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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. v.15 n.1 Ribeirão Preto jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Aquisição e explicitação do conhecimento no ensino superior

 

Acquiring and expliciting knowledge at undergraduate courses

 

 

Maria Isabel da Silva Leme

Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

O artigo relata a experiência docente em uma disciplina, Preparação Pedagógica, destinada à formação didática de alunos de pós-graduação em Psicologia. O relato descreve as atividades desenvolvidas nesta disciplina, organizadas segundo uma concepção específica de ensino-aprendizagem no Ensino Superior, que seria a de um processo de aquisição e explicitação de conhecimento. São abordados inicialmente, para fins de contextualização do conteúdo, os seguintes tópicos: as peculiaridades do Ensino Superior no Brasil em sua perspectiva histórica, o caráter específico da aprendizagem do jovem adulto como estudante universitário, e as conseqüentes competências demandadas do docente deste segmento de ensino. Em seguida, as etapas de planejamento da disciplina, processos instrucionais e avaliação são analisados sob a perspectiva de explicitação do conhecimento.

Palavras-chave: Ensino superior, Aprendizagem, Conhecimento explícito.


ABSTRACT

This essay reports an experience in the course of Pedagogical Preparation, part of the graduation Psychology Program. The study describes course's activities, organized according to the conception of the learning and teaching processes at the University, considering them as processes of acquisition and applied knowledge. The essay also describes the course's content includes the following aspects: contextual perspective of Brazilian undergraduate system through an historical overview, young adults' learning in undergraduate courses, teaching abilities, in special pedagogical abilities. Teaching stages, namely planning, instructions and evaluations, are analyzed into the above mentioned perspective of acquisition and applied knowledge.

Keywords: Undergraduate Courses, Learning, Explicit Knowledge.


 

 

Relatar a própria experiência requer certo distanciamento, de modo a torná-la compreensível para o leitor na medida do possível. No caso da experiência docente em curso, a dificuldade em tomar este distanciamento não se limita ao envolvimento corrente, mas, ainda, em ponderar sobre os resultados obtidos de reformulações introduzidas no sentido de aprimorar a prática. Além disso, a experiência do presente relato não se restringe à docência, uma vez que, neste caso, a pesquisa na área de Psicologia da Aprendizagem vem alimentando a prática docente e vice-versa. Assim, este artigo tem por objetivos partilhar a experiência docente e divulgar a concepção de ensino-aprendizagem que norteia a disciplina, que, até onde sabemos, ainda é pouco conhecida. De acordo com essa concepção, o processo de ensino-aprendizagem, principalmente no Ensino Superior, consiste em explicitação e reestruturação do conhecimento. A aquisição de conhecimento é entendida como um continuum, que se inicia com um conhecimento totalmente implícito, adquirido sem consciência nem deliberação, e culmina com um conhecimento explícito, adquirido consciente e deliberadamente. Esta posição vem conquistando adeptos na Psicologia da Aprendizagem em função do caráter integrador que imprime ao conceito de aprendizagem, hierarquizada em diversos níveis de deliberação e de consciência. Esta concepção tem ainda como vantagem eliminar dicotomias na conceituação do processo, como por exemplo, se consiste em mudança de comportamento ou de pensamento, se o mecanismo responsável pela aquisição é a associação ou a reestruturação. Assim, tal concepção facilita a compreensão do processo de aprendizagem humana, fruto tanto de pressões adaptativas, ocorridas ao longo da filogênese, como da cultura (Pozo, 2004). A organização social do ser humano favoreceu a emergência da cultura, que por sua vez forneceu ferramentas, como a linguagem, que propiciam a explicitação do conhecimento adquirido implicitamente, que se torna assim mais acessível, organizado e complexo. Por sua vez, aprendizagens e conhecimentos mais explícitos e complexos têm seu impacto sobre a cultura, favorecendo seu desenvolvimento, em uma relação dinâmica de interdependência. Nesta perspectiva, o tema do processo ensino-aprendizagem como aquisição e explicitação de conhecimento é tratado de modo recorrente durante a disciplina a ser relatada, organizando os conteúdos em torno de uma corrente de pensamento sobre estes fenômenos, também presente nos textos de muitos autores indicados na bibliografia utilizada, o que será examinado oportunamente, após a contextualização da disciplina.

 

Contexto histórico da disciplina

A disciplina Preparação Pedagógica foi criada por iniciativa da Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade São Paulo, no contexto do Programa de Aperfeiçoamento do Ensino (PAE), com o intuito principal de aprimorar a formação do aluno de pós-graduação, futuro docente de Ensino Superior, para a atividade didática na graduação. Em princípio, por exigência da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), os alunos bolsistas realizavam somente um estágio em disciplina de graduação, apoiando a atividade docente, ou supervisionando alunos de graduação em pesquisa, ou outra atividade como atendimento clínico ou escolar. Outros alunos não bolsistas podiam também realizar esse estágio, recebendo, como os bolsistas, créditos e auxílio financeiro pela participação. Porém, desde 2000, a USP passou a incluir nesta formação a realização obrigatória de uma disciplina chamada Preparação Pedagógica, anterior ou concomitante ao estágio em sala de aula, de modo a preparar melhor os alunos para ele. Desde então, são aceitos três formatos de disciplina, como descrito abaixo:

1) disciplina de Pós-Graduação (caso descrito neste artigo), oferecendo créditos cujo conteúdo é voltado para as questões da Universidade e do Ensino Superior;

2) conjunto de conferências com especialistas da área de Educação, condensadas num tempo menor, tendo como tema as questões do Ensino Superior;

3) núcleo de atividades, envolvendo preparo de material didático e discussões coordenadas por professores, a respeito de programa, ementas e planejamento de disciplinas.

O estágio supervisionado em docência é realizado especificamente em disciplinas de graduação, devendo o aluno se inscrever na Unidade de Ensino da área de conhecimento pertinente ao seu curso.

Assumimos a responsabilidade pela disciplina em 2002, quando já contava com um ano de existência, no formato descrito acima, de um conjunto de conferências dadas por especialistas sobre questões ligadas ao Ensino Superior, o que foi mantido durante um ano. As avaliações dos alunos sobre a disciplina revelaram, porém, que, embora considerassem as conferências de ótimo nível e grande interesse, tinham dificuldade em integrar esses conhecimentos à atuação didática e, assim, sentiam falta de uma formação mais voltada para a prática em sala de aula. Para satisfazer essa carência, a disciplina foi então reformulada em termos do programa oferecido, assumindo o atual formato, que passamos a descrever na próxima seção.1

 

Descrição do programa da disciplina

Contextualização do Ensino Superior no Brasil - a concepção de que a ação docente, como qualquer outra atuação profissional, é socialmente construída, condicionada às peculiaridades de seu contexto histórico -, levou-nos a selecionar este tópico para iniciar a disciplina, para uma visão mais integrada do sistema de ensino. Assim, a discussão é iniciada por uma análise do contexto histórico do Ensino Superior brasileiro, o que equivale a remontar à sua origem no século XIX, ocasionada pela chegada da Corte Portuguesa ao Brasil. Durante a análise, os diferentes períodos pelos quais passou o Ensino Superior brasileiro são enfocados a partir da relação das instituições de ensino com o Estado, suas repercussões sobre a concepção de formação profissional discente e qualificação docente. Um bom exemplo desta relação é o surgimento das primeiras instituições de ensino superior no século XIX, criadas pela necessidade de formar profissionais, impedidos de estudar no exterior pelo bloqueio imposto por Napoleão. O ensino superior surgiu inspirado nas Grandes Écoles francesas, organizado em centros de excelência, auto-suficientes, voltados exclusivamente para a formação profissional das elites. Esta orientação pode ser percebida na qualificação docente exigida na época, em geral profissionais liberais de reconhecida competência na área, mas com pouca ou nenhuma preocupação pedagógica. Esta situação, que perdurou até meados do século XX, só foi modificada de modo mais profundo pela Reforma Universitária de 1968, que profissionalizou a docência universitária, aliando-a à pesquisa, e exigindo a titulação na pós-graduação para o progresso na carreira (Durham, 2002; Masseto, 2003). A permanência até hoje de contradições no sistema (como o pouco acesso às universidades públicas de estudantes com menor condição de concorrer pelas vagas restritas e a conseqüente expansão do ensino privado de massa), porém, são questões que preocupam os alunos da disciplina em relação à sua atuação docente futura. Estas questões são debatidas no contexto histórico brasileiro, enfatizando-se o papel desempenhado pelo Estado junto às instituições, em termos de financiamento e regulação do sistema, e o impacto desta atuação na formação discente e docente. É também nesta perspectiva de relação com o estado que são analisados os conceitos de aprendizagem, aprendizagem do jovem adulto, mais especificamente no Ensino Superior, relativamente ao desenvolvimento de competências esperadas atualmente neste segmento de ensino (Brasil, 2004).

Aprendizagem no Ensino Superior: A concepção de aprendizagem trabalhada na disciplina é, coerentemente com o exposto no tópico anterior, a de um processo adaptativo, ligado necessariamente à experiência, que resulta em mudança de comportamento e/ou de processos internos, relativamente estáveis no tempo. As mudanças produzidas pela aprendizagem são mais acessíveis ao próprio aprendiz, e também a um observador externo, quanto mais avançado for o desenvolvimento psicológico dele. Isto se dá porque uma das características da aprendizagem em etapas mais avançadas da ontogênese é a sua progressiva explicitação, o que facilita tanto a atribuição de significado à nova informação quanto a sua integração à estrutura cognitiva do aprendiz, transformando-se em conhecimento, graças ao uso deliberado de estratégias metacognitivas. Além disso, o próprio desenvolvimento cognitivo nesta faixa etária, que se inicia em torno dos vinte anos, denominado pensamento pós-formal (Rybash, Hoyer & Roodin, 1999), permite ao aprendiz lidar com mais facilidade, do que em períodos anteriores, com a complexidade, a contradição e a dinâmica inerentes ao mundo físico e social e, também, ao próprio conhecimento. É importante lembrar que o pensamento pós-formal é mais um estilo de pensar do que propriamente um estágio estrutural do desenvolvimento cognitivo. Todavia, vale lembrar que, embora seja um fenômeno adaptativo, selecionado filogeneticamente, a aprendizagem humana é fortemente moldada pela cultura em que ocorre. A aprendizagem da cultura se dá em grande parte de modo implícito (Bruner, 1986/1998), mas conteúdos culturais necessários à integração dos indivíduos em seu seio são institucionalizados e transmitidos de modo explícito, por meio de alguma forma de instrução. Assim, o ensino (ou instrução) também pode ser concebido como um processo de explicitação, o que é facilitado pelo nível de desenvolvimento cognitivo do indivíduo, como explicado acima. Entretanto, vale ressaltar ainda que o processo de explicitação não equivale só ao acesso consciente aos conteúdos mentais, como o acender de uma luz em um quarto escuro, mas envolve deliberação e escolhas de como tratar o aprendido (Pozo, 2004). Este último ponto relaciona-se de modo estreito ao uso de estratégias, como se verá a seguir.

As estratégias que auxiliam estas transformações do conhecimento têm sido bastante estudadas no Ensino Superior (Zenorine & Santos, 2003; Cardoso & Bzuneck, 2004; Boruchovitch, Costa & Neves, 2005) e, coerentemente com o afirmado acima, por estarem associadas à motivação, estão relacionadas à deliberação do aprendiz. Resumidamente, estratégias mais profundas, que envolvem maior esforço cognitivo, como monitorar a própria compreensão, esquematizar conteúdos e resumir, estão associadas à motivação para aprender, enquanto as ligadas ao sucesso acadêmico relacionam-se a estratégias mais superficiais, como memorização mecânica. É importante salientar, como Masseto (2004, p. 89), que "aprender a aprender é mais do que uma técnica de como se faz. É a capacidade do aprendiz de refletir sobre sua própria experiência de aprender, identificar os procedimentos necessários para aprender, suas melhores opções [...]". Considerando as competências a serem desenvolvidas no Ensino Superior - desenvolvimento na respectiva área de conhecimento, em habilidades necessárias ao exercício profissional, na dimensão afetivo-emocional e em atitudes e valores (Masseto, 2003) -, são alentadores os resultados de pesquisa que mostram que intervenções sobre essas estratégias produzem melhorias tanto no desempenho acadêmico como na regulação afetivo-emocional dos estudantes (Boruchovitch, Costa & Neves, 2005). Entretanto, a intervenção sobre as estratégias demanda, por sua vez, competências do professor que extrapolam aquelas ligadas ao exercício profissional bem-sucedido, isto é, apenas domínio de conhecimentos, tanto básicos como atualizados. Para desenvolver nos alunos motivação e estratégias voltadas para o aprender a aprender, o professor universitário precisa ser competente, além de pedagogicamente, também no domínio pessoal, em termos de suas atitudes e valores, concepção de conhecimento, de cidadania e outros (Masseto & Abreu, 1996; Masseto, 1998).

Tendo em vista o escopo e o tempo disponível na disciplina Preparação Pedagógica, nela é mais abordada a competência pedagógica do professor universitário, focalizando de modo mais aprofundado as três principais etapas do processo ensino-aprendizagem, isto é, planejamento de ensino, processos instrucionais e avaliação da aprendizagem, descritas a seguir.

Etapas do processo ensino-aprendizagem - Planejamento: A necessidade de planejamento, seja da disciplina, seja da aula, justifica-se em função da reflexão que enseja sobre os processos envolvidos que devem guiar a prática docente:

[...] refletir sobre a dinâmica do trabalho pedagógico como uma estrutura articulada de agentes, conteúdos, instrumentos e procedimentos utilizados, visando atingir objetivos intencionalmente formulados, isto é, em função do tipo de mudanças que se têm como fundamentais, como conseqüência da ação educativa. (Viella, 2004, p. 117, grifo do autor)

Neste sentido, o planejamento do ensino é tratado como um processo de escolha e tomada de decisões acerca dos conteúdos a serem ensinados, sua seqüência e modo de instrução, com ênfase nas mudanças que se pretende provocar. Em outras palavras, planejar define-se como um processo de explicitação de decisões acerca do para quê, para quem, o quê, quando e como ensinar, sem perder de vista as coações institucionais, como tempo alocado à disciplina, número de alunos por sala, disponibilidade de recursos materiais e humanos e outros aspectos fundamentais, como o conhecimento prévio dos alunos e dos conteúdos de outras disciplinas. A importância dos objetivos da disciplina serem bem explicitados para os alunos é especialmente enfatizada, pois esclarece as mudanças almejadas, facilitando assim as conexões necessárias entre o que os alunos já sabem e o que vai ser tratado em sala de aula (Viella, 2004).

Processos instrucionais: Os processos instrucionais são analisados a partir de dois grandes eixos: o ensino conduzido pelo professor e o ensino conduzido pelo aluno. No primeiro, a aula expositiva é o principal tema tratado, analisando-se quando se justifica, como na introdução ou conclusão de temas, na explicitação de relações, aplicações, demonstrações, etc. O modo como deve ser estruturada, desde a apresentação até a conclusão, de modo a propiciar aprendizagem significativa do aluno, também é explorado, resgatando-se os trabalhos de Ausubel da década de 1960, que ainda hoje subsidiam pesquisas sobre aprendizagem receptiva, principalmente de conceitos e conhecimentos científicos (Moreira & Greca, 2003; Langhi, 2005). Resumidamente, na perspectiva proposta por Ausubel (Ausubel, Novak & Hanesian, 1980), a articulação entre o novo conteúdo e os conhecimentos prévios do aluno, essencial para que adquira significado, é facilitada, em primeiro lugar, pelo resgate explícito pelo professor do que o aluno já sabe sobre um conteúdo. Em segundo lugar, pela forma pela qual o professor estrutura a apresentação do conteúdo. O novo conteúdo pode ser apresentado de duas formas: desde o mais abstrato, como um princípio ou lei, concretizado a seguir em casos particulares, ou inversamente, partindo de fatos mais específicos, cujas relações em comum são explicitadas pelo professor, assim como a forma pela qual podem ser abstraídas em um princípio mais geral. A escolha de uma ou outra estratégia depende da natureza do conteúdo e da mudança conceitual desejada, mas é sempre essencial explicitar estas relações muito claramente ao aluno, e como elas se relacionam com aquilo que ele já sabe. Estas considerações sobre a instrução articulam-se com as da aula anterior, sobre planejamento de ensino, recuperando a importância dos objetivos de cada aula estarem bem claros para o professor, em termos da mudança conceitual que pretende provocar, o que facilita a escolha de estratégias adequadas para a transmissão do conteúdo.

A aprendizagem conduzida pelo aluno focaliza mais detidamente a Aprendizagem Baseada em Problemas (PBL), suas origens no ensino de medicina, seus objetivos, destacando-se a construção autônoma de conhecimento flexível, o resgate de conhecimento prévio, o desenvolvimento de estratégias de solução de problemas, as habilidades de trabalho cooperativo, a valorização do aprender a aprender e a motivação intrínseca (Bould & Felleti, 1998; Hemlo-Silver, 2004). São expostas as diversas modalidades de aprendizagem baseada em problemas, como o estudo de caso, e as especificidades que as diferenciam de outras atividades, também conduzidas pelo aluno, como seminários. A grande vantagem da Aprendizagem Baseada em Problemas (Hemlo-Silver, 2004) é que ela propicia a explicitação do conhecimento adquirido, ensejada não só pelo papel mais ativo conferido ao aluno, mas principalmente pelo estímulo à reflexão sobre o que ele aprendeu na atividade e pela efetividade das estratégias empregadas. Na medida em que tem de tomar uma série de decisões a respeito das ações necessárias para resolver um problema, para o qual não há uma solução única, o aluno não só dedica maior esforço à tarefa, mas tem mais explícito o que aprendeu - do que teria em uma aula expositiva, por exemplo. É salientada, no entanto, a necessidade de o professor refletir, por ocasião do planejamento, sobre que objetivos pretende atingir com aquela atividade; sem isso, o emprego de uma estratégia didática como PBL perde a sua razão de ser. Muitas vezes a boa intenção de motivar os alunos pode se sobrepor a outros objetivos, tornando-se um fim em si mesma, desvirtuando o processo de educação. Não se pretende com isso desqualificar a preocupação docente com a motivação dos alunos, mas colocá-la na perspectiva pedagógica de privilegiar o que se pretende com uma dada atividade. Além disso, uma aula motivadora e criativa passa necessariamente pelo rompimento de velhos hábitos, de se ter uma só resposta correta para uma dada pergunta. É necessário despertar o envolvimento do aluno já na apresentação do tema, mostrando lacunas, possibilidades de mais de uma resposta. É preciso buscar, dar significado ao conhecimento, estabelecer vínculos com o futuro, estimular buscas (Wechsler, 2004). Em suma, a motivação do aluno nesta perspectiva está muito mais relacionada à atitude do professor, da sua relação com o conhecimento, da sua capacidade e motivação para criar, do que ao mero emprego de uma técnica. Por último, mas não menos importante, a escolha de uma estratégia didática deve considerar, além de aspectos essenciais como conhecimentos prévios dos alunos, outras questões de ordem prática, como número de alunos por sala, tempo disponível, possibilidade de atendimento aos grupos. Isto porque o professor, que não tem condição ou tempo para prestar assistência aos alunos no processo de aprendizagem baseada em problemas, de agir como um real facilitador, propondo questões, sugerindo alternativas ou mesmo disponibilizando recursos didáticos para a pesquisa, como bibliografia, etc., termina por dificultar o aprendizado do aluno.

Avaliação: A mesma preocupação com os objetivos pretendidos e com os recursos efetivamente empregados deve guiar o processo de avaliação, seja qual for a modalidade escolhida: perguntas dissertativas ou testes, enfatizando-se sempre a mesma preocupação com o porquê, o quê, o como, o quando, evidenciando assim que também esta etapa é uma explicitação de como ocorreu o processo de ensino-aprendizagem. Os testes, freqüentemente objeto de preconceito, são analisados como uma alternativa para avaliar a assimilação de grandes extensões de conteúdo, enquanto as questões dissertativas se prestam a porções mais restritas, sobre as quais se deseja verificar outro tipo de processo, como a compreensão, o estabelecimento de relações, aplicações, etc. Na mesma perspectiva das outras etapas, considerações de ordem prática devem guiar a escolha docente, além dos objetivos educacionais pretendidos já no planejamento. Testes bem elaborados, que não induzem a erro ou incerteza, sejam eles de múltiplas alternativas ou de asserção-razão, são de elaboração mais trabalhosa, porém mais rápidos para corrigir. Já as questões dissertativas são justamente o contrário, de fácil elaboração, mas de correção mais trabalhosa, principalmente se o objetivo pretendido for possibilitar aos alunos nova oportunidade de aprendizagem, por meio de informações contidas na correção. Este é outro aspecto enfatizado na escolha de uma ou outra modalidade: o fornecimento de informação sobre a aprendizagem a todos os envolvidos, docente e alunos. Isto porque os testes só permitem constatar a existência de um problema, enquanto a questão dissertativa permite diagnosticar com mais segurança que aspectos do conteúdo foram difíceis de assimilar, compreender ou aplicar. Assim, são analisados os diversos tipos de avaliação: diagnóstica, formativa, somativa, classificatória, discutindo-se que tipo de informação pode ser obtido por seu intermédio. São feitas ainda outras considerações sobre a importância de a avaliação permitir autonomia do aluno, por meio de questões que permitam elaboração pessoal do conteúdo (De Sordi, 2004), assim como a pertinência de outras oportunidades de avaliar o aluno, como participação em aula, confecção de resumos, resenhas e outros trabalhos, individualmente ou em grupo (Oliveira & Santos, 2005). Cabe observar, a este respeito, que, coerentemente com o que é valorizado em termos de avaliação na disciplina Preparação Pedagógica, nossos alunos podem optar por dois tipos de avaliação: contínua, ao final de cada aula, ou por uma prova final com consulta, em uma aula extra, após o término da disciplina.

Finalizando a análise do processo ensino-aprendizagem, procuramos propiciar a oportunidade de uma experiência prática. Assim, quatro ou cinco alunos são estimulados a ministrar uma aula voluntariamente, em geral sobre seus projetos de mestrado ou doutorado, dispondo de cerca de trinta minutos para tanto. São avaliados pelos colegas, que observam desde o tratamento dado ao conteúdo, como estrutura e clareza, até aspectos formais como postura em sala de aula, tom de voz, etc. São ainda filmados, para que possam eles mesmos observar-se na atividade, aprimorando para o futuro os aspectos observados pelos colegas.

Ao final do curso são realizadas a avaliação final pelos alunos que optaram por essa modalidade e, ainda, a avaliação da própria disciplina por todos. A primeira consiste na escolha entre duas questões: uma de caráter mais prático, como a elaboração de um plano de ensino; outra mais teórica, que consiste em geral na análise e discussão de uma posição expressa em uma frase sobre o ensino superior feita por algum autor da área. As duas questões podem ser respondidas depois de consulta ao material disponibilizado no curso, pois o que se avalia é a capacidade do aluno de articular o que aprendeu aplicado a uma situação problema. A avaliação da disciplina, por sua vez, é sempre anônima, para garantir a fidedignidade da informação prestada, e, por meio dela, procuramos obter dados acerca da pertinência dos tópicos abordados e da bibliografia indicada, da qualidade das aulas expositivas e da avaliação. Além das informações acerca da dificuldade de transferência do aprendido em conferências para a situação real de docência já mencionada acima, os alunos têm nos prestado outros subsídios importantes para a reestruturação da disciplina, como pertinência e clareza dos textos, organização de aula, etc.

 

Conclusão

Finalizando este breve relato sobre a experiência adquirida na disciplina Preparação Pedagógica, cabe reiterar algumas reflexões acerca do processo ensino-aprendizagem, como aquisição e explicitação de conhecimento, concepção defendida ao longo deste relato.

O primeiro ponto que se destaca, sem dúvida, é a explicitação de objetivos como elemento fundamental para que todo o processo se torne claro e articulado, tanto para os alunos, como para o docente. São eles que guiam a escolha de conteúdos, o processo de instrução e a forma de avaliação, como vários autores citados corroboram, tornando inclusive o processo mais justo para o aluno, em função da sua transparência. Um aspecto chave para verificar se os objetivos são coerentes com as intenções pretendidas é a análise da pertinência das atividades desenvolvidas para atingi-los. Cada atividade apresenta um potencial diferente; algumas são mais limitadas, como o exercício que só fixa o aprendido. Outras são mais amplas e podem desenvolver diversas capacidades, como a solução de problemas, que demanda resgate e adaptação do que foi aprendido para uma nova situação.

Além disso, a preocupação com a explicitação deve permear também os processos instrucionais, sejam eles dirigidos pelo professor ou pelo aluno. A teoria de Ausubel fornece subsídios para essa clarificação de conceitos em sala de aula, da mesma forma que os trabalhos sobre aprendizagem baseada em problemas ressaltam a importância da reflexão sobre as estratégias seguidas, o conhecimento obtido e o papel do professor facilitador na tomada de consciência. Finalmente, vale lembrar a importância de questões claras, tanto dissertativas quanto em forma de testes na avaliação da aprendizagem. Estas questões devem ser coerentes com os objetivos propostos aos alunos no início da disciplina, e também com o que foi efetivamente ensinado, permitindo que todos os envolvidos possam avaliar o conhecimento obtido, possibilitando assim correções de eventuais falhas e lacunas.

A análise sobre o processo ensino-aprendizagem realizada neste relato focalizou mais detidamente a competência pedagógica do professor universitário, o que não significa menor apreço pelas demais competências, pessoais e profissionais. Vale lembrar ainda que estas competências não estão isoladas umas das outras, sendo importante analisar brevemente como a pedagógica se relaciona com alguns aspectos das pessoais e profissionais, a nosso ver, essenciais para que a proposta de ensino aqui exposta se viabilize.

Nesta perspectiva, consideramos extremamente importante que o futuro docente reflita sobre a natureza da sua concepção de conhecimento, já mencionada acima. Em poucas palavras, o docente deve refletir se considera o conhecimento algo progressivamente construído, organizado, e explicitado, ou, alternativamente, como informação assimilada tal como foi ensinada, coerentemente com uma perspectiva empirista. A nosso ver, seja qual for a concepção do docente sobre o conhecimento, ela impregna e rege toda a sua prática, desde a formulação de objetivos, até a avaliação. Isto porque em uma concepção de conhecimento construído, diferentemente da segunda concepção, de conhecimento assimilado tal como foi transmitido, não é dado privilégio só ao saber, mas também a como foi dado significado ao que foi ensinado, como o conteúdo foi transformado e incorporado pelo aluno. Além disso, quando se valoriza mais do que a assimilação de informação, valoriza-se também o saber fazer e o saber ser. Em suma, o docente interessado em como o aluno constrói seu conhecimento busca saber também como o aluno coloca em prática o que aprendeu, e como se posiciona em relação a esse conhecimento.

A concepção de conhecimento construído implica ainda uma percepção do próprio papel do docente, muito mais como um mediador entre o aluno e o conhecimento do que um transmissor de conteúdo, o que leva à maior valorização do processo do que do produto. O professor como mediador da construção do conhecimento não se limita a transmitir conteúdos, mas ajuda o aluno a incorporá-los em uma estrutura pré-existente, organiza o conhecimento de modo flexível, instigando o aluno mais com questões do que com respostas - que, além de motivarem, exigem posicionamento. Coerentemente com a perspectiva do seu papel de mediador, o docente valoriza mais a negociação entre pontos de vista e as opiniões divergentes do que a unanimidade imposta, e também a transparência do processo instrucional em termos de seus objetivos, articulações entre os conteúdos e avaliação. A nosso ver, sem estas concepções é pouco provável que o processo instrucional, tal como foi proposto, se viabilize.

Na mesma perspectiva, o professor deve também se indagar sobre o tipo de profissional que deseja formar. Se almejar formar um profissional autônomo, capaz de manter-se atualizado sobre novos conhecimentos, a prática pedagógica deve ser dirigida neste sentido, enfatizando a atividade do aluno no processo instrucional, adotando, como examinado acima, o ensino baseado em problemas e outras atividades que possam ser conduzidas por sua iniciativa. A avaliação também deve refletir esta meta para a autonomia, pelo uso de instrumentos que permitam uma elaboração pessoal do conhecimento, diferente de uma repetição mecânica do que foi ensinado em sala de aula. Em suma, o processo ensino-aprendizagem como explicitação de conhecimento demanda consciência das próprias crenças e atitudes, que também devem ser coerentes com a prática a ser adotada em sala de aula, a qual, como bem lembra Masseto (2004), deve superar os limites físicos de uma instituição, projetando-se tanto para seu exterior como para o futuro.

 

Referências

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Enviado em Novembro/2007
Revisado em Maio/2008
Aceite final em Julho/2008
Publicado em Junho/2009

 

 

1 Agradecemos a colaboração, durante a fase de reformulação da disciplina, de dois ex-alunos, especialistas em formação de recursos humanos: Professor Carlos Eduardo Martins Lacaz e Professor Doutor Alexandre Santille.

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