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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2009

 

ARTIGOS

 

Idéias divulgadas em São Paulo durante o processo histórico da regulamentação da profissão de psicólogo

 

Ideas circulated in São Paulo during the historical process of regulating the profession of psychologist

 

 

Marisa Todescan Dias da Silva Baptista

Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo retoma idéias publicadas por profissionais da psicologia que participaram ativamente da regulamentação da profissão, para avaliar se e como as mesmas subsidiaram a Lei 4119 de 27 de Agosto de 1962. Os periódicos pesquisados eram os voltados para psicologia, que circularam em São Paulo e Rio de Janeiro, durante as décadas de 40, 50 e 60 do século XX. Foram localizadas publicações de Arrigo Leonardo Angelini, Aniela Guinsberg, Anita de Marcondes Cabral, Pe. Antonius Benkö, Enzo Azzi, Rodolfo Azzi, Betti Katzenstein-Shoenfeldt, Dante Moreira Leite, Lourenço Filho, Me. Cristina Maria, Irmão Henrique Justo, Pe. Antonio da Silva Ferreira, Mário Yahn. Os escritos posteriores à publicação da Lei 4119 também objetivaram avaliar sua implementação, assim como auxiliar a elaboração dos documentos oficiais, complementares à regulamentação.

Palavras-chave: Idéias, Publicações, Regulamentação, Lei 4119.


ABSTRACT

The article reconsider the ideas that have been published by psychology professionals who actively participated in regulating their profession, to assess whether and how these ideas supported Law 4119 of August, 27, 1962. The journals surveyed were psychology oriented, which circulated in Sao Paulo and Rio de Janeiro, during the decades of 40, 50 and 60 of the twentieth century. We located publications of Arrigo Leonardo Angelini, Aniela Guinsberg, Anita de Marcondes Cabral, Fr Antonius Benkö, Enzo Azzi, Rodolfo Azzi, Betti-Shoenfeldt Katzenstein, Dante Moreira Leite, Lourenço Filho, Maria Cristina Me, Brother Henry Fair, Father Antonio da Silva Ferreira, Mario Yahn. The writings after the publication of Law 4119 were aimed to evaluate its implementation, as well as to assist the preparation of official documents of additional regulation.

Keywords: Ideas, Publications, Regulating, Act 4119.


 

 

A regulamentação da profissão foi um marco muito significativo na História da Psicologia no Brasil. Ela foi parte de um longo processo histórico. Apesar de ter havido uma experiência no Rio de Janeiro nos anos de 1930 com Radecki, o início da gestação ocorreu em meados da década de 40 do século XX, quando as primeiras idéias sobre regulamentação e formação começaram a ser expostas publicamente. Percorreu toda a década de 1950, quando vários anteprojetos, pareceres, substitutivos e emendas foram discutidas por vários grupos organizados da sociedade civil, assim como, por diferentes comissões do Ministério de Educação e Cultura. Continuou na década de 1960, quando a Lei 4119 foi aprovada, os primeiros cursos regulares de graduação segundo as propostas legais foram organizados, os registros de profissionais já formados em cursos de especialização e/ou já atuando na profissão, segundo os casos previstos na lei, foram efetuados. Esse processo de registro, segundo Lourenço Filho (1969), se iniciou em 1963. Por várias vezes houve prorrogações do prazo de encerramento que ocorreu efetivamente em 31/12/1971 (Conselho Federal de Psicologia, 1979). O processo histórico da implantação da regulamentação, todavia, só se concretizou quando foram instalados em 1973, o Conselho Federal de Psicologia e sete dos Conselhos Regionais.

O objetivo do presente artigo não é o de esgotar a análise desse processo, mas contribuir para a discussão de um dos aspectos que ajudam a entendê-lo: as idéias que circularam em São Paulo, no período estudado. Principalmente a década de 1950, foi um período muito intenso de discussões, debates, encontros, nos quais circularam idéias sobre o profissional psicólogo, a necessidade da regulamentação dessa profissão e também da formação regular, necessária para o seu exercício. Alguns dos participantes desses eventos estiveram muito envolvidos com o processo de regulamentação da profissão e em função disso passaram a publicar suas idéias a respeito. Na década de 1960, logo após a regulamentação, o assunto continuou a ser discutido, principalmente com relação às questões da formação e da atuação que ainda suscitavam muitas dúvidas, questionamentos e confrontos. A análise dessas contribuições e sua relação com a regulamentação é o que pretendo trazer aqui. A suposição é que, durante esse período, as reflexões dos participantes sobre os diferentes movimentos efetuados devam esclarecer o significado que atribuíam à regulamentação, e também os esforços envidados para que a mesma ocorresse e se efetivasse na prática.

Na cidade de São Paulo, já havia, efetivamente, muitos profissionais exercendo atividades próprias dos psicólogos em várias instituições, dentre as quais podem ser citadas: Universidade de São Paulo, Faculdade Sedes Sapientiae, Pontifícia Universidade Católica, Escola Livre de Sociologia e Política, Liceu de Artes e Ofícios, Estrada de Ferro Sorocabana, Escola técnica Getúlio Vargas, SENAI, CMTC (Companhia Metropolitana de Transportes Coletivos), Setor de Psicologia Aplicada do Instituto de Administração da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da USP, Serviço de Saúde Escolar, Seção de Higiene Escolar, Departamento de Ensino Profissional, IDORT, Cruzada Pró-Infância, clínicas de psicologia infantis, Sociedade de Psicologia de São Paulo, Associação Brasileira de Psicólogos, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

A pesquisa que subsidiou o artigo se iniciou com o levantamento dos profissionais paulistas que participaram diretamente do processo de regulamentação da profissão. Foram arrolados aqueles que participavam da Sociedade de Psicologia de São Paulo, da Associação Brasileira de Psicólogos, alguns que trabalhavam nos cursos de especialização oferecidos pela Universidade de São Paulo, Sedes Sapientiae e PUC/SP e em núcleos de psicologia clínica e do trabalho, e eram mencionados como participantes das discussões promovidas em diferentes espaços sobre a temática da regulamentação. O passo seguinte foi buscar as produções desses profissionais sobre o tema. Foram consultados os periódicos publicados na época ligados direta ou indiretamente à psicologia: Ciência e Cultura (SBPC); Boletim de Psicologia (Sociedade de Psicologia de São Paulo); Revista de Psicologia Normal e Patológica (PUC/SP); Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (Rio de Janeiro); Boletim do Instituto de Psicologia (Universidade do Brasil, (RJ); Boletim da F.F.C.L da USP- Psicologia; Boletim da FFCL USP/SP- Psicologia Educacional; Jornal Brasileiro de Psicologia (USP/SP). Especificamente, foram encontradas produções de Aniela Meyer Ginsberg, Anita de Castilho e Marcondes Cabral, Pe. Antonio da Silva Ferreira, Arrigo Leonardo Angelini, Betti Katzenstein Shoenfeldt, Dante Moreira Leite, Enzo Azzi, Lourenço Filho, Madre Cristina Maria, Mário Yahn, Rodolfo Azzi. No decorrer desse levantamento, foram encontradas matérias sobre o tema publicadas por profissionais de outros estados brasileiros: Pe. Antonius Benko (RJ), Irmão Henrique Justo (RGS). Alguns desses profissionais fizeram parte da comissão que, após 1964, participaram dos registros profissionais e também colaboraram com o Conselho Nacional de Educação, na elaboração de atos posteriores à aprovação da Lei 4119: Padre Antonius Benko, Lourenço Filho, Enzo Azzi (substituído por Arrigo Angelini) e também Carolina Martuscelli Bori, Pedro Parafita Bessa (desses dois últimos não foram localizados escritos a respeito). É importante acrescentar que várias palestras sobre a questão foram proferidas na época, e sua ocorrência e temática registradas nos noticiários dos periódicos, mas o conteúdo das mesmas não foi publicado. Podemos citar, como exemplo, as proferidas por Maria José Garcia Werebe, Carolina Bori, Aniela Ginsberg, Arrigo Angelini, Me. Cristina. Cada um desses profissionais visitou centros de psicologia nos EUA, ou na Europa, e relatou para os frequëntadores dos eventos promovidos pela Sociedade de Psicologia de São Paulo, o que observara da atividade dos psicólogos que trabalhavam nos locais onde estivera. Outros profissionais trataram de temas ligados às preocupações do momento. Noemy Rudolfer, por exemplo, discutiu Da legitimidade da função do psicólogo clínico e das clínicas psicológicas e Anita Cabral, A formação do profissional em Psicologia. Há notícias veiculadas pelo Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo (1957) sobre a formação de várias comissões, a partir do ano de 1952, para discutir a questão da regulamentação da Psicologia, mas o conteúdo dessas discussões também não foi publicado.

Dentre os autores mencionados, Anita Cabral foi quem publicou durante um espaço de tempo mais longo (desde a década de 1940) e também um volume maior. Manteve constante preocupação com a formação dos psicólogos, e também com sua atuação. Foi uma das criadoras de duas associações e de três revistas, e principal mentora da criação do curso de graduação da USP/SP. Sua primeira referência às questões da Psicologia se deu quando assumiu a Cátedra de Psicologia em 1947. Tal cátedra era uma das quatro que compunham o Curso de Filosofia da FFCL, da Universidade de São Paulo. Seu discurso de posse foi publicado no Anuário da FFCL da USP do ano de 1947 (Ramozzi-Chiarottino, 2001). Nesse discurso, apontou a importância da pesquisa em psicologia (pouco valorizada até então), e definiu a temática a que deveriam se dedicar os profissionais que trabalhassem na cátedra: atitudes e caráter nacional. Mencionou também a importância de os pesquisadores serem responsáveis por todo o processo da pesquisa, desde o planejamento até a finalização, ressaltando a importância do pensamento original nesse processo. Essa ênfase na pesquisa se dava, segundo Chiarottino, por estar ela situada em um curso basicamente teórico, o de Filosofia, que pouca importância dava ao desenvolvimento científico e, conseqüentemente, às pesquisas.

Dois anos depois, Anita, como presidente da Sociedade de Psicologia de São Paulo, na posse da nova diretoria, refere-se às metas que são importantes para aquele momento: a divulgação e socialização dos conhecimentos, a questão de verbas para essa produção, a situação financeira dos psicólogos, e questões associativas (Boletim de Psicologia, 1949). Refere-se à importância de editar uma publicação impressa e não mimeografada, como acontecia até então, e à necessidade de buscar recursos para que esse processo pudesse acontecer. Critica, em relação a recursos, tanto o pouco que se pagava como remuneração para os psicologistas, quanto verbas atribuídas às pesquisas na área, fazendo uma comparação com outras profissões de mesmo nível. Relembra ainda um papel importante da Sociedade de Psicologia de São Paulo que não estaria sendo cumprido: estimular a formação de outras sociedades em outros locais do Brasil. No mesmo Boletim, há referência a uma palestra proferida pela mesma profissional, em 27/07/49, que teve como tema A profissão de psicólogo e a associação dos psicólogos norte-americanos: sugestões para organização de nossa sociedade.

Em 1950, Anita publica em um número especial, Psicologia nº 3, do Boletim CXIX da FFCL da USP, um artigo denominado A psicologia no Brasil. Tal artigo havia sido enviado para os EUA como capítulo para ser publicado no livro World Psychology, que tinha como editor George Kisker. Nesse artigo histórico, a autora introduz um breve relato da história do Brasil, e aponta os pensadores que introduziram a psicologia no século XIX no Brasil, chamando-os de autodidatas. Menciona que a psicologia começou a ser ensinada nas cadeiras de filosofia das escolas secundárias, nas faculdades de direito e medicina, seminários, escolas normais. Como locais de prática da psicologia, aponta hospitais psiquiátricos, clínicas e consultórios particulares, núcleos de formação e atuação psicanalítica, e posteriormente as faculdades de filosofia, que, segundo ela, eram os espaços onde os aspectos teóricos eram refletidos. Explicita que, antes de 1920, houve influência da psicologia européia, principalmente a francesa e, após essa data, uma forte afluência da psicologia norte-americana. Faz um apanhado de todos os centros e grupos que praticavam a psicologia no Brasil, no período. Refere também que tanto a Sociedade de Psicologia de São Paulo, como a Associação Brasileira de Psicotécnicos já haviam colocado em pauta a questão da regulamentação. Finalizando, retoma a questão da importância da formação do psicólogo se realizar em contextos específicos e não em cursos de formação de outras áreas do conhecimento.

No ano de 1952, por ocasião da Reunião Anual da SBPC, realizada em Porto Alegre, Anita Cabral faz uma palestra sobre Requisitos básicos da formação de psicologistas (Ciência e Cultura, 1953). A temática é mostrar que a formação do psicologista começa a ser pensada como uma preparação "específica, teórica e prática". Defende que a psicologia naquele momento já adquirira um status científico, e como tal utilizava vários métodos: o experimental, o estatístico e o clínico. Considera que a formação do psicologista devesse ser uma composição entre técnico e cientista, tendo como ponto de equilíbrio a preocupação com o humano, na perspectiva da relação do individual com o social. Menciona ainda que o espírito científico se faz presente quando são colocadas questões que podem ser respondidas a partir das observações, o que pressupõe uma relação teoria x prática. Defende que embora a formação em psicologia exista em alguns cursos de filosofia e educação, ela deveria ser realizada em um curso autônomo, que considerasse tanto o estado científico da psicologia, como também sua relação com a prática, e com as condições do ser humano. Advoga ainda que a formação se faça em universidade, com uma composição teórica-prática, e uma obrigatoriedade de existência de laboratórios. Refere-se ao psicologista escolar, psicologista industrial (ou psicotécnico), psicologista clínico (ou higienista mental), como os diferentes tipos de profissionais da psicologia. Outro feito de Anita na mesma época foi o envio da proposta de criação de um Curso de Psicologia à Congregação da USP, em 1953 (com o apoio dos alunos que na época freqüentavam o Curso de Filosofia) e que foi aprovado por uma lei estadual em 1957 (Botelho, 1989; Ramozzi-Chiarottino, 2001).

Essas primeiras publicações de Anita mostram o quanto ela estava empenhada em que houvesse o reconhecimento da profissão e também que fosse sendo construída a infra-estrutura necessária para que isso viesse a ocorrer. Nesse sentido, a criação da Sociedade de Psicologia de São Paulo, com a preocupação de que ela pudesse ser um veículo de estimulação de sociedades semelhantes em outros estados brasileiros, o estímulo para que outra sociedade de âmbito mais amplo também fosse criada: a Associação de Psicólogos Brasileiros, a organização de periódicos que pudessem veicular as idéias debatidas na ocasião: Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo e números especiais sobre psicologia no Boletim da FFCL-USP. Posteriormente na década de 60, criou o Jornal de Psicologia. Também se preocupou com a criação do Curso de Especialização em Psicologia Clínica (1954) antes da promulgação da Lei 4119, e de Psicologia Social e Experimental em 1966.

No início da década de 50, um médico psiquiatra, Mário Yahn, fez uma palestra na Sociedade de Psicologia de São Paulo abordando um tema que era dos mais controversos na discussão da existência do profissional psicólogo. Teve como denominação Dos limites da ação entre a atividade do psicólogo e do psiquiatra, e um resumo da mesma foi publicado posteriormente no Boletim de Psicologia (1950). É interessante observar que, apesar da pressão que a classe médica exercia na época para impedir tanto a regulamentação da profissão, quanto a atuação em terapia por parte do psicólogo, esse autor inicia seu artigo dizendo que ambos os profissionais tratam de um único fenômeno o psiquismo humano. Coloca as diferenças entre eles e explicita sua principal preocupação pessoal na questão da preparação para o exercício da atividade. Diz ele: "o primeiro estuda, mediante os testes e as regras da psicologia clínica, a personalidade do paciente, e o segundo procura compreender as manifestações mórbidas em base daquele estudo" (p. 37). Complementa a sua visão dizendo que, para que o psiquiatra possa exercer sua atividade a contento, precisa dos conhecimentos da antropologia cultural, sociologia, psicologia clínica e medicina clínica. Sugere que, na formação do psicólogo, deva ser incluída sua preparação para o exercício da psicoterapia, para oferecer esse serviço de forma garantida para os que buscam esse auxilio.

Um evento que marca o desencadeamento de discussões mais amplas sobre o tema foi a realização em Curitiba, no mês de dezembro de 1953, do Primeiro Congresso Brasileiro de Psicologia, quando os registros apontam a intenção de solicitar a regulamentação da profissão. Também foram produzidos alguns documentos sobre o tema, para o evento, publicados nos meses subseqüentes.

Aniela M. Ginsberg publica suas impressões desse primeiro congresso, nos Arquivos Brasileiros de Psicotécnica (1954). Ela menciona, entre outras coisas, os grupos que apresentaram e discutiram diferentes temas. Relata que um dos grupos do qual participaram Carolina Martuscelli Bori, Hans Ludwig Lippmann, Pedro Pereira de Sousa, Me. Cristina, Flávio Neves, Irene Lustosa e Anita Cabral, abordou a temática: Ensino de Psicologia e Profissão do Psicólogo. Ao final do encontro, o grupo produziu um documento, cujo fundamento partiu de uma comunicação realizada por Me. Cristina, que recebeu a denominação de Projeto de formação de psicólogos e codificação da profissão. Esse projeto foi discutido em plenário e entregue a uma comissão que se incumbiria de sua redação final e apresentação ao Ministério de Educação e Cultura.

A continuidade desse processo, que tentamos reconstruir a partir de algumas notícias fragmentadas, é que a partir do congresso houve uma série de reuniões, no início de 1954, no Rio de Janeiro, com a participação de vários membros do grupo já mencionado. Tal material não chegou a ser publicado nos periódicos consultados, e a suposição é que isso tenha ocorrido em função de desentendimentos entre os que participaram dos encontros. O ponto de maior atrito dizia respeito à formação do psicologista, alguns sugerindo que a mesma poderia ficar a cargo de instituições não universitárias e outros contra essa idéia, advogando que a formação só poderia acontecer em cursos de nível superior alocados em Faculdades de Filosofia (Morais, 1999).

Anita Cabral apresentou nesse Congresso uma comunicação sobre Problemas de formação de Psicólogos, posteriormente publicado no Boletim de Psicologia (1953/54). Ela defendeu a idéia de que a formação de psicólogos deveria ser feita em nível universitário, em Faculdades de Filosofia, com duas possibilidades terminais: a de bacharel, licenciado ou de profissional. Mencionava ainda que o currículo a ser adotado pelo curso seria motivo de muita controvérsia na época, citando como exemplo dois que haviam sido propostos pelo Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil e pelo 1º Simpósio das Faculdades de Filosofia; e ainda o currículo já em vigência no Instituto de Psicologia Aplicada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Me. Cristina, durante esse mesmo congresso, apresentou a comunicação: Formação do psicólogo e a regulamentação da profissão, publicada posteriormente no mesmo Boletim de Psicologia ( 53/54). Nesse texto, ela discute a importância de ter uma definição jurídica da profissão do psicólogo e defende que só seria chamado de psicólogo aquele profissional formado em uma faculdade de filosofia oficial ou oficialmente reconhecida, que tivesse freqüentado curso de bacharel em pedagogia, filosofia ou psicologia. Menciona como atribuições do psicólogo ser professor de psicologia, psicólogo clínico, psicotécnico, orientador educacional, psicopedagogo. É interessante observar a colocação das duas últimas atribuições do psicólogo, pois a história da vida profissional da madre explica esse fato. Desde que assumiu, em 1942, a coordenação do Curso de Pedagogia da então Faculdade de Filosofia do Instituto Sedes Sapientiae, ela relata que introduziu inúmeras disciplinas de psicologia, assim como atividades clínicas. Essas atividades eram consideradas práticas de estágio dos alunos do curso, realizadas com crianças em situação escolar. Sua intenção era a de preparar os alunos para o exercício da profissão de psicólogo. Ela mesma cita as atividades que eram realizadas nesse contexto: psicopedagogia, diagnóstico, orientação vocacional, orientação de pais. No mesmo ano em que o congresso foi realizado, cria o Curso de Psicologia Clínica, assim como a Clínica Psicológica (Schimidt, 1990). A mesma instituição mantinha também Curso de Especialização em Orientação Educacional.

Nas décadas de 1950/1960 (assim como em algumas situações até hoje), era comum a superposição de atividades atribuídas ao orientador educacional, formado em cursos de especialização, nas faculdades de filosofia, e do psicólogo, que muitas vezes também possuía a mesma formação na graduação - cursos de educação/pedagogia. O orientador teve seu exercício profissional regulamentado por um decreto em 1973, enquanto o psicopedagogo luta até hoje na justiça pela regulamentação de sua atividade profissional. Apesar dessa aparente divisão de caminhos, até hoje, em algumas situações, as atividades se superpõem. Esta superposição se refletiu nos primeiros anteprojetos e decretos, que advogavam que tanto a orientação como a psicopedagogia fizessem parte do rol de atividades a serem exercidas pelos psicologistas/psicólogos.

Consta de um documento produzido pelo Instituto Sedes Sapientiae, em 1998 (Histórias e Memórias: 1977-1999), que, em Julho de 1953, havia sido realizado na Faculdade Sedes Sapientiae o Primeiro Simpósio das Faculdades de Filosofia do Brasil. Há notícias de que no mesmo teria sido produzido um documento referente à regulamentação da profissão, que posteriormente teria sido entregue para o Ministério de Educação e Cultura. No Parecer 412 da Comissão de Ensino Superior do Ministério de Educação e Cultura (Arquivos Brasileiros de Psicotécnica, 1959), há menção de que o mesmo foi encaminhado.

Dois anos após a realização do Primeiro Congresso Brasileiro de Psicologia, Angelini (1955) publica um artigo, como conclusão de uma pesquisa que havia feito sobre escolhas profissionais de adolescentes: Da urgência de uma orientação profissional mais eficiente em nossas escolas secundárias. O autor defende a necessidade de que a orientação profissional pudesse ser oferecida nas escolas secundárias para evitar um fenômeno detectado em pesquisa realizada por ele para avaliar o papel dos interesses na escolha da profissão: a concentração das escolhas em 2 ou 3 profissões, com maior status profissional. Refere-se à falta de informação do jovem tanto no que se refere a profissões, quanto ao que ele chama de descobertas recentes da psicologia relacionadas com as diferenças individuais. Concebe o processo de orientação como tendo cinco objetivos: informar sobre o mundo das profissões; estudar a personalidade através de técnicas psicológicas adequadas; informar sobre as exigências de cada profissão e da formação necessária para exercê-la; encaminhamento dos alunos para os cursos adequados. É importante mencionar que, na época em que o artigo foi publicado, era considerada uma das atribuições dos psicólogos a realização da orientação educacional e profissional, tal como mostra a fala de Me. Cristina no Congresso de 1953. Além disso, já havia legislação que tornava obrigatória a existência da orientação educacional e vocacional em estabelecimentos de ensino.

Neste mesmo ano de 1955, Lourenço Filho publica um capítulo denominado A Psicologia no Brasil, no livro As ciências sociais no Brasil, organizado por Fernando de Azevedo. Nesse texto, o autor inicialmente refere-se às contribuições dadas à psicologia por trabalhadores da medicina, educadores, engenheiros, administradores, sacerdotes e líderes católicos, especialistas estrangeiros. Relaciona as instituições que historicamente abrigaram a disciplina psicologia: escolas normais, ensino secundário e ensino superior. Menciona a seguir os órgãos de pesquisas existentes, as publicações e associações especializadas. Sua conclusão é a de que o que ele denominava de psicologia cientifica havia avançado muito no Brasil, na época em que a publicação foi feita. É interessante observar que o autor, tendo participado do Primeiro Congresso Brasileiro de Psicologia e também discutido em vários âmbitos a questão da regulamentação da profissão, não tenha mencionado esse fato em seu texto. Mesmo em uma publicação posterior, A psicologia no Brasil nos últimos 25 anos (1969), não se coloca como personagem participante do processo de regulamentação, mas faz uma descrição dos acontecimentos formais que fizeram parte dessa história.

Vários anos depois, mais especificamente em 1959, por ocasião do VI Congresso Interamericano de Psicologia, realizado em São Paulo, Enzo Azzi (diretor do Instituto de Psicologia da PUC/SP) profere duas palestras, cujos temas têm ligação entre si: A psicologia clínica em São Paulo e a Clínica psicológica do Instituto de Psicologia da PUC/SP, ambos publicados posteriormente na Revista de Psicologia Normal e Patológica. Em sua primeira contribuição, Azzi (1959a) refere-se às questões da prática, ensino e pesquisa em psicologia. Inicia mencionando três conceitos de psicologia clínica: 1) médico: "acepção estritamente etimológica e tradicional do termo clínico" (p. 404); 2) análise psicométrica: "aplicação mais ou menos mecânica de testes psicológicos" (p.405); 3) forma de psicologia aplicada que "não quer dizer psicologia patológica e tão pouco psiquiatria ou psicoterapia... ela se caracteriza mais por uma atitude metodológica" (p. 405). Para ele:

o programa da Psicologia Clínica é encarar a conduta dentro de sua perspectiva própria, por em relevo, o mais fielmente possível, as maneiras de ser e de reagir de um ser humano concreto em contacto com situações percebidas e vividas, procurar estabelecer a significação da conduta, sua estrutura e gênese, desvendar as tensões e os conflitos que a motivam, e os mecanismos que tendem a resolver essas tensões e esses conflitos (p.405).

Quanto às práticas desenvolvidas em São Paulo, menciona: diagnósticos psicológicos (usando técnicas apropriadas), aconselhamento psicopedagógico de crianças, jovens e adultos excepcionais, aconselhamento pscicológico de pais, professores e outros técnicos, aconselhamento escolar, vocacional e vital. Justifica o fato de não ter incluído a psicoterapia, por ser esse um assunto ainda não resolvido na época e por considerar que havia somente um pequeno número de psicólogos não-médicos atuando como psicoterapeutas. Apesar desse tipo de trabalho ser muito solicitado, refere-se ao fato de algumas dificuldades ocorrerem: a ausência de regulamentação da profissão, o fato dessa atividade estar sendo exercida por pessoas inescrupulosas, mal formadas, pela imprecisão dos limites entre o fazer do psicólogo clínico e do médico e da pouca informação sobre a sua atuação para a população. Quanto aos locais onde a psicologia clínica estaria sendo exercida, menciona: clínicas psicológicas das universidades, clínicas médicas de alguns hospitais, plano de assistência a menores abandonados, clínicas de orientação infantil, ligadas as redes de ensino, penitenciárias, instituições para crianças, e clínicas particulares.

Sua segunda contribuição denominou-se Clínica psicológica do Instituto de Psicologia da PUC/SP (Azzi, 1959b). Reafirma nesse artigo o que entende por psicologia clínica, e menciona que a clínica na PUC/SP teria três objetivos: didático (ensino aos alunos dos cursos de especialização em Psicologia clínica), prática (orientação educacional, vocacional e vital, diagnósticos, psicoterapia individual e de grupo, ensino terapêutico e exames médicos especializados - psiquiátricos, neurológicos, paraclínicos), e, por último, a pesquisa. Com esse escrito, Azzi aborda diretamente o aspecto mais complexo e conflituoso da regulamentação, relacionado às pressões contrárias dos médicos: a questão da psicoterapia e do atendimento clínico que se configurava como uma área de interface com as atividades dos médicos e principalmente dos psiquiatras. Há, na literatura, referências diretas a essa pressão. Me. Cristina relata, em entrevista, que vários grupos reivindicavam a paternidade da psicologia: assistentes sociais, pedagogos, filósofos, mas principalmente os médicos que consideravam que terapia era privativa deles. Para contornar esse problema, ela relata que montou um curso livre de psicologia clínica, aberto a médicos, que segundo ela era freqüentado semanalmente por mais de 100 estudantes de medicina (Schimidt, 1990, p.56). Anita Cabral também, em entrevista concedida a Morais (1999), menciona que tanto a igreja, como os médicos tinham interesses na psicologia, considerada por eles uma ciência nova. Mathilde Neder também, em entrevista gravada, se refere à pressão de alguns médicos, principalmente psiquiatras, durante todo o período que duraram as discussões que subsidiaram a aprovação da Lei 4119.

No ano seguinte, 1960, Arrigo profere a aula inaugural dos cursos da FFCL-USP com o seguinte tema: O sentido atual da psicologia educacional, reproduzida na Revista de Psicologia Normal de Patológica (1962). O autor trata do tema considerando cinco aspectos: 1) Conteúdos da psicologia educacional. A partir da leitura de vários autores, cita os seguintes: aprendizagem, personalidade e ajustamento, testes e mensurações, desenvolvimento. Também considera os conteúdos a partir dos cursos oferecidos em universidades americanas: organismo humano; psicologia das matérias escolares; técnicas, instrumentos e métodos de pesquisa em psicologia educacional; aplicação da psicologia a problemas da educação - orientação educacional, aconselhamento, higiene mental, pedagogia terapêutica. 2) Relações e diferenças entre psicologia geral e educacional. Para ele, apesar das diferenças serem tênues, considera que a primeira é mais teórica, e a educacional se dedica a resolver os problemas de orientação educacional, educação de adultos, diagnóstico e terapêutica das dificuldades dos alunos, ajustamentos e desajustamentos dos alunos na escola, na família, em outros grupos, fundamentação psicológica do ensino das matérias escolares, técnicas de avaliação do rendimento escolar. 3) Críticas à psicologia escolar: menciona que a condição para superação das mesmas é o fato da psicologia educacional dever se compor a partir da pesquisa científica e de um conhecimento da situação na qual a mesma se encontraria inserida. 4) Limites da psicologia educacional: natureza da tarefa educativa, que depende de aptidões inatas do educador, o conhecimento científico nem sempre soluciona problemas, a ampla abrangência das teorias e práticas psicológicas. 5) nesse último item, apresenta sua visão sobre como a psicologia educacional pode se colocar a serviço do professor e do administrador escolar.

A fala de Arrigo pode ser interpretada como uma tentativa de clarificação e afirmação de um campo de conhecimento e profissional. Nesse momento em que profere a aula, a psicologia clínica estava em evidência, pois havia uma preferência acentuada por parte dos alunos das três instituições que mantinham cursos de especialização: USP, PUC/SP e Sedes Sapientiae. Outro motivo que explicaria a fala seria a necessidade premente de um delineamento da área, tarefa já iniciada por Noemy Rudolfer, quando em 1938 publica seu livro Introdução à Psicologia Educacional. No prefácio, Noemy já apresentava a impossibilidade de delinear o campo da psicologia educacional, tendo em vista as diferentes perspectivas existentes que, muitas vezes, podiam ser consideradas até contraditórias. A realidade da psicologia educacional, tal como foi instalada na USP, também se revelava contraditória. A cátedra de Psicologia Educacional do Instituto de Educação Caetano de Campos, cuja titular era Noemy Rudolfer, foi incorporada à Universidade de São Paulo, por ocasião de sua criação, pela Escola de Professores desse Instituto. A tarefa atribuída à cátedra, inicialmente, era somente subsidiar a formação de professores no momento da licenciatura, com informações da psicologia da educação. Os alunos do curso de licenciatura eram oriundos de todas as áreas de conhecimento oferecidas pela Faculdade de Filosofia. Não havia, portanto, uma preocupação em formar um profissional da área da psicologia educacional. O curso de especialização, criado pela cátedra posteriormente, exigia que os candidatos interessados fossem oriundos dos cursos de pedagogia. Os profissionais, depois de terminarem a especialização, se dirigiam preferencialmente no mercado de trabalho para as atividades organizacionais e clínicas. Quando se dirigiam às escolas, atuavam atendendo os alunos com um modelo clínico, efetuando diagnósticos e atendimentos individuais de formato terapêutico. Havia, também na USP, uma questão de pertencimento. A quem o curso de Psicologia Educacional pertenceria? À Educação ou Psicologia? Na reforma universitária de 1968, a antiga cátedra de Psicologia Educacional é reivindicada pela Faculdade de Educação e em seu lugar foi criada, pelos profissionais que permaneceram na psicologia, o Departamento de Psicologia da Aprendizagem, Desenvolvimento e da Personalidade.

Dois anos depois, o Encontro de Professores de Psicologia promovido pela Associação Brasileira de Escolas Superiores Católicas (ABESC), realizado na PUC/SP de 3 a 6 de julho de 1961, gerou a produção e publicação de textos sobre algumas concepções de psicologia marcadas por um foco religioso. Tais artigos foram publicados na Revista de Psicologia Normal e Patológica em 1961. Vários profissionais contribuíram para o debate sobre o reconhecimento da profissão e formação do profissional a partir de uma concepção religiosa, cristã, espiritualista da psicologia. Mencionaremos a seguir Padre Benkö, Me. Cristina e Enzo Azzi, que foram participantes ativos nos debates sobre o processo da regulamentação. É importante lembrar que, na época, eram muitas as discussões sobre a regulamentação que, por sinal, já se encontrava em tramitação. Vários substitutivos e emendas já haviam sido apresentados, com a finalidade de modificar itens que caracterizariam diferentes formas de entender a psicologia, a formação e atuação do profissional da área.

Padre Benkö e Me. Cristina apresentam reflexões sobre o tema Psicologia moderna de concepção espiritualista do homem. Pe. Benkö (1961a) parte da definição de psicologia moderna como "aquela que se esforça para compreender o comportamento e a personalidade humana através de estudos e teorias rigorosamente científicas pretendendo, dessa forma, contribuir ao desabrochar e ao uso mais harmonioso da plenitude das forças humanas" (p. 629). Propõe, a seguir, discutir se essa psicologia tem uma concepção espiritualista do homem ou não. Compreende concepção espiritualista como aquela que "reconhece a existência e a importância psicológica de valores espirituais para os quais o homem tende" (p. 629). Tendo exposto os dois conceitos, levanta uma questão importante para avaliar a psicologia moderna, a partir dos profissionais que escrevem sobre ela, mostrando que não basta sua declaração de que acreditam no aspecto espiritual, mas sim sua concepção sobre o homem integral. Analisa a seguir as perspectivas de vários autores concluindo que somente alguns poucos se preocuparam com uma concepção de psicologia científica espiritualista. Cita como exemplos: Nuttin, Grupo de Viena (Frankl, Niedermeyer, Caruso), Magda Arnold e John Basson. Como finalização sugere a importância de se produzir uma teoria psicológica científica espiritualista, sendo importante para tanto a colaboração de psicólogos e filósofos, que deveriam produzir programas de pesquisa que elucidassem os aspectos teóricos e metodológicos dessa produção. Levanta ainda a questão da necessidade de se criar métodos originais para a pesquisa na área. Revê diferentes psicologias produzidas em diferentes espaços: psicologia francesa - racionalista experimentalista; outras correntes européias - fenomenologia, existencialismo, holística; psicologia americana que considera ter influenciado muito o Brasil: neo-behaviorismo, operacionismo, positivismo lógico. Sugere que o Brasil possa se constituir na "quarta potência - a psicologia científica espiritualista" (p. 743), principalmente partindo da contribuição dos profissionais que trabalham nas instituições católicas. Na segunda comunicação, Pe Benkö (1961b) refere-se aos Aspectos psicológicos da vocação religiosa e sacerdotal.

Com relação ao tema Psicologia moderna de concepção espiritualista do homem, Me. Cristina (1961a) inicia apresentando as três atitudes fundamentais que encontra na psicologia: a de neutralidade, própria da ciência positiva; a materialista que segundo ela reduz o psiquismo a uma atividade cerebral; e a que considera a espiritualidade do homem. Para ela, esta última é a única que justifica o fato da psicologia ser uma ciência humana e conseqüentemente não ignorar as questões filosóficas. Acrescenta que a psicologia, além de verificar, deve também compreender as reações humanas, normais ou patológicas, considerando tanto a realidade corpórea do homem como também a que diz respeito à eternidade.

Os dois religiosos, Pe. Benkö e Me. Cristina defendem uma psicologia que considere a espiritualidade das pessoas. Para eles, a espiritualidade pode estar presente concomitantemente a outros aspectos do ser humano, tentando compor uma imagem integral de pessoa.

Em uma segunda comunicação, Conceituação de Normal, Me. Cristina (1961b) refere-se a duas definições do normal: a estatística e a cultural. Propõe uma definição de normal a partir da teleologia natural - "Normal é o ser que realiza o fim para o qual foi naturalmente feito (...), o homem será normal na medida em que coincidir com sua natureza, em que obedecer à sua finalidade intrínseca, em que se sujeitar as leis da natureza" (p. 766).

Enzo Azzi (1961a) também apresenta, no encontro, uma fala sobre O problema do normal. Baseando-se em Duyckaerts, define homem normal como aquele "cuja vida individual e social é habitualmente orientada em um sentido criador" (p. 761). Para ele, isso clarifica a finalidade da psicoterapia, pois nesse sentido ela tem como finalidade "ajudar os pacientes a reencontrar, pela eliminação dos obstáculos psíquicos e das causas subjetivas que a paralisam e pelo alargamento e ampliação do campo fenomenal, a aptidão para se orientar positivamente nos problemas da vida cotidiana e nas complicações da existência" (p. 763). O autor defende a importância das noções de normal e patológico, tanto em psicologia, psicoterapia, quanto em medicina e psiquiatria.

Essa marca de religiosidade e espiritualidade, defendida por Pe. Benkö, Me. Cristina e Azzi, não repercutiu na proposta contida na Lei 4119. Duas outras comunicações nesse encontro de Professores de Psicologia de Instituições Católicas apresentam contribuições no sentido de descrever como se dava a inclusão da disciplina psicologia nos currículos de cursos das instituições às quais pertenciam.

Pe. Antonio da Silva Ferreira, diretor da Faculdade Salesiana de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena profere no encontro uma palestra sobre A posição da psicologia nos cursos da Faculdade de Filosofia (1961). Relata que a psicologia é encontrada em duas cadeiras: a de psicologia e a de psicologia educacional. Essa última é encontrada no currículo de todos os cursos de didática, pedagogia e orientação educacional. O de psicologia, no curso de filosofia (bacharelado) e também de orientação educacional. Avalia que quase todos os cursos mencionados não dispõem de laboratórios e de condições para a prática das disciplinas, o que torna o ensino mais teórico. Também menciona a pouca disponibilidade para formação de técnicos em psicologia que possam trabalhar nas indústrias, comércio, saúde e educação. Conclui que, na época, eram poucas as faculdades que em função de suas condições poderiam comportar um Instituto de Psicologia. Ao se referir às condições ideais para a existência de um instituto desse tipo nas universidades, menciona a importância do currículo do curso privilegiar tanto as disciplinas de psicologia, quanto de filosofia e medicina. Aponta a importância da prática relacionada à realidade brasileira, e cita a questão dos laboratórios e outras estratégias de pesquisa, como questionários e entrevistas, importantes, segundo ele, para ajudar o aluno a compreender o comportamento humano. Faz uma crítica ao projeto de regulamentação, em tramitação na câmara dos deputados, efetuando sugestões que corrigiriam os aspectos por ele mencionados.

Irmão Henrique Justo, diretor do Instituto de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, também apresenta comunicação sobre o mesmo tema, na qual trata de explicitar os cursos da PUC/RS que mantinham disciplinas da psicologia: pedagogia, didática e filosofia. Refere-se à ausência de atividades práticas de psicologia nos cursos de didática, tendo em vista a disciplina ser ministrada somente durante um ano do curso, o que o tornava eminentemente teórico. Considera importante que o mesmo aborde conteúdos de psicologia educacional, psicologia profunda, psicologia da aprendizagem, psicologia das relações humanas, e psicologia geral, tendo em vista que os alunos que freqüentavam o curso de didática provinham de todas as áreas do conhecimento. No curso de filosofia, a disciplina psicologia fazia parte dos três primeiros anos do curso, tendo como temáticas de estudo: psicologia científica, psicologia da criança e do adolescente, antropologia filosófica. No curso de pedagogia, a disciplina figurava nos três anos com o nome de psicologia educacional e tendo como conteúdos: psicologia evolutiva, psicologia da aprendizagem, psicologia diferencial, psicologia experimental ou psicologia científica geral. Aponta ainda, problemas encontrados no ensino da psicologia: limitação de consultas bibliográficas (em função dos alunos não conhecerem outras línguas e por pobreza da biblioteca existente), a pequena remuneração de professores, o pequeno tempo dos alunos (em geral já professores), a ausência de infra- estrutura das instituições particulares. (Justo, 1961)

Pode-se observar, na escrita desses dois religiosos, que descreveram a formação encontrada em suas respectivas instituições, as dificuldades para o ensino da psicologia, tanto decorrentes das condições dos alunos, quando das defasagens de conhecimento produzidos no país, como das condições institucionais. Esses aspectos dificultosos foram objeto de cuidados na formulação da Lei 4119.

Nesse mesmo encontro, outros profissionais também pronunciam palestras, publicadas também posteriormente com as seguintes temáticas: Leis do comportamento, insconsciente psíquico e liberdade; Repercussão psicológica da culpa moral; Psicoterapia de grupo e respeito à personalidade; Vivência religiosa e estrutura psicológica; O problema do escrúpulo religioso; Psicoterapia e educação.

O que se pode concluir desse encontro é o esforço feito para trazer à ciência psicológica uma perspectiva espiritualizada, e tentar associar as diferentes questões apresentadas pela psicologia a uma visão de mundo e de homem própria da filosofia religiosa.

Ainda em 1961, Azzi publica uma conferência denominada: Aspecto teórico da Psicologia clínica (1961b). Nesse escrito, ele retoma as conceituações de Psicologia clinica e a definição da mesma. Acrescenta que a Psicologia caracteriza-se por uma atitude metodológica, a atitude clínica, assim descrita por ele:

Diferenças individuais de conduta que deverão ser previamente esquematizadas quantitativa e qualitativamente, em sua forma, e explicadas eventualmente com referência a outras disciplinas (anátomo-fisiologia, patologia, sociologia, etc.) Dentro desses esquemas será situada a conduta individual, ou como grau de variação ou como tipo de reação" (p. 348).

Conclui que o método clínico não é exclusividade da medicina, mas, pode ser usado por todo psicólogo que trabalhe com indivíduos normais ou desajustados. Em seu artigo, fica evidenciada uma das questões mais discutidas durante o processo da regulamentação: a proximidade/superposição das atuações clínicas e terapêuticas utilizadas por médicos e psicólogos e a grande dificuldade, encontrada durante as discussões de elaboração dos projetos, para delinear as atividades a serem exercidas pelo psicólogo. Também é possível avaliar a perspectiva do autor, em relação ao que entendia como atuação clínica do psicólogo, muito próxima da atuação médica.

Em julho de 1962, Arrigo Leonardo Angelini participou de uma conferência internacional realizada em Paris, com a finalidade de promover um intercâmbio de informações sobre a situação da psicologia em diversos países. Posteriormente, ele publicou um artigo descrevendo essa experiência denominado O status do psicólogo em diversos países: Excerto da conferência internacional sobre Intercâmbio em Psicologia. (Boletim de Psicologia, 64/65). Inicialmente, resume os relatos efetuados pelos diferentes profissionais que haviam participado do encontro, sobre a situação da psicologia no país de origem de cada um: EUA, Brasil, África do Sul, Checoslováquia, Polônia, México, Holanda, Egito, Alemanha, Itália, Canadá, Bélgica, Austrália, Índia, Argentina, Noruega, Japão, Iugoslávia, Grã-Bretanha, França, Nigéria, União Soviética. Posteriormente, faz um balanço desses relatos, dizendo que, em 17 dos países que se manifestaram, não existia proteção legal para a atividade do psicólogo. No Canadá, Egito e EUA, existiria proteção somente em alguns estados. Nesses países, as associações científicas supririam a falta de uma legislação representando a possibilidade de proteger a profissão e orientar o público sobre suas atividades. O autor conclui que apenas o Brasil, de todos os países que compareceram, possuía uma lei regulamentando a profissão de psicólogo. Angelini posteriormente assume um papel destacado na constituição e implantação do Conselho Federal de Psicologia e dos sete primeiros Conselhos Regionais em 1973.

Vários desses aspectos discutidos pelos autores já mencionados foram contemplados na Lei 4119, de 27 de Agosto de 1962. A formação a ser realizada em Faculdades de Filosofia, em cursos autônomos, com o currículo contemplando teoria e prática e com a criação de serviços de atendimento ao público; a denominação de psicólogo, para o profissional formado por esse curso; as atribuições do psicólogo, compreendendo diagnóstico psicológico; orientação e seleção profissional; orientação psicopedagógica; solução de problemas de ajustamento. Essa última atribuição foi descrita dessa forma, para não ocasionar novas pressões dos médicos que não aceitavam a designação terapia. As atribuições sugeridas no substitutivo encaminhado pela Associação Brasileira de Psicólogo e Sociedade de Psicologia de São Paulo, realização de aconselhamento psicológico e emprego de técnicas psicológicas no tratamento de distúrbios emocionais, que representavam um esforço para encontrar uma linguagem adequada, não foram acatadas.

Mesmo após a aprovação da Lei 4119, de 27 de agosto de 1962, outros documentos legais foram necessários e as discussões sobre formação e atuação do psicólogo continuaram.

Logo no ano seguinte (1963), de 8 a 11 de julho, foi realizado na cidade de Campinas, no âmbito da XV Reunião Anual da SBPC, um simpósio promovido pela Associação Brasileira de Psicólogos e Sociedade de Psicologia de São Paulo. Estavam interessadas em discutir os encaminhamentos da profissão, posteriormente à regulamentação, tendo como tema A situação atual da Psicologia no Brasil. Arrigo Leonardo Angelini, Me. Cristina, Enzo Azzi, Rodolfo Azzi, Dante Moreira Leite, Pe. Antonius Benkö efetuaram comunicações sobre o tema, que foram publicadas posteriormente no Boletim de Psicologia ( 16/17, 1964-65, n. 47 a 50).

Arrigo Leonardo, Angelini e Me. Cristina (1964/65) apresentaram uma comunicação sobre a Contribuição para a formação básica do Psicólogo. Discutiram algumas questões que naquele momento estavam em pauta: 1) conhecimentos prévios que os candidatos ao curso deveriam possuir (cultura geral; línguas portuguesa, inglesa e francesa; eventualmente matemática); 2) como fazer a seleção de candidatos - além de medir os conhecimentos teóricos, efetuar provas de nível intelectual, ajustamento emocional e aptidão para o curso; 3) atitudes e informações que o curso deveria propiciar: atitude científica, conhecimento aprofundado da psicologia, e domínio das práticas, experiência didática, compreensão do homem de forma dinâmica, tanto no nível individual quanto intra-pessoal, entendimento da função do psicólogo no meio social; 4) matérias e atividades a serem introduzidas nos currículos: além das fixadas pela legislação, sociologia, psicologia da aprendizagem, psicologia diferencial, psicologia do excepcional, técnicas de exame psicológico; 5) transformações que a lei 4119 trouxe aos cursos já existentes por ocasião da regulamentação; relação formação básica x especializada. Após apresentarem uma retrospectiva histórica sobre os tipos de formação existentes antes da regulamentação, enumeraram as dificuldades existentes na organização dos novos cursos: falta de professores qualificados e deficiências de instalações e equipamentos; 6) com a finalidade de analisar a relação formação básica x profissionalizante, consideraram que a especialização só devesse ocorrer no final do curso, que frente às propostas da legislação já aprovada, seria efetivada por um ano, no quarto ano do curso.

A comunicação de Enzo Azzi se refere à Situação atual da profissão de psicólogo no Brasil (1964/65). No inicio, faz uma observação sobre o conteúdo que apresenta dizendo que representa exclusivamente a sua forma particular de pensar a psicologia. Refere-se inicialmente à Lei 4119, considerando que, para não provocar rivalidades, a lei se constituiu de forma "confusa e imprecisa" e menciona especificamente a questão da psicologia clínica. Discute a dificuldade de diferenciar conceitos mais tradicionais utilizados na medicina, como por exemplo, a de terapia ou cura do doente (defendida por muitos médicos e psiquiatras como privativas dos mesmos) e a psicoterapia (que, segundo ele, exigiria uma preparação psicológica, que freqüentemente os médicos não possuem). Possivelmente pelo fato dele próprio ser médico, mas ao mesmo tempo, alguém que se preocupou com a formação do psicólogo, consegue especificar com muito detalhe e aprofundamento as questões que estavam em pauta, naquele momento, referentes às diferenças entre as tarefas do médico e as do psicólogo, assim como a formação que deveria subsidiar os respectivos exercícios profissionais. Também aponta a importância do trabalho de ambos os profissionais ser realizado em conjunto, para que os conhecimentos pudessem se complementar. Faz uma crítica ao ato da regulamentação por não estabelecer a criação do Conselho Federal de Psicologia e também as instruções referentes ao encerramento de cursos de especialização existentes antes da promulgação da lei. Faz ainda observações interessantes sobre as conseqüências da psicologia, ser ainda, uma ciência em "pleno e confuso desenvolvimento". Uma delas é a possibilidade de equivocadamente o psicólogo interpretar, como problema psicológico, algo ocasionado por uma situação social injusta; outra é a de tentar copiar os modelos das ciências físicas. Aponta ainda a pouca procura de alunos pela formação em psicologia, mencionando como causa desse fato: preconceitos, existência de poucos cursos e incertezas do exercício profissional.

Dante Moreira Leite (1964/65) aborda o tema Código de ética do psicólogo. O autor se refere à necessidade da existência desse código de ética, em função dos problemas vividos na época pelos que exerciam as atividades de psicólogo, ligadas às suas necessidades profissionais e às do público que necessita de seu trabalho. Segundo ele, várias questões atravessam a relação: "noções tradicionais", relacionadas à atividade profissional, o determinismo, o livre arbítrio e o inconsciente, ligados às possibilidades de decisões e influências; a imagem que o psicólogo possuía junto ao público relacionada à linguagem utilizada por ele; teorias sobre a educação e relação pais X filhos, ou adultos X crianças.

Anteriormente, por ocasião do envio do projeto substitutivo, elaborado pela Associação de Psicólogos Brasileiros e Sociedade de Psicologia de São Paulo, Dante Moreira Leite (1958) havia sido escolhido por seus pares para elaborar justificativa de tal substitutivo. Nesse documento (Revista de Psicologia Normal e Patológica, 1958, 1 e 2) faz um paralelo entre o projeto n. 3825/1958, elaborado pelo Ministério de Educação e Cultura, e o substitutivo encaminhado pelas duas associações. Aponta alguns aspectos que precisariam ser privilegiados: 1) a importância de formação de alto nível, em seis anos, e com um currículo mais rico do que o proposto pelo executivo, para que pudesse haver uma boa formação científica e técnica; 2) a confusão causada no projeto original ao exigir a formação em dois níveis: o de psicologista e o psicologista auxiliar. Prefere que a denominação seja o de psicólogo, e que a formação não impeça o profissional de assumir postos de comando e nem de se sujeitar às ordens de outro profissional, principalmente o médico. Compara, nesse sentido, a porcentagem de disciplinas e o tempo em que são oferecidas nos dois cursos: o de formação em medicina e psicologia; 3) conclui, afirmando da importância da formação e atuação do psicólogo serem realizadas nos moldes científicos que a sociedade do momento exigiria.

Pe. Benkö (1964/65) também faz uma apresentação denominada Formação profissional do psicólogo. Inicia discutindo os conceitos de "formação" e "profissional" para depois concluir que a regulamentação utiliza um conceito restrito de ambos, colocando a formação de uma forma mais aplicada. Para contrastar com essa proposta, referiu-se à formação profissional em outros países. Diz que, na Europa, o grau acadêmico permite ao ex-aluno trabalhar como profissional e sua especialização é realizada em curso de doutorado. Nos EUA, a ênfase seria na formação acadêmica/ científica e, secundariamente, nas atividades aplicadas da psicologia, sendo que já existiriam contestações a respeito dessa situação. Sobre a questão da relação entre disciplinas básicas e especializadas, considera que, como no Brasil os alunos entram muito novos no curso superior, seria interessante que as especializadas fossem sendo incluídas gradualmente a partir do segundo ano. Deveriam iniciar pelas mais gerais, deixando para o final do curso as atividades práticas que envolvessem maior proximidade do aluno com os que procuravam ajuda. Também aponta a importância de equilibrar uma preparação científica e a aplicada. Valoriza ainda a questão da flexibilidade na montagem do currículo, aberta pela legislação, na medida em que novas disciplinas poderiam ser escolhidas para compor o mesmo, juntamente com as indicadas pelo Conselho Federal de Educação (CFE), permitindo organizar novas especializações. Quanto ao problema do aluno de graduação escolher uma especialização e vir a trabalhar em outra, sugere que possa ser resolvido, primeiro, pela inclusão da disciplina Ética Profissional no currículo e/ou por uma supervisão feita concomitantemente à prática. Conclui, dizendo que todo aluno formado em curso de psicologia deveria denominar-se psicólogo (conceito amplo de profissão), que o curso de doutorado deveria ter uma marca mais científica e que, durante a formação, seria fundamental a realização de um estágio supervisionado, dentro ou fora da faculdade.

Rodolfo Azzi (1964/1965) trata do tema Situação atual da pesquisa psicológica no Brasil. Aponta a quase inexistência de pesquisa na área, mencionando que a maior parte dos professores lança mão de literatura estrangeira para divulgar conhecimentos da área. Por outro lado, também defende que a regulamentação da profissão deva ampliar o campo da pesquisa. Sobre recursos públicos para apoiar a pesquisa, lembra a importância da escolha de métodos científicos para que isso ocorra, discriminando os métodos que se baseariam na "intuição ou especulação dedutiva". Essa temática mencionada por Rodolfo lembra as preocupações de Anita Cabral, ainda na década de 40, e levanta um problema que as áreas de ciências humanas enfrentaram e enfrentam no Brasil até hoje: os parcos recursos públicos destinados às pesquisas em ciências humanas.

Anita Cabral, ao fazer a apresentação do Jornal de Psicologia (1964), esclarece que a intenção de iniciar a publicação de mais um periódico correspondia à "exigência do desenvolvimento da psicologia". Acrescenta que a regulamentação da profissão criou a necessidade de comunicação entre os diferentes núcleos existentes no Brasil, que, até então, pouco contato haviam mantido. O primeiro objetivo seria mostrar o que se fazia no Brasil, dar notícias sobre os acontecimentos da realidade brasileira, e o segundo, inserir o Brasil no desenvolvimento da ciência e profissão, internacionalmente. Propõe que, na parte noticiosa, deveria haver referências à "política de ensino, pesquisa e aplicação", acompanhados de artigos científicos. O Jornal de Psicologia era um órgão da Cadeira de Psicologia da Universidade de São Paulo e, como tal, deveria contar com os assistentes, alunos e doutorandos como colaboradores.

Katzenstein-Shoenfeldt (1967), outra ativa participante do processo histórico da regulamentação, em 1966, publica artigo que de certa forma retoma uma questão que esteve muito presente durante o período anterior à regulamentação: a relação entre psicólogos e médicos. Publicou o artigo: Psicólogos e Médicos: Novos rumos de interação entre psicólogos clínicos e médicos (Boletim de Psicologia, 51 a 54). A autora começa o artigo mencionando que seu objetivo é mostrar a possibilidade de cooperação entre medicina e psicologia, e não aspectos que distanciam essas duas áreas, questão muito presente em debates sobre o tema. Faz a seguir uma retrospectiva histórica dessa relação: para ela, houve um primeiro momento, que vigoraria até a primeira guerra mundial, em que havia médicos assumindo funções de psicólogos e psicólogos trabalhando sem conhecimentos da base biológica do comportamento. A autora reconhece a existência dessa mesma divisão de campos, ainda no momento em que escreve, o que explicitaria muitos dos desentendimentos entre esses dois profissionais. No intervalo entre as duas grandes guerras, situa um período denominado "o mandante e o mandatário" (p. 108), em que, se não havia conflitos, também não havia cooperação entre médicos e psicólogos. Na terceira fase "equipe estática, com limites rígidos e barreiras intransponíveis" (p. 108), a autora localiza uma necessidade de cooperação dos profissionais para integrar conteúdos psicanalíticos, psicodinâmicos, e sociológicos, apesar das tarefas serem rigidamente separadas. A última fase, que corresponderia ao momento da escrita do artigo, foi denominada "equipe flexível", significando que os profissionais trabalham juntos na resolução de um mesmo caso. Após a exposição do histórico, a autora apresenta diferentes tipos de problemas vividos nessa última fase, referentes às relações mantidas pelos psicólogos com diferentes tipos de médicos (oculistas, endocrinologista, neurólogo, clínico). Para discutir essas relações, apresenta exemplos vividos em consultório. Finaliza, apresentando dois motivos que freqüentemente provocam desentendimentos entre os dois profissionais: apresentação de diagnóstico (tanto médico, quanto psicológico) e psicoterapia. Aconselha que ambos devam aceitar os limites de possibilidade de atendimento de sua área e também sobre a importância de uma conversa anterior para acertar detalhes, antes do atendimento aos clientes.

Finalizando e fazendo um retrospecto do que aqui foi analisado, é importante mencionar que a questão da regulamentação é muito mais complexa do que um simples artigo pode tratar. Como a abordagem escolhida para esse estudo foi a da história internalista, aqui interpretada como aquela que se preocupa com o entendimento do que ocorre no intra - grupo, é importante mencionar que os personagens aqui tratados, assim como muitos outros que participaram do processo, mas não publicaram suas idéias, pertenceram a uma elite intelectual que teve a oportunidade não só de freqüentar uma universidade, mas principalmente fazer cursos posteriores a ela, a maior parte deles no exterior, assim como participar de congressos e eventos também ocorridos no exterior, e eventualmente, por serem mais raros, no Brasil. Dessa forma, tiveram uma condição privilegiada para conseguir colocar sua profissão no mesmo patamar e status de outras profissões que representavam o ideal da elite intelectual do período. Também conseguiram, paralelamente a essa equiparação com outras carreiras profissionais, autonomia e independência da tutela de outros profissionais. Mas, é preciso ficar claro que só o esforço, vontade e determinação desse grupo não teria sido suficiente e nem explicaria o fato da regulamentação ter sido obtida em tão curto espaço de tempo. Apesar das críticas que foram feitas por muitos profissionais conhecidos, considerando que a Lei 4991 foi prematura, desconexa, inadequada, imprecisa, ela atendeu a maioria das expectativas daqueles que se pronunciaram tanto sobre formação como atuação do psicólogo.

Para que essa questão possa ser explicitada mais claramente, é fundamental que outras pesquisas sejam feitas para estudar as relações desse grupo com participantes da classe política, e de outros grupos de influência, que determinaram a rapidez e eficiência do acontecimento. Além disso, também é importante lembrar que a história é um processo construído permanentemente, e que questões que foram discutidas no momento da regulamentação voltaram a ocupar as discussões dos psicólogos em todo o período posterior. A própria questão da formação, do currículo mínimo, das perspectivas a serem adotadas, por exemplo, esteve inúmeras vezes em pauta, e continua a ser discutida até hoje.

Outro aspecto a ser pesquisado é o entendimento da perspectiva que outros grupos de profissionais tinham da psicologia, principalmente seus opositores, e também quem foram os personagens que representaram essas outras formas de entender a psicologia, e a relação existente entre eles. Para isso, seria muito importante a consulta aos periódicos da educação, medicina, filosofia, e outros mais que pudessem contribuir para esclarecer a questão. E, para dar uma visão mais abrangente ao problema, inserir todos esses movimentos em uma situação mais ampla, qual seja a situação sócio-economico-política do Brasil, no período em foco.

 

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Endereço para correspondência:
Marisa Todescan Dias da Silva Baptista
R. João de Lèry, 243. Jardim Aeroporto
São Paulo. CEP: 04356-030
E-mail: marisatdsb@terra.com.br

Enviado em Abril de 2009
Revisado em Março de 2010
Aceite final em Abril de 2010
Publicado em Junho de 2010

 

 

Nota da autora:

Marisa Todescan Dias da Silva Baptista. Membro do GT de História da Psicologia da ANPEPP, Membro do Grupo de Pesquisa em História da Psicologia da PUC/SP, Pós-Doc no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC/SP.

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