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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.15 n.1 Ribeirão Preto jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre a formação de professores de Psicologia

 

Reflections about the Psychology teacher's education

 

 

Carlos César Barros

Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo expõe reflexões sobre a formação do professor de psicologia considerando a história e o papel da Psicologia na educação do cidadão brasileiro. Levanta a hipótese de que a psicologia aplicada, em conjunto com a crítica que lhe é feita, afastou o interesse dos profissionais psicólogos pela prática do ensino de Psicologia na educação básica. Segue descrevendo como o tema da práxis vem sendo retomado nas recentes discussões sobre a formação de professores como intelectuais críticos e reflexivos. Propõe uma retomada crítica do interesse pelo ensino da Psicologia em um sistema educativo que tenha como finalidade a educação contra a barbárie, considerando esta também em sua dimensão subjetiva: para a formação do cidadão auto-reflexivo, uma educação psicológica é imprescindível.

Palavras-chave: Psicologia, Formação de professores, Educação básica, Teoria crítica, Adorno, Theodor.


ABSTRACT

This essay aims to reflect upon the education system of psychology professor preparation course considering the history and the role of psychology in Brazilian education. It suggests the hypothesis that applied psychology - among its critics - has withdrawn the interest of psychologists for its teaching practice in the basic education. The paper also describes how the praxis matter have been reconsidered in the most recent colloquies about the need of the professor's education in order to develop more critical and intellectually reflexive professionals. It proposes a critical retake of the interest by the psychology teaching in an educational system focused in the education against barbarity, considering that in subjective dimension as well: a psychological education is essential for a self- reflexive citizenship.

Keywords: Psychology, Professors Education, Basic Education, Critical Theory, Adorno, Theodor.


 

 

A formação do professor de psicologia destaca dois temas para reflexão: a formação de professores e a formação de psicólogos. O desinteresse - e os rudimentos de um novo interesse - do psicólogo pela profissão de professor é uma questão essencial que convida a uma incursão, mesmo que breve, pela visão que se construiu entre os psicólogos sobre a educação. Também é preciso considerar como os educadores vêm tratando da formação do educador profissional. Mais que refletir sobre a formação do professor de psicologia, interessa levantar questões sobre a relação entre psicologia e educação do cidadão. Se o saber psicológico não compõe os projetos de educação básica e os próprios psicólogos não dão importância ao fato, o que isso significa? Para qual educação a psicologia seria relevante?

O interesse da ciência psicológica pela educação tem suas origens no desenvolvimento da psicologia aplicada. As pesquisas acadêmicas nos laboratórios de psicologia de Wilhelm Wundt (1832-1920) ou Edward B. Titchener (1867-1927) não obtiveram a repercussão que as técnicas desenvolvidas por James M. Cattell (1860-1944) ou por Alfred Binet (1857-1911). Tal repercussão parece se dever mais a fatores externos que a uma superioridade teórica.

Segundo Schultz e Schultz (2006), no início do século XX, nos Estados Unidos, a psicologia acadêmica não era valorizada e, por questões financeiras, o crescente número de psicólogos que se formava passou a tentar a vida com alguma aplicação prática da psicologia.

A solução era clara: valorizar a psicologia, aplicando-a. Mas aplicá-la em quê? Felizmente a resposta logo ficou evidente. As matrículas nas escolas públicas aumentavam significativamente e, entre 1870 e 1915, passaram de 7 para 20 milhões. Os gastos do governo com as escolas públicas durante esse período aumentaram de 63 para 605 milhões de dólares. A educação tornou-se um grande negócio, chamando a atenção dos psicólogos (Schultz & Schultz, 2006, p. 187).

No Brasil, o espírito foi parecido, apesar da inversão temporal na relação entre o profissional psicólogo e a demanda educacional: profissionais formados em psicologia só passaram a existir depois que a demanda educacional pela psicologia já se havia instalado.

O movimento de industrialização fez deslocar grandes grupos da população rural para as cidades, gerando graves problemas de ajustamento; por outro lado, elevou a demanda de ensino por toda parte, em si mesmo, vindo a sentir delicadas questões de organização e administração. Os remédios da Psicologia passaram a ser reclamados, com maior ou menor propriedade, ou mesmo sem ela (Lourenço Filho, 1969/2004, p.109).

Alguns dos primeiros laboratórios de psicologia do Brasil já surgem dentro de escolas; os demais, em instituições médicas. Os primeiros ensinantes da disciplina eram advogados, mas foram superados em número por médicos e pedagogos (Cabral, 1950/2004). Além do autodidatismo e do ensino da psicologia nos cursos de medicina, houve também "uma compreensão crescente do valor das técnicas de aplicação psicológica na organização racional do trabalho" (Lourenço Filho, 1969/2004, p. 111).

Quando, em 1962, estabeleceram-se as diretrizes para a formação do psicólogo, elas se concentraram nas áreas clínica, educacional e empresarial. Foram os resultados de um campo em que "os remédios da Psicologia" foram reclamados mesmo sem um pensamento propriamente psicológico. A psicologia aplicada é, portanto, a base da psicologia brasileira que se reflete nos cursos de formação de psicólogos até os dias atuais.

Vinte anos depois, em 1982, já no período de transição do governo ditatorial para o dito democrático, a relação entre os psicólogos e a educação básica do cidadão entra em uma nova fase. A Lei 7.044 delimitou o ensino médio não mais como de "qualificação" para o trabalho, como constava na Lei 5.692 de 1971, mas sim, como um ensino de "preparação" para o trabalho. Preparar-se para o mundo do trabalho é diferente de adquirir qualidades para ser um trabalhador. Este novo posicionamento favorece um projeto de formação para uma leitura crítica do mundo. Como conseqüência, as unidades de ensino poderiam estabelecer uma parte diversificada em seus currículos. Segundo Mrech (2000), foi nesse momento que se introduziu a disciplina Psicologia para os alunos do ensino médio. No mesmo ano surgiu a 1ª Comissão de Ensino do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Em 1984, 454 escolas de 2º Grau do Estado de São Paulo tinham a disciplina Psicologia em seu currículo; em 1985, 445; em 1986, 603; e em 1987, 593. Em 1990 foi elaborada pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, por meio da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), uma "Proposta curricular de Psicologia para o ensino de 2º Grau", que obteve uma segunda edição em 1992 (Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, 1992).

Com a LDB de 1996, Lei 9.394, disciplinas como Psicologia, Sociologia e Filosofia deixaram de fazer parte dos currículos, tendo seus conteúdos trabalhados como temas transversais. Em 2006, Filosofia e Sociologia se tornaram disciplinas obrigatórias nos currículos do Ensino Médio. A Psicologia, não. Discussões em Conselhos e Sindicatos aparecem e desaparecem, um número reduzido de psicólogos se empenham por uma articulação que retome a Psicologia como disciplina do Ensino Médio. Por quê? Segundo Mrech:

Como diz o provérbio: Casa de Ferreiro, Espeto de Pau. Os psicólogos apresentam um olhar crítico frente ao social, mas acabam apresentando um olhar terrivelmente ideologizado em relação ao seu próprio processo como agentes formadores. Eles acreditam ter um a mais que os educadores não têm. E por este "a mais" eles teriam acesso a todas as respostas que os educadores não têm (Mrech, 2000, p. 13)

São poucos os psicólogos que chegam a pensar em sua atuação como professores no Ensino Médio e outros tantos que até pensam em atuar como professores no Ensino Superior. A opção pela licenciatura é reduzida nos cursos que ainda a oferecem. Professores de psicologia, os formadores de psicólogos, não acreditam que seja defensável a obrigatoriedade da psicologia na formação do cidadão ou do trabalhador. O fenômeno é complexo e carente de estudos. A única hipótese que podemos sustentar, reunindo as poucas informações disponíveis, é a de que a história da psicologia no Brasil transformou seus profissionais em pessoas que pensam em termos de aplicabilidade de sua ciência. Os psicólogos de posicionamento crítico afastam-se tanto da prática tradicional, que não consideram a psicologia salutar para o cidadão, talvez até a considerem prejudicial por ser adaptativa e comprometida com a manutenção do status quo. Não deixam de ter razão. Mas o aumento do número de psicólogos no mercado, a busca por alternativas para a atuação e a vitória de sociólogos e filósofos no campo do ensino de suas disciplinas parece reavivar o ânimo dos profissionais psicólogos em voltar a atuar no Ensino Médio. Reflexo disso é o manifesto "8 razões para aprender psicologia no ensino médio", publicado recentemente no sítio do Conselho Federal de Psicologia e apoiado por cerca de vinte instituições da área, que retomam a Psicologia no Ensino Médio como tema de militância, solicitando dos psicólogos a assinatura eletrônica e o apoio à luta.

A formação de professores de psicologia assume o risco de lançar no mercado profissionais desinteressados pela profissão de professor, mas que a exerceriam apenas por ser uma fonte de renda disponível, o que já acontece com professores em geral. Nestas condições, é prudente perguntar: como estão se preparando os educadores e o que os psicólogos poderiam aprender com eles?

Segundo Pimenta (2002), a partir dos anos noventa, compondo um movimento de valorização da formação e da profissionalização de professores, surgiram, em diferentes países e influenciaram discursos de pesquisadores e políticos, as noções de "professor reflexivo" e "professor pesquisador". Tais noções tiveram como principal formulador o estadunidense Donald Schön.

Schön estava preocupado com a formação dos profissionais de uma forma geral, não apenas com os professores. As ciências estavam (e estão) em crise, o que tornou o ensino universitário algo anacrônico, desvinculado do mundo do trabalho, sem respostas práticas (Schön, 2000). Encontrou nas escolas de música, na supervisão psicanalítica e nos ateliês de arquitetura um bom modelo para a formação de profissionais. Nestes exemplos, a profissão é aprendida desde o começo por meio da prática. É na prática que se aprende os termos técnicos, que os obstáculos surgem e podem ser superados.

Mas não é tão simples. O conhecimento prático, o conhecimento "na ação", constitui um conhecimento tácito, que deve ser reconhecido nos momentos de problematização e análise da prática profissional. Este conhecimento não pode ser antecipado pela teoria, é uma questão prática. Mas este conhecimento é insuficiente, novos problemas surgem, situações inéditas que levam a uma "reflexão na ação". Desta reflexão surgirão as novas práticas, que irão se deparar com novas situações inusitadas. Este é um movimento contínuo. Schön (2000) ainda propõe a "reflexão sobre a reflexão na ação", o que sugere uma contextualização, um diálogo, elaborações explicativas, teorias sobre a prática profissional.

A aplicação dos conceitos de Schön à educação, à formação de professores, dá origem ao conceito de professor-reflexivo, aquele que reflete sobre sua ação, sobre os problemas que surgem em sala de aula e que pode pensar sobre a reflexão na ação por meio das teorias e das pesquisas educacionais.

Mas as idéias de Schön passaram a receber críticas que ampliaram em muito suas discussões:

[...] diversos autores têm apresentado preocupações quanto ao desenvolvimento de um possível "praticismo" daí decorrente, para o qual bastaria a prática para a construção do saber docente; de um possível "individualismo", fruto de uma reflexão em torno de si própria; de uma possível hegemonia autoritária, se se considera que a perspectiva da reflexão é suficiente para a resolução dos problemas da prática; além de um possível modismo, com uma apropriação indiscriminada e sem críticas, sem compreensão das origens e dos contextos que a gerou, o que pode levar à banalização da perspectiva da reflexão (Pimenta, 2002, p. 22)

Esta crítica ao praticismo na formação de professores remete à discussão sobre teoria e prática. Segundo Chauí:

Devemos a Aristóteles a distinção entre saber teorético e saber prático. O saber teorético é o conhecimento de seres e fatos que existem e agem independentemente de nós e sem nossa intervenção ou interferência. Temos conhecimento teorético da Natureza. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação e, portanto, depende de nós. A ética é um saber prático. O saber prático, por seu turno, distingue-se de acordo com a prática, considerada como práxis ou como técnica. A ética refere-se à práxis (Chauí, 1999, p. 341)

Stenhouse (1987) e Elliott (1993) reivindicam esta concepção de práxis para a educação. Ao propor a formação de professores como pesquisadores, subentende-se que formar profissionais da educação é algo mais específico que formar profissionais em geral. Afinal, a educação é uma espécie de causa final, ou seja, ao ser planejada tem como finalidade a questão moral e política, deve formar o homem e a sociedade não só do amanhã, mas do presente. E mais, um planejamento curricular já possui uma intenção, uma finalidade específica, uma concepção de homem. Ao revés do tecnicismo, os verdadeiros resultados práxicos não podem ser vistos de imediato. Para Stenhouse (1987, citado por Contreras, 1997, p. 88) "é a intenção de ver as possibilidades práticas e os problemas que origina a pretensão de levar a cabo uma idéia educativa, o que se converte em motor da reflexão". Sendo assim, não são os problemas práticos da profissão, mas as intenções educacionais que motivam a reflexão educativa.

É Elliott quem destaca o fundamento aristotélico da noção de professor como investigador. Este conceito deriva de um trecho em que Aristóteles disserta sobre a deliberação e a investigação:

Como o próprio Aristóteles disse, o que delibera "parece que investiga", para acrescentar mais adiante que "nem toda investigação é deliberação... mas toda deliberação é investigação". Da mesma maneira, e segundo o que já vimos, a prática pedagógica, frente aos momentos que apresentam características de surpresa e incerteza, demanda deliberação, reflexão e investigação com objetivo de julgar o melhor modo de proceder no caso, e isto sempre em relação aos significados que devem adquirir os valores educativos pretendidos nas circunstâncias particulares (Elliott, 1993, citado por Contreras, 1997, p. 92)

Outras críticas foram desenvolvidas sobre a argumentação de Stenhouse e Elliott no campo da formação de professores, mas nos limitaremos ao ponto em que chegaram, remetendo o leitor que queira se aprofundar às obras dos autores mencionados até aqui (Pimenta, 2002; Contreras, 1997). Interessa-nos, a partir de agora, considerar alguns destes argumentos para refletir sobre a formação do professor de psicologia.

A ausência do professor de psicologia na educação básica impede a "reflexão na ação" ou a "reflexão sobre a reflexão na ação". Para a formação do professor de psicologia as idéias iniciais de Schön soam bastante avançadas. Mas, se levarmos a sério a hipótese de que a atitude do psicólogo frente à educação ou é de desinteresse crítico ou de interesse corporativo, torna-se relevante buscar elementos teóricos que relacionem a psicologia à práxis educativa.

Um primeiro cuidado a ser tomado é o de não reduzir a práxis à educação formal ou ao ensino institucionalizado. Por isso, antes de pensar em uma relação entre psicologia e ensino escolar, comecemos nosso encadeamento lógico por uma expressão mais geral da relação entre práxis e psicologia.

Ao comentar a prevenção do socialismo contra a iminente recaída na barbárie, fazendo alusão à conhecida fórmula "socialismo ou barbárie", Adorno (1969/1995) escreveu o seguinte: "A recaída já se produziu. Esperá-la para o futuro, depois de Auschwitz e Hiroshima, faz parte do pobre consolo de que ainda é possível esperar algo pior. [...] Uma práxis oportuna seria unicamente a do esforço de sair da barbárie" (Adorno, 1969/1995, p. 214).

Este esforço leva em conta a atividade teórica, que neste caso não é apenas contemplação da natureza como em Aristóteles, mas também contemplação da história. Ao contemplar a história e refletir sobre presente e futuro da humanidade, a teoria é também práxis. Mas dado um direcionamento para a práxis - a saída da barbárie - qual o papel da psicologia nesta discussão?

A teoria objetiva da sociedade, como algo independizado em relação aos seres viventes, retém o primado sobre a psicologia, a qual não alcança o que é decisivo. [...] Mas, a ascese contra a psicologia tampouco é objetivamente sustentável. Desde que a economia de mercado se encontra desorganizada e está sendo remendada de uma medida provisória a outra, suas leis não constituem mais explicação suficiente por si sós. Não seria possível, a não ser graças à psicologia - através da qual se interiorizam sem cessar as coações objetivas - compreender nem que os homens aceitem passivamente uma irracionalidade sempre destrutiva, nem que se alistem em movimentos cuja contradição com seus interesses não é difícil de perceber (Adorno, 1969/1995, p. 218).

A psicologia, entendendo o termo como a configuração interna individual ou como a ciência psicológica, não alcança o que é decisivo no esforço para a saída da barbárie. E neste caso apresenta-se a racionalidade do desprezo por uma educação psicológica. Mas não pensar psicologicamente, reforçar a ascese contra a psicologia, tem algo de insustentabilidade, com a polissemia que este termo pode oferecer. Só a psicologia fornece elementos para a compreensão da irracionalidade destrutiva e da aceitação passiva dos homens diante dela, ou do ativismo destes em função de interesses contrários aos seus. A compreensão da interiorização da barbárie - elemento para sua reprodução e, por outro lado, possibilidade de identificação de possíveis resistências contra a barbárie - não pode ser completa sem a psicologia, sem uma compreensão dos "fatores subjetivos da barbárie" (Barros, 2003) ou da "barbárie interior" (Mattéi, 2002).

Se a psicologia é indispensável para a práxis mais geral, seria ela também indispensável para uma escola que esteja contida nesta práxis?

Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto. Mas se a barbárie, a terrível sombra sobre a nossa existência, é justamente o contrário da formação racional, então a desbarbarização das pessoas individualmente é muito importante. A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades. E para isto ela precisa libertar-se dos tabus, sob cuja pressão se reproduz a barbárie. O "pathos" da escola hoje, a sua seriedade moral, está em que, no âmbito do existente, somente ela pode apontar para a desbarbarização da humanidade, na medida em que se conscientiza disto (Adorno, 1971/2000, p. 116).

Para uma educação apenas adaptativa, talvez a psicologia seja realmente dispensável. Mas se tomamos como meta uma educação contra a barbárie, a psicologia se torna necessária e cabe então questionar qual tipo de educação é desejável. Com relação à barbárie como violência, que é gerada socialmente, mas se expressa individualmente, a educação parece ser o meio que, ainda que não transforme as condições objetivas, pode levar às pessoas elementos para refletirem sobre si mesmas e sobre as violências que executam externa ou internamente. É preciso que a escola seja de alguma forma adaptativa, para que o indivíduo possa sobreviver, trabalhar. Mas frente a esse papel adaptativo, propor a resistência contra a barbárie é essencial. Para que as pessoas tenham ferramentas para compreender os mecanismos internos de reprodução da barbárie, parece indicado que a psicologia faça parte do clima educacional de forma diferente de como ocorreu até hoje.

Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são impelidas necessariamente para o lado subjetivo [...] Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos (Adorno, 1971/2000, p. 121).

Mas dar espaço à psicologia não significa psicologizar. A crítica à psicologia é também fator indispensável em uma sociedade cuja racionalidade tecnológica administra e gere as vidas das pessoas em seus trabalhos, ou até mesmo no chamado tempo livre.

Na medida em que pôde se apoiar no fato de que na sociedade da troca o sujeito não é sujeito, e sim, de fato, objeto desta última, a psicologia pôde fornecer-lhe armas para torná-lo mais do que nunca objeto e mantê-lo subordinado. A divisão do homem em suas faculdades é uma projeção da divisão do trabalho sobre os seus pretensos sujeitos, inseparável do interesse de utilizá-los com o maior ganho possível e, em geral, de poder manipulá-los (Adorno, 1951/1993, p. 54)

E como criticar a psicologia sem conhecê-la ou quando ela entra pelas portas dos fundos dos currículos escolares como tema transversal?

O momento educacional atual é um momento com potencial para uma educação outra, o discurso em prol de uma educação para todos possibilita uma reavaliação das finalidades e dos meios educacionais. Uma das forças para a inserção do pensamento psicológico é justamente a proposta de uma educação para as diferenças, contra a discriminação e o preconceito. É um momento para se refletir sobre o porquê de tanta ciência natural na educação básica. Por que vivemos num Estado de direito sem aprender noções básicas de direito? Por que vivemos num mundo regido pela economia e não aprendemos noções básicas de economia? Por que somos bombardeados pela mídia e pela produção cultural industrializada e não aprendemos a ver televisão, ouvir música, a contemplar uma obra de arte? Por que a educação física não trata realmente de discutir e ensinar sobre cuidados com o corpo e se degenera, na maior parte dos casos, em competição esportiva?

A formação de psicólogos e, por conseqüência, a formação de professores de psicologia deve levar em conta a reflexão e a pesquisa sobre o papel da psicologia na práxis educacional. É preciso que os psicólogos encontrem sentido na ocupação de professor se desejam lutar por ela. Se a psicologia tomar um posicionamento em direção à saída da barbárie, contra os fenômenos de violência social, ela será indispensável a uma educação com os mesmos propósitos: "uma educação efetivamente procedente em direção à emancipação frente a esses fenômenos não poderia ser separada dos questionamentos da psicologia profunda" (Adorno, 1971/2000, p. 149).

 

Referências

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Enviado em Dezembro/2007
Revisado em Maio/2008
Aceite final em Abril/2008
Publicado em Junho/2009

 

 

Nota do autor:

Carlos César Barros - Doutorando do Departamento de Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

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