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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2009

 

ARTIGOS

 

Da teoria do apego à Rede de Significações: Maria Clotilde Rossetti-Ferreira e a psicologia do desenvolvimento brasileira

 

From attachment theory to network of meanings perspective: Maria Clotilde Rossetti-Ferreira and Brazilian developmental psychology

 

 

Gabriela Campos DarahemI; Ana Paula Soares da SilvaII; Nina Rosa do Amaral CostaIII

IUniversidade de São Paulo - Riberão Preto - Brasil
IIUniversidade de São Paulo - Riberão Preto - Brasil
IIIUniversidade de São Paulo - Riberão Preto - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata a trajetória de pesquisa traçada pela professora Maria Clotilde Therezinha Rossetti Ferreira ao longo de sua carreira acadêmica. Essa trajetória foi dividida em três fases que marcam o movimento conceitual que a professora faz, partindo do estudo aprofundado da teoria do apego em direção à construção de uma perspectiva que concebe o desenvolvimento humano como uma rede de significações. Utilizando alguns dos mais importantes trabalhos desenvolvidos pela professora, tais como artigos e livros, bem como uma entrevista datada de 2006, mostra-se de que maneira a história da professora se entrelaça com a história da Psicologia do Desenvolvimento no Brasil. Fica evidente a importância da professora Maria Clotilde para esta área, uma vez que seu nome é conhecido nacional e internacionalmente quando se fala de temas como educação infantil e, mais atualmente, adoção, abrigamento e acolhimento familiar.

Palavras-chave: História da psicologia, Teoria do apego, Rede de significações, Rossetti-Ferreira.


ABSTRACT

This article recites the research pathway traced by the professor Maria Clotilde Therezinha Rossetti-Ferreira all along her academic career. This pathway was divided in three fases that mark the conceptual movement the professor does, from a deep study of the attachment theory to a perspective that conceives the human development as a network of meanings. Using some of the most important reports developed by the professor, such as articles and books, as well as one interview made with her in 2006, we show how the professor 's history intertwines with the Brazilian developmental psychology 's history. It is evident the importance of Ms Maria Clotilde to this area, once her name is nationally and internationally known, when we talk about subjects like child 's education and, more recently, adoption, and fostering in residential care or family foster care.

Keywords: Psychology history, Attachment theory, Network of meanings, Rossetti-Ferreira.


 

 

Este artigo resulta do interesse em apresentar algumas das contribuições para a psicologia brasileira da Professora Maria Clotilde Therezinha Rossetti-Ferreira, uma das pioneiras em Psicologia do Desenvolvimento no Brasil. Sua produção, desde o início de sua carreira, teve forte impacto na área da educação infantil. Mais recentemente, a professora vem contribuindo para as discussões sobre medidas de acolhimento e adoção de crianças.

Como docente da FFCLRP-USP, compulsoriamente aposentada em 2006, a professora Clotilde teve e tem sua atuação na Universidade marcada por uma concepção que faz do coletivo o principal instrumento e meio para a construção do conhecimento. Ao longo de sua vida acadêmica, orientou alunos de graduação e pós-graduação e constituiu um grupo de pesquisa que se tornou referência nacional e internacional na temática da infância, particularmente da educação e cuidado de crianças pequenas em contextos diferentes do familiar. O Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil (CINDEDI), coordenado pela professora Clotilde, articula hoje mais de trinta alunos de diferentes áreas, vinculados a cinco docentes, com produção em: interação de bebês, inclusão social de crianças com necessidades especiais, avaliação de ambientes educativos, formação de professores e qualidade na educação infantil, educação infantil em contextos não urbanos, adoção, acolhimento familiar e institucional de crianças.

O objetivo deste artigo é relatar a trajetória de formação da professora Maria Clotilde Rossetti-Ferreira, a fim de dar visibilidade ao seu movimento conceitual, caracterizado pela constante revisão crítica e pela abertura a novas bases teóricas.

Ao narrar essa trajetória, no reconhecimento de uma relação intrínseca e co-constitutiva entre a pessoa e seu meio, propomos colaborar também para a coleção de memórias sobre o próprio grupo que a professora constituiu (o CINDEDI) e, principalmente, para a sistematização de uma parte da história da Psicologia do Desenvolvimento no Brasil, um recorte ou uma versão que precisa ser (re)conhecida para o entendimento da área.

O artigo está estruturado de modo a apresentar a formação acadêmica da professora Clotilde, assim como os três grandes blocos conceituais que marcam sua história, delimitados pelos interlocutores teóricos e pelo contexto foco de interesse.

As fontes para o levantamento das informações foram: entrevista realizada com a professora Clotilde, em 2006; o livro "Mãe e Criança: separação e reencontro" (Rossetti-Ferreira, 1986), os artigos "Interação entre nutrição e fatores sócio-econômicos e culturais no desenvolvimento mental e desempenho escolar da criança desnutrida" (Rossetti-Ferreira, 1979); "O apego e as reações da criança à separação da mãe" (Rossetti-Ferreira, 1984), "A pesquisa na universidade e a educação da criança pequena." (Rossetti-Ferreira, 1988) e o capítulo de livro "Olhando a pessoa e seus outros, de perto e de longe, no antes, aqui e depois" (Rossetti-Ferreira, 2006). Também se recorreu às suas publicações em coautoria, como o livro "Rede de Significações e o estudo do desenvolvimento humano" (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva, & Carvalho, 2004) e os artigos "A creche enquanto contexto possível de desenvolvimento da criança pequena." (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Vitória, 1994), "Emergência de novos significados durante o processo de adaptação de bebês à creche" (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Vitória 1996) e "Approaching adoption and foster care in Brazil" (Rossetti-Ferreira, Costa, Mariano, Serrano, & Sólon, 2008).

Dentre a vasta produção da professora Clotilde, esses textos foram escolhidos como representativos dos momentos de consolidação ou de virada nas ideias e na produção da professora, assim como do contexto e condições de sua produção.

 

O processo de formação da professora Clotilde na Psicologia do Desenvolvimento e o início de sua carreira acadêmica

Maria Clotilde Rossetti-Ferreira cursou Filosofia, a exemplo de alguns dos primeiros psicólogos do país. Formada em 1958 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ingressa, em 1960, na especialização em Psicologia Clínica oferecida pelo Sedes Sapientiae. Essa especialização é terminada no mesmo ano em que a Psicologia foi regulamentada, em 1962.

Antes de iniciar a carreira acadêmica, Clotilde foi professora de Filosofia do ensino médio no Colégio Sion, uma escola privada em São Paulo. Na ocasião, fez um estágio sobre o método montessoriano de educação cuja influência na educação infantil repercute até os dias atuais.

Seu primeiro cargo como docente universitária foi em 1962, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), onde ministrou, junto com um grupo de docentes, aulas de Introdução à Psicologia e Psicologia do Desenvolvimento, além de atuar na área clínica, atendendo a famílias e crianças. Ainda na FMRP, ministrou várias aulas para professoras de escolas públicas de Ribeirão Preto e do Serviço Social da Indústria (SESI) e organizou com Ana Beatriz Rigatto uma oficina psico-pedagógica para crianças com dificuldades de aprendizagem, em conjunto com as escolas frequentadas por essas crianças.

Quando, no ano de 1964, foi fundada a Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, a professora Clotilde, como única psicóloga da cidade, envolve-se intensamente no curso de Psicologia, em conjunto com a professora Thereza Mettel e com os professores belgas André Jacquemin e Paul Stephaneck. Chega a co-presidir o Fórum de Debates para reestruturação do Curso de Psicologia. Nos grupos de discussão sobre o curso, as questões do currículo emergiam como fundamentais para a formação dos primeiros psicólogos com formação específica pela Faculdade e, também, no país. Como docente, a professora Clotilde assume a disciplina de Ética no novo curso de Psicologia.

Em 1965, um ano após o golpe político que instalou a ditadura militar no Brasil, a professora partiu com seu marido (o médico e pesquisador Sérgio Ferreira) para a Inglaterra. Lá, Clotilde estagiou no Department of Children and Parents, do Tavistock Institute of Human Relations, e foi incentivada por sua supervisora, Marjorie Rowe, a fazer a pós-graduação, uma vez que demonstrava perfil acadêmico. Por intermédio de Jacques Tizard, entrou em contato com Brian Foss que a convidou para cursar o Master and Philosophy no Institute of Education. Na apresentação do trabalho, a comissão julgadora considerou o projeto com qualidade elevada e propôs, portanto, a mudança do nível. Assim, em dois anos, a Professora Clotilde obteve o seu título de doutorado em Psicologia pela University of London (1967). O tema do trabalho de pesquisa foi a interação mãe-criança circunscrita ao momento anterior e posterior do nascimento de um segundo filho.

Em 1967, ela volta ao Brasil, reintegra-se ao Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e recebe seu primeiro auxílio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) para montar um laboratório de observação da interação mãe-criança. Constituiu então seu primeiro grupo de pesquisa com as bolsistas de Iniciação Cientifica Mara Ignez Campos-de-Carvalho, Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves e Edna Maria Marturano (as duas primeiras se tornaram docentes do Departamento de Psicologia e Educação da FFCLRP e a última, docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto).

Nessa época, o interesse principal da pesquisadora era a Psicologia Clínica. Contudo, a experiência vivida no laboratório redimensiona seu modo de atuar. O modelo clínico já não dava conta de suas inquietações quanto: à limitação do número de crianças atendidas; à ação restrita a momentos em que o problema já estava instalado; à necessidade de agir preventivamente. A professora Clotilde começa, então, a questionar a intervenção individualizada e inicia o trabalho com intervenções que buscavam melhorar as condições concretas e favorecer o desenvolvimento das crianças em contextos situados. A experiência naquele laboratório de observação representou o início do desligamento da professora com a área clínica e o fortalecimento de sua relação com a educação.

No ano de 1968, com a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5), a situação política no país se torna instável. Durante algum tempo, a família da professora Clotilde foi alvo de perseguições e, por isso, teve que sair novamente do Brasil no ano de 1970, o que não permitiu que seu grupo de pesquisa fosse, de fato, consolidado, embora tenha mantido intensa troca científica com seus orientandos.

Novamente na Inglaterra, Clotilde realizou diversos estágios na Tavistock, no Institute of Psyquiatry e no Institute of Child Health. Foi nesse último que trabalhou com Blurton Jones, definido por Clotilde como "um etólogo que estava no topo de sua carreira e que tinha como interesse os processos de desenvolvimento do apego e interação mãe-criança" (Rossetti-Ferreira, comunicação pessoal, 1º de fevereiro de 2006). Com ele, a professora Clotilde realizou seu primeiro pós-doutorado. Durante três anos e meio (entre 1972 e 1975), dedicou-se a um estudo longitudinal sobre o desenvolvimento do comportamento social e de apego em crianças de um a três anos, acompanhando 60 famílias.

É essa experiência do pós-doutorado na Inglaterra que lhe permite não apenas aprofundar-se na teoria do apego, mas trazê-la ao Brasil com a sua volta, em 1976. Nesse ano, a professora Clotilde é contratada pela FFCLRP-USP, onde permanece vinculada até sua aposentadoria compulsória.

Primeira fase: As teorias do apego e o envolvimento com a Educação Infantil

A convicção que a professora Clotilde afirma ter, em artigo de 1984, também é iluminadora dos percursos de sua trajetória. Para a autora: "as idéias não surgem do vácuo, mas estão inseridas e são estimuladas e influenciadas pelo momento histórico em que surgem" (Rossetti-Ferreira, 1984, p.3). As opções de Clotilde são forjadas num momento histórico marcado pela predominância dos estudos da relação diádica mãe-bebê e pelo fortalecimento de uma abordagem de Psicologia do Desenvolvimento que busca compreender o papel dos fatores biológicos e sociais no desenvolvimento da criança.

Após o seu pós-doutorado e de volta ao Brasil, dedica-se aos estudos sobre desnutrição, particularmente buscando compreender seus efeitos no desenvolvimento da criança. Esse envolvimento lhe rende o reconhecimento como uma especialista da área e a indicação para a função de assessora da Divisão Nacional de Saúde Materno-Infantil do Ministério de Saúde (1982-1984). Na ocasião, contribuiu para a formulação de "Normas para a assistência integral à criança e ao adolescente a partir de um enfoque de risco" e também, como assessora do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN/MS) para revisão e atualização do documento Creche - Instruções para Funcionamento.

Várias foram as publicações no período, destacando-se o artigo "Interação entre fatores biológicos, sócio-econômicos e culturais no desenvolvimento mental e desempenho escolar da criança desnutrida" (Rossetti-Ferreira, 1979), publicado no periódico Cadernos de Pesquisa. Naquela ocasião, a professora Clotilde já explicitava seu entendimento do desenvolvimento baseado numa concepção de complexidade e de interação contínua entre fatores de ordem biológica, sócio-econômica e cultural. Essa orientação de desenvolvimento a faz questionar explicações deterministas e centradas apenas na desnutrição como elemento explicativo principal para a diferença e o baixo desempenho de crianças desnutridas em testes e pesquisas de avaliação de desenvolvimento de crianças. Elementos da criança, mas principalmente de suas condições de vida, incluindo família e recursos ambientais, são trazidos associadamente na análise e explicação do retardo mental e baixo rendimento escolar de crianças desnutridas. Essa análise lhe permite realizar a crítica a intervenções pontuais, verificada pela ineficácia de seu alcance. Fazendo coro às ideias de Kagan (1969) e Bruner (1975), sugere intervenções sócio-ambientais que possibilitem aos indivíduos o paulatino controle sobre o próprio futuro e das comunidades em que vivem.

Toda essa análise e a experiência nas atividades de assessoria na área de desnutrição e desenvolvimento infantil a questionam em relação ao papel do pesquisador frente às demandas da realidade nacional. A vivência em Congressos sobre desnutrição, em luxuosos hotéis internacionais, a faz questionar, sobretudo, as formas de enfrentamento desse problema, inclusive por parte da comunidade científica. O entendimento de que a desnutrição estava, portanto, diretamente ligada a questões de ordem social a faz tomar uma decisão político-profissional de abandono da área e direcionamento dos estudos para novas temáticas.

Naquele momento, formada na teoria do apego, o seu interesse se circunscrevia na investigação de instituições que acolhessem crianças em situação de longa separação da figura materna, como por exemplo, os orfanatos. A realidade de Ribeirão Preto, contudo, a fez adequar seu interesse conduzindo-a aos estudos sobre creche.

O envolvimento com o contexto das creches é marcado, originalmente, pelo interesse em compreender os processos de desenvolvimento da criança que era submetida a separações diárias de suas mães. A professora Clotilde, em 1976, compõe um grupo formado por uma equipe de mestrandas e de estagiários do curso de Psicologia e realiza um grande trabalho em 20 creches da região de Ribeirão Preto. Nesse movimento, a professora Clotilde vai imprimindo o seu modo de compreender o conhecimento científico como um empreendimento necessariamente coletivo, assim como traz, para o Brasil, a preocupação com estudos de grande porte e com desenhos longitudinais em situações concretas, contextualizadas e que permitiam a articulação teoria e prática. O projeto, denominado "Condições de atendimento e desenvolvimento de crianças pequenas de baixo nível sócio-econômico, cujas mães trabalham fora de casa", recebeu auxílio do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais). Essa pesquisa marcou o início de suas investigações na Educação Infantil. É nesse momento que surge, ainda que de modo não formalizado, o Centro de Investigações sobre Desenvolvimento Humano e Educação Infantil - CINDEDI.

No final da década de 1970 (quando a pesquisa teve início), existiam, no Brasil, poucas creches e pré-escolas públicas. Até então, predominavam as instituições caritativo-filantrópicas, submetidas a uma política nacional de convênios e auxílio à filantropia que se viabilizava por meio da Legião Brasileira de Assistência (LBA), criada na década de 1950 (Vitória, 1999, p.25).

É nos anos de 1970, em função das transformações sócio-econômicas pelas quais passava o país, que a demanda por creches aumenta, principalmente devido à intensificação da entrada da mulher no mercado de trabalho. O tema passou então a ser pautado pelos movimentos feministas e associações de moradores, surgindo o movimento de luta por creches. As políticas de expansão de vagas, nesse período, contudo, caracterizam-se pela influência das agências internacionais de proteção à infância, que pregavam a participação da comunidade e o crescimento a baixo custo (Rosemberg, 2002). Na continuidade histórica, o crescimento das vagas foi feito por meio da omissão do Estado e do incentivo público a iniciativas privadas sem fins lucrativos, e pela pouca regulação das atividades da área, o que incluía a não profissionalização dos educadores. Em relação aos profissionais, como afirma Vitória (1999, p. 26), o grande número de mulheres trabalhando em creches refletia a ideia de que elas, por terem um "instinto maternal" eram mais apropriadas para o trabalho com a criança. Tal fato faz da atividade de cuidado coletivo de criança pequena uma profissão não valorizada e sem critérios de exigência de formação.

Essa realidade constituiu-se num excelente contexto para a influência da teoria do apego, que reforçou discursos que pregavam os comprometimentos e prejuízos ao desenvolvimento causados pela institucionalização das crianças submetidas diariamente a períodos de separação e rupturas em relação à figura materna ou de apego. As creches eram vistas como um "mal necessário", pois eram destinadas às camadas mais pobres da população, mais especificamente, às crianças cujas mães precisavam trabalhar e não tinham com quem deixar seus filhos. Representava, na época, para muitos, uma ação paliativa ao cuidado e educação da criança pequena, a qual deveria estar com a mãe (Vitória, 1999, p. 25).

Esse era o contexto das pesquisas realizadas pelo grupo coordenado pela professora Clotilde. Inicialmente, o foco da investigação das pesquisadoras e dos estagiários era a observação da relação educadora-criança. O modelo de entendimento da situação investigada forçava o olhar dos pesquisadores para a compreensão dos efeitos das rupturas diárias da relação mãe-bebê, assim como para práticas que sustentavam um modelo "substitutivo-materno" (Rossetti-Ferreira, 1988).

Durante o trabalho de intervenção e em treinamentos com as pajens, procurávamos, embora com poucos resultados, estimulá-las a aproveitarem cada oportunidade para interagir com as crianças. Verificamos que havia pouca interação, as interações eram muito mais de controle e cuidado (...) (Rossetti-Ferreira, 1988, p. 61).

Esse trabalho nas creches foi permitindo compreender as potencialidades de instrumentalização da realidade que a teoria do apego possuía. Orientada por essa perspectiva, a professora Clotilde começou a defender a importância do estabelecimento de condições apropriadas para a vivência das relações afetivas em ambientes institucionais e da constância dos cuidadores para a saúde e o desenvolvimento da criança. Foi graças a esse referencial que foi se consolidando a ideia de que era necessário regular minimamente as condições materiais e humanas das creches. Àquela época, relata Rossetti-Ferreira (comunicação pessoal, 1º de fevereiro de 2006), as educadoras eram responsáveis por turmas de até 50 crianças.

As especificidades daquele contexto de educação coletiva, contudo, também começaram a chamar a atenção da professora Clotilde, que passa a questionar apropriações reducionistas da teoria do apego e sua aplicação sem questionamentos ou adequações ao contexto e das creches. Era necessário compreender como, apesar de tudo, as crianças estavam se desenvolvendo naquele contexto e buscar as potencialidades do atendimento de crianças em contextos diversos do familiar. Apesar da existência das rupturas diárias da separação do bebê em relação à figura materna, havia cotidianamente o seu retorno, assim como o estabelecimento de novos vínculos afetivos pela criança com outros adultos e crianças. Foi se consolidando o entendimento, como relata a professora Clotilde em sua entrevista, que várias das propostas eram inadequadas se orientadas pelo modelo do atendimento do contexto da família. As situações coletivas de cuidado e educação traziam outros e diferentes desafios, caracterizando-se como um contexto merecedor de ser compreendido na sua peculiaridade.

Sob esse novo olhar, foi possível começar a formular perguntas acerca dos efeitos da experiência de compartilhar espaços, objetos e rotinas com outras crianças, maiores e de mesma idade, e das aprendizagens que as crianças promoviam entre si, retirando o foco tão centrado na relação diádica adulto-criança. Todavia, o grupo ainda não conhecia um referencial teórico-metodológico que pudesse contribuir para o enfrentamento desse desafio, fato que ganha fôlego principalmente a partir do novo pós-doutorado que Clotilde realizou em 1985, no Laboratoire de Psycho-Biologie de L'enfant (LBPB), na França. Esse laboratório era influenciado pelas ideias de Henri Wallon, que lá havia trabalhado. No pós-doutoramento, Clotilde conheceu o arquiteto Alain Legendre, da Psicologia Ambiental, que estudava o papel do espaço nas interações entre as crianças. Esse contato permitiu o encontro com uma metodologia possível de investigação das interações entre as crianças, articulada à investigação da influência da organização dos espaços e ambientes na promoção ou não dessas interações. No seu retorno, os estudos sobre a qualidade dos ambientes e seus efeitos para as interações entre as crianças e os adultos começam a ganhar densidade no grupo, sendo desenvolvidos principalmente pela professora Mara Ignez Campos-de-Carvalho.

As experiências da professora Clotilde com as pesquisas em creches nas décadas de 1970 e 1980 são sistematizadas em publicações, das quais destacamos três produções: uma de 1983, uma de 1984 e outra de 1988.

Em 1983, a professora Clotilde e seu grupo produzem um vídeo denominado "A arte de varrer pra debaixo do tapete". O vídeo denuncia "as precárias condições do atendimento nas creches da região e a necessidade urgente de melhorá-las" (Rossetti Ferreira, 2005, p.7). A proposta do vídeo inaugura uma marca constante das intenções de Clotilde em relação à forma de divulgação do conhecimento científico. A forma-denúncia reflete a intrínseca relação teoria-prática nos trabalhos do seu grupo, desde a formulação das questões de investigação aos compromissos ético-políticos do pesquisador com a transformação da realidade investigada. A forma-vídeo preocupa-se com a circulação do conhecimento produzido, acessível aos atores do campo pesquisado e à comunidade em geral. Esse vídeo passa a ser, portanto, o primeiro de uma série, produzidos e coordenados ao longo da carreira acadêmica da professora Clotilde. Com relação à educação infantil, foram produzidos 11 vídeos e outros 04 na área de adoção e acolhimento institucional e familiar.

Em meados da década de 1980, a professora Clotilde realiza uma ampla revisão que problematiza a literatura "quanto às vantagens e desvantagens da criação de crianças pequenas em instituições tipo creches, casas de crianças (em Kibutzin em Israel) ou mesmo orfanato" (Rossetti-Ferreira, 1988, p.4) e aponta para a complexidade, as determinações históricas e os interesses em jogo na discussão sobre o estabelecimento dos vínculos, o desenvolvimento e o rompimento do apego. Parte de seu trabalho - cuja publicação completa encontra-se no livro Mãe & Criança: separação e reencontro (Edicon, 1986) - foi publicada no artigo de 1984. Nele, a professora Clotilde faz dialogar os resultados dos estudos sobre apego e as pesquisas que indicavam a pobreza do ambiente como possível explicação para os efeitos perniciosos dos orfanatos no desenvolvimento das crianças, atribuindo tal prejuízo "muito mais à privação geral de estímulos do que à separação ou privação da mãe propriamente dita" (Rossetti-Ferreira, 1984, p.5). Amparada em revisão dos estudos com animais, a professora Clotilde afirma ser:

inadequado falar apenas em reação do filhote à separação, visto que esta reação parece ser modulada pela relação existente antes e depois da separação e também pelo tipo de estrutura social e de relacionamento que predomina no grupo (Rossetti-Ferreira, 1984, p.7).

Ao encontro das proposições de Schaffer (1971) e de Rutter (1972, 1979), no mesmo artigo de 1984, Clotilde defende que o ambiente social em que a criança cresce define a amplitude das relações de apego, assim como as possibilidades de exploração do ambiente, a experiência social anterior da criança, o número, a constância, a estabilidade e o tipo de relacionamento que os adultos e educadores constroem com as crianças. Portanto, padrões saudáveis de desenvolvimento em crianças pequenas não poderiam ser buscados no cuidado substitutivo materno, mas sim no conjunto das condições que caracterizam o cuidado múltiplo da criança.

Decorre desse trabalho de problematização a confirmação da hipótese levantada pela professora Clotilde de que, em ambientes de cuidado coletivo de crianças, ocorre uma "maior freqüência de interações entre crianças em idades mais precoces" (Rossetti-Ferreira, 1984, p.13). As potencialidades para os contatos e as interações mostraram-se mais evidentes do que sugeriam os estudos de laboratório. Essa possibilidade de conviver com coetâneos levaria ao desenvolvimento de habilidades específicas, dentre elas, o favorecimento do reconhecimento da outra criança como diferente de si, o que marca diferentemente a construção do eu e dos papéis desempenhados pelas crianças.

Por fim, questionando a artificialidade da "situação estranha" como procedimento de pesquisa, a professora argumenta que, nesses estudos, perde-se justamente o caráter interacional da díade mãe-criança, assim como dos diferentes elementos que, em interação, explicam as possibilidades desenvolvimentais das crianças em instituições de cuidado coletivo e em contexto diferente do familiar. Para ela, a contribuição da teoria do apego:

Ficou bastante prejudicada, entre outras coisas pela artificialidade das situações de separação observadas, pela ênfase demasiada na figura da mãe e pela ausência de outras pessoas que pudessem interagir ou com quem a criança pudesse estabelecer interações durante o procedimento experimental de separação e reunião (Rossetti-Ferreira, 1984, p.16).

Concluindo, a professora Clotilde defende a possibilidade das creches constituírem espaços de socialização das crianças, sem prejuízo as suas relações com a figura materna e nem ao seu desenvolvimento. Esse artigo, de 1984, constitui-se assim um marco nas produções de Clotilde, na medida em que delineia uma leitura não restrita da teoria do apego.

O artigo de 1988, "A Pesquisa na Universidade e a Educação da Criança Pequena", no periódico Cadernos de Pesquisa, por sua vez, aponta quais foram os caminhos seguidos pelo grupo depois das experiências de pesquisas das décadas de 1970 e 1980. Dentre esses caminhos, destaca-se a busca por referenciais novos que dialogassem com autores para além da psicologia e que explicassem melhor as indagações surgidas com a inserção no campo da pesquisa. São essas indagações e os desafios que o campo lhe impôs que moveram a pesquisadora para o diálogo das teorias de apego com outros referenciais teórico-metodológicas. Para a professora Clotilde:

o mergulho nessa realidade social complexa nos fez conhecer melhor os contextos em que essas crianças estão sendo criadas. Para entendê-los, estamos sendo obrigados a consultar e a trabalhar com outros especialistas e a estudar e discutir textos de outras áreas como antropologia, etnografia, sociologia, economia... (Rossetti-Ferreira, 1988, p.62)

A partir desse momento, são fortalecidos no grupo os estudos sobre interação criança-criança desenvolvidos por Zilma Moraes Ramos de Oliveira e por Márcia Regina Bonagamba Rubiano. Autores como Wallon e Vygotsky são descobertos pelo grupo e a interação passa a ser uma categoria de análise fundamentada pelo referencial histórico-cultural. No movimento de aprofundamento sobre a interação social, a professora Clotilde coordenou, junto à Sociedade de Psicologia de Ribeirão Preto - SPRP (hoje Sociedade Brasileira de Psicologia - SBP) um grupo de discussão que articulou pesquisadores de diferentes instituições do país. Esse grupo organizou simpósios e mesas redondas no âmbito das reuniões anuais da então SPRP, estimulando também a criação do grupo de mesmo tema na Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP). Participavam dessas discussões, dentre outras, as pesquisadores Ana Maria Almeida Carvalho (Instituto de Psicologia da USP - IPUSP), Ângela Maria Cristina Uchoa de Abreu Branco (Universidade de Brasília - UnB), Maria Isabel Pedrosa (Universidade Federal de Pernambuco - UFPE), Maria Auxiliadora Dessen (UnB), Zélia Maria Mendes Biasoli-Alves (FFCLRP-USP). As trocas de olhares, perspectivas e metodologias de investigação da interação social fortaleceram ações futuras e a consolidação da temática na Psicologia do Desenvolvimento.

No âmbito dos estudos desenvolvidos pelo CINDEDI, vários materiais e ações foram produzidos e realizados com a intenção de construir referenciais que pudessem contribuir para a formação de professores e a melhoria das condições gerais das instituições destinadas às crianças pequenas no país.

Retornando ao artigo de 1988, vale mencionar o quanto, naquele momento, fica explicitada a importância da relação do CINDEDI com a Creche Carochinha COSEAS-USP, que veio a se constituir muito mais do que um campo de pesquisa. A relação estreita com a Creche Carochinha COSEAS-USP possibilitada pela coordenadora, a psicóloga Ana Maria Mello, constituiu as bases e as condições concretas para a pesquisa contextualizada e organicamente articulada com as práticas desenvolvidas junto às crianças, assim como a construção de um vínculo com o campo de pesquisa capaz de garantir a efetivação de diferentes investigações, inclusive com desenhos longitudinais. A creche e o grupo de Clotilde vão construindo uma concepção compartilhada sobre o importante papel de uma creche universitária na construção do conhecimento e na produção colaborativa de saberes sobre as realidades e práticas investigadas. Parte dessa produção é expressa nas publicações em conjunto, como os vídeos já mencionados e os livros "Creches: crianças, faz de conta e Cia." (15ª edição em 2009) e "Os fazeres na Educação Infantil" (11ª edição em 2009).

Portanto, as décadas de 1970 e 1980 registram um movimento conceitual que caminha de uma perspectiva diádica para a aproximação a abordagens sistêmicas, impulsionada pela complexidade da realidade pesquisada e pela abertura para novos referenciais. É principalmente na década de 1980 que seu percurso teórico e de investigação é reconhecido internacionalmente. Nesse período, a professora Clotilde vai se destacando pelo modo como se apropria dos referenciais e, ao mesmo tempo, contribui para uma aproximação entre a produção do conhecimento na Psicologia do Desenvolvimento e a as condições de vida das crianças brasileiras. É assim que se torna membro do Committee III-2 da International Union of Nutritional Sciences, envolvido no projeto "Critical assessment of key issues in research on malnutrition and behaviour" (1979-1982). No período de 1981 a 1987, tornou-se também membro-eleito do Comitê Executivo da International Society for the Study of Behavioural Development (ISSBD), sendo destacada para participar do Committee ISSBD-WHO (1983-1986), encarregado de selecionar e planejar a colaboração de especialistas em diferentes áreas da Psicologia do Desenvolvimento em programas de Saúde Mental da Organização Mundial da Saúde (OMS). Foi também indicada pela IUPsyS (International Union of Psychological Sciences) para integrar um Comitê responsável por planejar e implementar uma Rede Internacional de Centros de Pesquisa sobre Desenvolvimento.

Segunda fase: a metáfora de rede e a semiótica no desenvolvimento humano

Como já indicado, desde o artigo de 1979, já havia, nas proposições da professora Clotilde, uma leitura de desenvolvimento humano pautada pela complexidade. Também no artigo de 1984, a professora já apresentava, em sua lista de referências, autores que propunham abordagens sistêmicas aos processos de desenvolvimento humano. Um deles, talvez o mais conhecido na atualidade e cuja produção vem influenciando os pesquisadores da área, era Bronfenbrenner. No artigo da professora Clotilde, o texto desse autor, datado de 1974, fundamenta a argumentação de que as rupturas diárias entre a mãe e a criança que frequentava a creche não traziam prejuízos ao desenvolvimento das crianças.

Contudo, é na década de 1990 que uma concepção própria de sistema é elaborada e desenvolvida pela professora Clotilde e seu grupo, também a partir dos desafios colocados pelas investigações em andamento e do diálogo que mantinha com pesquisadores estrangeiros.

A década de 1990 é caracterizada como um período de forte interloculação internacional. Como exemplo, podemos citar o intercâmbio estabelecido entre os anos de 1994 e 1996 com os professores Robert Cairns e Jaan Valsiner, por meio do qual se obteve, com a colaboração da Professora Ângela Branco (UnB), um Auxílio de Cooperação Internacional CNPq-NSF (National Science Foundation) entre o Carolina Consortium (University of North Carolina - USA) e um grupo de universidades brasileiras (USP, UNICAMP, UnB, UFF, UFPE), para o desenvolvimento de pesquisas intituladas Social Ecology of Human Development. Outro exemplo foi a participação, durante a década de 1990, da professora Clotilde na International Network for Quality of Early Child Care, que reuniu bienalmente cerca de 30 especialistas do mundo inteiro.

Um outro intercâmbio bastante produtivo ocorreu com o grupo de pesquisa coordenado pela professora Tulia Musatti, em Roma. Uma visita ocorrida em 1990 inspira a professora Clotilde a elaborar um projeto amplo sobre adaptação de crianças em creche, em colaboração com a Creche Carochinha COSEAS-USP. Em março de 1994, haveria a inserção de 26 crianças entre 0 e 2 anos na Carochinha, e foi então que a professora Clotilde e a coordenadora da creche à época, a psicóloga Ana Mello, resolveram acompanhar e pesquisar esse processo. Esse projeto, denominado "Processo de adaptação de bebês à creche" foi financiado pelo CNPq e, mais tarde, acabou se tornando um projeto temático do CINDEDI, "Interações Adulto-Criança e Criança-Criança: análise de alguns elementos mediadores do desenvolvimento infantil" (1994-1997), financiado pela FAPESP. As pesquisadoras do CINDEDI já tinham experiência com adaptação de bebês e já haviam produzido um vídeo, no ano de 1991, na própria creche do campus sobre o assunto: "Quando a criança começa a freqüentar a creche". No entanto, o trabalho naquele momento foi muito maior, uma vez que foi elaborado "um projeto amplo de pesquisa para acompanhar por um ano o processo de integração dos bebês, de suas famílias e das educadoras na creche" (Rossetti-Ferreira, 2004, p.16).

Durante um ano, foram filmadas situações cotidianas com as crianças e foram feitas entrevistas com familiares, educadoras e equipe técnica da instituição, focando os processos que ocorriam durante a adaptação de crianças à creche. Com os dados gerados nesse projeto, foi montada uma grande base de dados chamada ADAPTA. Essa base foi construída com o objetivo de disponibilizar as informações para os diferentes pesquisadores do CINDEDI. O volume de registros na ADAPTA é muito grande e até hoje seus dados são utilizados por pesquisadores do grupo em suas investigações. No projeto, todos que trabalhavam na creche atuaram como co-pesquisadores, além dos pesquisadores do próprio CINDEDI: "pegamos os diários das educadoras, fizemos filmagens diárias na creche, fizemos entrevistas com as educadoras, fizemos entrevistas com um grupo de mães focais" (M.C. Rossetti-Ferreira, entrevista, 01 de fevereiro de 2006) relata a professora Clotilde em sua entrevista. Além disso, a própria professora relata no livro de 2004 que "a equipe técnica e as educadoras das novas turmas atuaram como pesquisadores auxiliares, registrando, no decorrer daquele ano [1994] e no início de 1995, o estado de saúde e o comportamento das crianças frente ao novo ambiente e às várias rotinas" (Rossetti-Ferreira, 2004, p.16).

Com tantos instrumentos de coleta, foram produzidos muitos materiais, o que desafiou o grupo no tratamento e análise das diversas situações e pessoas envolvidas no projeto. Inspiradas em Bronfenbrenner, a professora Clotilde e sua equipe elaboram um esquema de análise inclusiva e dinâmica dos vários fatores envolvidos no processo de adaptação, sinalizando a consolidação da escolha pela ênfase no conjunto da situação investigada.

Os trabalhos com os dados da ADAPTA renderam ao grupo mais um projeto temático financiado pela FAPESP: "Análise do Desenvolvimento Humano Enquanto uma Construção Através de uma Rede Dinâmica de Significados". Ao longo do desenvolvimento deste projeto temático, entre os anos de 1997 e 2000, o grupo se propôs a sistematizar a complexidade e multiplicidade de perspectivas dos envolvidos no processo de adaptação, assim como as determinações macro e microcontextuais, pessoais e relacionais, materiais e simbólicas.

Apesar da proximidade com o modelo bronfenbreniano, as interlocuções que a professora Clotilde e seu grupo vinham fazendo com estudos histórico-culturais, principalmente a partir de investigações microgenéticas, direcionavam o interesse não apenas para o levantamento dos elementos envolvidos na situação investigada, mas principalmente, para a compreensão das articulações entre eles e para os significados que a eles eram atribuídos em situações concretas. A origem dessas aproximações pode ser encontrada num intercâmbio estabelecido entre os anos de 1986 e 1988, com pesquisadores do Instituto de Linguagem da UNICAMP, mais particularmente, com a professora Claudia Lemos, o que traz para o grupo, ainda que embrionariamente, a dimensão da semiótica e da linguagem.

Autores como Bruner e Bakthin começam então a ser estudados coletivamente e incorporados às leituras que o grupo fazia de Vygotsky, Wallon e Jaan Valsiner, caracterizando uma compreensão dialética e discursiva do desenvolvimento humano.

Resultado desse movimento é o paulatino distanciamento do grupo em relação a termos como "sistema" e "fatores" e o deslocamento para um campo discursivo que inclui em seu repertório, os termos "sentidos", "significados", processos de "significação".

O ponto de virada para essa compreensão pode ser encontrado entre as publicações dos artigos "A creche enquanto contexto possível de desenvolvimento da criança pequena" (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Vitória, 1994) e "Emergência de novos significados durante o processo de adaptação de bebês" (Rossetti-Ferreira et al., 1996).

O artigo de 1994, escrito em colaboração com Telma Vitória e Kátia de Souza Amorim, tinha ainda uma preocupação em apresentar o que as autoras chamavam de "múltiplos fatores (biológicos, psicológicos e históricos do bebê, da família e da creche)" nos processos de desenvolvimento (Rossetti-Ferreira et al., 1994, p.35). Já em 1996, as mesmas autoras sistematizam um texto apresentado na ANPEPP que assume claramente um referencial teórico que incorpora o simbólico na sua definição:

Assumimos, ainda, uma perspectiva sócio-histórica de desenvolvimento, que aponta como característica humana básica a sua imersão em um mundo simbólico e em um processo social contínuo de construção de significados, conhecimentos e linguagem (Rossetti-Ferreira, Amorim, & Vitória, 1996, p. 113).

É interessante notar, contudo, que nesse artigo de 1996, estão presentes novas e velhas terminologias, o que demonstra ainda um processo de elaboração teórica em amadurecimento. A característica transitória desse momento de produção pode ser verificada na denominação dada à complexidade dos elementos envolvidos na situação investigada pelas autoras. Para se referirem a essa complexidade, ora recorrem ao uso do termo "rede de fatores" (Rossetti-Ferreiraet al., 1996, p. 119), ora o mencionam como "sistema dinâmico" (Rossetti-Ferreira et al., 1996, p. 122). A expressão "rede de significações", que dá nome ao modelo hoje adotado pela professora Clotilde e seu grupo aparece, pela primeira vez, na seção de discussão deste artigo da seguinte forma: "o conjunto de fatores físico, sociais, ideológicos e simbólicos que descrevemos anteriormente, como influenciando o processo de integração à creche deve ser interpretado como uma rede de significações" (Rossetti-Ferreira et al., 1996, p. 138). A incipiência da denominação marca, contudo, um uso que faz as autoras, ainda ao longo da discussão, a recorrerem ao termo "rede de significados" (Rossetti-Ferreira et al., 1996, p. 141) e de novo "rede de fatores", que aparece no parágrafo final do artigo (Rossetti-Ferreira et al., 1996, p. 142).

O esforço em diferenciar-se de modelos sistêmicos menos orientados pela semiótica aparece quando as autoras tentam explicitar a centralidade do processo de significação no desenvolvimento humano:

Compreendemos, diferentemente de Bronfenbrenner, que os vários aspectos da matriz sócio-cultural, que capturam a mãe, a criança e a educadora e processo de adaptação, não estão fora delas e no meio que as cerca. Estão, sim, presentes nos próprios gestos e palavras. Estão, pois, impregnados nos sujeitos, com seus componentes individuais, nos campos de interação e nos cenários, pois todos estão imersos no mundo da linguagem (em seu sentido mais amplo, semiótico) (Rossetti-Ferreira et al., 1996, p. 140).

Também na página 138 esse esforço de diferenciação se dá pela assunção clara de um referencial dialético: "Nossa proposta difere desta, por ter como ponto de partida uma perspectiva dialética, que coloca o confronto e o conflito como centrais e constitutivos" (Rossetti-Ferreira et al., 1996, p.138).

Como se verifica, na mesma medida em que a semiótica começa a distanciar o grupo coordenado por Clotilde das ideias de Bronfenbrener, esse autor continua estimulando os estudos sobre teorias sistêmicas. Destaca-se, nesse momento, a leitura de autores como Bertalanfy, Valsiner, Morin, Maturana, Varela, Levy. É nesse movimento que a metáfora de rede é acolhida pelo grupo. Essa metáfora aparece no movimento da mudança paradigmática surgida pela necessidade de modelos ecológicos de conhecimento que se abrem: para a complexidade do mundo contemporâneo e para o reconhecimento da autonomia relativa e da absoluta interdependência entre os acontecimentos e elementos desse mundo. Najmanovich (1995), por exemplo, fala a favor do universo numa imensa rede de relações e defende que essa metáfora insere-se numa etapa do desenvolvimento das teorias sistêmicas.

Com essa concepção então incorporada às investigações da professora Clotilde e seu grupo, é possível o desenvolvimento de um referencial que permite a abordagem da complexidade do desenvolvimento humano. O desenvolvimento é sempre o de um conjunto de pessoas que se desenvolve reciprocamente. A metáfora de rede permitiu ao grupo criar uma lente para compreender os processos de desenvolvimento; uma perspectiva teórico-metodológica que contempla não apenas os diferentes elementos presentes no desenvolvimento em uma dada situação ou momento, mas que busca, principalmente, compreender as diferentes interconexões e associações entre eles, suas relações de proximidade e subordinações, seus entrelaçamentos, os movimentos no processo de significação, de construção de sentido e de poder.

Com a metáfora de rede e com a influência da semiótica, intensificam-se os estudos no grupo sobre os processos de construção e transação de sentidos e significados nas interações humanas, e o desenvolvimento humano passa a ser visto como um processo necessariamente mediado pelo outro e pela cultura.

O título do projeto temático, desenvolvido entre 1997 e 2000, "Análise do Desenvolvimento Humano Enquanto uma Construção Através de uma Rede Dinâmica de Significados" evidencia o investimento que o grupo faz na construção de sua nova perspectiva teórico-metodológica. A sistematização de seus resultados culminou com a publicação do livro "Rede de Significações e o Estudo do desenvolvimento Humano" (Rossetti-Ferreira et al., 2004). Nele, são compilados alguns dos estudos orientados pela perspectiva da RedSig, durante os anos de vigência do projeto temático. Nas três partes do livro, são apresentados os conceitos básicos da RedSig, aprofundando-se alguns deles, como por exemplo: sentido e significado, jogos de papel e posicionamento, circunscritores e matriz sócio-histórica. O formato do livro denota a característica aberta que a professora Clotilde imprimiu na formação de seu grupo; no final de cada parte, os textos são debatidos por pesquisadores que dialogaram com o grupo ao longo da elaboração da proposta.

As discussões sobre semiótica e sobre os processos de construção de sentidos e significados, aos poucos, levam o grupo a assumir também a dialogia como um conceito central para a perspectiva da RedSig. Nesse contexto, elabora-se o projeto temático "Dialogia e Significação na Rede de Significações" (2004-2007), novamente financiado pela FAPESP. Durante o desenvolvimento desse projeto, o grupo esteve subdividido em 8 subgrupos em torno dos quais se articularam cerca de 30 projetos de pesquisa de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Ao mesmo tempo em que, no âmbito do projeto, a perspectiva teórica orientava as pesquisas, ela também ia ganhando densidade e consistência teórico-conceitual. O projeto temático contemplava a investigação de duas questões teóricas centrais à perspectiva: os processos de produção e transações dos significados e sentidos; a intersubjetividade enquanto constitutiva do sujeito e de seu desenvolvimento. Além disso, tinha como objetivo apreender a ampla rede de significações que permeia: as políticas e práticas da educação infantil; as políticas e práticas de acolhimento e adoção de crianças; as políticas e práticas discursivas relativas à inclusão social e escolar de crianças com necessidades especiais. Do ponto de vista metodológico, procurava-se aprofundar as discussões sobre os enfoques qualitativos e quantitativos e as oposições universalidade/ diversidade e estabilidade/novidade na análise do desenvolvimento humano.

Um significativo avanço nesse momento ocorre de desdobramentos de estudos sobre método em Vygotsky e em leituras vygotskyanas, como as de Newman & Holzman (2002). Inspirado nesses autores, o grupo de pesquisas coordenado pela professora Clotilde, particularmente a partir de sistematizações da professora Zilma de Moraes Ramos de Oliveira, elabora a proposição do pesquisador como ferramenteiro, que constrói seu kit de ferramentas, seu instrumento para a produção do conhecimento. Os instrumentos de pesquisa são, portanto, intrinsecamente relacionados ao referencial teórico e, também, aos resultados da pesquisa. Trata-se do entendimento dos procedimentos metodológicos não como instrumentos-para-resultado, mas como instrumento-e-resultado. Essa proposição aparece na publicação de 2008, "Desafios metodológicos na perspectiva da Rede de Significações".

Inicialmente, portanto, compreendida como um sistema de fatores, depois como uma rede de sentidos ou significados, a perspectiva teve seu nome redefinido a partir de um aprofundamento do olhar no processo do desenvolvimento, mais do que no conteúdo ou na forma separadamente. Essa redefinição, como mencionamos, acontece no movimento mesmo de diálogo com a literatura e as realidades investigadas. A diversidade de temas investigados gerou inquietações e questionamentos que mobilizaram a busca pelo refinamento teórico-metodológico.

Foi esse refinamento, no diálogo com referenciais sobre apego, que conduziu a professora Clotilde novamente as suas inquietações iniciais, quer seja, a do desenvolvimento de crianças em situações de graves rupturas dos vínculos parentais.

A elaboração de uma nova lente teórico-metodológica que levou à construção de conhecimentos sobre educação infantil no Brasil se somou às iniciativas de vários pesquisadores da área que buscavam promover a qualidade da educação infantil no Brasil e no mundo. Essa elaboração e contribuição da professora Clotilde justifica que a IUPsyS a tenha convidado como conferencista de destaque para o seu Congresso Internacional de Psicologia, que se reúne a cada quatro anos. Sua conferência, proferida em julho de 2000, em Estocolmo, foi publicada no livro Psychology at the Turn of the Millenium (Edited by C. von Hofsten and L. Backman, Psychology Press, 2002) com o título: "Improving early childcare and education in developing countries". Além da conferência em Estocolmo, a professora Clotilde também foi convidada, em 2006, pelo Comitê Científico da 19th Biennial Meeting da ISSBD para proferir uma das Conferências Magnas do Congresso realizado em Melbourne na Austrália. O trabalho apresentado foi intitulado "(Mis)leading Influences of Attachment Theory on Day & Foster Care", no qual avança e sintetiza sua visão crítica sobre a teoria do apego e as influências positivas e negativas que esta tem tido sobre as Políticas Públicas para criança pequena.

Terceira fase: estudos sobre adoção, acolhimento institucional e familiar de crianças

Uma terceira fase de produção acadêmica da professora Clotilde é marcada pela retomada de um interesse antigo, ainda da década de 1970. Para relembrar: Clotilde e seu grupo começaram a trabalhar com creches em meados da década de 1970 por não haver na cidade orfanatos ou instituições que acolhessem crianças em situação de vulnerabilidade e violação de direitos. Contudo, a partir de 2001, o interesse em trabalhar e investigar o campo de práticas e políticas de proteção à criança e ao adolescente ressurgiu.

Nesse momento, sob supervisão da professora Clotilde, iniciaram-se no CINDEDI investigações relativas à adoção. No mesmo movimento que a sociedade civil fazia ao refletir sobre ações e políticas de atenção à criança e adolescente privados de cuidados parentais, o foco inicial de pesquisa na adoção acompanhava o protagonismo que ela assumia no cenário brasileiro (inclusive com trâmite no Congresso Nacional da Lei de Adoção). Neste sentido, os primeiros projetos buscavam mapear tanto os processos de adoções de 1991 a 2000 junto à Vara de Infância e Juventude de Ribeirão Preto, feitas após o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Mariano & Rossetti-Ferreira, 2008), como o processo de inserção de bebês em famílias adotantes e a construção de relações afetivas nessas famílias (Eltink, 2006; Mingorance, 2006), os sentidos de maternidade e paternidade que podem emergir em casos de adoção tardia (Costa & Rossetti-Ferreira, 2007; Costa & Rossetti-Ferreira, 2009b), a fala da criança sobre seu processo de adoção (Sólon, 2006; Sólon, Costa, & Rossetti-Ferreira, 2008) e a paternidade adotiva (Andrade, Costa, & Rossetti-Ferreira, 2006).

Paralelamente ao desenvolvimento desses trabalhos, um grupo de discussões foi formado entre os pesquisadores do CINDEDI (coordenados pela professora Clotilde) e membros da equipe interdisciplinar da Vara de Infância e Juventude de Ribeirão Preto. Objetivava-se assessorar e discutir o trabalho desenvolvido por esses últimos, como também discutir leis e normativas nacionais relativas à proteção da infância e juventude e executar várias intervenções junto à sociedade civil e em instituições da cidade e região. Assim, fruto desse intercâmbio, em 2002 foi fundado o GIAAA, o Grupo de Investigação sobre Acolhimento Familiar, Abrigamento e Adoção, um subgrupo que faz parte do CINDEDI. Tal fato contribuiu para a ampliação dos conhecimentos do grupo de pesquisa sobre as temáticas estudadas e apresentou um universo de situações que ultrapassavam a questão da adoção. Além disso, o intenso processo de reordenamento da política de assistência e de atenção à infância e juventude sob violação de direitos (que envolve a definição de ações de proteção especial), tanto no país como no exterior, evidenciavam um campo de estudos em plena transformação.

Dessa forma, com o aprofundamento das pesquisas sobre adoção, com a imersão no campo de investigação e com as discussões do GIAAA, sob a perspectiva teórico-metodológica da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva, & Carvalho, 2004), o grupo foi adentrando em novas realidades e ampliando o olhar para a complexidade envolvida nas questões de adoção, abrigamento e acolhimento familiar. Foi possível concluir que o foco inicial de investigação estava restrito e que era necessário estudar os processos de acolhimento institucional e familiar.

Desse modo, sob a orientação da professora Clotilde foi realizado um mapeamento dos abrigos de Ribeirão Preto que atendem crianças de 0 a 6 anos (Serrano, 2008), assim como estudos que possibilitaram a narrativa de crianças sobre seu processo de abrigamento (Silva, Sólon, & Rossetti-Ferreira, 2008), a narrativa de crianças institucionalizadas sobre sua aprendizagem escolar (Buffa, Pauli, & Rossetti-Ferreira, 2008) e sobre a sua rede de relações, inclusive no caso de irmãos (Maehara, Almeida, & Rossetti-Ferreira, 2009; Almeida & Rossetti-Ferreira, 2009).

Em 2006, após um intercâmbio com o Prof. Jesús Palacios da Universidade de Sevilha e em parceria com Nina Rosa Amaral Costa, a professora Clotilde iniciou também pesquisas na área de acolhimento familiar, ao perceber que essa medida de proteção começava a ser implantada no Brasil formalmente e que seriam importantes estudos que acompanhassem a inserção de crianças nesse novo contexto familiar. Especialmente, pesquisas que atentassem para as relações afetivas e de apego estabelecidas entre a criança e a família acolhedora e a família de origem (Costa & Rossetti-Ferreira, 2009a; Martins, Costa, & Rossetti-Ferreira, no prelo).

Conforme apontado, o acolhimento de crianças e adolescentes em situação de desproteção ou vulnerabilidade encontra-se em plena transformação, tanto no âmbito das políticas macro-sociais, como das práticas cotidianas desenvolvidas pelas equipes multiprofissionais de técnicos de secretarias municipais, de abrigos ou do Poder Judiciário, ao atuarem dentro do Sistema de Garantia de Direitos (Costa & Rossetti-Ferreira, 2009a). Dessa forma, muitas ambiguidades e contradições estão presentes nos discursos e nas práticas dos profissionais que atuam na área, sejam operadores sociais ou do direito, como também entre as famílias que acolhem ou entre os educadores de abrigos.

Isso leva a considerar que fomentar uma nova cultura de acolhimento de crianças e novas medidas de proteção não é um processo rápido e exige, dentre outras coisas, pesquisas comprometidas com a produção de conhecimento na área, desafio que a professora Clotilde vem enfrentando com seu grupo de pesquisa. Ela argumenta que a Teoria do Apego constitui um exemplo da relevância das ciências do desenvolvimento humano para a definição das políticas e práticas sociais de educação e proteção de crianças e jovens, sobretudo daqueles que vivem situações de vulnerabilidade social. Isso porque as redes de significações que permeiam tais políticas e práticas de acolhimento historicamente esbarram em certas ideias predominantes sobre apego, desenvolvimento normal/anormal, fatores de risco/fatores protetores e sobre a concepção de que a instituição familiar, particularmente a do tipo nuclear, é a única e a ideal, aquela que melhor oferece um ambiente pleno ao desenvolvimento de uma criança. Assim, as visões teórico-metodológicas da área contribuem para construir realidades sociais que podem influir, modificar e restringir o desenvolvimento e a qualidade de vida das pessoas, muitas vezes inserindo-as em um movimento de maior exclusão.

A supremacia dos laços consangüíneos para o cuidado de crianças é, sem dúvida, uma ideologia dominante em nossa sociedade. Em parte, é dessa idéia que emana a concepção hegemônica encontrada em diversas tendências teóricas da predestinação à psicopatologia das crianças separadas da família biológica. Seus históricos de vida, às vezes marcados por aquilo que a literatura clássica de desenvolvimento humano considera estressores sociais de diversas ordens, aos quais se somam vivências institucionais, são vistos a partir de uma conotação negativa, idéia predominante que se espraia em diferentes âmbitos da vida social, permeando tanto os discursos do senso comum como os do meio científico. (Rossetti-Ferreira, 2006, p.46)

Pode-se dizer que esse artigo de 2006, apresentado no V Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento, possui contribuições múltiplas. Ao posicionar-se dentro do leque de concepções da Psicologia do Desenvolvimento, a professora Clotilde nos permite também acompanhar o percurso teórico-metodológico da própria área, que parte do foco no indivíduo, caminha para a relação diádica, amplia para o foco na interação de crianças e abre-se para a complexidade dos processos desenvolvimentais. Parte desse movimento também explica os percursos da própria professora Clotilde. Parte dele, em particular no Brasil, foi produto das ideias e conhecimentos produzidos pela professora.

 

Considerações finais

Ao longo de sua carreira acadêmica, a professora Clotilde constitui-se como referência para a Psicologia do Desenvolvimento no Brasil, assim como para a área da Educação Infantil. Na articulação de atividades de ensino, pesquisa e extensão, Clotilde ajudou a desenvolver e a promover a área da Psicologia do Desenvolvimento Humano no Brasil e no exterior.

Sua concepção de conhecimento como uma construção colaborativa a fez investir fortemente no estabelecimento de intercâmbio com vários grupos e sociedades científicas nacionais e internacionais. Durante vários anos, favoreceu a integração de pesquisadores da USP, UNICAMP, UnB, UFF, UFPE que, por sua iniciativa, reuniam-se em diversos encontros da SBP, ANPPEP, SBPC e SBPD.

Na Pós-Graduação, Clotilde orienta alunos no Programa de Psicologia da FFCLRP; ao longo de sua carreira, nos Programas de Pós Graduação do IPUSP (Psicologia Experimental), da PUC-SP (Psicologia Educacional), da PUC-Campinas (Psicologia Clínica), da UFSCar (Educação), da UNESP de Araraquara (Ciêncas Sociais), da FMRP-USP (Saúde Mental). Formou, até o momento, 03 pós-doutores, 16 doutores e 23 mestres, que estão ativos em diversas universidades do país formando outros centros de investigação na área, ou no próprio CINDEDI, todos com intensa produção em termos de pesquisa, formação de pessoal e extensão. A maioria desses ex-orientandos está comprometida com a preocupação inicial e central de toda a trajetória profissional da professora Clotilde, de contribuir para o desenvolvimento da criança brasileira.

Seu grupo de pesquisa, o CINDEDI, foi reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) em 1996. Atualmente, reúne aproximadamente 30 membros, incluindo docentes, pesquisadores, alunos de graduação e pós-graduação. Como resultado desse trabalho formativo, o CINDEDI possui 03 docentes em atividade (Mara Ignez Campos-de-Carvalho, Ana Paula Soares da Silva e Kátia de Souza Amorim), e duas aposentadas (Márcia Regina Bonagamba Rubiano e Zilma de Moraes Ramos de Oliveira), todas formadas pela professora Clotilde.

Ao longo desse período, Clotilde foi homenageada diversas vezes pelos alunos da graduação como professora, paraninfa ou patronesse. Essas homenagens reconheciam a relação de troca e de respeito mútuo que ela construía com seus alunos, assim como seus orientados e colegas. Nessas relações, a marca característica sempre foi a promoção do desenvolvimento daqueles que a cercam, feita pela orientação, empréstimo de livros, estabelecimento de pontes de relacionamento entre pesquisadores de perto ou distantes, incentivo, conselhos, sempre interessada pela vida de cada um e por seus problemas, descobrindo o potencial particular dos orientandos e promovendo a auto estima e ajuda a cada um a se ver como gente e agente.

Teve sempre uma participação ativa nos órgãos administrativos e de decisão da FFCLRP-USP, discutindo sempre a responsabilidade social e o papel político da Universidade e dos professores de nível superior. Sua atuação nos órgãos colegiados fez levar para essas instâncias seus posicionamentos e contribuir, junto com os primeiros docentes da Faculdade, para a consolidação da FFCLRP-USP. A professora Clotilde é parte da memória viva da história dessa Faculdade.

Seguindo um de seus princípios, a professora Clotilde trabalha incansavelmente a articulação teoria e prática. Sempre à frente na coordenação do CINDEDI, a professora Clotilde imprimiu sua preocupação constante de divulgar o conhecimento produzido não apenas nos meios científicos, mas também na comunidade em geral, favorecendo a efetivação de práticas que promovam a qualidade dos atendimentos destinados às crianças em diferentes contextos e instituições.

Do ponto de vista teórico, a professora Clotilde construiu uma carreira de intenso estudo e seriedade na apropriação de referenciais, mas não se privou da abertura para o estabelecimento de diálogo entre perspectivas e mesmo para a construção de um olhar peculiar e sensível às realidades investigadas, às perguntas e desafios que essas realidades lhe impuseram ao longo de sua vida acadêmica.

Como uma grande defensora da relevância da Psicologia do Desenvolvimento para as políticas e práticas sociais, a professora Clotilde buscou, a todo tempo, fazer dialogar os conhecimentos e as práticas. Nesse diálogo, foi testemunha e ao mesmo tempo personagem ativa e importante das mudanças das situações que investigou no país. A realidade das creches hoje, mesmo que ainda não tenham alcançado hegemonicamente o padrão de qualidade ideal ao desenvolvimento das crianças, caracteriza-se de modo bastante diferente da fase de ingresso da professora no campo. Padrões mínimos de qualidade foram construídos no país, dentre eles, aqueles que estipulam número máximo de crianças por educadores. Também no tempo de vida acadêmica da professora Clotilde, legislações específicas para a garantia dos direitos da criança foram promulgadas. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente é um exemplo do quanto a Psicologia do Desenvolvimento orienta e informa as práticas sociais em relação à infância brasileira. A leitura sobre desenvolvimento e construção de vínculos afetivos, possibilitada pelos trabalhos da professora Clotilde aponta para a responsabilidade ética do posicionamento dos psicólogos do desenvolvimento. Seus trabalhos e posicionamentos chamam a atenção para o poder que a Psicologia do Desenvolvimento tem não apenas de intervir na realidade, mas principalmente de construir realidades sociais, influenciando, modificando ou até mesmo restringindo o desenvolvimento e a qualidade de vida das pessoas. Os psicólogos do desenvolvimento podem não apenas promover o desenvolvimento humano, mas também, por meio de seus recortes teóricos e instrumentos metodológicos, promover uma participação ativa, na sociedade, de pessoas e grupos em processos de exclusão social, bem como de pessoas em campos de patologias anunciadas. Sem abandonar a tese da importância fundamental dos vínculos afetivos para a constituição e o desenvolvimento dos seres humanos, a professora Clotilde a complexifica e nos envolve, também como estudiosos do desenvolvimento humano, no conjunto e na teia de condicionantes dessa constituição.

 

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Endereço para correspondência:
Gabriela Campos Darahem
Rua Guimarães Passos, 368, ap 171. Vila Seixas
Ribeirão Preto, SP. CEP: 14020-070
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Ana Paula Soares da Silva
FFCLRP-USP
Av. Bandeirantes, 3900. Bairro Monte Alegre
CEP 14040-901
E-mail: apssilva@ffclrp.usp.br

Enviado em Abril de 2009
Aceite final em Maio de 2010
Publicado em Junho de 2010

 

 

Agradecemos aos membros do CINDEDI e também à FAPESP e ao CNPq pelos financiamentos recebidos pelo grupo.

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