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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.12 no.2 Ribeirão Preto  2004

 

 

Estudo psicológico da obesidade: dois casos clínicos1

 

Psychological study of obesity: two clinical cases

 

 

Maria Alice Salvador Busato de AzevedoI; Cleunice SpadottoII

I Universidade Estadual Paulista / UNESP – Bauru - São Paulo - Brasil
II Ambulatório Regional de Especialidades – NGA11 - Botucatu - São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A obesidade exógena tem sido estudada com maior interesse nas últimas décadas porque está sendo considerada uma das anormalidades mais comuns dos nossos tempos e o mais sério transtorno alimentar do mundo desenvolvido e de alguns paises em desenvolvimento. Este trabalho objetivou estudar os aspectos psicológicos de dois casos de obesidade feminina, através de entrevistas semi-estruturadas, sessões individuais de psicoterapia de apoio e do teste projetivo do Desenho da Figura Humana. A análise do discurso das pacientes confirma as informações coletadas na revisão bibliográfica, mostrando a hiperfagia como uma regressão à fase oral e sua utilização como um mecanismo empregado pelas obesas estudadas para lidar com a sua angústia, desencadeada por situações conflitantes do seu cotidiano. Ficou evidenciado como os fatores emocionais influenciam a instalação e/ou manutenção da obesidade. Esta é vista como um sintoma, cujas causas devem ser procuradas no plano das motivações inconscientes do sujeito.

Palavras-chave: Obesidade, Estudo psicológico da obesidade, Obesidade feminina.


ABSTRACT

Exogenous obesity has been studied with greater interest in the last decades because it is considered one of the most common abnormalities of our time and the most serious nutritional disorder of the developed world and of some of the developing countries. This work aimed at studying the psychological aspects of two cases of female obesity, through semi-structured interviews, one to one sessions of supportive psychotherapy, and the projective test of the Human Figure Drawing. The analysis of the patients’ speech has confirmed the literature, which presents hyperphagia as a regression to the oral phase and as a mechanism used by the obese women of the present study to cope with their anxiety, caused by conflicts on their daily lives. The present study shows how emotional factors influence the onset and/or maintenance of obesity, which is taken as a symptom. Its causes should be looked for among the underlying unconscious motivations of the person.

Keywords: Obesity, Psychological study of obesity, Female obesity.


 

 

Obesidade: aspectos gerais

A obesidade exógena ou nutricional vem sendo estudada com maior interesse nas últimas décadas porque está sendo considerada uma das anormalidades mais comuns dos nossos tempos e o mais sério transtorno alimentar do mundo desenvolvido. De acordo com a literatura médica, ela é conceituada como a presença de excesso de tecido adiposo no organismo, sendo considerada como o resultado de um desequilíbrio energético, decorrente de uma entrada (input) de energia no organismo que excede os gastos (output) (Bray, 1989). Segundo Kaplan e Kaplan (1957) há dois tipos de obesidade: (1) exógena ou comum, conhecida, ainda, como primária ou nutricional; (2) endógena ou metabólica, conhecida, também, como secundária.

A maioria dos investigadores do assunto concorda que 95% a 97% dos casos de obesidade encaixam-se na primeira categoria e cerca de apenas 3% pertencem ao segundo tipo. De acordo com Kaplan e Kaplan (1957), a obesidade é o acúmulo de gordura no corpo; a massa de tecido adiposo aumentado pode ser resultado do aumento no tamanho de células de gordura (obesidade hipertrófica), como aumento no número de células de gordura (obesidade hiperplásica) ou do aumento no tamanho e no número (obesidade hipertrófica-hiperplásica).

Nas últimas décadas, tem-se observado um aumento significativo da prevalência da obesidade em vários países desenvolvidos, assim como, também, em alguns países em desenvolvimento, inclusive no Brasil, tanto entre adultos, como entre crianças e adolescentes (Van Itallie, 1979; Bray, 1989; Brownell e Wadden, 1992; Halpern, Suplicy, Mancini e Zanella, 1998; Natalie, 2003). Por isso ela está sendo considerada a “doença da civilização” e assumindo características de uma epidemia mundial.

Segundo estudos de Brownell e Wadden, em 1992, nos Estados Unidos, 24% dos homens e 27% das mulheres eram obesos, segundo o critério de 20% de excesso de peso acima do peso ideal. Porém, segundo dados atuais do relatório do National Center for Chronic Disease Prevention and Health Promotion (2003), a obesidade aumentou em proporções epidêmicas nos Estados Unidos nos últimos 20 anos. Outros dados obtidos do relatório do National Center for Health Statistics (2003), baseado nos resultados da National Health and Nutrition Examination Survey (NHANES): 1999 - 2000, afimam que, atualmente, 64% dos adultos dos Estados Unidos apresentam excesso de peso ou obesidade, de acordo com o Índice de Massa Corporal (IMC) de 25 ou mais, conforme estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A obesidade é considerada problema de saúde pública nos Estados Unidos.

No Brasil, resultados de pesquisas sobre o assunto começaram a ser divulgados apenas nos últimos anos, mas revelam, também, um aumento significativo de excesso de peso e de obesidade na população, principalmente na de baixa renda. Dados de um levantamento do Ministério da Saúde, referente ao ano de 1993, disponibilizados por Saúde Natural – Obesidade e Alimentação (2003), revelam que 15% da população brasileira adulta apresenta sobrepeso e 6,8% obesidade. Porém, estudos mais atuais, divulgados por Natalie (2003), afirmam que 70 milhões de brasileiros, ou seja, 40% da população brasileira, já apresentam excesso de peso. A mesma autora também divulga os resultados de uma pesquisa realizada com 7.000 crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos no Rio de Janeiro, que mostram que 38% das mesmas são obesas. Ainda de acordo com essa autora, informações da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) afirmam que nos últimos 20 anos houve um aumento de 240% de obesidade entre crianças e adolescentes brasileiros. A obesidade está sendo considerada um problema de saúde pública também no Brasil.

O Índice de Massa Corporal (IMC), adotado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a classificação da obesidade, é considerado prático e muito útil para pesquisas, razão pela qual tem sido bastante utilizado. O mesmo é obtido dividindo-se o peso do indivíduo pela sua altura ao quadrado: P/A2. É considerado obeso o indivíduo com IMC = 25 (Garrow e Webster, 1985; Anjos,1992). A classificação da OMS é a seguinte:

25 - 29,9: Grau I- obesidade leve ou sobrepeso

30 - 30,9: Grau II- obesidade moderada

40 ou +: Grau III- obesidade severa ou mórbida

 

A questão da etiologia

A obesidade é associada a efeitos deletérios à saúde dos indivíduos, tanto física quanto psicologicamente, e a questão da sua etiologia é assunto extremamente complexo e muito discutido.

Como revela a revisão bibliográfica, na década de 30 era usual atribuir a causa da mesma à uma disfunção glandular (Newburgh, 1942). Estudos realizados nas décadas de 40 e 50, como os de Newburgh (1942) e os de Kaplan e Kaplan (1957), vieram mostrar e esclarecer que a obesidade nunca é diretamente produzida por uma atividade aumentada ou diminuída de uma glândula endócrina. Esses autores chegaram à conclusão de que, em última análise, a obesidade é, invariavelmente, conseqüência de uma desproporção entre a entrada e a saída de energia no organismo. Entretanto, essa entrada de energia, maior do que o necessário, é decorrente da interação e influência de vários fatores: constitucionais, ambientais (como falta de atividade física e hábitos alimentares inadequados), culturais, sociais, familiais, psicológicos e emocionais. Por isso é considerada multifatorial ou multicausal. Esses fatores podem agir independentemente ou interagir mutuamente. Alguns autores enfatizam e dão maior peso à hereditariedade e aos fatores genéticos (corrente organicista), enquanto outros ressaltam os fatores psicológicos e sociais (corrente psicossomática), embora todos admitam uma interação de fatores de ambos os tipos na origem e desenvolvimento da mesma.

A influência da hereditariedade e dos fatores genéticos é ressaltada em muitos trabalhos, tendo sido extensamente estudada (Abranson,1977; Stunkard, 1988; Bouchard, 1989; Brownell e Wadden, 1992). Muitos desses estudos basearam-se em dados obtidos de pesquisas realizadas com pares de gêmeos idênticos e fraternos, obesos, filhos legítimos e adotados, famílias de obesos e seus descendentes. Há, porém, uma concordância geral conclusiva final, entre os autores, de que na obesidade o que é herdada é uma vulnerabilidade, uma probabilidade, que requer um ambiente adequado a fim de se manifestar, como expressa Stunkard (1988). A influência dos fatores genéticos está provada, porém, de acordo com Seltzer e Mayer (1966), faltam dados que permitam uma avaliação acurada dos graus de influência dos fatores genéticos e do mecanismo de transmissão hereditária. Para Halpern (1984):

existe, sem dúvida nenhuma, uma predisposição genética para a obesidade; é sabido que os filhos de pai e mãe obesos têm, no mínimo, 70% de chance de se tornarem obesos, enquanto filhos de pais magros, 15%. Esta preponderância familiar da obesidade pode, eventualmente, ser atribuída a hábitos da casa que possam levar ao excesso de peso” (p. 25).

Esses achados, por outro lado, confirmam a argumentação de Newburgh (1942), endossada, mais tarde, por Kaplan e Kaplan (1957), expressando o pensamento da corrente psicossomática de que “a constituição do corpo é herdada, mas a obesidade não”. De acordo com estes últimos, uma certa predisposição constitucional genética realmente parece existir, através da qual o excesso de peso tende a ocorrer em certos grupos familiares e raciais. Entretanto, os hábitos ambientais e familiares também têm a sua influência. Dizem os autores que a ascendência relativa do ambiente, comparada à da hereditariedade, é variável em cada paciente obeso, mas a inevitável importância predominante do ambiente e de outros fatores exógenos, na maioria dos casos de obesidade, parece ser inquestionável. O pensamento desses autores expressa o ponto de vista psicossomático, que considera o comer compulsivo como expressão de desajustamento emocional, sendo a obesidade vista, então, como o sintoma do mesmo, superdeterminado por causas psicológicas e emocionais subjacentes inconscientes. Na prática, o que é tratado pelos médicos é o sintoma do problema e não a causa do mesmo.

A atual ênfase na abordagem psicossomática na área da saúde e a inserção de psicólogos em equipes multidisciplinares de estudo e pesquisa, assim como em centros de saúde e hospitais gerais, ressaltam a importância e valorização de um melhor conhecimento dos componentes psicológicos na instalação e desenvolvimento da patologia em questão.

 

O ponto de vista psicológico

A revisão da literatura a respeito da abordagem psicológica da obesidade revela uma ampla produção de autores de língua inglesa; alguns poucos trabalhos em espanhol e francês e uma escassa produção entre os autores nacionais. Dentro do enfoque psicológico, distinguem-se duas abordagens distintas: a psicossomática (de autores da linha psicanalítica) e a comportamental. Esta vê a hiperfagia do obeso como um comportamento aprendido, na linha dos reflexos condicionados e controlado por fatores externos do meio ambiente do sujeito. A psicossomática, embora não descarte a tendência hereditária, considera a hiperfagia como um sintoma, superdeterminado por causas psicológicas e emocionais inconscientes. As autoras do presente trabalho defendem a abordagem psicossomática, com a qual se identificam, devido à sua formação.

O fato da maioria dos casos de obesidade ser essencialmente do tipo exógeno, ou seja, causada por fatores psicológicos, coloca-a como uma desordem psicossomática, a qual pode ser considerada como a mais presente das desordens psicossomáticas, devido à sua prevalência, bem como a mais significativa. Os autores pesquisados, defensores do ponto de vista psicossomático, são unânimes em considerar a obesidade como um sintoma, ou seja, uma expressão física de um desajustamento emocional subjacente. Além disso, consideram todo sintoma como plurideterminado. A maioria dos investigadores concorda que, embora os fatores somáticos desempenhem algum papel na alimentação excessiva, eles não podem responder totalmente pela hiperalimentação compulsiva vista na obesidade e que os fatores emocionais são cruciais no desenvolvimento da condição. Assim, os pacientes obesos podem ser caracterizados como pessoas emocionalmente perturbadas, as quais se utilizam da hiperfagia como um meio de lidar com os seus problemas psicológicos. A história individual desempenha aqui o papel protagônico. Nessa história, a compreensão da relação do indivíduo com o alimento, que ocorre desde o nascimento, e da ligação dele com os seus objetos primários, com a família, assim como com o seu meio social e, particularmente, com quem exerce as funções maternas, são de fundamental importância para o entendimento do indivíduo, como ser humano e da sua personalidade.

Muitos autores de orientação psicanalítica têm estudado os fatores psicodinâmicos específicos que levam à relação entre conflitos emocionais e obesidade. Eles a vêm como um mecanismo selecionado pelo obeso, dentre muitos possíveis, para lidar com os seus conflitos internos.

Richardson (1946) considera que a obesidade pode ser considerada como um componente de uma neurose, cuja expressão física é o acúmulo de gordura e argumenta que, ao avaliarmos a evidência da obesidade como resultado de um distúrbio emocional, é preciso considerar que uma neurose pode existir independentemente ou coexistir com anormalidades nos mecanismos fisiológicos.

Nicholson (1946), num estudo que envolveu 93 pacientes obesos, concluiu que todos apresentavam algum tipo de psiconeurose em graus variados.

De acordo com Gill (1946), ao estudarmos a pessoa obesa, precisamos entender que a comida é mais do que uma necessidade orgânica para ela. Com toda probabilidade, diz o autor, a comida constitui a sua fonte principal de satisfação para uma variedade de interesses.

Schick (1947) considera a obesidade como um sintoma significativo da personalidade total, considerando o corpo como expressão das atitudes instintivas do indivíduo. Este autor considera a hiperfagia como um hábito nocivo e equipara a ingestão excessiva de comida à adição ao álcool ou a drogas. Ele fala da subjacente psicopatologia da adição no desejo inconsciente de experienciar novamente a satisfação que o bebê obtém da ingestão de comida.

Bychowski (1950), que estudou a obesidade em mulheres, vê a mesma como expressão e resultado de processos autoplásticos dominados e regulados por várias motivações e defesas inconscientes. Segundo ele, para a obesa, a comida significa força e serve para fortalecer o seu ego fraco. Além disso, diz ele, simbolicamente, a comida significa amor, predominantemente maternal e os seios da mãe, fonte primeira de desejo e gratificação. Mas, afirma o autor, o comer em excesso também ocorre como resultado direto da angústia de separação em suas várias formas e em vários níveis. Por outro lado, Bychowski considera que a alteração autoplástica da obesidade serve, também, para a negação da feminilidade e para evitar relações amorosas heterossexuais, já que a gordura serve como uma proteção para a mulher, pois a torna evitada e rejeitada pelos homens. Ele também fala da supervalorização da comida e do seu uso como adição.

Na tentativa de explicar psicologicamente a hiperfagia, alguns autores enfatizam a necessidade de se discriminar fome de apetite (Newburgh ,1942;. Hamburger, 1951; Kathalian; 1992). Hamburger (1951) faz uma análise penetrante e clara do impulso da fome e uma discriminação detalhada entre o mesmo e o apetite. O autor diz que a fome é a expressão fisiológica da necessidade do corpo por energia (comida) e o apetite é um desejo psicológico de comer, o qual dá um prazer antecipatório distinto. Segundo ele, a fome produz apetite, mas o apetite também pode existir independentemente e pode ser estimulado por outros meios. O autor esclarece, ainda, a relação entre o apetite e as emoções.

Segundo ele, o estado emocional da pessoa reflete-se no seu apetite, aumentando-o ou diminuindo-o, como nos mostra a experiência universal do amor e da dor. A raiva também pode afetar o apetite e nos estados emocionais mórbidos, como o da depressão, os distúrbios do comer evidenciam-se como sintomas. Portanto, tanto na doença como na saúde, há uma íntima relação entre o apetite e o estado emocional. O estudo de pacientes obesos mostra que o comer em excesso serve a alguma forte necessidade emocional.

Em um estudo psiquiátrico detalhado de 18 pacientes, Hamburger (1951) detectou o comer em excesso como resposta a várias situações: (1) comer como resposta a tensões emocionais não-específicas; (2) comer como uma gratificação substituta para situações de vida insuportáveis; (3) comer como um sintoma de doença emocional subjacente, especialmente a depressão e a histeria; (4) comer em excesso como uma adição à comida.

Conrad (1954) afirma que a comida é como um narcótico para a pessoa obesa e que esta procura no alimento um escape das situações estressantes da vida. Além disso, essa autora ressalta o papel da hostilidade na hiperfagia, que é pouco discutido e enfatizado, mostrando que a agressividade e hostilidade reprimida é uma das mais freqüentes e importantes causas do comer em excesso. De acordo com a autora, defensora da psicoterapia no tratamento dos casos de obesidade, o atendimento à mesma requer, por parte do clínico, a compreensão dos problemas psicológicos do indivíduo obeso.

Kaplan e Kaplan (1957) dizem que os psicanalistas entendem a obesidade como uma fixação à fase oral e uma regressão à mesma. Segundo eles, os obesos, diante das frustrações em sua vida e de seu funcionamento como adultos, regridem à fase oral em busca de uma gratificação infantil. Desse modo, a obesidade é vista por eles como um reflexo direto da oralidade infantil.

Mendelson (1966), ao tentar categorizar psicologicamente os obesos, fala de um continuum caracterizado por graus crescentes de instabilidade emocional. Diz ele que no início do espectro estão os que podem ser considerados emocionalmente estáveis e, provavelmente, representam apenas uma pequena proporção dos sujeitos obesos vistos em clínica. A seguir, gradativamente, vêm os que são mais comprometidos em seu comportamento de comer em excesso, terminando com os obesos que comem compulsivamente para reduzir tensões, combater estados depressivos ou para obter algum tipo de gratificação substitutiva. Para estes, os problemas de comer e de peso podem representar o tema central de sua existência: são os obesos desde sempre.

Kornhaber (1970) refere-se à obesidade como “the stuffing syndrome”, cuja natureza considera primariamente psicológica.

Rotman e Becker (1970), numa revisão de casos clínicos de 33 homens e mulheres extremamente obesos, que tinham sido entrevistados por psicanalistas, encontraram o comer em excesso como um mecanismo de defesa utilizado contra sentimentos inconscientes de abandono e desesperança, originado por situações de perda de objeto.

Kathalian (1992), autor nacional, considera a obesidade como um desafio não só na área da terapia mental como em outras áreas do conhecimento humano. Segundo ele, para se compreender a psicodinâmica da obesidade é preciso distinguir a fome do apetite, tal como já propuseram alguns outros autores anteriormente citados. Em uma ótica psicanalítica, ele analisa os mecanismos orais do obeso, considerando que o comer pode significar: a necessidade de receber amor, o medo de sofrer privações, a reação a uma separação ou a uma perda, o desejo hostil de eliminar um inimigo etc.. Ele também liga a hiperfagia do obeso com a sua sexualidade inconsciente.

Paiva e Silva (1994) admitem várias causas psicológicas para a mesma, como ansiedade, causas sexuais, proibição aos impulsos genitais etc.. Também a consideram como um mecanismo de regressão oral.

Pelo que já foi exposto, pode-se ver que os psicanalistas são unânimes em assinalar, na obesidade, uma fixação na fase oral e uma regressão a ela. Nesse contexto ganha destaque a figura materna, responsável pela nutrição da criança, e a mãe do obeso é discutida por muitos autores. Dentre eles, destaca-se Bruch (1973, 1976, 1977), médica pediatra, endocrinologista e psicanalista, autora de volumosa obra sobre a obesidade.

Essa autora deu especial atenção à relação mãe-filho e à influência da figura materna e suas atitudes no desenvolvimento da obesidade infantil. A mesma também estudou muitas famílias de crianças obesas e a psicodinâmica que prevalecia nelas, na tentativa de compreender as múltiplas interações dos seus membros, dentro do que é atualmente conhecido como estudo sistêmico, detectando muitos fatores que contribuem para a instalação e desenvolvimento da obesidade em crianças e adolescentes, que, depois, transformam-se em adultos obesos. Ela estudou o assunto em profundidade e apresenta a complexidade do quadro.

Em síntese, diz ela que os pacientes obesos que estudou sofriam de um deficit fundamental de aprendizagem precoce na percepção e conceituação da fome e no seu processo de individuação, o que os levava a ter distúrbios não apenas na área da alimentação, mas, também, em outras áreas de funcionamento. Segundo a autora, o mesmo é válido para os pacientes que apresentam anorexia nervosa, doença que ela analisa, em sua obra, paralelamente à obesidade e para a qual vê as mesmas raízes.

Bruch (1973, 1976, 1977) fala da diversidade de quadros clínicos e diz que é preciso distinguir diferentes formas de obesidade, com diferentes constelações e transações psicológicas. Segundo a mesma, é impróprio afirmar que todas as pessoas obesas sejam emocionalmente perturbadas. Ela diz que a maioria dos pacientes obesos que está funcionando bem não procura ajuda psiquiátrica. Para aqueles que a procuram, os problemas psiquiátricos não são uniformes. Afirma, também, não ser possível falar de um tipo básico de personalidade como característico de todas as pessoas obesas, mas que a obesidade pode estar associada a qualquer desordem psiquiátrica concebível, tanto neurose como psicose. Além disso, coloca que é preciso diferenciar entre os aspectos psiquiátricos que têm um papel no desencadeamento da obesidade e aqueles que são criados por esta. A autora, ainda, fala dos problemas que podem ser precipitados pelo emagrecimento. Ela procura mostrar a complexidade do quadro e como os fatores fisiológicos e psicológicos interagem e se influenciam mutuamente.

O que fica evidente, a partir da análise e extensa revisão bibliográfica realizada é a complexidade do quadro em questão, o qual, após instalado, é de difícil tratamento. Isso vem mostrar, também, a importância do papel da prevenção desse distúrbio alimentar e da abordagem preventiva por parte de profissionais comprometidos com a saúde da população.

 

Imagem corporal e obesidade

Schilder (1977) entende a imagem corporal como:

aquela representação que formamos mentalmente do nosso próprio corpo, isto é, a forma em que ele nos aparece; é a imagem tridimensional que todo mundo tem de si mesmo. Imagem corporal é um termo usado que se refere ao corpo como experiência psicológica e focaliza as atitudes e sentimentos do indivíduo para com seu próprio corpo. Diz respeito às experiências com o corpo e à maneira como foram organizadas tais experiências. (p. 05)

Barros (1996), que estudou a imagem corporal em indivíduos obesos, considera o transtorno da auto-imagem como um fator psicopatológico do individuo. Segundo esse autor:

... o distúrbio da imagem corporal é encontrado em torno de 40 a 50% dos obesos e essa alteração dificulta o prognóstico; é como se disséssemos que o "corpo emagrece e a cabeça continua de gordo, ou seja, como a cabeça é poderosa o corpo volta a ser gordo ... (p.92).

É comum encontrar-se em obesos uma auto-imagem depreciativa com conseqüentes prejuízos nas relações sociais. Sabe-se que os indivíduos obesos, com freqüência, são discriminados em contextos educacionais, profissionais e sociais, o que gera neles ansiedade, raiva e dúvidas em relação a si próprios.

 

O teste projetivo do Desenho da Figura Humana

Dentre as várias técnicas projetivas existentes para o estudo da personalidade, destaca-se o Teste da Figura Humana, bastante utilizado pelos psicólogos por ser uma fonte frutífera de informação e compreensão da personalidade, além de econômica e profunda.

Machover (1962), que adaptou o Desenho da Figura Humana como técnica projetiva da personalidade, afirma que ao desenhar a figura humana o indivíduo projeta a figura de si mesmo. Segundo essa autora, ao desenhar ele projeta os aspectos conscientes e inconscientes da imagem do seu corpo.

Van Kolck (2001) considera que esse teste é constituído de ótimas condições para a projeção da personalidade, possibilitando a manifestação mais direta de aspectos dos quais o indivíduo não tem conhecimento, não quer ou não pode revelar, isto é, seus aspectos mais profundos e inconscientes

O Desenho da Figura Humana, como técnica projetiva, oferece dados subjetivos e objetivos sobre aquele que desenha, permitindo ao psicólogo realizar um processo de inferência clínica. Esta, no procedimento de exploração da personalidade, vai permitir ao profissional estabelecer uma série de hipóteses psicodinâmicas sobre o indivíduo, que serão utilizadas para se formular vários graus de adaptação do sujeito estudado.

No entanto, os dados projetivos nos fornecem apenas um corte analítico transversal da unidade e integração da personalidade em um dado momento da história de vida do sujeito estudado. As técnicas projetivas não têm como objetivo fornecer uma formulação completa da personalidade total de um sujeito, mas, sim, proporcionar uma série de informações descritivas e significativas a respeito da personalidade, que se mostram úteis para um propósito particular e, frequentemente, bastante restrito. Os psicólogos utilizam-se dos dados projetivos para interpretação, através do processo de inferência, a fim de chegarem a algumas concepções sobre o sujeito, as quais abarcam um pouco da sua história de vida passada e algumas das suas orientações para o futuro (Azevedo, 1996).

No presente trabalho, no estudo dos casos clínicos apresentados a seguir, foi utilizado o Desenho da Figura Humana, aplicado em diferentes etapas do atendimento às pacientes, para captar mudanças nas mesmas ao longo do trabalho realizado. Os desenhos apresentados permitem observar mudanças na auto-imagem das mesmas, decorrentes do tratamento recebido.

 

Justificativa e objetivos

O presente trabalho busca uma compreensão dos aspectos psicológicos da obesidade nos dois casos clínicos estudados, através da utilização de entrevistas semi-estruturadas, sessões de acompanhamento psicológico e do teste projetivo do Desenho da Figura Humana (Machover, 1962; Van Kolck, 2001). Visa-se, assim, contribuir, para a compreensão dos fatores emocionais que podem contribuir para a instalação e/ou manutenção do distúrbio alimentar da obesidade.

 

Método

Sujeitos

Duas mulheres adultas, de 40 e 37 anos, obesas de acordo com o Índice de Massa Corporal, IMC, critério adotado pela Organização Mundial de Saúde.

Material e Setting

Sessões individuais semanais de acompanhamento psicológico (18 para cada uma).

Entrevistas semi-estruturadas.

Teste projetivo do Desenho da Figura Humana: aplicado no início, meio e final do atendimento (Machover, 1962; Van Kolck, 2001).

Gravador para gravação da fala das pacientes (com a devida permissão).

Procedimento

As duas mulheres atendidas receberam esclarecimentos sobre os objetivos e procedimentos que seriam adotados neste estudo e assinaram um Termo de Consentimento, concordando com a sua participação. Foram realizados dezoito atendimentos psicológicos semanais para cada uma, com agendamento prévio, e a duração de cada atendimento foi de quarenta e cinco minutos.

A aplicação do teste projetivo foi feita em três etapas: início, meio e final do processo. A técnica do desenho foi aplicada na íntegra: desenho da figura humana feminina e masculina. Foram analisados ambos os desenhos para efeito de comparação, mas neste trabalho é apresentada apenas a análise da figura feminina porque os sujeitos são do sexo feminino.

Todo o acompanhamento psicológico das mulheres obesas foi realizado no Ambulatório Regional de Especialidades-NGA11, em Botucatu- SP.

Casos clínicos estudados

Caso 1: Paciente V.

Idade: 40 anos Filhos: 2 Sexo: feminino

Altura: 1,64m; Peso: 85kg IMC: 31,7

Estado civil: casada Profissão: do lar

História de Vida

A paciente relatou que começou a engordar após a primeira gravidez, que ocorreu aos 23 anos; nessa época pesava 57kg e após a gestação engordou 11kg. Com a segunda gravidez emagreceu, chegando a pesar 60kg. Atribui a perda de peso aos cuidados despendidos aos filhos. Após completar 30 anos, voltou a engordar 20kg e atualmente está com 85kg. Sente-se angustiada devido ao seu peso atual e verbaliza que come sempre com culpa. V. já tentou fazer regime várias vezes e não acredita no emagrecimento através de tratamento medicamentoso. Portanto, V. não está tomando remédio para emagrecer. Chegou ao serviço de psicologia do Ambulatório Regional de Especialidades NGA-11 por indicação da cunhada, que é paciente da unidade. A paciente foi encaminhada por endocrinologista, como é rotina do serviço.

A paciente entende o seu excesso de peso como resultado de um descontrole de sua ansiedade. Relata que possui grande dificuldade para emagrecer e engorda com muita facilidade. Tem preferência por doces e frituras; justifica alegando que sua predileção deve-se ao fato de ter deixado de fumar há dois anos e substituído o cigarro por balas , atingindo, assim, os 85 kg. V. fumava, em média, dois maços de cigarro por dia. Não sente falta do cigarro, mas sente falta de alguma coisa para extravasar a raiva, a angústia e, quando percebe, já está comendo. Fica angustiada com o ganho de peso e imagina que irá atingir os 100 kg com facilidade. Come com culpa, acompanhada do pensamento de que não deveria estar comendo. Quando consegue perder um quilo recupera-o logo:

Tenho medo de chegar aos 90kg; se eu chegar nos 90kg, logo já estou chegando nos 100 kg. porque eu não consegui controlar dos 70 para os 80 kg.

Verbalizou que necessita de incentivo para realizar exercícios físicos e fazer controle alimentar. Diz que por si só é difícil envolver-se com esses hábitos saudáveis. Ela diz que sempre aumenta a ingestão de comida quando está preocupada, deprimida e/ou ansiosa. Fica furiosa quando é derrotada pela gula:

... Parece que as emoções se embaralham, dá aquela revolta, dá vontade de mandar tudo às favas e comer e comer até virar uma bolona... assim, choro por ter feito isto... brigo comigo e volto a me controlar...

A paciente reclamou que sofre muito com a conotação que a família dá a sua gordura, chamando-a de ‘gordinha’ ou ‘rolinho’. Costuma observar as pessoas magras na rua e sente-se envergonhada com seu peso. Verbaliza, ainda, que gostaria de fazer uso de algumas vestimentas sem preocupar-se com o caimento destas no seu corpo. Após iniciar o acompanhamento psicológico, ela adquiriu um espelho que lhe permitisse ver a imagem de seu corpo por inteiro, uma vez que não possuía um:

... Eu estava pensando, não é de hoje, na minha casa só tem um espelho no banheiro e pequeno; quando quero ver meu corpo olho no reflexo da porta da estante que é fumê escuro e não dá para me ver nitidamente... estou pensando em comprar um espelho grande para que eu possa me ver por inteiro, assim observar o meu tamanho... tenho a impressão que, se eu me ver de fato como estou, talvez consiga tomar consciência que preciso fazer algo para emagrecer.

V. adquiriu o espelho e comentou que há dias em que se sente incomodada por achar-se gorda, mas há dias em que se sente magra. A paciente relatou que, para ela, ser gorda é ser feia e emagrecer seria possuir a plena felicidade, pois assim estaria bem consigo mesma. Verbaliza que, às vezes, sente-se velha por ser gorda:

... Emagrecer seria a felicidade, pois iria sentir-me mais nova ... é como se a minha gordura estivesse relacionada com a velhice e eu quero emagrecer para me sentir mais nova ... é como se eu voltasse no tempo, como mesa que estivesse coberta de pó, o móvel fica parecendo algo velho, mas sabe-se que embaixo de toda aquela poeira há uma mesa bonita...

V. vem de uma família na qual os pais também são obesos. Da união de seus genitores nasceram três filhos: a irmã mais velha, com 44 anos, bem magra; o irmão de 42 anos, também com excesso de peso e V., a mais nova. A paciente descreveu o genitor como uma pessoa controladora e agressiva, que surrava os filhos. Relata que, quando criança, ele cobrava-lhe a perfeição em tudo o que fazia. A mãe também era uma pessoa controladora, bem mais que o pai. V. reclamou que se sente excluída pela sua família, tanto ela quanto seus filhos e marido. Diz que todos seus familiares a comparam com a mãe e que todos as acham muito parecidas em aspectos como: temperamento, traços físicos, assim como problemas de saúde (varizes e dores no joelho). Esta comparação a incomoda muito:

... Lembra que te falei, que achava que ser gorda era ser feia e velha... eu não acho minha mãe gorda, feia e velha, não acho nada disso; acho ela bonita, mas sabe o que é, o cheiro de velho me incomoda e acho que estou ficando com o mesmo cheiro, o mesmo cheiro que tinha minha avó... às vezes queria que isto ficasse guardado no fundo do baú... eu não gosto destes pensamentos; parece que estou traindo minha mãe, parece que estou com nojo dela, por causa do cheiro.

Ao falar sobre a irmã, verbaliza que sente inveja da mesma, que é magra e não leva desaforo para casa. Diz isto devido ao fato da irmã não ser manipulada pelos familiares, como ela própria. Disse que acredita que o hábito de comer em excesso, que possui hoje, é devido à imposição que os pais fizeram quando era pequena:

... Se você põe comida no prato tem que comer tudo, dizia minha mãe.

Ocorreram algumas mudanças na vida de V. há quatro anos. Morava em uma outra cidade, juntamente com marido e filhos; em decorrência de problemas financeiros, voltou a morar em Botucatu, cidade onde, atualmente, moram todos seus familiares. Sua residência é bem próxima à casa de seus pais e irmãos; assim, faz relações entre o fato de ter engordado com o de estar próxima à sua família:

Quando mudei daqui para outra cidade percebi que comecei a engordar; aí emagreci um pouco e estabilizei, ficando em média com 67kg. Lá eu me sentia feliz, eu era livre; conseguia me controlar, nunca deixei de fazer as coisas de comer para as crianças (pão, bolo e doces). Eu não engordava ... eu comia, mas comia feliz, então parecia que a comida não me engordava. Agora como e me sinto triste e estou engordando...

Essa tristeza constante, diz a paciente, é devido ao fato de morar próximo a sua família (pais, irmãos e cunhados), pois todos exercem grande controle sobre seus atos e atitudes, tanto dela quanto de toda sua família.

Quanto aos filhos, verbaliza que costuma controlá-los. Procura colocar limites nesse seu controle, pois sabe que há um certo exagero. O primeiro filho, com 17 anos, e o segundo, com 16, são magros. Quando menores, obrigava-os a comerem sem fome, como fazia seus pais com ela quando era criança.

... Então eu penso na educação que tive e acho que estou fazendo o mesmo com meus filhos ... assim que ponho comida no prato eu obrigo os filhos a comerem até o fim, porque comida não pode jogar fora , porque é caro e outras coisas ...

Quanto ao marido, sente-se segura, pois ele gosta dela; mas reclama do seu comportamento quando ele fica agarrando-a durante o dia. Ele é caminhoneiro e viaja, ficando mais em casa nos finais de semana. Seu relacionamento com o mesmo é permeado de afetividade. Quanto ao aspecto sexual, verbaliza que:

É bom, mas poderia ser melhor.

Relatou ter bom relacionamento com o marido, porém, fica muito irritada quando ele bebe todo final de semana:

... Não que ele seja alcoolista, mas o álcool altera seu comportamento ... ele fica me agarrando, aí eu perco o desejo sexual... quando ele não bebe fica tudo bem, mas quando eu sinto o cheiro de cerveja aí eu gelo ... geralmente ele bebe nos finais de semana... fica arrumando o caminhão e tomando cerveja e eu fico contando as latinhas.

V. relatou que costuma abusar da alimentação durante o final de semana; desconfia que é devido à presença do marido, pois ele exige atenção dela o tempo inteiro e acha que acostumou a ficar sozinha, durante a semana. Sente-se também incomodada com o fato de ele procurá-la e agarrá-la, mesmo na frente de outras pessoas. Diz que, devido a esse fato, procura comer mais vezes evitando assim, olhar-se no espelho que comprou, pois sente-se gorda e feia nos dias em que o marido está com ela:

Às vezes eu quero mostrar minha sensualidade, mas tenho medo de atrair pessoas que não quero, tenho medo de não saber lidar com minha sensualidade... isto me deixa confusa...

Contou que não teve orientação sexual da mãe e obteve informações pelas amigas. Iniciou sua atividade sexual aos 16 anos em um relacionamento que não teve muita importância. Quanto ao prazer sexual, com o marido, V. faz o seguinte comentário:

Eu acho que está faltando alguma coisa, talvez um pouco mais de carinho; eu sei que vou ter prazer na relação sexual, mas faltam as preliminares, falta o namoro antes do ato sexual...

Já conversou sobre isso com o marido, mas pouco tem mudado e, às vezes, se sente usada pelo marido, principalmente quando ele bebe. Contou que outro dia o marido a procurou para ter relação sexual, cheirando a bebida alcoólica e ela disse não. Disse ter se sentido bem consigo, com essa atitude:

É como se eu falasse para ele, ou eu ou a bebida. Eu não tenho que aceitá-lo como ele quer.

V. afirmou que não está mais se preocupando tanto com os problemas dos outros, como sempre fez, mas receia ficar egoísta por começar a pensar muito em si e deixar os outros de lado. Diz que antes cobrava de si solução para os problemas da família e como não conseguia, ficava triste e comia, como se a comida fosse a única satisfação da sua vida. Achou que também está se aceitando melhor:

Às vezes eu fico com a impressão de que não gostava de mim; acho que estou mais tolerante e cobrando menos de mim. Antes parecia que eu mesma me irritava. Acho que agora estou me aceitando mais como eu sou e aceitando mais as pessoas. Parece que o fato de eu me aceitar tem a ver com eu aceitar mais as outras pessoas. Estou até aceitando que meus filhos ainda não tenham uma definição profissional.

A paciente também falou que está diminuindo a alimentação. Antes comia sem ter fome, comia porque a comida estava gostosa:

Parece que antes tinha que comer tudo, mesmo sem fome. Às vezes exagero na comida, mas percebo que não me sinto tão culpada como antes.

Quanto ao atendimento psicológico, V. faz a seguinte observação:

Eu saio daqui e chego na minha casa e fico relembrando o que falei aqui e fico pensando de onde saiu aquelas coisas, onde eu fui buscar aquilo. Não me incomodo de vir aqui, até gosto, eu quero me conhecer... para eu ser alguém não vou me bastar se ficar dependendo do amor de meu marido e meus filhos; eu não quero desprezar o amor deles, mas quero bastar-me no amor por mim mesma... o amor por mim não está bem, pois estou brava comigo, não consigo emagrecer e isto me enraivece ...

 

 

Discussão do Caso

V. procurou o serviço de psicologia do ambulatório de Botucatu, mediante a tomada de consciência de que o seu problema com excesso de peso era de origem emocional. Assim, recebeu acompanhamento psicológico durante 18 sessões. Durante esse tempo foram coletados dados a seu respeito através de entrevistas semi-estruturadas, sessões de acompanhamento psicológico, e do Desenho da Figura Humana.

A análise de trechos da sua fala, gravados durante os atendimentos, evidenciam claramente situações de angústia, impotência, desespero, conforme encontrado nos textos revisados de literatura sobre obesidade, anteriormente apresentados. A paciente revela que aumenta a ingestão de comida frente a situações de preocupação, ansiedade, depressão ou insuportáveis, confirmando a afirmação dos autores de que por trás de toda compulsão alimentar há fatores emocionais que impulsionam ao ato obsessivo (Woodman, 1980). Ao mesmo tempo, a paciente evidencia a utilização da hiperfagia como um mecanismo oral, regressivo, de lidar com os seus problemas atuais.

No caso estudado pode-se observar claramente, pela fala da paciente, a angústia e impotência que a mesma sente diante de sua obesidade, pois verbaliza que possui um descontrole emocional e quando fica ansiosa costuma comer descontroladamente. O relato da história de vida de V. revela que diversos fatores geraram e mantêm esse descontrole. O fato de morar próximo à família é um deles, pois se sente o tempo todo controlada pela mesma. Refere que o seu peso aumentou quando voltou a morar próximo à família de origem e que esta exerce controle sobre si, seus filhos e marido. Segundo Woodman (1980), a comida também pode ser usada como um meio de controlar o próprio destino, de exprimir desafio ao controle dos outros.

Antes de iniciar o acompanhamento psicológico, V. sentia rejeição pelo seu próprio corpo, o que pode ser deduzido pelo fato de ela não possuir em sua casa, na época, um espelho que lhe permitisse ver com nitidez sua verdadeira imagem; assim, não podia se ver verdadeiramente como era, ou seja, obesa. Isto também nos revela a negação da sua obesidade. Woodman (1980) afirma que na mulher obesa a imagem do corpo é distorcida.

Quanto à sua infância, relata que os pais eram pessoas controladoras. Ela sentia que o pai tinha uma certa predileção por ela e, assim, não podia ter comportamentos que provocassem decepção no genitor. Diz Woodman (1980), com base em seus estudos:

As mulheres obesas, na maioria dos casos, eram garotinhas tolerantes e abnegadas, cuja principal alegria na vida era satisfazer o papaizinho. De modo geral, no ambiente de mulheres obesas, a mãe tende a ser dominadora em relação a toda família e considera o pai fraco e incompetente em seu relacionamento com o mundo (p.36).

A história pregressa da paciente mostra que a genitora era uma pessoa forte e dominadora no núcleo familiar. Ela impôs aos filhos uma imagem do pai não condizente com o que a paciente pôde perceber após o início do acompanhamento psicológico; ela percebeu que essa imagem fora distorcida pela genitora durante a sua infância.

Kathalian (1992) faz referência à imagem corporal, explicando que a imagem que as pessoas introjetam acontece através do processo de identificação com figuras representativas da família. Neste caso, parece que V. se identificou com os aspectos patológicos da sua mãe e avó materna, quando fez referência ao fato de estar ficando igual a elas nos aspectos físicos. A paciente revela uma busca desesperada pela própria identidade, em termos físicos e psíquicos. Quer sentir que controla o próprio corpo e a própria vida. Sem isso desenvolve um crescente sentimento de desespero. Assim, verbaliza que gostaria de bastar-se no amor por si mesma, não gostaria de depender tanto dos outros, mesmo dos filhos e marido.

Woodman (1980) afirma em seu livro que:

Não comer e ser esguia são considerados sinônimos de ser boa, corajosa , moralmente vigorosa, bela, capaz, bem sucedida, feminina e desejável. Perder peso submeteria todas essas fantasias à prova. (p. 38)

Assim, ao verbalizar que o significado de ser magra é ser bela, V. pode estar expressando uma vontade de mudar a sua própria personalidade, o ser fraca pelo ser forte. Com relação a seu relacionamento afetivo, verbaliza ter um "bom" relacionamento com o marido, mas que o mesmo poderia ser melhor. A paciente revela uma insatisfação quanto a sua sexualidade, o que remete à relação entre comer exageradamente e sentir frustração sexual, lembrando o que afirma Kaufman (2002) sobre a sexualidade das obesas. Em sua fala, V. também verbaliza claramente, o medo de emagrecer e ficar atraente. De acordo com Kaufman:

A gordura pode ser um mecanismo de defesa utilizado pela obesa para negar sua sexualidade, evitar os perigos a esta associados e protegê-la do assédio dos homens. É como se seu objetivo fosse construir um muro de carne entre ela própria e os outros. As mulheres ficam obesas como uma forma de neutralizar sua identidade sexual. Muitas mulheres mostram um claro temor de parecerem sexualmente atraentes (p.08).

Essas idéias também são defendidas por Bychowski (1950), Kathalian (1992 e Paiva e Silva (1994) em seus trabalhos, conforme já apresentado.

A análise e interpretação dos dados e desenhos coletados, com base nos trabalhos de Machover (1962) e Van Kolck (2001), também mostram sentimentos de agressividade contida, falta de controle, inibição, ansiedade, falta de confiança em si mesma e insegurança. A análise dos desenhos revela uma evidente negação da obesidade por parte da paciente, uma vez que nenhuma das figuras que ela desenhou apresenta excesso de peso corporal. Os dedos das mãos, em forma de garras, revelam a sua agressividade reprimida, a qual ela não consegue expressar no seu cotidiano, assim como revelam a sua dificuldade em lidar adequadamente com as pessoas do seu ambiente. Os desenhos, em ordem de elaboração, são inicialmente mais simples, revelando a paciente sem vaidades; mas vão ganhando uma certa complexidade e o último revela uma figura feminina mais cuidada e aparentemente mais equilibrada, sugerindo a mulher ideal, esbelta e feminina, que certamente a paciente gostaria de ser, projetando no desenho o seu desejo de tornar-se atraente. Observa-se, ainda, no último desenho uma atenuação dos afiados dedos-garras; embora ainda pontudos, apresentam-se mais delicados, como que expressando uma certa elaboração da agressividade, há tanto tempo represada. Isso foi atribuído ao processo de atendimento psicológico, no qual a paciente encontrou um espaço para falar de si e de seus sentimentos reprimidos.

A análise dos desenhos também mostra que V. evoluiu durante o seu processo de acompanhamento psicológico, uma vez que revela uma melhora da sua auto-imagem. Ao final do acompanhamento, pôde-se constatar que, embora V. não tivesse perdido peso, ela conseguiu estabilizá-lo, como desejava.

Caso 2: Paciente M.L.

Idade: 37anos Filhos: 2 Sexo: feminino

Altura: 1,72m; Peso: 118kg.; IMC: 40

Estado civil: casada Profissão: empregada doméstica; do lar

História de Vida

A paciente relatou que começou a engordar há 10 anos. Atribuía o problema à tireóide, apesar de o médico descartar essa possibilidade através de exames. Antes de começar a engordar, mantinha seu peso em 68 kg. M.L. é a filha mais velha de uma família de cinco irmãs. Sua mãe tem 60 anos e o pai faleceu há doze, com 49; o mesmo fazia uso abusivo de álcool. O pai, segundo relato da paciente, era uma pessoa agressiva com ela e com toda sua família. A paciente contou que, pelo fato de ser a filha mais velha, sofreu mais com a agressividade do genitor. Lembra que na sua infância, várias vezes, alcoolizado, o pai colocava a mãe e suas irmãs para dormirem fora de casa, ao relento, mesmo chovendo. O pai não permitiu que ela estudasse, para que cuidasse das irmãs; sente-se revoltada com isso.

O relacionamento com a mãe era harmonioso, apesar de a genitora trabalhar na lavoura; esta não dispunha de muito tempo para cuidar dos filhos. Até os 10 anos, a paciente foi cuidada pela avó:

Minha avó era a melhor avó do mundo, muito carinhosa e sempre fazia comida gostosa para nós.

A paciente relata que hoje não se sente amada pela mãe:

Acho que minha mãe gosta mais da minha irmã que mora com ela e da outra que reside em São Paulo.

Aos 12 anos, M.L. começou a trabalhar como doméstica e reclama que não teve infância, nem mesmo adolescência. Verbalizou que, aos dezesseis anos, sua vida começou a melhorar, pois passou a morar no serviço e sua liberdade aumentou. Logo conheceu um rapaz e com ele ficou amasiada por seis anos. Separou-se dele por motivos como infidelidade e agressão física por parte do mesmo. Após a separação, necessitou da ajuda dos pais, pedindo-lhes abrigo. Enfrentou o preconceito de toda família, visto que o núcleo familiar era conservador e não aceitava o fato de ela ter se separado.

M.L. relatou que, apesar de seu relacionamento com o pai ter sido conflituoso, sente muita falta dele, pois a família era mais unida quando ele era vivo. Depois da morte dele, percebe a casa da mãe fria, sem calor afetivo. Refere, ainda, que tem dúvidas quanto aos sentimentos de todos que a rodeiam:

Acho que ninguém gosta de mim ... nem eu mesma; às vezes acho que sou chata, acho que implico com os outros, acho que sou feia... não sei por que nasci, deveria ter morrido... tudo dá errado... tudo que quero não consigo.

A paciente iniciou o seu tratamento para obesidade no Ambulatório Regional de Especialidades NGA-11, em Botucatu., no final de 2001. Retornou em abril de 2002 para avaliação médica, porém, não tinha emagrecido e não fizera uso do medicamento receitado, por não acreditar no mesmo. Relatou que há sete anos passou pelo mesmo médico, tomou o medicamento por duas semanas e não conseguiu emagrecer, apesar de ter tido amigas que fizeram o tratamento com sucesso. A paciente não acreditava na sua possibilidade de emagrecer. Decidiu retornar ao tratamento devido a fortes dores na coluna e em todo o seu corpo. Em um dos seus retornos, teve conhecimento do encaminhamento para atendimento psicológico na própria unidade. Solicitou ao médico para que ela também pudesse receber esse acompanhamento, uma vez que se encontrava em uma fase de vida difícil, ficando irritada e nervosa com facilidade.

A paciente está casada há 22 anos. Dessa relação, nasceram dois filhos: J., homem, atualmente com 16 anos e C., mulher, com 12 anos. M.L. reclama que o marido apresenta impotência sexual há, mais ou menos, dez anos; a princípio achava–se culpada pelo problema do marido, mas hoje sabe que não tem culpa por esse fato. Inclusive, orientou-o a procurar tratamento, mas o mesmo se recusou. Também já chegou a sugerir a ele que procurasse outra mulher para manter relações sexuais, mas ele não demonstrou interesse. M.L. diz que os sentimentos que cultivava pelo marido acabaram e não tem esperança de sentir algo por ele novamente. Relata que ainda não saiu desse relacionamento por sentir dó dele. Percebe-o como uma pessoa fraca e muito dependente dela, inclusive financeiramente. Devido a essa relação fracassada, M.L. procurou relacionamentos extraconjugais.

Nos primeiros atendimentos, M.L. descreveu a confusão sentimental que estava vivendo. A paciente estava relacionando-se com dois outros homens, ao mesmo tempo. Há dez anos mantinha relacionamento com P., com quem tinha uma relação não estável; via o amante esporadicamente. Relatou que seu relacionamento sexual com ele era completo, permeado de muito desejo e prazer. A paciente disse, também, que essa relação era angustiante, já que não tinha dia certo para encontrá-lo e as brigas eram constantes, o que a deixava irritada e fazia com que perdesse a paciência com facilidade. Seus encontros ocorriam em torno de uma vez por mês. Disse que, por muitas vezes, mesmo tendo desejo, não o procurava. Achava que esse papel cabia a ele. Nesse período de espera ficava angustiada, nervosa, triste. Reconhece que comia mais que o habitual, principalmente doces. Em conseqüência dessa instabilidade, iniciou uma nova relação extraconjugal, com um outro homem, aproximadamente vinte anos mais velho do que ela. Sua confusão se estabeleceu, como ela própria verbalizou, em decorrência desse relacionamento. Com P., o retorno de carinho não era tão intenso e havia constantes desavenças entre o casal. No relacionamento com o homem mais velho havia atenção, afetividade e carinho com freqüência; além disso, M.L. recebia ajuda financeira do segundo amante. A confusão com o amante mais velho dava-se pelo fato de questionar se após assumir um casamento com o mesmo, ele teria a mesma motivação que vinha demonstrando ter em relação à sua vida social, afetiva e, principalmente, se o seu interesse sexual continuaria o mesmo com o passar dos anos. Sentia-se muito confusa quando na companhia do amante mais velho, pois sabia que ele tinha muito a lhe oferecer, principalmente estabilidade financeira, o que P. nunca lhe ofereceu, mas, ainda assim, preferia a companhia do mais novo à do mais velho. O relacionamento sexual entre M.L. e o amante mais velho não era tão intenso, como o que mantinha com P. M.L. verbalizou que brigava muito com este e ficava irritada com qualquer coisa, pois este não lhe dava segurança; quando se encontravam era ótimo, mas nunca sabia quando iria reencontrá-lo. Para amenizar sua ansiedade, comia muito:

Eu ficava ansiosa em vê-lo, aí eu comia. Ficava histérica , nervosa , comia e bebia ... não era arroz e feijão e sim muito doce... mesmo que fosse de madrugada, comia pão com queijo, ou então fritava ovo, lingüiça , o que tinha. No outro dia, levantava cedo, e lá para as nove horas comia bastante e exagerava no almoço e jantar.

Isso acontecia principalmente nas noites em que ela e P. brigavam. Disse que passava o dia pensando nele e comendo.

Durante o processo do acompanhamento psicológico, M.L. conseguiu resolver sua instabilidade afetiva. Terminou o relacionamento com o amante mais velho e firmou seu relacionamento com P. Os encontros com este ficaram mais freqüentes e sua vida sexual melhorou. Durante o atendimento psicológico, M.L. contou que se sentia menos ansiosa, estava mais tolerante com os filhos e mais tranqüila no serviço. Disse que, sem tomar remédio, conseguiu emagrecer dois quilos. Atribuiu isso ao acompanhamento psicológico, uma vez que antes não conseguia emagrecer, mesmo achando que fazia regime. O fato de ter emagrecido a incentivou a tomar o remédio receitado pelo médico. M.L. comentou as situações que antes aumentavam a sua ingestão de comida:

Quando fico nervosa com alguma coisa que não dá certo como sem controle e este comportamento vem por vários anos... eu estava de mal com a vida, revoltada, não conseguia nada. Quando fico ansiosa, procuro a comida para acabar com essa ansiedade. Fico com raiva de mim porque a coisa não dá certo, sinto-me culpada por isso e aí como doces, salgados, tomo cerveja , tudo que engorda; por várias vezes tive vontade de morrer . Acho que comendo eu esqueço os problemas; parece que fico mais calma. No outro dia, geralmente eu penso... não acredito que comi tudo isso... Eu sempre fui de comer bastante, mas não arroz, feijão; é mais massas, salgadinhos, doces, tudo que engorda... se você comer um prato de arroz com feijão não engorda tanto... antes eu não pensava assim; agora consigo pensar desta forma... agora que eu consegui emagrecer, quero continuar emagrecendo.

A paciente relatou que está conseguindo controlar a alimentação:

Antes eu ficava muito ansiosa; agora estou mais tranqüila, calma, estou conseguindo dormir bem à noite. Antes de vir aqui, ficava pensando nos meus problemas e não achava resposta; achava que os outros não gostavam de mim, que eu era feia, chata, que até minha mãe não gostava de mim. Agora tenho a impressão de que gostam de mim. Antes olhava no espelho e quando via meu tamanho ficava com raiva, tinha vontade de quebrar o espelho para não me ver... agora eu olho e me vejo mais magra; aí eu falo: tenho que emagrecer mais ainda e sei que vou conseguir... Antes achava que seria impossível emagrecer. Para mim, foi uma vitória. É a mesma coisa que ganhar um troféu. Antes eu tomava remédio que comprava na farmácia, mas continuava comendo... Eu acho que mesmo agora, tomando o remédio que o médico receitou, se eu não estivesse fazendo acompanhamento psicológico, não teria emagrecido... vindo aqui, eu senti força e passei a acreditar que conseguiria emagrecer. Até fiquei incentivada a tomar o remédio; cada vez que eu me deparava com a comida pensava:não posso comer muito.Se falo para a psicóloga que diminuí a comida não posso mentir para ela... Antes achava que não comia muito, agora eu percebo que exagerava.

Atualmente M.L. encontra-se onze quilos mais magra e está satisfeita com o atendimento psicológico. Em decorrência disso, não fica mais nervosa ou ansiosa como antes e, conseqüentemente, seu relacionamento como P. melhorou muito, inclusive o sexual, que está mais intenso. A melhora também foi percebida pelos filhos. Porém, M.L. não faz referências ao marido. Coloca apenas que sente-se mais segura para assumir um relacionamento mais sério com P. Diz ter receio de ter alta do tratamento psicológico e voltar a engordar. Agora que ela sabe que é capaz de emagrecer não quer retornar ao peso anterior e, sim, continuar emagrecendo.

 

 

Discussão do Caso

M. L. iniciou seu acompanhamento psicológico devido à indicação médica. Desde o princípio demonstrou motivação. Desejava entender os motivos pelos quais mantinha-se obesa. Ao longo do acompanhamento foram percebidos significativos aspectos emocionais, que, provavelmente, tiveram relação direta com a instalação da obesidade da paciente. Vários acontecimentos ocorreram no mesmo período em que M. L. começou a ganhar peso; entre eles, seu relacionamento extraconjugal, permeado de insegurança. Também foi submetida a uma cirurgia de trompas e teve dificuldades em seu relacionamento conjugal. M.L. lembrou fatos relacionados à comida, na sua infância. Citou a avó, que era carinhosa e fazia coisas gostosas para agradar os netos na ocasião. Epps (1997), tal qual Hamburger (1951), fala da relação inconsciente de associar a comida (que o organismo transforma em açúcar) com amor, carinho, bem querer, com afeto. A paciente contou que quando estava ansiosa, nervosa ou irritada, comia sem limites, de preferência doces. “O obeso é voraz, e sua voracidade um buraco negro, que ele tentará preencher com o alimento, sobretudo com o açúcar”, diz Barros (1996, p.102).

Kathalian (1992) considera que a fixação ao doce, está dentro do grau mais primitivo da fixação, ou seja, fixação na fase oral. Na regressão à fase oral é como se o sujeito experimentasse novamente, inconscientemente, as sensações da ingestão de alimento associadas com o sentimento de ser amado e de segurança.

M.L. iniciou seu atendimento relatando que, freqüentemente, irritava-se com facilidade. Percebe-se que esse seu estado emocional poderia estar associado à insatisfação consigo mesma, possivelmente sua insatisfação sexual, uma vez que o seu relacionamento conjugal não era satisfatório e o marido era impotente. Barros (1996) assinala que na obesidade há a pobreza da vida sexual do indivíduo. “A necessidade de amoré confundida com a necessidade de comida”, diz Woodman (1980, p.23). Nota-se, ainda, que, com a estabilidade do seu relacionamento afetivo com o amante P., a paciente passou a ter significativas mudanças em seu peso. Kaufman (2000) faz significativos comentários sobre obesidade e sexualidade. Segundo o mesmo, a pessoa sexualmente realizada tem um contato satisfatório com seu corpo; percebe suas necessidades e procura racionalmente entendê-las. Diz ele que excesso de alimentação e casamento infeliz podem ter interação importante. Segundo Kaufman, a insatisfação conjugal pode chegar a um ponto em que as carências sexuais são confundidas com a fome física, podendo ser atendidas concretamente, ainda com a vantagem de não depender de ninguém para se satisfazer. Continua o autor, dizendo que muitas mulheres, de forma consciente ou inconsciente, engordam como tentativa de inibir o desejo sexual do marido e também o seu próprio desejo sexual.

De acordo com o pensamento de Campos (1998) e de outros autores já apresentados, como Bychowski (1950) e Schick (1947), o alimento pode representar uma gratificação simultânea da sexualidade e da auto-estima. Diz Campos que o alimento significa um substituto do amor e do prazer sexual e que certos indivíduos têm convicção de que o prazer sexual é uma coisa má e proibida, buscando, assim, um substituto para este. Nessa situação, a obesidade serve como uma barreira, dificultando as relações sexuais e o prazer oral, da alimentação, substitui o prazer genital.

Os desenhos da Figura Humana realizados pela paciente, analisados segundo Machover (1962) e Van Kolck (2001), mostram significativas evoluções da paciente durante o processo de acompanhamento psicológico. No primeiro desenho as figuras masculina e feminina são grotescas, sendo tão semelhantes que podem ser confundidas. As figuras femininas aqui apresentadas revelam a auto-imagem da paciente.

Chama a atenção a “fraqueza” da primeira figura desenhada e dos seus braços, finos, revelando uma incapacidade de lidar com o seu meio ambiente. No segundo desenho, realizado após alguns atendimentos, percebe-se significativa mudança; o desenho possui detalhes, como botões, cabelos e sapatos, e os braços são mais fortes, embora a figura ainda seja grotesca. Nota-se aí uma melhora da auto-imagem de M.L.

A análise dos desenhos, segundo Van Kolck (2001), revela sentimentos de inferioridade, inibição, comportamento dependente e ansioso, bem como insegurança. Sua dependência oral é facilmente reconhecida nos desenhos projetivos. O terceiro desenho apresenta uma figura bem melhor elaborada e mais feminina do que as anteriores. Diferentemente do que aconteceu antes, a paciente desenhou a figura da mulher em primeiro lugar, denotando uma aceitação de seu eu e de sua feminilidade. A análise do terceiro desenho revela um melhor contato com a realidade, uma melhora da sua habilidade em lidar com o seu meio ambiente. Os braços agora desenhados são fortes e bem torneados e mostram uma evolução das características de personalidade de M.L. Os braços e as mãos estão relacionados com significados psicológicos que se referem, primordialmente, com o desenvolvimento do ego e a adaptação social. Com as mãos e os braços mantêm-se contatos com as pessoas do ambiente. Com os braços ama-se e acaricia-se; assim, pelos desenhos, percebe-se que, inicialmente, a forma da paciente lidar com as pessoas estava deficiente e agressiva. Com o processo de atendimento psicológico, a paciente evoluiu e pôde expressar o seu progresso em sua última figura feminina, expressando uma melhora na sua relação e no modo de lidar com seu ambiente e com a pessoa amada.

 

Conclusões

Como é possível constatar neste estudo, pela apresentação do material e análise da fala das pacientes, as mesmas utilizaram-se do comer em excesso como um mecanismo regressivo oral para aliviar suas ansiedades, referentes aos vários aspectos de suas vidas, como conflitos familiares, afetivos, sociais, sexuais e insatisfação com sua própria imagem. Os resultados obtidos no estudo confirmam os dados encontrados na revisão da literatura sobre os aspectos psicológicos e psicossomáticos da obesidade, em geral , e da obesidade feminina, em particular. O estudo mostra, também, a importância da compreensão da psicodinâmica da obesidade, do tratamento psicológico e da participação do psicólogo em equipes multiprofissionais que prestam serviços e atendimentos a obesos nos mais diversos contextos.

 

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Endereço para correspondência
Av. Duque de Caxias, 551 - Jd. Europa
CEP 13416-270 Piracicaba, SP
E-mail: maazevedo@terra.com.br

Enviado em Março/2004
Aceite final Dezembro/2005

 

 

1Trabalho apresentado na na XXXIII Reunião Anual de Psicologia da Sociedade Brasileira de Psicologia, em Belo Horizonte, outubro/2003. Apoio recebido para apresentação do trabalho no evento: FUNDUNESP