um certo papel e seu contrapapel dentro de um vínculo específico. No nosso caso abordamos, em supervisão, a relação que se estabelece entre o terapeuta iniciante e seu cliente, isto é, abordando o papel e seu contrapapel.

O role playing, como método do psicodrama, vai usar a representação dramática em substituição ao relato verbal, pela experiência compartilhada e vivenciada do processo através do jogo de papéis. Role playing é o "como se" da sessão, no qual o supervisionando assume via de regra o seu próprio papel e o papel de seu paciente compondo assim as várias alternativas do processo psicoterápico que se desenrolam na sessão, in loco e in presentia, durante a supervisão. O "como se" também oferece a possibilidade do supervisionando testar previamente suas ações e atitudes frente ao comportamento de seus pacientes sem a sobrecarga ansiógena que a situação real fatalmente acarretaria.

Segundo Zimerman e Osório (1997), o role playing, em supervisão tem como função preencher as lacunas do material da sessão que já ocorreu bem como possibilitar uma visão estratégica do ocorrido. Desta forma, de acordo com os autores, o supervisionando ao estar numa posição que implica um menor comprometimento ele pode passar a dominar suas ansiedades vez que a situação deixa de ser fonte de paralisação por deixar de ser nova e desconhecida. O supervisionando/terapeuta JV sobre isto afirma que:

Na supervisão podemos abrir caminho, através do role playing, para estarmos explorando os vários desdobramentos e as conseqüências dos comportamentos vivenciados pelo paciente. Desta forma, quando vivenciamos isto na supervisão, podemos estar mostrando ao paciente, na sua sessão, o limite que ainda não tem e que delega a outrem.

O role playing permite ao supervisionando revivenciar uma sessão já ocorrida experimentando os vários ângulos do papel desempenhado: o seu papel e o papel de seu cliente. Isto lhe dá a capacidade de ampliar seu espectro de observação e compreensão da dinâmica de seu paciente através e principalmente de sua observação especular. O supervisionando se coloca como que diante de um espelho, observando-se em ambos os papéis e assim ampliando seu espaço de visão.

Em nossa experiência com estudantes vemos que grande parte de suas preocupações se refere a articulação entre teoria e prática. Uma das razões para a utilização do role playing é a de atenuar esta passagem, ou melhor, fazer esta ponte entre o conhecimento teórico e a experiência prática do desempenho do papel profissional. O supervisionando/terapeuta JV ilustra isto quando avalia no relatório final seus atendimentos:

O que foi que aconteceu que durante o 2º. semestre me senti capaz de estar assumindo oito clientes? A resposta está certamente no trabalho de supervisão. Primeiramente uma supervisão que teve a ousadia de estar oferecendo um novo enfoque teórico, de estar apresentando para muitos uma nova perspectiva clínica, sobre a qual todo o trabalho se desenvolveu: o Psicodrama. Em segundo lugar, o fato de estarmos semanalmente discutindo e trabalhando os casos por nós conduzido no consultório, buscando aprofundar a compreensão da teoria psicodramática, bem como desenvolvendo, através da utilização do role playing, um novo papel, o papel de terapeuta. Esta dobradinha semanal teórico-prática, tenho certeza, nos deu segurança para estarmos ousando mais.

 

Um modelo de trabalho - A supervisão na prática

Observamos, em nossa experiência, que geralmente o estudante aborda em supervisão os casos de seus pacientes nos quais encontrou algum tipo de dificuldade. De acordo com Silva Dias (1996), tais dificuldades podem estar relacionadas tanto ao desempenho do papel de terapeuta que se encontra ainda em formação, como com as questões teóricas relativas a dinâmica psíquica do paciente, com as questões práticas de emprego das técnicas e também, e principalmente, com as questões relacionadas às dinâmicas psíquicas do próprio supervisionando.

No nosso modelo de supervisão procuramos lidar com estas dificuldades seguindo uma sistemática de supervisão própria e ainda com a utilização, como dito anteriormente, do role playing como técnica principal do trabalho. Seguimos, neste trabalho, o esquema das etapas da sessão de psicodrama: aquecimento, dramatização e comentários ou elaboração.

Na primeira parte, o aquecimento, solicitamos que o supervisionando faça um relato verbal a respeito da psicoterapia de seu paciente, procurando ser o mais explícito possível. Tal procedimento, além de aquecer o supervisionando para o desempenho dos papéis que lhe serão requeridos, nos permite visualizar em primeiro lugar quais fatos ou dinâmicas o supervisionando elegeu em sua leitura de seu paciente. Não pedimos, via de regra, que nos relate uma sessão específica, pois o que nos importa é observar como nosso supervisionando internalizou seu cliente.

Na etapa seguinte, da dramatização propriamente dita, após o relato, pedimos que o supervisionando adote o papel do paciente para ser entrevistado por algum integrante do grupo de supervisão de sua escolha. Utilizamos muitas vezes algumas técnicas dramáticas, principalmente o espelho e a inversão de papéis, colocando o supervisionando para desempenhar o papel de seu paciente e também o seu papel na sessão de supervisão e, eventualmente, colocamos o ego auxiliar no papel do supervisionando para que ele possa "se ver" no seu próprio papel. Este procedimento dura em média de 10 a 20 minutos, tempo suficiente para que a dinâmica toda possa ser observada.

A última etapa, de comentários, diz da elaboração e processamento da sessão. Levamos em consideração quatro itens que sistematizam o processo de supervisão. Resumidamente são eles:

1. Angústia: porta de entrada da psicoterapia. Seu diagnóstico é fundamental como norteador da conduta que deverá ser tomada pelo terapeuta frente ao paciente.

2. Discurso: a decodificação do discurso do paciente vai informar o que ele realmente está nos comunicando do ponto de vista diagnóstico. Este discurso pode vir de diversas formas e é muito específico de cada paciente. Entretanto, em linhas gerais observamos que este discurso pode vir de forma queixosa, vitimizada, impositiva, disfarçada, acusatória, e assim por diante.

3. Proposta de relação: é a forma implícita no discurso do paciente que direciona o tipo de relação que ele tenta estabelecer com o terapeuta. Geralmente, é um tipo de "relação interna complementar patológica" (Silva Dias, 1996, p. 120) que o paciente pode assumir esperando uma complementaridade por parte do terapeuta. A proposta de relação fala da dinâmica psicopatológica do paciente.

4. Estágio da psicoterapia: refere-se ao ponto em que a psicoterapia está bloqueada ou ao ponto em que o supervisionado está trabalhando com seu paciente. É importante a definição deste momento de terapia para que se possa melhor utilizar as técnicas dramáticas e as condutas apropriadas.

 

Considerações finais

No decorrer deste artigo, ao nos referirmos aos alunos que participam do programa de supervisão, tivemos o cuidado de designá-los por supervisionando/ terapeuta. Isto nos coloca frente a uma questão que gostaríamos de destacar aqui. Ao cursar a disciplina Estágio Supervisionado o aluno passa a ter a oportunidade, ainda na graduação, de vivenciar o pressuposto de um papel profissional que está se estabelecendo. Desta forma, o aluno sobrepõe dois papéis: de aluno frente ao seu professor supervisor e de profissional terapeuta frente ao seu paciente. Por seu turno, o supervisor também desempenha um duplo papel, de professor, que ensina e avalia e também de terapeuta, uma vez que dirige o grupo de supervisão procurando estabelecer o clima terapêutico de proteção e continência neste grupo. Este quadro nos mostra a magnitude deste trabalho que envolve seus participantes para poder lidar com aquele que não está no grupo, mas que é a peça central desta máquina: o paciente.

Para o aluno, esta dupla vivência parece proporcionar, ao longo do trabalho, o acúmulo necessário de experiências para o desempenho deste papel que por ora está em formação. No caso do supervisor, introduzir o aluno e futuro colega de profissão neste contexto, proporcionar a este as experiências necessárias para que aprenda a lidar com as complexas situações que se apresentam e também poder participar na criação do estabelecimento do clima terapêutico, parece constituir um fascinante desafio. A tarefa do supervisor de acompanhar, ao longo do semestre os movimentos do supervisionando e futuro terapeuta visando uma integração final fundamentada nas questões teóricas, no raciocínio clínico, na compreensão da dinâmica do paciente, tudo isto constitui material de trabalho para o supervisor. E também, poder participar e contribuir para o crescimento profissional de seu aluno é o que constitui, para o supervisor motivo de satisfação profissional.

Este artigo ao tentar sistematizar alguns conceitos, procurou destacar aspectos que consideramos relevantes para o processo de aprendizagem do papel de terapeuta. Não procuramos com o mesmo esgotar a amplitude do tema proposto, mas, ao contrário, abrir campo de pesquisa que possa contribuir para a reflexão sobre o ensino da prática clínica bem como sobre a qualidade da formação do psicólogo clínico.

 

Referências bibliográficas

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Endereço para correspondência
SHIN QL 05 conjunto 06 casa 15
Brasília, DF
e-mail: elianarl@terra.com.br

Enviado em Dezembro/2003
Aceite final Março/2005

 

 

1 Nas normas de funcionamento do CAEP está prevista a observação do atendimento, pelo estagiário, através do espelho unidirecional. Os clientes são devidamente avisados e assinam termo de anuência junto ao CAEP na ocasião de sua inscrição ao programa.