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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2009

 

ARTIGOS

 

Gnosiologia versus epistemologia: distinção entre os fundamentos psicológicos para o conhecimento individual e os fundamentos filosóficos para o conhecimento universal

 

Gnosiology versus epistemology: distinction between the psychological foundations for individual knowledge and philosophical foundations for universal knowledge

 

 

William B. Gomes

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A exposição descreve e analisa as diferenças conceituais referentes à capacidade humana de conhecer e à necessidade de se validar aquilo que se conhece. A primeira condição é designada de gnosiologia, a segunda, de epistemologia. A literatura, por uma confusão entre as diferentes línguas, vem utilizando o termo epistemologia nos dois sentidos, com ênfase na segunda condição. As duas definições de epistemologia são contextualizadas no grande campo da filosofia em conjunto com ontologia (natureza fundamental ou realidade do ser), lógica (regras para se pensar corretamente) e axiologia (ética enquanto valores humanos, e estética enquanto valores éticos e estéticos). A demarcação desses quatro campos da filosofia é então tomada como parâmetro para análise de teorias psicológicas. A análise é ilustrada com a teoria psicológica de Maine de Biran, por oferecer estrutura de fácil entendimento e, ao contrário do que ocorreu na primeira metade do século XIX, não desperta grandes paixões.

Palavras-chave: Gnosiologia, Epistemologia, Ontologia, Lógica, Ética, Teoria psicológica.


ABSTRACT

The goal of the study was to describe and analyze conceptual differences between the human capacity of knowing and the necessity to validate what has been given as knowing. The first condition is defined as gnosiology and the second is defined as epistemology. The two definitions of epistemology are contextualized in the general field of philosophy, in contrast with ontology (the fundamental nature of reality or being); logic (the rules of correct or right thinking); and axiology (ethics as human values, and aesthetics as human values for natural and artifactual things). The analysis is exemplified with Maine de Biran 's psychological theory. It provides a structure that is easy to understand and, unlike what occurred in the first half of the nineteenth century, it does not arouse great passion anymore.

Keywords: Gnosiology, Epistemology, Ontology, Logic, Ethics, Theoretical psychology.


 

 

A presente exposição ocupa-se de duas questões: 1) a capacidade humana do conhecimento e 2) e a natureza do conhecimento científico. As duas questões são reconhecidas como epistemológicas, mas conviria distingui-las em gnosiológicas e epistemológicas como será argumentado a seguir.

A epistemologia, juntamente com a metafísica, a lógica e a axiologia constituem as quatro grandes divisões da filosofia (Toulmin, 1953). Chauí (2000, p. 50), em seu Convite à Filosofia, refere-se a três campos de investigação filosófica: 1) "o conhecimento da realidade última dos seres ou essência de toda a realidade", a ontologia, que teve como base inicial a conjunção aristotélica de metafísica e teologia; 2) "o conhecimento das ações humanas ou dos valores e finalidades das ações humanas," a axiologia; e 3) "o conhecimento da capacidade humana de conhecer, isto é, o conhecimento do próprio pensamento em exercício".

Para o terceiro campo, convém seguir a clara exposição da autora, que faz uma distinção entre: 1) "a lógica, que oferece as leis gerais do pensamento"; 2) "a teoria do conhecimento, que oferece os procedimentos pelos quais conhecemos"; 3) "as ciências propriamente ditas e o conhecimento do conhecimento científico, isto é, a epistemologia".

A expectativa desta exposição é que ela possa exemplificar a distinção entre teoria do conhecimento (o ato de conhecer) e teoria do conhecimento científico (validade do conhecimento). Comparando-se as duas classificações do campo filosófico, nota-se que Chauí inclui no terceiro campo de sua classificação a gnosiologia, a epistemologia e a lógica. Portanto, trata-se de uma classificação assentada nos escritos filosóficos. Qualquer outra classificação deverá ser necessariamente reduzida às quatro dimensões fundamentais: ontologia, epistemologia, lógica e axiologia.

O termo epistemologia foi utilizado pela primeira vez em 1854, por James F. Ferrier (1808-1864), em um livro intitulado Institutes of Metaphysics: the Theory of Knowing and Being, sendo, por conseguinte, a última divisão da filosofia a receber tratamento mais sistematizado. O verbete epistemologia tem sido usado em dois sentidos (Lalande, 1996): 1) para investigações psicológicas sobre a gênese do conhecimento particular e individual, o ato cognitivo, isto é, a consciência cognoscitiva, a autoconsciência, enfim, o poder e capacidade para conhecer; e 2) para verificação e validação do conhecimento coletivo e universal, isto é, a filosofia da ciência, as teorias do conhecimento científico.

Como se sabe, certifica-se se um dado conhecimento é verdadeiro através da análise lógica: as relações mútuas entre o conteúdo do pensamento e/ou entre os sentidos e a realidade a qual se refere. A relação entre pensamento e realidade ocorre tanto no senso comum, quanto na ciência. Por isso se diz que a ciência nada mais é do que o desenvolvimento e a sofisticação do senso comum. Quando aperfeiçoado por artefatos e relações lógicas, esse conhecimento pode resolver problemas e tornar a vida mais poderosa em relação à natureza e ao discurso, tanto no conforto de cada dia, quanto no argumento em defesas de causas diletas. Em contraste, o verbete gnosiologia refere-se às propriedades fundamentais necessárias à constituição do sujeito e suficientes para que os objetos produzam efeitos na construção do sentido consciente, e no desenvolvimento do intelecto.

Segundo Lalande (1996):

A palavra gnosiologia tem necessidade de ser precisada por um comum acordo, na medida em que existe muita confusão, sobretudo de uma língua para outra, entre Epistemologia, Erkenntinislehre, Gnoseology, Dottrina della conoscenza, etc. para designar a parte da filosofia que estuda o fato do conhecimento nas suas condições e nos seus resultados, a priori e a posteriori. (p. 448)

Em Chauí (2000, ver Unidade 4), a questão do fato do conhecimento está nas perguntas dos antigos filósofos gregos sobre como se constitui a experiência sensível e o pensamento puro. A resposta que obviamente modificou-se ao longo de séculos do pensamento filosófico continua dependente da qualidade necessária aos processos psicológicos da percepção, memória, imaginação, linguagem, e pensamento.

Epistemologia, tomando a segunda definição de Lalande (1996), refere-se à filosofia da ciência, isto é, quais os tipos de inquéritos e comprovações utilizados para definir uma crença como verdadeira ou falsa. Por conseguinte, as relações entre os conteúdos da mente (ideias) e as coisas sensíveis (fatos) são classificadas como teorias de verdade. O termo verdade é usualmente definido como aquilo que corresponde ao real. Contudo, determinar o que é real pode ser muito complexo, pois o que é real para uns pode não ser para outros. Mesmo assim, é necessário superar a subjetividade humana para distinguir fato de opinião ou crença individual de crença coletiva.

A lógica separa as verdades em categorias. No topo ficam as categorias absolutas, as asserções matemáticas que são verdades universais. Porém, quando tratamos da realidade física e humana, a distinção assume matizes variadas. O termo verdade é utilizado no significado lógico de correspondência, de adequação ou de harmonia possível. Assim, a relação entre ideias e fatos pode ser justificada por um critério de correspondência ou equivalência (tradição aristotélica); por um critério de coerência ou consistência sistêmica ou sistemática (defendido pelo filósofo Kurt Gödel [1906-1978]); por um critério pragmático no qual a validação está na consequência prática ou na probabilidade preditiva (defendido por William James [1842-1910]); ou por um critério performativo no qual a verdade é de ordem consensual (John L. Austin [1911-1960]). Outra possibilidade é valer-se de um critério existencial, no qual o conceito de verdade deixa de ser adequação entre a ideia e a coisa para constituir-se no desvelamento da autenticidade (defendido por Martin Heidegger [1889-1976]), ou na defesa de um movimento (por exemplo, como ocorre com a militância feminista). Tal diversidade sugere a suspeita de que a própria maneira de encaminhar a questão epistemológica já determina uma decisão prévia em favor de uma dada direção (ver Lalande, 1996).

 

Relações entre epistemologia e ontologia

Ontologia, como já mencionado, é o campo de estudo filosófico que investiga a natureza fundamental ou o estudo (logos) do ser (onto). O termo vem sendo usado com este sentido desde o século XVII. Christian von Wolff (1679-1754) tratava o campo da ontologia como o primeiro departamento da metafísica. Antes, o estudo do ser era conhecido pelos termos usados por seu fundador, Aristóteles: metafísica, primeira filosofia, teologia, sabedoria (Klein, 1970). Os estudos ontológicos procuram fornecer uma explicação racional para a existência dos seres, sejam eles quais forem. Em uma definição contemporânea, ontologia refere-se à especificação de classes hierárquicas e taxonômicas de objetos de diferentes naturezas e de suas relações. O psicólogo Gregg (2003) ofereceu uma classificação em quatro categorias básicas, distinguindo as diferentes classes de relações, conforme sintetizadas na Tabela 1.

Já o sociólogo Wiley (1996) trouxe um esquema mais simples, diferenciando e integrando os vários níveis ontológicos, mas dando à psicologia o lugar privilegiado que lhe é de direito, como mostra a Figura 1.

O esquema de Wiley (1996) coloca a psicologia numa área de interseção entre os campos simbólicos e não simbólicos. A interseção já é um desafio epistemológico considerável. De um lado, retrata a complexidade do campo. Do outro, mostra a amplitude da pesquisa e da prática psicológica. Essa intrigante interseção tem despertado muito mais discórdia e divisão do que ensejado a curiosidade pluralista e aberta. Quando a discussão se atém ao campo da pesquisa, a delimitação ontológica delineia a epistemologia, ou seja, o caminho lógico (materiais e métodos) que atende as especificidades da investigação. No entanto, tais investigações podem levar ao reducionismo, ignorando o papel integrativo do campo psicológico. As reduções podem ser ascendentes e descendentes. A redução ascendente trata a psicologia como se fosse constituída tão somente de propriedades simbólicas, seja no plano social ou intrapsiquíco. A redução descendente trata a psicologia como se fosse constituída tão somente de propriedades não-simbólicas, seja genética, biofísica, bioquímica, neurológica ou mental. Quando a discussão ocorre no espectro formativo e generalista ocasiona transtornos consideráveis, pois o estudante vive uma realidade estagnada, na qual cada nova disciplina é a apresentação de um novo programa de ontologia e de epistemologia. É como se o estudante navegasse sem visão de campo e definição de rumo.

Bunge (1980) abriu novas perspectivas ao redefinir ontologia como o estudo de objetos conceptuais. Tais objetos possuem uma natureza peculiar e irredutível, não sendo nem mentais e nem materiais. Eles existem em certos contextos e não estão sujeitos nem a leis mentais e nem a leis materiais. Por conseguinte, o objeto conceptual é um construto que pode ser verificado em contextos abertos ou fechados. O conceptualismo de Bunge seria uma posição intermediária entre o nominalismo (sentenças proposicionais) e o realismo moderado (existência do ser independente da mente humana). A proposta resolve vários problemas, substituindo a noção de natureza do objeto pela noção de conceito do objeto. Por conseguinte, amplia consideravelmente o campo de investigação para tudo que se preste a uma existência conceptual: conjuntos, relações, funções, números, estruturas, proposições, teorias, fadas, bruxas, e histórias em quadrinhos.

 

Relações entre epistemologia e lógica

A lógica formal, em sentido estrito, refere-se às regras para se pensar corretamente (leis do pensamento). Em contraste, a epistemologia ocupa-se da correspondência verdadeira com o objeto. Para se por em prova tal correspondência, tem-se a metodologia científica (Brugger, 1987). O primeiro sistema de lógica foi o de Aristóteles (ver Organon Livro 1, 2009) com objetivo de estudar a validade de um argumento. Para ele, cada uma das coisas supostas é uma premissa (protasis) de um argumento cujo resultado da necessidade é uma conclusão (superasma). O ponto central da lógica aristotélica é o resultado da necessidade, o que em termos modernos é entendido como consequência lógica (Clarke, 1973).

Assim, o campo da lógica formaliza as relações entre teoria (o que se assume como enunciado) e empiria (o que se assume como evidência). Sendo a psicologia uma ciência baseada em evidências, as relações entre teoria e empiria devem observar raciocínios clássicos da lógica formal. Entende-se por teoria a formulação de um enunciado do qual se deduz uma regra (condição de suficiência) e a submete a uma crítica (condição de necessidade). A condição de suficiência é um critério lógico no qual um fenômeno, isto é, um conceito (um objeto para um sujeito) é constituído, validado e confirmado por outro fenômeno (outro objeto para o mesmo sujeito) (se Q então P). Lanigan (1992) ilustra o critério lógico de suficiência com a seguinte pergunta: "você pode contar uma mentira?" (p. 218). Qualquer resposta à pergunta é uma condição suficiente para qualquer outra, pois indica que o respondente reconheceu o contexto para o qual deveria responder. No caso da teorização, suficiente se refere ao que pode ser pensado ou proposto. Em síntese, a teoria oferece um contexto de escolha. Recorrendo a termos utilizados por Popper (1972) um enunciado teórico poderia ser "logicamente insuficiente ou intuitivamente inadequado" (p. 488). Sendo assim, o critério de necessidade apresenta-se aqui como demonstração do enunciado proposto, por isto é considerado crítico (P não pode ser verdade a menos que Q seja verdade).

Para uma psicologia baseada em evidências, dois modos de metodologias são recorrentes: a quantitativa e a qualitativa (Souza, Gomes, & McCarthy, 2005). O método quantitativo define uma relação de verdade entre fatos. O método qualitativo define uma relação de possibilidade entre fatos. No método quantitativo, a associação entre fatos se define por probabilidade, que é o cálculo da predição de uma ocorrência. Para tanto, requer do pesquisador proficiência em estatística. No método qualitativo, a associação entre fatos e entre ideias se estabelece por indicação de possibilidades. Para tanto, requer ao pesquisador familiaridade com a fenomenologia, etnografia, historiografia e semiótica. Essas disciplinas e métodos de pesquisa habilitam o pesquisador para fazer observações diligentes, descrições exaustivas e circunstanciadas, e alcançar compreensões elucidativas e críticas (interpretações).

O movimento entre teoria e empiria se distingue em quatro formas clássicas de construção de argumento (Lanigan, 1992; Pierce, 1931-1958): dedução [regra + caso = resultado], indução [caso + resultado = regra], abdução [regra + resultado = caso (particular)] e adução [regra + resultado = caso (universal)]. Por regra entende-se o raciocínio do geral; por caso entende-se o raciocínio do particular; por resultado entende-se o raciocínio da relação. No raciocínio dedutivo, por uma regra (se todos os p implicam em q) esclarece um caso (esse p) e se prediz os resultados (implica em q). No raciocínio indutivo, a relação entre o caso (fato) e os resultados (outros fatos) leva a uma regra (generalização). O trabalho científico recorre normalmente à combinação destas duas formas lógicas, o conhecido método dedutivo-indutivo. Trabalhos mais rigorosos incluem a adução, um procedimento no qual um mesmo caso (problema) é investigado por metodologias diferentes. Esse procedimento, nem sempre explicitado, é decisivo para diferenciar efeitos de epistemologias ou verificar se determinado resultado não passa de combinação espúria de associações (ver exemplo de lógica adutiva em Genro, Kieling, Rhode, & Hutz, 2010). Mais importante é que o rigor metodológico informa uma condição binária (relação ou...ou; ou 0 ou 1) se um enunciado se refere a um fato em seu próprio mérito ou a uma ideia ou ficção. No entanto, há circunstâncias e contextos cujo conhecimento requer uma abordagem compreensiva, implicando em relações analógicas (e...e; e 1 e1), isto é, pode ser assim e assim também. Quando se reconhece a aprendizagem experiencial em ciência, inclui-se o raciocínio abdutivo que é o processo intuitivo de gerar hipóteses, a ser testada por indução e analisada por dedução, e depois testada por adução (o mesmo fenômeno sendo testado por diferentes métodos).

Mesmo tomando a psicologia como ciência baseada em evidências, deve-se ter em mente que qualquer proposição enunciativa é mediada pelo discurso. A linguagem é uma modalidade de empiria (Nöth, 1990). Sendo assim, é importante distinguir formas de discurso: retórica, maiêutica, sofística e dialética. Cada uma destas formas de discurso é resumida na relação de dois termos: pergunta e resposta. Na retórica, uma resposta sugere uma pergunta; na maiêutica, uma pergunta sugere uma resposta; na sofística, uma resposta sugere uma resposta, e na dialética, uma pergunta sugere uma pergunta. Os quatro tipos mostram quatro maneiras de se produzir argumentos. Na retórica, seguindo Aristóteles, tem-se a arte de como se construir um bom argumento e de falar bem. Na maiêutica, seguindo Sócrates, tem-se a multiplicidade de perguntas induzindo o interlocutor ao encontro de suas próprias verdades. Na sofística, seguindo Protágoras, a argumentação tem o objetivo de produzir a ilusão da verdade. Na dialética, seguindo Hegel, trabalha-se com as contradições entre enunciações ou entre enunciações e realidade (Lanigan, 1992). As relações que se estabelecem entre pergunta e resposta são importantes para que se estabeleça um olhar crítico entre hipóteses, interpretações e conclusões de evidências ou de formulação de enunciados.

A exigência ontológica requer clareza na definição da empiria (o que é o objeto) definindo as metodologias que podem ser empregadas. As ontologias se distinguem por diferentes exigências lógicas: as não simbólicas requerem uma lógica binária e trabalham pela redução da incerteza por exclusão (linearidade); as simbólicas requerem uma lógica binário/analógicas e trabalham pela constituição de certeza por inclusão (não linearidade). A condição de interseção ontológica da psicologia nos coloca diante de uma complexidade lógica expressa na seguinte fórmula: { e [e...e] e [ou...ou]}, sendo e...e o que é analógico e ou...ou o que é binário. Dito de modo simples e direto, a psicologia é o estudo de um corpo que é sujeito de si e produz sentido para si e para o outro, sendo este sentido consciente ou não. O sentido se constitui em um processo comunicante interno e externo, articulado por uma lógica binário/analógica, como indicado na fórmula acima. Ou seja, os nossos sentidos produzem, codificam e decodificam relações binárias (sim/não), analógicas (sim e sim), e combinadas (sim e não). Nestes termos, o sentido é mediado por relações não lineares que regulam relações lineares, ou o reverso.

 

Epistemologia na conjunção entre ontologia e ética: o problema da onto-axiologia

Nos últimos anos, tenho sugerido maior atenção às muitas contribuições que a ciência psicológica vem oferecendo no decorrer do século XX e inícios do século XXI (Gomes, 2007). Infelizmente, de acordo com Stanovich (2004), é triste que somente poucos tenham tomando conhecimento desses avanços científicos. Para o autor, psicologia é uma ciência muito citada, mas pouco conhecida. Deste modo, as questões da psicologia devem ser pensadas com base no registro acumulado da pesquisa desta ciência e nas proposições metodológicas decorrentes. Interações interdisciplinares são bem vindas e abrem espaços para novos horizontes na ciência e na aplicação, mas a perspectiva da ciência psicológica deve ser cultivada e incentivada. Não se trata de uma volta ao psicologismo, para o qual a psicologia seria o fundamento de todas as ciências, incluindo a lógica e a epistemologia (Brugger, 1987), mas um estudo cuidadoso das contribuições da rica diversidade das teorias psicológicas.

Para ilustrar a proposta, vou recorrer a uma teoria do século XVIII que oferece elementos de fácil entendimento e está longe de paixões contemporâneas: o pensamento psicológico do filósofo Maine de Biran (1766-1824). Para tanto, seguirei o bom resumo de Mueller (1968) para me restringir ao que é relatado por um manual de história da psicologia. Importante lembrar que o interesse é pela estrutura da teoria e não para os conteúdos que caracterizam o pensamento psicológico do autor. Em termos da semiologia de Saussure (Nöth, 1990), pode-se dizer que o interesse é pelas relações paradigmáticas e sincrônicas, e não pelas relações sintagmáticas e diacrônicas. Ressalte-se que a psicologia de Maine de Biran foi reconhecida e descrita por Moore (1970) e hoje parte da sua Œuvres philophiques está disponível no Google Ebooks (ver Cousin 1834-1941). Mencione-se, ainda, que o Livro Sexto - Vontade da celebrada obra Investigações de Psicologia (1854/1973) do médico baiano Ferreira França (1809-1857) é totalmente baseado em Maine de Biran. Obviamente, não se encontrarão na teoria todas as relações mencionadas, mas no decurso da descrição vão se apontando as relações com a ontologia, epistemologia, gnosiologia e ética. O mesmo exercício poderia ser realizado com Aristóteles, Agostinho de Hipona, Descartes, Locke e muitos outros célebres pensadores da psicologia.

Maine de Biran representou em seu tempo a defesa da doutrina voluntarista aos avanços do sensorialismo. Cada doutrina representava uma concepção ontológica. O sensorialismo explicava o psiquismo pelas atividades fisiológicas, por exemplo, a atenção seria uma decorrência das sensações, e a memória uma persistência de imagens. Para eles, o intelecto era uma decorrência de atividades fisiológicas. Em oposição, o voluntarismo não aceitava que o psiquismo fosse reduzido a substâncias orgânicas. A consciência ativa era uma força irracional que na experiência de vida alcançava aos pouco o conhecimento de si (desenvolvimento psicológico, gnosiologia), aprendendo a distinguir o eu do não eu. Com muito esforço, a consciência ativa poderia alcançar a reflexão, uma atividade em si, independente da estimulação externa (programas educacionais dariam ênfase ao exercício da reflexão - ética). O bem-estar dependia da vontade que, certamente, não seria capaz de controlar a exaltação excessiva ou a tristeza profunda (psicopatologia - ética). Nestas situações, só a experiência mística e espiritual poderia ajudar a superar as tribulações e levar a consciência ativa à existência plena (psicoterapia - ética). Há aí duas articulações entre valores. A primeira é a própria escolha ontológica, isto é, a vontade; a segunda é a agregação de valores em torno do desenvolvimento da psique. Em suma, os valores guiam as escolhas da explicação ontológica (o que é o psiquismo humano), com base na escolha apresentam-se os valores educacionais preventivos e prescritivos, e de bem estar psicológico.

A conjunção ontologia e ética é a agregação entre fatos e valores, ou modernamente entre conceitos e escolhas. Autores que tratam de temas éticos e jurídicos a denominam de onto-axiologia (Bellino, 1997; Schnaid, 2004). O termo onto-axiologia refere-se às explicações das propriedades básicas do psiquismo (o que é intelecto) e a valoração que precede ou decorre da escolha (como melhor desenvolver o intelecto). Deste modo, é capaz de descrever um ser pensante, movido por forças do seu próprio organismo ou de outras fontes, agindo sobre si e sobre o mundo. A teoria oferece uma premissa para a natureza ou conceituação humana, e explica como esse ser é capaz de pensar, de aprender, de falar, e de decidir. A concepção onto-axiológica define se o movimento intelectual é livre ou não e quais são as prescrições possíveis: o que fazer para ser sábio, equilibrado e pleno; como tratar aqueles que se tornam maus e perturbam a si e ao outro, ou como compreender e interpretar porque a vida é mesmo uma miséria (falha moral, psicopatologia).

 

Conclusão

Por conclusão, proponho um mapa conceptual abrangente e estrutural do grande campo psicológico (Figura 2).

A leitura do mapa inicia no centro com o termo psicologia, associado imediatamente com o termo autoconsciência, conforme a seta que aponta para baixo. Deste modo, o mapa assume uma perspectiva evolutiva (um valor), pois aponta, nas manifestações da autoconsciência, para os primeiros indicativos do diferencial humano (um fato): seu poder intelectual. Uma vantagem do uso do termo autoconsciência é que ele sintetiza a manifestação de um corpo sujeito, sendo a consciência a apreensão total de todo o organismo e do seu meio-ambiente. Por intelecto entende-se a capacidade humana para conhecer, pensar, refletir e deliberar. Move-se então para o lado direito do mapa e verifica-se que o termo intelecto está situado numa coluna vertical demarcada por uma chave, com mais dois termos: vontade e emoção. Iniciando por baixo, temos na emoção a força orgânica, a fonte do movimento, o resultado das apetições e das paixões, o conjunto das premências e necessidades sentidas de modo pré-reflexivo pela autoconsciência. A vontade é o poder deliberativo tendo como base as informações obtidas, valorizadas e sistematizadas pelo intelecto. A deliberação da vontade transforma-se em ação sobre o outro (a convivência social e a organização da sociedade); sobre si (a definição de metas para si, a auto-avaliação, o sentido de si mesmo, ou a ausência destas especificações); e sobre o ecossistema (as relações com as fontes de sustento e de proteção das intempéries, e dos ataques predadores de humanos ou de não humanos).

Ainda do lado direito, na parte inferior do mapa, encontram-se dois conceitos: ambivalência e moralidade. A ambivalência que é a ocorrência simultânea de ideias ou de sentimentos opostos desafia a deliberação da vontade e da intenção que dará à atividade, seja no âmbito interno do pensamento ou externo do comportamento. A consequência seria o maior ou menor sucesso de gerenciamento interno ou externo e as decorrentes implicações morais: a convivência positiva (vive de acordo com as regras sociais), ou negativa (importuna a si, ao outro, ao ecossistema, transgride as regras sociais).

Move-se agora para o lado esquerdo do mapa conceptual e verifica-se que o termo psicologia abre uma chave que contém dois outros termos: episteme e ética. Episteme refere-se à capacitação para conhecer que, por sua vez, impõe duas necessidades: saber como e por que o ser humano é capaz de conhecer do modo como conhece (gnosiologia - a origem, natureza e limite do ato cognitivo) e saber qual o fundamento e a verdade sobre o que se conhece (epistemologia - estudo dos postulados, conclusões, métodos e limites do conhecimento das diferentes ciências). Tem-se aqui uma diferença nem sempre presente nas nossas discussões e nos nossos textos, pois o termo epistemologia passou a ser usado nos dois sentidos. Por exemplo, a epistemologia genética de Jean Piaget é na verdade uma gnosiologia. O mais apropriado seria usar epistemologia para designar o estudo das ciências e gnosiologia para a capacidade humana de conhecer. O importante é ter claro que como ciência, a psicologia recorre a epistemologias para o estudo do ato cognitivo de conhecer (gnosiologia).

O termo ética, como foi visto, refere-se a regras de convivência derivadas de posições valorativas universais ou circunstanciais. As posições morais consagram costumes sociais e históricos e são regulados pelo direito e pelo entendimento tácito de bem. As falhas morais coletivas apontam para o esgotamento de uma ordem previamente estabelecida para superá-la ou para destruí-la. As falhas morais individuais indicam dificuldades psicológicas, isto é, a crítica consciente não está regulando as deliberações da vontade. As dificuldades podem estar no intelecto por prejuízos da percepção ou do próprio pensamento, ou na regulação da força emotiva, por exemplo, por transtornos de humor.

O mapa conceptual pode se aproximar de teorias gerais, mas não assume nenhuma posição para explicar as causas das falhas morais, das dificuldades no aprendizado, ou da revolta aos consensos sociais. É apenas um mapa, sendo suas partes assumidas, quando não reduzidas por diferentes teorias. Tamanha diversidade e extensão levaram à concentração de focos e abordagens, com resultados positivos tanto para uma psicologia propedêutica quanto terapêutica, mas encobriram a visão de conjunto. Há quem argumente que essa visão acabou, é irrecuperável (Gardner, 2004). A terminologia utilizada no mapa conceptual é pré-científica, mas que está sendo resgatada pela ciência neste início de século (Zhu, 2004). Exercícios como a elaboração de mapas conceptuais podem nos ajudar a compreender a extensão e unidade do campo psicológico (o velho sonho do neopositivismo - unidade da ciência), e o detalhamento e diversificação do campo psicológico. Contudo, a diversidade só terá valor social quando servir para robustecer as práticas profissionais e o avanço do conhecimento.

Debates epistemológicos ajudam-nos a entender a difícil tarefa de produzir conhecimento. A extensão do campo psicológico por sua própria natureza ontológica abre espaço para a diversidade e pluralidade. No entanto, tais debates podem encobrir insucesso em pesquisa ou falta de rumo metodológico. Bons momentos de uma área de pesquisa caracterizam-se por instrumentos e métodos eficazes e produtivos. A reflexão e a análise crítica deve ser parte permanente da avaliação da nossa pesquisa, sem inibi-la ou censurá-la. Quando o termômetro da análise crítica sobe e o da produtividade baixa é sinal de perigo à vista: o obscurantismo está próximo. O exercício epistemológico em conjunto com as análises ontológicas, gnosiológicas, lógicas e axiológicas é indispensável, em um campo tão rico em teoria e pesquisa, mas ainda de pobre articulação com a prática.

A exposição contemplou quatro termos: ontologia, epistemologia, lógica e ética. A primeira preocupação foi distinguir duas noções associadas ao termo epistemologia: teorias do conhecimento e teorias de verdade. Dois outros termos apareceram associados, ontologia e valor, derivando daí o termo onto-axiologia, a conjunção nem sempre reconhecida entre factual ou conceitual e valoração ou perspectiva. Os quatro conceitos iniciais podem ser reduzidos a quatro perguntas: o que é (a mente, o corpo, o comportamento, a virtude, etc), derivando-se, a seguir, mais três perguntas: como é, por que é, e para que é. O 'quê ' refere-se ao objeto do conhecimento (ontologia), o 'como ' se refere ao sujeito que conhece (epistemologia), o 'por quê ' se refere à justificação lógica para o fenômeno associado ou pertencente ao tal objeto, e o "para quê ', às implicações decorrentes de tal conhecimento. Na filosofia, os quatro termos são definidos de modo muito simples: ontologia, referindo-se a natureza fundamental de um objeto ou ser, a epistemologia, referindo-se qual a veracidade sobre o que se diz do objeto, a lógica com a demonstração da veracidade; e a axiologia com as implicações éticas (bem ou mal) e estéticas (belo ou feio). Se o interesse do pesquisador é a natureza do intelecto, então o que foi dito como gnosiologia tomará o status de ontologia.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
William B. Gomes
Instituto de Psicologia - UFRGS
Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 123
CEP.: 90035-003. Porto Alegre - RS
E-mail: gomesw@ufrgs.br

Enviado em Abril de 2009
Revisado em Junho de 2010
Aceite em Julho de 2010
Publicado em Julho de 2010

 

 

Autor Bolsista Produtividade do CNPq IA.
Agradeço os comentários sugestivos e provocadores dos pareceristas e a leitura atenta e crítica de Maria Adélia Pieta.

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