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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.14 no.2 Ribeirão Preto Dec. 2006

 

ARTIGOS

 

Merleau-Ponty e a evolução espontânea da psicologiaI

 

Merleau-Ponty and the spontaneous evolution of psychology

 

 

Danilo Saretta Verissimo; Reinaldo Furlan

Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste artigo, abordamos a inquietação científica presente na psicologia na perspectiva do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, com ênfase na aproximação do autor em relação à psicologia da Gestalt e à psicanálise. Para o filósofo, as ciências humanas lidam com as suas contradições internas e apresentam um desenvolvimento espontâneo. A instabilidade das ciências humanas, entre a objetividade e a subjetividade, leva-as a uma constante revisão das relações entre estes dois pólos. Com efeito, observa-se um aprofundamento destas ciências, entre elas a psicologia, em direção de uma melhor circunscrição do seu objeto de estudo. Neste sentido, o pesquisador é ator de uma constante autocrítica, ele é árbitro dos conflitos entre as perspectivas realista e intelectualista. A psicologia da Gestalt e a psicanálise ocuparam um papel positivo na filosofia de Merleau-Ponty e representavam o movimento de “autocrítica do psicólogo”, que, seguido e radicalizado, revela as “verdadeiras inspirações” destas psicologias e possibilita a elaboração de novos instrumentos de reflexão filosófica.

Palavras-chave: Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia, Teorias e sistemas em psicologia, Psicologia da Gestalt, Psicanálise.


ABSTRACT

In this article, we approach the scientific concern that there is in Psychology from the perspective of the French philosopher Maurice Merleau-Ponty, emphaisizing the author's approuch of Gestalt's psychology and psychanalysis. According to the philosopher, Human Sciences deal with their internal contradictions and present a spontaneous development. The instability of the Human Sciences betwen objectivity and subjectivity leads to their constant revision of the interreations betwen these two points. In fact, it is observed that these sciences, including psychology, are working towards a better circunscription of their study object. In this matter, the researcher is the actor of constant self-criticism, he is the referee of conflicts betwen the realistic and intellectualistic perspectives. The Gestalt psychology and psychoanalysis played a positive role in Merleau-Ponty's philosophy and represented the "psychologist's self-criticism" movement in it which, followed and radicalized, revealed these psychologies "true inspirations" and makes it possible to elaborate new reflection instruments.

Keywords: Maurice Merleau-Ponty, Phenomenology, Theories and systems in psychology, Gestalt psychology, Psychoanalysis.


 

 

Neste artigo, abordamos a inquietação científica presente na psicologia na perspectiva do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, com ênfase na aproximação do autor em relação à psicologia da Gestalt e à psicanálise. Ambas ocuparam um papel positivo na sua filosofia e representaram o movimento de “autocrítica do psicólogo”, que, seguido e radicalizado, revelou as “verdadeiras inspirações” destas psicologias e possibilitou a elaboração de novos instrumentos de reflexão filosófica. Pode-se dizer que o acompanhamento da evolução científica espontânea, seguido de uma radicalização crítica, constitui o método utilizado pelo filósofo francês na sua aproximação com a psicologia.

Merleau-Ponty acompanhou a dinâmica epistemológica no seio da psicologia do início do século XX. Baseando-se no problema das relações entre a fenomenologia e a psicologia em Husserl, observou convergências entre elas. Segundo Merleau-Ponty (2001), Husserl subordinava a possibilidade de uma psicologia, encarregada da pesquisa sobre os fatos, a uma psicologia eidética, que, dedicando-se à reflexão sobre a experiência, depreendesse o seu sentido e oferecesse coerência e validade às noções a serem utilizadas pela psicologia empírica. Nos estudos de Sartre acerca da imaginação e da emoção fica patente a concordância com esse dispositivo husserliano (Bimbenet, 2004). A análise eidética, que respondia pela compreensão da essência ou do sentido do ato intencional, era então considerada indispensável ao conhecimento dos fatos. “A relação entre psicologia e fenomenologia deveria ser entendida de maneira análoga às relações entre física e geometria; foi preciso haver geometria para haver física” (Merleau-Ponty, 2006a, p. 405). Sartre, em seu trabalho sobre a imaginação, e baseando-se em Husserl, enaltecia a análise fenomenológica da essência da imagem como sendo certa e desqualificava a análise indutiva e experimental da imagem como sendo apenas provável. No entanto, Husserl também se referiu às distinções entre a psicologia eidética e a psicologia empírica, dando destaque a uma relação de entrelaçamento ou de envolvimento recíproco entre elas. O filósofo dizia, então, que todo conhecimento acerca dos fatos enseja intuições sobre as essências, e que o estudo destas não é um privilégio exclusivo da fenomenologia. Merleau-Ponty (2006a), comentando tais referências de Husserl, diz:

entre o ponto de vista da psicologia e o ponto de vista da fenomenologia, ou da psicologia empírica, o que há é sempre o homem. Por conseguinte, mesmo que nossa imagem empírica de ser humano seja adquirida com todos os pressupostos da psicologia empírica – que vê o homem situado numa causalidade do mundo –, essa psicologia empírica, quando atenta para o que descreve, sempre acaba por dar ensejo à inversão que não vê o homem como parte do mundo, mas como o portador da reflexão (p. 411).

Para Merleau-Ponty, o filósofo não é mais o “funcionário da humanidade”, um juiz dotado do poder de julgar os conflitos entre o empírico e o transcendental (Bimbenet, 2004). Além disso, para Merleau-Ponty (1994), os filósofos não possuem o direito de se reservar à interpretação última dos conceitos científicos, visto que não possuem o manejo profissional das técnicas científicas e, portanto, não saberiam intervir no terreno da pesquisa indutiva. As ciências humanas lidam com as suas contradições internas e apresentam um desenvolvimento espontâneo. A instabilidade das ciências humanas, entre a objetividade e a subjetividade, leva-as a uma constate revisão das relações entre estes dois pólos. Com efeito, observa-se um aprofundamento destas ciências, entre elas a psicologia, em direção de uma melhor circunscrição do seu objeto de estudo. Neste sentido, o pesquisador opera uma autocrítica, ele é árbitro dos conflitos entre as perspectivas realista e intelectualista.

a autocrítica perpétua do cientista constitui uma forma de inquietude que é essencial às ciências humanas, e que responde exatamente ao espanto do filósofo face ao tema antropológico. Isso corresponde a dizer que aos olhos de Merleau-Ponty o psicólogo está longe do obscurantismo de que Sartre fala, e que os ‘fatos’ sobre os quais ele trabalha, longe de limitar sua compreensão do fenômeno humano, são para ele o lugar de uma possível reapropriação deste fenômeno (Bimbenet, 2004, p. 19).

Para Politzer (1928/2003), a história da psicologia moderna não corresponde à história de uma organização, mas à história de uma dissolução. Diz o autor: “o movimento psicológico contemporâneo não é senão a dissolução do mito da dupla natureza do homem” (Politzer, 1928/2003, p. 7). O autor destaca os dois significados mais comumente atribuídos ao termo “vida”. Um deles designa um fato biológico; e o outro designa a “vida propriamente humana”, a “vida dramática do homem”. “Esta vida dramática, diz ele, apresenta todos os caracteres que tornam um domínio suscetível de ser estudado cientificamente. E mesmo que a psicologia não existisse, é em nome desta possibilidade que se poderia inventá-la” (Politzer, 1928/2003, p. 12). As inspirações que levaram ao surgimento do que era a psicologia oficial são, na opinião do autor, opostas às únicas inspirações capazes de justificar a sua existência. Nessa perspectiva, Politzer considera três tendências da psicologia que operavam a dissolução da psicologia clássica em direção de uma psicologia voltada para o concreto1: a psicanálise, a Gestalttheorie, ou psicologia da Gestalt, e o behaviorismo. Em Crítica dos fundamentos da psicologia, Politzer (1928/2003) centraliza suas pesquisas sobre a psicanálise e define da seguinte forma o seu objetivo na obra:

Tratar-se-á, pois, de uma parte, de liberar a psicanálise dos prejuízos com os quais partidários e adversários a envolvem, procurando sua inspiração verdadeira, e opondo constantemente esta aos procedimentos constitutivos da psicologia clássica da qual ela implica a negação, e, de outra parte, de julgar as construções teóricas de Freud em nome desta inspiração. (p. 25, grifo nosso).

Ao termo “inspiração verdadeira” podemos aproximar o termo “latência”, utilizado por Merleau-Ponty (2000) para referir-se à psicanálise no que tange à crítica da ontologia positiva e do pensamento causal (Rodrigo, 2002). Merleau-Ponty (2000) diz: “Fenomenologia e psicanálise não são paralelas; é bem melhor: ambas se dirigem em direção à mesma latência” (p. 283). Com isso, torna-se mais clara a própria intenção de Merleau-Ponty junto à psicologia da Gestalt e à psicanálise. Considerando-as como eminentes representantes da autocrítica do psicólogo, ou seja, do movimento crítico e auto-reflexivo que existe no seio da própria psicologia, trata-se de procurar a sua inspiração, a sua latência, e de radicalizar a crítica, denunciando os postulados da antiga psicologia que possam ter sido herdados e, assim, impedir o termo do processo de renovação (Bimbenet, 2004). Há, sobretudo, objetivos filosóficos incitando a aproximação de Merleau-Ponty com a psicologia. O estudo sobre a percepção iniciado pela perspectiva da psicologia atenua o risco de que o discurso se instale de imediato em uma dimensão transcendental e, ao mesmo tempo, permite que o problema do transcendental seja compreendido em toda a sua extensão, inclusive com a compreensão de como se chega a ele a partir da atitude natural.

Se, por exemplo, nos propomos a fazer uma psicologia positiva da percepção, admitindo que a consciência está encerrada no corpo e sofre, através dele, a ação de um mundo em si, somos conduzidos a descrever o objeto e o mundo tais como eles aparecem à consciência e, através disso, a nos perguntar se este mundo imediatamente presente, o único que conhecemos, não é também o único do qual convém falar. Uma psicologia sempre é levada ao problema da constituição do mundo (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 93).

Mas, se para Merleau-Ponty não é possível começar sem a psicologia, também não é possível começar apenas com ela. A filosofia encontra-se antecipada na experiência e, por outro lado, ela não passa de uma experiência elucidada.

 

A psicologia da Gestalt

Pinto (2007) considera que, em Merleau-Ponty, as reflexões sobre a noção de forma constituem a expressão maior da relação entre filosofia e ciência. Com efeito, a noção de forma permite novas soluções ao problema das relações entre consciência e natureza. Na psicologia clássica, a unidade do campo perceptivo é analisada a partir da noção de sensação. A unidade do campo perceptivo é fundada, então, em operações de inteligência, responsáveis pela reconstrução do mosaico de sensações que constituem os dados perceptivos. A teoria da Gestalt rejeita a noção de sensação e nos leva a não distinguir o signo e a sua significação, o sentir e o julgar (Merleau-Ponty, 1966). Para Merleau-Ponty (1942/2006b), o que há de profundo na “Gestalt” não é a idéia de significação, mas sim a idéia de estrutura, que configura “a junção de uma idéia e de uma existência indiscerníveis, o arranjo contingente pelo qual os materiais passam, diante de nós, a ter um sentido, a inteligibilidade no estado nascente” (Merleau-Ponty, 1942/2006c, p. 319). A noção de Gestalt naturalmente desenvolvida faz da natureza e da idéia uma unidade (1942/2006b, p. 227).

A crítica ao “prejuízo do mundo objetivo” e a reconquista do campo fenomenal, operadas por Merleau-Ponty (1945/2005) na Fenomenologia da percepção, trazem alguma luz sobre o papel ocupado pela psicologia da Gestalt no seu pensamento. Nesta obra, o autor focalizou a experiência perceptiva, preocupado em explicitar nela o papel constituinte do corpo próprio e, assim, a inscrição natural da consciência. O filósofo iniciou sua trajetória de reflexão por um debate crítico com os pensamentos clássicos acerca da experiência perceptiva. Para ele, estes configuram, tão somente, o produto de reflexões que se afastam do fenômeno interrogado – desde que baseiam suas pesquisas no primado dos atributos percebidos dos objetos, primado que o filósofo denomina “prejuízo do mundo”. Neste sentido, a crítica ao “prejuízo do mundo” pode ser considerada a versão merleau-pontiana da redução fenomenológica (Pinto, 2006).

Merleau-Ponty fala em “prejuízo do mundo” para se referir ao primado do objeto percebido, tomado no sentido de análises realistas, sobretudo, e que o consideram enquanto constituído de fragmentos de matéria e concebido num espaço composto de pontos exteriores uns aos outros. Na perspectiva deste objeto real e fragmentário, a percepção é concebida como uma transposição de elementos reais para uma representação do mundo fundada nas impressões recebidas pelos órgãos do aparelho nervoso. Em outras palavras, a percepção, na perspectiva do prejuízo do mundo objetivo, é construída a partir daquilo que pressupomos estar nas coisas.

Mas, é principalmente sobre a noção de sensação que Merleau-Ponty se debruça, considerando-a um produto da consciência científica, que mascara a subjetividade ao invés de revelá-la. A sensação pura seria como um “choque instantâneo”, indiferenciado e pontual, um estado responsável pela ligação entre o mundo objetivo e nossos atos de significação. Tratar-se-ia de uma “impressão muda” que, tendo partido de estímulos elementares e havendo percorrido um trajeto nervoso rumo ao ponto cerebral em que é decodificada, adquire, então, um significado perceptivo. A sensação seria o elemento do conhecimento, um átomo perceptivo, parte real da percepção. Da ligação entre estímulos e sensações surgiu a hipótese de constância, expressão modelar do prejuízo do mundo objetivo. Com esta hipótese, admitida entre as concepções clássicas da percepção, sustenta-se uma relação direta entre a modificação da intensidade do estímulo e a modificação da sensação correlata, fixando-se, assim, a primazia do objeto e das qualidades que ele emite na forma de estímulos físico-químicos que, em contato com os órgãos dos sentidos, gerarão as impressões responsáveis pelas sensações de cor, de som, de dor, etc.

A ilusão de Müller-Lyer explicita o problema do prejuízo do mundo. No mundo, tomado em si, ambas as retas possuem medidas bem determinadas e idênticas. A visão, entendida nos parâmetros da óptica e da geometria, recebe, portanto, sinais bem definidos que expressam esta igualdade, dizem os psicólogos clássicos. Se há qualquer ambigüidade oferecida pelo objeto, esta se deve a algum processo interveniente, como a desatenção. A noção de atenção surge, então, como hipótese auxiliar destinada a proteger o prejuízo do mundo objetivo. Merleau-Ponty (2005) conclui que é somente no mundo objetivo que se pode colocar a questão de Müller-Lyer. O campo visual, tal como o experimentamos, é um meio em que noções ambíguas se encontram, é o meio da percepção espontânea, em que as duas figuras são apenas diferentes, em que seus vetores impõem configurações distintas que geram um contexto particular para cada uma delas.

É sobre o solo constituído pelas demarcações objetivas do mundo, sobre o solo do “prejuízo do mundo”, que a sensação pode ser nomeada o elemento fundamental da percepção, que se dá através da associação de sensações. Uns dirão que tal associação segue a contigüidade do objeto sensível no espaço e no tempo, outros dirão que ela recorre a recordações ou associações prévias. De um modo ou de outro, estas são respostas que pressupõem o que é preciso explicar, a saber, o caráter significante e já estruturado do mundo que temos a nossa volta.

Nos trabalhos experimentais e nas formulações teóricas elaboradas no seio da Gestalttheorie, Merleau-Ponty vislumbrou a possibilidade de reaproximação ao campo fenomenal, ao mundo da nossa experiência direta e ao qual ele pretendia dar um estatuto filosófico. A consideração da Gestalt como tema de reflexão por parte dos psicólogos significa um rompimento, principalmente com o empirismo, que funda o sentido do percebido no “encontro fortuito entre nossas sensações” segundo nossa natureza psicofisiológica. O sentido passa a figurar na percepção como uma organização irredutível. Para a Gestalttheorie, uma figura sobre um fundo é o dado sensível mais simples do qual podemos ter experiência. Isto implica que todo objeto perceptivo faça parte de um campo e que a pura impressão, ou sensação, seja desconsiderada enquanto momento da percepção. Avançando um pouco mais, afirma-se que todo objeto é percebido em um “horizonte de sentido”. Nota-se, portanto, que a significação do percebido não resulta de processos associativos e, sim, é pressuposta em qualquer idéia associacionista. “Não existem dados indiferentes que em conjunto formam uma coisa porque contigüidades ou semelhanças de fato os associam; ao contrário, é porque percebemos um conjunto como coisa que a atitude analítica em seguida pode discernir ali semelhanças ou contigüidades” (Merleau-Ponty, 1999, p. 39). Na percepção brota “de um só golpe” um sentido imanente à constelação de dados. Da percepção enquanto fenômeno de estrutura, Merleau-Ponty opera, então, uma radicalização que deságua no campo fenomenal, domínio em que as partes de uma paisagem possuem sentido apenas enquanto ideal de conhecimento, domínio em que a totalidade impõe-se como unidade inextricável e da qual fazemos parte, e em que o sentir volta a ser questão para um sujeito da percepção em comunicação vital, prática e concreta com o mundo.

Contudo, para Merleau-Ponty, a noção de Gestalt não foi levada as suas conseqüências mais importantes, o que fica atestado nas conclusões materialistas da escola de Berlim – em que as estruturas psíquicas e biológicas são reduzidas a estruturas físicas.

Em vez de nos perguntarmos que espécie de ser pode pertencer à forma e, revelada na própria pesquisa científica, que crítica ela pode exigir dos postulados realistas da psicologia, nós a colocamos entre os acontecimentos da natureza, a usamos como uma causa ou uma coisa real, e, assim, não pensamos mais segundo a ‘forma’ (Merleau-Ponty, 1942/2006c, p. 212).

Encontramos aqui uma menção à dimensão de crítica radical que Merleau-Ponty opera sobre a psicologia da Gestalt, já considerada um movimento de crítica no seio da psicologia contemporânea.

 

A psicanálise

Pontalis (1993) observa que o interesse que Merleau-Ponty dirigiu à psicanálise desde A estrutura do comportamento ultrapassa a preocupação geral com a não dissociação entre a filosofia e as ciências factuais do homem. De fato, a psicanálise, assim como a psicologia da Gestalt, teve um papel positivo nos esforços de Merleau-Ponty com vistas à superação do dualismo cartesiano e à explicitação da expressividade do sensível e da nossa pertença à natureza. A psicanálise foi lida pelo filósofo de maneira sincrônica à evolução do seu próprio pensamento – afirmação que não deve ocultar a dialética presente nesta leitura. De uma primeira abordagem de caráter estrutural-organicista, o autor passou a uma psicanálise existencial e, por fim, à sua leitura ontológica. Por ora, partindo da afirmação de Merleau-Ponty (2000) de que uma das mais significativas intuições da psicanálise refere-se à nossa arqueologia, esperamos destacar o que o filósofo francês considera como um apagamento das antinomias entre corpo e espírito na psicanálise freudiana, a partir das suas considerações sobre a sexualidade na Fenomenologia da percepção.

Pensar a nossa arqueologia implica buscar uma unidade capaz de se desenvolver, de se reestruturar e de, no interior do seu processo de complexificação, manter o fluxo entre o arcaico e o possível, entre o que foi possível realizar e o seu arcaísmo. De modo que tais clivagens tenham espaço somente enquanto formas ideais de expressão do que permanece unido de modo inextricável na experiência. É nesse sentido que caminha a leitura de Merleau-Ponty (1945/2005) da teoria da sexualidade freudiana. Há uma “zona vital”, aquém dos automatismos e da representação, em que as possibilidades da nossa existência são elaboradas. Esta zona vital compreende a história do nosso desenvolvimento, compreende, entre outras coisas, a história da nossa libido, tida como aquilo que move nossa intencionalidade enquanto sexualidade, ou seja, enquanto geradora de experiências eróticas.

Freud foi um autor importante para a revisão da noção de sexualidade. Segundo Merleau-Ponty (1945/2005), esta noção que durante muito tempo esteve atrelada a automatismos corporais reencontrou na psicanálise “as relações e as atitudes que anteriormente passavam por relações e atitudes de consciência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 218). Merleau-Ponty frisa que isso não implica uma biologização da psicologia e, sim, o descobrimento de um movimento dialético em funções antes consideradas simplesmente corporais. A sexualidade foi reintegrada ao ser humano e a todas as fases da sua vida, inclusive, à mais tenra infância.

O fato é que, ao dilatar a noção de sexualidade, Freud deixou em aberto certas ambigüidades. Se a sexualidade pode ser compreendida como uma forma de ser no mundo, devemos considerar que a existência como um todo possui uma significação sexual ou que, por outro lado, é a sexualidade que possui uma significação mais ampla, uma significação existencial? É certo dizer que, em Freud, o sexual não se encontra limitado ao genital e que, tampouco, a libido possa se limitar a um instinto, a uma atividade natural e com fins bem demarcados. Para Merleau-Ponty, a libido é, antes, “o poder geral que o sujeito psicofísico tem de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta” (1945/1999, p. 219). Com efeito, o filósofo francês tende a considerar a sexualidade de um homem como uma organização em que está projetada sua maneira de ser em relação ao mundo, em relação ao tempo e em relação aos outros homens. Desta forma, a vida sexual é concebida como a “elaboração de uma forma geral de vida” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p.219) e a sexualidade como uma “uma intencionalidade que segue o movimento geral da existência” (Merleau-Ponty, 1945/1999, p.217). Mas, se é assim que as coisas se passam, por que os obstáculos na sexualidade aparecem como signos privilegiados entre os sintomas que expressam o drama fundamental do neurótico? Merleau-Ponty responde a esta questão, primeiramente, lembrando que problema semelhante foi abordado na discussão sobre as regiões cerebrais e suas possíveis especializações (Merleau-Ponty, 1942/2006b). As regiões cerebrais não funcionam isoladamente, o que não impede, contudo, que uma lesão occipital acarrete um quadro clínico em que haja predominância de perturbações visuais. Em seguida, o filósofo comenta:

a existência biológica está engrenada na existência humana e nunca é indiferente ao seu ritmo próprio. Isso não impede, acrescentaremos agora, que ‘viver’ (leben) seja uma operação primordial a partir da qual se torna possível ‘viver’ (erleben) tal ou tal mundo, e que devamos nos alimentar e respirar antes de perceber e de ter acesso à vida de relação, ser para as cores e para as luzes pela visão, para os sons pela audição, para o corpo do outro pela sexualidade, antes de ter acesso à vida de relações humanas (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 221).

Com isso, Merleau-Ponty afirma o caráter primordial e muitas vezes “anônimo” da sexualidade na existência humana.

Mas como afirmar, a respeito de um sintoma, o seu caráter sexual? A redescoberta do corpo próprio operada por Merleau-Ponty revela-nos um modo de existência ambíguo. Visão, motricidade, sexualidade, entre outros, não são processos em “terceira pessoa”, e sim, funções que se cruzam e se confundem em um “drama único”. Do mesmo modo, a significação dos sintomas possui sempre uma significação mais geral em relação ao passado e ao futuro, ao eu e ao outro, ou seja, em relação às “dimensões fundamentais da existência”. Este é o sentido das interpretações no caso da moça afônica trabalhado por Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção. Seus sintomas, seguramente, possuem ligação com a história do desenvolvimento de sua sexualidade, o que inclui, na perspectiva psicanalítica, a história da relação com sua mãe, responsável pela interdição que desencadeara seus sintomas; possuem ligação, também, com sua atitude diante da finitude e diante de todos aqueles que a cercam, etc.

Mas, onde se encontra, afinal, a unidade de que falamos anteriormente e que mantém fluindo o arcaico em nós, que mantém circulando nossa história pessoal? Onde se encontra a chamada “zona vital” de que fala Merleau-Ponty? Ela é o próprio corpo, está em todo lugar dele, e em nenhum lugar alocada por si mesma. É no corpo próprio que se expressam as modalidades da nossa existência e isto não na forma de um signo que indica a sua significação, como a fumaça sinaliza a existência de fogo, mas na forma de um signo que é habitado pela significação. É no corpo que a existência se atualiza. Os sentidos que vivenciamos e que comunicamos ao mundo e a quem nos cerca são encarnados. Eles surgem, fluem e são elaborados no comércio do corpo com o mundo. E é nesse sentido que o inconsciente, considerado um locus de representação, é rejeitado por Merleau-Ponty – enquanto fruto da presença do realismo em Freud.

Para Merleau-Ponty (1945/2005) as psicologias do inconsciente e as da consciência possuem um parentesco na medida em que abordam conteúdos representativos. Nas primeiras tratam-se sempre de conteúdos manifestos duplicados em conteúdos latentes; nas segundas, conteúdos completamente expostos e distintos. Por outro lado, a psicanálise surgiu como um prolongamento das filosofias mecanicistas do corpo. Condutas complexas eram explicadas pelo instinto, particularmente pelo instinto sexual, ainda baseado em condições fisiológicas, e por composições de forças exteriores à esfera consciente e constituídas na infância (Merleau-Ponty, 1991). Com efeito, a noção de inconsciente, tal como formulada por Freud, apresenta um caráter dualista, pois forças reais, representadas pelas pulsões, ligar-se-iam a representações inconscientes cujo conteúdo remete-nos à infância (Bimbenet, 2004). Para Politzer (1928/2003), Freud, partindo de uma prática terapêutica coerente e concreta, construiu, no entanto, uma metapsicologia realista, que perpetua certas características do naturalismo próprio da sua época. O inconsciente é o elemento de transição entre “a vida anônima do corpo” e nossa vida pessoal expressa e deliberada. Mas, para Merleau-Ponty (1991), a descoberta realmente significativa de Freud refere-se à “osmose” entre essa vida anônima e a vida expressa presente na concepção freudiana de sexualidade e que, em outras palavras, significa a retomada da imbricação do corpo e do espírito. É nesta perspectiva, e não na do inconsciente, que o corpo torna-se o ponto de apoio para uma vida humana (Bimbenet, 2004). E é nessa perspectiva, também, que Merleau-Ponty retoma a idéia de recalque e a de complexo abordadas em A estrutura do comportamento para, na Fenomenologia da percepção, referir-se ao corpo como um complexo inato.

Assim como se fala de um recalque no sentido estrito quando, através do tempo, mantenho um dos mundos momentâneos pelos quais passei e faço dele a forma de toda a minha vida – da mesma maneira pode-se dizer que meu organismo, como adesão pré-pessoal à forma geral do mundo, como existência anônima e geral, desempenha, abaixo de minha vida pessoal, o papel de um complexo inato. Ele não existe como uma coisa inerte, mas esboça, ele também, o movimento da existência (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 125).

É sob a rubrica do “pré-pessoal”, de uma teoria do corpo sensível e da expressão, que o inconsciente é absorvido por Merleau-Ponty (Pontalis, 1993).

Para aquém dos meios de expressão convencionais, que só manifestam meu pensamento ao outro porque, em mim como nele, já estão dadas significações para cada signo, e que nesse sentido não realizam uma verdadeira comunicação, é preciso reconhecer, veremos, uma operação primordial de significação em que o expresso não existe separado da expressão e em que os próprios signos induzem seu sentido no exterior. É dessa maneira que o corpo exprime a existência total, não que ele seja seu acompanhamento exterior, mas porque a existência se realiza nele. Esse sentido encarnado é o fenômeno central do qual corpo e espírito, signo e significação são momentos abstratos (Merleau-Ponty, 1945/1999, p. 229).

 

Considerações finais

Enfatizamos que o pensamento de Merleau-Ponty ancora-se nas ciências factuais, especialmente no desenvolvimento espontâneo da psicologia, que é seguido na certeza de brotar de uma constante autocrítica por parte dos pesquisadores. Segundo Merleau-Ponty, os psicólogos que, ordinariamente, praticam a descrição dos fenômenos não percebem o alcance filosófico do seu método. Segundo ele, a noção de forma não foi levada a diante pela Gestalttheorie a ponto de exigir uma reforma do pensamento objetivo. Contudo, a crítica da noção de sensação revela-nos, segundo Merleau-Ponty, um campo fenomenal no qual reencontramos, a partir da recolocação do problema do sentir, uma experiência direta. No sentir, a qualidade é investida de um valor vital, de um sentido que, desde o princípio, habita o percebido. Quanto à psicanálise, despida de certos preconceitos naturalistas, apresenta noções que, trabalhadas e desenvolvidas, reforçam a tese merleau-pontiana de animação do corpo e que, com efeito, tornaram-se importantes instrumentos conceituais para a elaboração, a partir dos cursos na Sorbonne (Merleau-Ponty, 2001), da noção de “carne” (Bimbenet, 2004).

 

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Endereço para correspondência
Danilo Saretta Verissimo
Rua General Rondon, 26, ap. 53, Bairro Aparecida
CEP 11030-570, Santos, SP
email: dsverissimo@pg.ffclrp.usp.br

Enviado em Dezembro/2007
Aceite final Setembro/2008
Publicado em Março/2009

 

 

I nota dos autores: O presente artigo é fruto da articulação de temas abordados em duas comunicações realizadas em sessão de painéis na XXXVII Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, realizada na UFSC, e de uma comunicação oral realizada no II Congresso Internacional de Filosofia da Psicanálise, realizado na UFSCar.

1 Foucault (2002) fala no estudo das significações objetivas para expressar essa orientação em direção do concreto por parte da psicanálise, da psicologia da Gestalt e do behaviorismo, entre outras correntes.

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