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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2009

 

ARTIGOS

 

Teoria Crítica em Habermas: diálogos com Psicologia Social

 

Habermas critical theory: dialogs with Social Psychology

 

 

Maria Stella Brandão Goulart

Universidade Federal de Minas Gerais - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo trata de uma das várias perspectivas da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt: a de Jürgen Habermas. Aponta-se para o relativo desconhecimento da obra desse filósofo, que representa a segunda geração da Escola, no campo da Psicologia Social. É feita uma apresentação da Teoria da Ação Comunicativa focando seus principais conceitos e raízes. São destacados, deste conjunto de informações, o sistema tripartide de organização social e a dualidade da racionalidade (comunicativa e instrumental) que orienta a ação coletiva e os sistemas. Conclui-se indicando algumas contribuições especificas desta Teoria Crítica para a Psicologia Social e seus estudos historiográficos.

Palavras-chave: Teoria Crítica, Democracia, Psicologia Social, Ação coletiva, Interação.


ABSTRACT

The article is about one of the several perspectives of the "Critical Theory of the Frankfurt School": the Jürgen Habermas's. It is mentioned the relative lack of knowledge on this philosopher's work, which represents the second generation of the School, in the extent of Social Psychology. It is made a show of the "Theory of Communicative Action" focusing it's main concepts and sources. In this whole are emphasized a model of social organization (divided in three analytical parts) and the duality of rationality (communicative and instrumental) which orients the collective action and the systems. It is concluded indicating some specific contributions of this theory to the Social Psychology and the development of historical studies.

Keywords: Critical Theory, Democracy, Social Psychology, Collective action, Interaction.


 

 

Este artigo foca o trabalho de Jürgen Habermas na construção de uma teoria da sociedade, com objetos de crítica específicos e que contemplam a possibilidade de agência e liberdade. Nesse sentido, a sintonia com a Psicologia Social crítica é imediata e sua Teoria da Ação Comunicativa pode se apresentar como uma valiosa ferramenta interpretativa para os estudos históricos, na medida em que ajuda a refletir acerca da qualidade dos exercícios críticos possíveis, nas complexas interseções e fusões disciplinares.

Esta Psicologia, e sua potência crítica, à qual nos dirigimos, opera em oposição aos paradigmas tradicionais mecanicistas, individualistas e positivistas. Nela, interroga-se sobre a condição humana, seus horizontes, espaços, objetos e relações, atenta às suas contradições, potências e impotências diante dos desafios da vida. A Psicologia Social crítica a que nos referimos compromete-se com as transformações sociopolíticas e opera tomando os fenômenos que elege em sua dimensão histórica, transdisciplinar, com posturas que se pretendem anti-essencialistas e desnaturalizadoras (Spink & Spink, 2005). Além disso, compromete-se também com o automonitoramento de suas práticas, numa perspectiva autocrítica e reflexiva. Considerando o cenário brasileiro, ela tem pulsado, em especial, na Psicossociologia, na Psicologia Sóciohistórica, na Psicologia Política, na Comunitária, no campo da Análise Institucional, nos estudos discursivos e de natureza desconstrutivista e situacionista. A compreensão acerca do que vem a ser o exercício de criticidade toma tonalidades e formatos diversos nestas searas da teoria e práticas associáveis à Psicologia.

Nos reportamos, com o filósofo frankfurtiano, a uma perspectiva específica de estudos críticos de macroalcance, que nos projeta nas relações políticas, sociais e comunitárias - suas múltiplas formas e modos (Spink & Spink, 2005). Interessam as visões de amplo espectro que supõe modelos de organização societária e formatam uma reflexão, crítica, acerca da modernidade, sua construção, seus diagnósticos, potências e impotências. Uma retomada atenta, minuciosa, da história do conhecimento em teoria social. Aqui se funda sua criticidade e potência. Essa perspectiva compõe a cena da abordagem construcionista que emergiu a partir da crise de referência que foi vivida no campo da Psicologia Social, especialmente a partir dos anos 60 do século XX e que é ainda tão presente (Álvaro & Garrido, 2006; Bernardes, 2002). Desde então, configurou-se uma atitude que colocou em crise (crítica) as orientações que se pautavam em perspectivas ahistóricas, presentistas e adaptativistas.

A Psicologia Social crítica buscou, no calor do ativismo da esquerda, na filosofia contemporânea e nas Ciências Sociais e Políticas, modelos de compreensão e explicação da nossa sociedade e da condição humana: assim, multiplicou-se. Os problemas de desigualdade (econômica, social e política) e injustiça (destacadamente, direitos humanos) passaram a fertilizar os estudos em Psicologia. Recorreu-se vigorosamente às teorias marxistas e críticas (como a da Escola de Frankfurt) e enquadrou suas questões tomando como referência os desafios da modernidade, com seus supostos progressos e tecnologias, colocou-se, ela mesma, como um problema, antes que uma solução. A transdisciplinaridade da Psicologia Social, obscurecida pelas perspectivas hegemônicas dos modelos comportamentalistas norte-americanos, impôs-se como caminho e meta (Álvaro & Garrido, 2006; Bernardes, 2002). A historiografia colocou-se, desde então, como um desafio silencioso para a Psicologia Social. Recordemos, com Morin (2001), que essas aventuras transdisciplinares "podem atravessar as disciplinas, às vezes com tal virulência, que as deixam em transe." (p. 115).

O marxismo pensava e pensa a sociedade de classes e apóia-se na crítica às contradições do modo de produção capitalista. Um marco brasileiro dessa sintonia foi a publicação do livro Psicologia Social - o homem em movimento (1986), organizado por Sílvia Lane e Wanderlei Codo nos idos de 1985. A Psicologia Social configurou-se como uma larga porta de entrada para os conceitos da teoria social de inspiração marxista e estimulou posicionamentos políticos e teóricos mais explicitados da própria Psicologia (Bock & Furtado, 2006). Alinham-se a esta tendência, que acolhe diferentes escolas de pensamento marxistas, os diálogos com diversas matizes da Psicanálise. Os estudos resultantes das perspectivas da Análise Institucional francesa, dos grupos heichianos, dos argentinos e outros latino-americanos, da Esquizoanálise e outros são fruto destas sintonias freudomarxistas. A referência ao russos também se colocou vigorosamente através do estudo de Leontiev, Luria, Vigotsky, formatando a Psicologia Sociohistórica.

Assim aportamos em um certo realismo, ativista, muito atentos ao fenômeno da desigualdade social, econômica e política, surpreendendo-nos com as demandas de reprodução e manutenção dos padrões dominantes de subjetividade e relações sociais que se dirigiam à Psicologia como um todo.

No que tange à Escola de Frankfurt e seu marxismo, destaca-se o contato com a primeira geração, mesmo que isso não signifique pouco. Ao que parece, o diálogo dos psicólogos sociais brasileiros com a pauta de investigação e reflexões da primeira geração de Escola de Frankfurt ocorreu tardiamente. Os seus efeitos se concentraram basicamente do contato com a obra de Theodor Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamim (Soares, 2006). A ambiciosa obra de Habermas, principal nome da segunda geração da Escola de Frankfurt, ainda hoje parece pouco explorada na Psicologia e é tempo de apontar para a sua relevância e desdobramentos. O "neomarxismo crítico" (Soares, 2006, p. 487) da primeira geração da chamada Escola de Frankfurt tem um colorido especial: comportando a rejeição do modelo soviético e explorando mais vigorosamente a primeira fase da obra de Karl Marx (Avritizer, 1996), notoriamente menos economicista e historicista. Além disso, a Escola de Frankfurt cultivava a referência a Hegel, Kant, Weber e fazia suas incursões na Psicanálise freudiana, coerentes com um posicionamento não ortodoxo e antidogmático (Álvaro & Garrido, 2006). Seu objeto de critica "era, em essência, a lógica [moderna] de funcionamento da sociedade burguesa e das teorias 'consagradas ' usadas por ela como justificação para sua existência e continuidade" (Soares, 2006, p. 478). Habermas procura identificar os limites desta crítica e nos propõe outros caminhos que têm efeitos de ampliação de horizontes e constituição de novos problemas e pauta reflexiva.

Nosso objetivo, neste artigo, será o de pontuar as bases e algumas conseqüências da "Teoria da Ação Comunicativa" numa atitude de compartilhamento desta referência teórico-crítica que tem sustentado uma extensa pauta de debates internacionais que deságuam nas reflexões acerca da democracia1.

 

A teoria da ação comunicativa: um exercício crítico específico

Seguindo a tradição frankfurtiana, Habermas toma como desafio o dualismo da experiência social moderna, dilacerada entre os automatismos dos processos sistêmicos e o projeto de autonomia e racionalidade que carreiam o desejo de liberdade. Ao fazê-lo, realiza uma revisão da trajetória do pensamento social. O resultado mais significativo de sua obra, para nossos interesses de pesquisa e reflexão, será, como já adiantamos, a Teoria da Ação Comunicativa (Habermas, 1987). O filósofo realizou uma cuidadosa releitura dos clássicos - Karl Marx, Emile Durkheim e Max Weber - e a recuperação de referências estratégicas para a Psicologia, destacadamente o Interacionismo Simbólico de George Herbert. Mead e o Estrutural Funcionalismo de Talcott Parsons. Neste veio, Habermas persegue o seguinte veio crítico: "o paradoxo central da vida moderna: a perda da liberdade, do respeito pela vida humana e do seu significado" (Ingram, 1994, p.14). Porém, ele estava atento aos processos de transformação e superação construídos em contrapelo.

As respostas ou soluções habermasianas remetem ao resgate do "mundo da vida" em tensão com os ambientes opressivos da economia (mercado) e da política, no sentido estrito do termo (Estado). Trata-se de uma articulação que tem efeitos importantes para a Psicologia construcionista, pois resulta na refundação do conceito de "esfera pública" (Habermas, 1984) que se revelou articulável ao de "sociedade civil", tão caro aos estudiosos dos movimentos sociais e da democracia participativa.

Nessa trajetória, surpreende o modo o principal herdeiro da Escola de Frankfurt e da Teoria Crítica apóia seus estudos justamente em um autor que fora alijado das discussões e reflexões engajadas e politicamente corretas: Talcott Parsons. Foi a partir da revisão crítica deste sociólogo que ele erigiu uma teoria ousada em suas pretensões de síntese e abrangência.

O filósofo focou na obra de Parsons a permanente e não superada tensão entre voluntarismo (a teoria da ação) e determinismo (a teoria de sistemas). Destacou o fracasso do estrutural funcionalismo na tentativa de reconciliar idealismo e positivismo. A teoria da ação Parsoniana vinculava a análise sociológica à perspectiva interna, subjetivista, dos membros dos grupos sociais. Porém, a teoria de sistemas trabalhava com a perspectiva do observador, externa em relação ao ator social (Habermas, 1987, p.289).

Habermas entende que, numa primeira fase da sua obra, Parsons confrontou-se com o utilitarismo e procurou postular um espaço de decisão normativa para o sujeito da ação. Afinal, o sociólogo americano entendia que a ordem social não se sustentava por um arranjo de interesses instrumentais ou por efeito estrito de coação, mas pela possibilidade de formação de consensos apoiados em normas válidas. Mas, paulatinamente, as normas e instituições foram encobrindo o ator social, que acabou se convertendo, na obra de Parsons, em um fantoche sustentado por formalismos e mecanismos padronizados que se impunham pelas situações e sistemas onde se dava a ação.

Mas, ao acompanhar criticamente o percurso de Parsons, Habermas identifica problemas e respostas importantes que o conduziram a George H. Mead e aos interacionistas simbólicos. Perguntava-se sobre como se dariam os processos de institucionalização e internalização de valores e normas que se impunham aos atores nos espaços cotidianos, de modo a não reduzi-los a meros reprodutores da ordem societária. Como seria possível conceder espaço analítico à figura de um ator capaz de criticidade e autonomia (capacidade de transformação)? Para Habermas, o estrutural funcionalismo não considerou a possibilidade de formação de consensos normativos advindos de processos reflexivos, tensionados por esforços de entendimento e por conflitos, através da via de exercício da linguagem. Haveria, pois, a necessidade de consideração mais atenta da possibilidade de reconhecimento intersubjetivo e interação social em processos comunicativos densos e tensos.

Parsons havia reificado os padrões culturais, reduzindo-os a componentes da situação (objetos), sem dar atenção ao fato de que estes são gerados e acessados pela participação dos atores em processos comunicativos e interativos que ocorrem em referência a um mundo intersubjetivamente compartilhado: o mundo da vida. (Habermas, 1987, p. 321).

A contraposição parsoniana entre voluntarismo (teoria da ação) e determinismo (teoria sistêmica) inspirou Habermas na construção de um modelo analítico que contemplasse as tensões entre dois tipos de coordenação de ações: um comunicativo e outro sistêmico (Habermas, 1987). No primeiro, o principal meio de efetivação da ação seria a linguagem. No segundo, sistêmico, os principais meios de ação seriam o dinheiro e o poder político.

Esta leitura permite que Habermas se afaste do marxismo afeito às armadilhas reprodutivistas do capitalismo e do Estado. Afinal, desse processo de revisão de modelos (radicalmente sintetizado até aqui) resultou uma teoria de meios, como recursos da ação social, que não se reduziam aos ambientes sistêmicos e que tinham propriedades transitivas. A linguagem e a comunicação se colocam como um meio tão relevante quanto o dinheiro (capital) e o poder (político), do ponto de vista analítico.

Habermas propõe dois universos distintos e relativamente autônomos de ação. Procurou distinguir as ações que se orientavam para o entendimento e eram capazes de sustentar perspectivas éticas (tendo a linguagem como meio) das ações que se orientavam estrategicamente e que se justificavam pela realização de fins (tendo o dinheiro e o poder como meios privilegiados). Retoma a dualidade da experiência social moderna, enfocando a cisão nos modos de coordenação da ação. Existiriam situações onde o ator depende de confiança motivada racionalmente como um produto de intersubjetividade. Estas situações se distinguem de outras nas quais os atores operam particularmente apoiados em lógicas instrumentais, movidas por auto-interesse. Assim, o filósofo procura cotejar universos de natureza distinta e contraposta.

O chamado "mundo da vida" não poderia prescindir da linguagem em sua função coordenadora. A existência não pode ser tecnificada, nem burocratizada sem que isso traga sérias e graves conseqüências para o homem e a reprodução de seus referenciais simbólicos. Disso os frankfurtianos já sabiam bem. O entendimento nos processos integrativos e interativos seria literalmente vital e exigiria a consideração dos efeitos da linguagem em situação dialógica. Vislumbra-se aqui, para Habermas, a recorrência à "Teoria dos Atos de Fala" do filósofo John Langshaw Austin. Tratava-se de refletir sobre o significado e potência das sentenças proferidas e seu impacto na interação comunicativa que resultasse em possibilidade de formação contratual ou de compromisso entre as partes envolvidas.

Nesta teoria, a linguagem é explorada em sua dimensão prática (ação) que ultrapassa seu sentido textual e produz múltiplos efeitos (ato locucionário, ilocucionário, perlocucionário). Abre-se uma perspectiva de exercício de poder como influência, como capacidade persuasiva, no exercício da palavra, da linguagem, que se ancora também em Hannah Arendt e restaura a potência da argumentação fundamentada e da capacidade de convencimento. Esta atenção à força da linguagem se projeta, no entanto, num ambiente intersubjetivo e interativo, carreando pretensões de validade (verdade, correção e sinceridade). Assim, a Teoria da Ação Comunicativa se configura com originalidade, em sua perspectiva crítica, em relação à primeira geração da Escola de Frankfurt.

Competências individuais e relacionais, as práticas enraizadas socialmente e as solidariedades de grupos regidos por normas e valores são recursos estruturais do mundo da vida, experimentado como cotidiano, como mundo vivo. Habermas procura recuperar a perspectiva do sujeito ou do ator em suas orientações e interações apoiadas no pleno exercício da linguagem. Esta seria um veículo primário de socialização e coordenação de ações. O mundo da vida reporta, pois, aos horizontes nos quais se movem os agentes comunicativos e capazes de ação transformadora e posturas propositivas.

Habermas entende por mundo da vida os âmbitos de ação integrados socialmente, ou seja, interativos, que são identificados, empiricamente, como a esfera privada, cujo núcleo seria a família, e a esfera de opinião pública, cujo núcleo primevo seria constituído pelas redes de comunicação, formas sociais que se materializam no cultivo da arte, a imprensa e a mídia (Habermas, 1987). As ações nesses âmbitos estariam comprometidas com a reprodução das tradições culturais, a integração social e a socialização dos indivíduos. Elas necessitariam de mecanismos de entendimento para sua operacionalização.

O mundo da vida seria o espaço de produção e reprodução das estruturas simbólicas e um guia para se entender as conexões e sincronias entre cultura, sociedade e personalidade.

O dualismo dos meios (comunicativos e instrumentais), evidenciado por Habermas, permite explicar a resistência que as estruturas do mundo da vida colocam na substituição da integração social pela integração sistêmica, regida pelos meios simbólicos de controle (dinheiro e poder), ou seja, resistência à mercantilização, à dominação e à burocratização da vida.

O filósofo (1987) afirma:

A análise das propriedades formais do trabalho interpretativo que os atores desenvolvem ao sintonizar ou coordenar suas ações através de atos comunicativos pode ensinar como as tradições culturais, as esferas institucionais e as competências pessoais tornam possíveis, em forma de autoevidências difusas próprias do mundo da vida, a conexão e estabilização comunicativas dos sistemas de ação. (p.314)

Deste ponto, Habermas se volta para a teoria da modernidade e critica o paradigma da produção marxista (Avritzer, 1996) e toma uma direção original em relação aos predecessores da Teoria Crítica. No processo de modernização das sociedades ocidentais, teria ocorrido, efetivamente, uma diferenciação entre as estruturas integrativas, orientadas por uma racionalidade comunicativa, e as estruturas sistêmicas, com ênfase nos meios de comunicação não-lingüísticos como já foi dito (meios simbólicos de controle - dinheiro e poder). Afinal, o Renascimento emancipara a ciência, a jurisprudência e a arte, da religião; e a Reforma teria viabilizado a abordagem da ética numa perspectiva de consciência secularizada, livre de suas referências míticas e metafísicas. Estes sistemas se institucionalizaram nos subsistemas sociais por meio das revoluções industrial, democrática e educacional, e, também do desenvolvimento do direito civil e da Common Law dos ingleses (Ingram, 1994, p.190).

Em que resulta tudo isso? Habermas aponta para uma tendência contemporânea ao associativismo (associação entre sujeitos) e à possibilidade da força vinculante dos bons argumentos secularizados. Apresenta uma visão surpreendentemente otimista. A construção e reconstrução da ética é colhida, como possibilidade, na sintonia com o mundo da vida.

No entanto, Habermas está atento aos riscos da redução da sociedade aos fenômenos comunicativos ou a culturalismos e este é um ponto relevante para o campo da Psicologia Social. A linguagem e a cultura figuram como estruturas do mundo da vida. Mas, para o teórico da ação comunicativa, com certeza, o mundo da vida não se reduz a um conjunto ou a um acúmulo de certezas culturais. Sociedade e personalidade também integram dinamicamente o mundo da vida. Para Habermas (1987):

A ação, ou a dominação de situações, se apresenta como um processo circular em que o ator é, ao mesmo tempo, o iniciador [deflagrador] de atos que lhe são imputáveis, e produto de tradições em cujo seio vive, de grupos solidários a que pertence e de processos de socialização e aprendizagem a que está sujeito. (p.192)

Além disso, Habermas sugere a conversão "profana" do mundo da vida em cotidiano, ou seja, à totalidade dos fatos socioculturais ancorados do ponto de vista intramundano, em narrativas dos sujeitos capazes de sustentar continuidades temporais e espaciais. Assim, as estruturas do mundo sociocultural da vida ou mundo vivo (Ingram, 1994) seriam, tomadas de maneira esquemática, como apresentadas no Quadro 1.

O conceito de mundo "sociocultural" da vida, uma vez iluminado pela ação comunicativa, não se reduz à problematização de processos de entendimento ou interpretação: as interações e socializações humanas o sustentam e são capazes de produção de reflexividade, solidariedade e identidade.

O mundo da vida se nutriria da ação comunicativa, conforme descreve o quadro Quadro 2.

O saber comum, característico do mundo da vida, significa que os participantes aceitam um determinado saber como válido, inquestionado, como intersubjetivamente vinculante (um pano de fundo). Mas isto se dá na medida em que "as convicções compartilhadas intersubjetivamente vinculam os participantes numa interação em termos de reciprocidade" (Habermas, 1994, p. 481).

As convicções monológicas, referentes ao foro íntimo do ator, só afetam suas atitudes. Já as orientações de entendimento criam uma situação de dependência entre os participantes de uma interação. Eles devem adotar uma "atitude realizativa" de falantes e ouvintes, através dos atos de fala, dispostos a construir a compreensão de uma situação, apoiados no reconhecimento intersubjetivo de pretensão de validade, relativos à verdade, veracidade e sinceridade, e sobre a forma de dominá-la.

A construção de consensos alternativos aos já disponíveis ocorre sobre uma base lingüística no contexto do mundo da vida. Os meios lingüísticos de comunicação cumpririam, então, as funções de entendimento, coordenação da ação e, também, de socialização dos atores.

As tarefas interpretativas dos participantes de uma interação são convertidas por Habermas (inspirado inicialmente em Mead) ao status de elemento nuclear da ação social para que assim fosse viável a formação de consenso, de entendimento dependente da linguagem. Os atores se orientariam pela pretensão de validade das normas e pela força vinculante das "boas razões" que seriam remetidas ao reconhecimento intersubjetivo. Aqui, o que poderia ser visto como idealismo nos projeta nos mecanismos de reflexividade que são caros à Psicologia Social de perspectiva crítica.

Os conteúdos semânticos culturais não seriam mais entendidos como transcendentes, mas estariam, a princípio, incluídos nos complexos de ação empíricos e identificáveis, nos quais seria possível conceber sua reprodução e seu funcionamento como mecanismo promotor de entendimento, consensos e, assim sendo, sua coordenação.

Preconiza-se, para Habermas, a validade e potência da fala como ação comunicativa.

O dualismo entre integração social e sistêmica se colocaria de forma distinta: os sistemas se desenvolvem historicamente a partir da matriz do mundo da vida (Habermas, 1987, p.330). A sociedade passa a ser tratada sob o enfoque das ações de grupos integrados na forma de complexos sistemicamente estabilizados. Sua integração se revela como esforço constante de renovação de compromissos entre os imperativos que se apóiam em processos de entendimento, sintonizados com a imagem de mundo dominante, e os imperativos que remetem à relação com os demais sistemas que compõem a condição humana (a economia e os modos administrativos). A falsa consciência (ideologias e auto-enganos preconizados pelo marxismo) se sustentaria em situações de restrição de comunicação, e assim se pode compreender sua relação com o exercício do poder como dominação.

A teoria habermasiana valoriza o esforço crítico e a reflexividade, mediante a ação comunicativa. O autor recoloca em cena os atores não apenas como realizadores das normas, mas como propositores ativos e conscientes. Esta é a resposta que resulta do esforço crítico empreendido pelo filósofo de tradição frankfurtiana.

A referência de Habermas à ação comunicativa não exclui, assim, o reconhecimento da ação estratégica e dos sistemas. Contempla a dimensão cristalizada da sociedade instituída. Porém, o que daria estabilidade à ordem social moderna seria a forma como a integração social ocorreria no mundo da vida, lado a lado com mecanismos sistêmicos nos quais operam sistemas de ação eticamente neutralizados, no interior dos quais os indivíduos se orientam estrategicamente.

Os âmbitos de ação integrados sistemicamente (extraídos do modelo parsoniano) seriam, especificamente, o capitalismo (mercado) e o Estado moderno (aparato administrativo). Eles teriam se diferenciado historicamente do sistema institucional societário, dando forma ao cenário característico de aplicação de racionalidade instrumental. O entendimento seria, no entanto, anterior e precedente em relação à instrumentalidade. A interação psicossocial ganha espaço de centralidade na teoria social habermasiana.

O subsistema econômico teria se especializado na lógica estratégica do intercâmbio, operando com o código positivo da recompensa, tendo o dinheiro como meio. O subsistema administrativo operaria com a lógica estratégica do poder, por meio do código negativo das sanções, ensejando um segundo mecanismo de coordenação das ações (sistêmico), que está em tensão com os mecanismos lingüísticos já indicados (Avritzer, 1996). Teríamos como resultado um modelo societário triádico, composto analiticamente por: Mundo da vida, Mercado e Estado. Nele, operariam basicamente duas formas de racionalidade: a comunicativa e a estratégica. Resulta, então, em um modelo tripartide de sociedade, que se traduz no recorte analítico dual entre mundo da vida e sistema. A dimensão sistêmica comportaria o entrelaçamento funcional das conseqüências agregadas e não pretendidas da ação, que se estabilizam em complexos historicamente sedimentados (Habermas, 1987, p.167).

Porém, não podemos perder de vista que Habermas reconhece o conflito essencial entre os âmbitos do mundo da vida e os sistemas. Disso resulta uma série de perturbações nos modos de reprodução social, ameaçando especialmente o mundo da vida, ou seja, a sociedade, a cultura e a personalidade dos agentes/sujeitos.

Assim, quando a reprodução da cultura é ameaçada por mecanismos objetivantes, teríamos como resultado a perda de sentido, de legitimidade e de orientação. Se, por sua vez, os processos de integração são comprometidos, teríamos inseguranças e perturbações na vida subjetiva, produzindo anomia e escassez de recursos solidarísticos, e aprofundamento da alienação. Já a ameaça aos processos de socialização redundariam em ruptura com as tradições, falta de motivação nas ações sociais e fragilidades psíquicas. Este é, em linhas gerais, o diagnóstico crítico da modernidade, que resulta do esforço de Habermas.

Nesta fronteira problemática é que a discussão sobre movimentos sociais e os democráticos encontram sentido dispositivos.

 

Um espaço analítico para a ação coletiva propositiva

Como dizíamos, os subsistemas econômico e administrativo teriam não apenas se diferenciado, como também estariam impondo progressivamente sua racionalidade estratégica ao mundo da vida, numa dinâmica que Habermas chama de "processo de colonização" e que se traduz particularmente, nos fenômenos de mercantilização e burocratização.

A ameaça patologizante desse processo diz respeito às perturbações, dispostas no quadro acima, que são desencadeadas quando há impedimento de reprodução simbólica do mundo da vida, gerando empobrecimento cultural e sendo experimentado subjetivamente como ameaça à identidade e à integração, uma vez que se obstruem os mecanismos de entendimento entre os indivíduos.

Porém, o mundo da vida não está completamente imune a essas perturbações que ameaçam sua singularidade e a possibilidade de integração social. Eis o otimismo de Habermas. Ao considerar a racionalidade comunicativa e a sua precedência, é possível perceber uma dimensão prático-moral inerente ao mundo da vida e que está longe de ser completamente absorvida pelos mecanismos objetivantes do modo de integração sistêmica. Isto se evidenciaria, por exemplo, na consolidação dos processos democráticos, especialmente no que concerne à orientação para a produção de consensos. É aqui que Habermas identifica a importância do ressurgimento da esfera pública nas sociedades modernas e as reflexões do filósofo da ação comunicativa tomam uma direção política, com respaldo de estudos históricos (Habermas, 1984).

Por esfera pública, Habermas entende um "público que julga" de modo comunicativo e expressivo (Habermas, 1984, p.41). Ela seria resultante de um processo histórico, que envolve a conquista de direitos, civis, sociais e políticos, e seria capaz de modos peculiares de racionalização. O modelo apoiar-se-ia no formato que emergiu no cenário burguês e inglês, no século XVII, graças ao surgimento da imprensa.

Teria sido ao longo da polarização histórica entre a ordem feudal e a ordem burguesa onde a concepção de ordem pública laica emergiu após o silêncio de séculos desde os formatos da democracia grega, ancorados nas cidades-estado (Arendt, 1999). Vários processos sustentaram historicamente esta retomada do conceito de esfera pública. Com a Reforma Protestante, a liberdade religiosa configurou-se como uma prática privada. O Estado moderno territorial e nacional surgiu, distinguindo-se da casa do senhor feudal e das cortes, instituindo a burocracia, as instituições políticas e legais, e o exército (submetido ao Estado). O mundo dos negócios se autonomizou na forma de em um mercado dinâmico e menos restritivo, e o capitalismo, paulatinamente, se impôs como modo de produção dominante, realizando as promessas da Revolução Industrial. Ao final do século XVIII, o privado ganha a conotação do que é externo ao Estado, e a noção de sociedade civil ganha ênfase de diversas maneiras.

A esfera pública burguesa, na perspectiva habermasiana, será constituída por indivíduos privados, que se reúnem e interagem para formar um público ou para discutir questões de interesse público (Jovchelovitch, 2000, p.55). Esta esfera ganha realidade empírica nos cafés e pubs (public houses, ou seja, casas públicas) europeus e com o crescimento imprensa livre e dos meios de comunicação de massa (esfera pública literária). Este cenário é fortalecido pela expansão do acesso à educação e à literatura, que acabam viabilizando a ampliação de reflexão crítica e reflexividade. É uma nova (ou renovada) forma de participação política e social, capaz de fazer relacionar a sociedade e o Estado. Uma arena fundada na possibilidade de racionalidade, diálogo e capacidade argumentativa que faz lembrar os fóruns democráticos gregos na figura da Polis (Arendt, 1999).

Esse conceito de esfera pública nos remete, então, a uma certa performance cultural dos atores sociais e políticos, à possibilidade de reunião voluntária, de reflexividade crítica, ou à formação de opinião pública (e, se quisermos, de atitude, identidades e subjetividades) e a novas formas de exercício capilar de poder. É como se fosse um nicho de produção cultural e política societária que reage, com a autonomia possível, diante do Estado moderno e do capitalismo.

O tipo ideal de esfera pública que resulta dos estudos habermasianos implica na distinção sistêmica entre o poder público e o privado; a diferenciação entre mercado e sociedade civil na esfera privada (onde se insere também o trabalho social e o espaço íntimo da família); e o Estado.

Habermas destaca algumas características destes fóruns públicos que podem ser imediatamente associados com os espaços estimulados pelas intervenções psicossociais em Psicologia: debate aberto e acessível a todos; pauta estruturada a partir de interesses comuns ou não particularistas; atribuição de status de igualdade entre os atores; e ancoramento dos processos de decisão apoiado em igualdade de condições (Habermas, 1984).

A esfera pública burguesa teria sido uma construção histórica que teria estimulado a democratização das sociedades contemporâneas. Sua institucionalização ajudaria a compreender o fortalecimento da imprensa, dos partidos e dos parlamentos, como também, por meio da mercantilização, a formação da cultura de massa, apontaria para a possibilidade do seu declínio. Este tipo de fórum transformou-se em "conceito guia", para se entender como a sociedade civil pode ser pensada como um espaço que comporte a ação de atores políticos não estatais e de onde emergem proposições de soluções para problemas coletivos ou relativos à cidadania e direitos humanos. Seria componente essencial à democracia2. A esfera pública articula processos discursivos, cuja origem está referida às redes sociais e públicas de comunicação e reflexão. Sua consolidação permite interseções com processos administrativos e de institucionalização legal (Estado ou sistema político, estrito senso).

Neste ponto, vale recordar que esta concepção de esfera pública resgatada por Habermas é objeto de críticas que apontam para dimensão eurocêntrica, monolítica e excludente (Fraser, 1995; Arato & Cohen, 1999; Avritzer & Costa, 2004) da esfera pública e que tende a flexioná-la para um formato plural e variável: esferas públicas, fóruns, espaços e redes públicas. Afinal, também ela era passível de exclusão e inclusão, em função das tensões e conflitos sociais que conferem visibilidade e espaço à pluralidade de projetos sociais que emergiram desde o iluminismo.

Os fóruns e redes públicas sustentariam os processos de formação e renovação de cultura democrática. Elas se traduzem na possibilidade de associativismo e formatação de solidariedades. Nessa perspectiva é que Habermas contempla e situa os movimentos sociais, chamando atenção para o fato de que eles se desviam do modelo que caracterizava os conflitos em torno da distribuição de recursos a serem administrados pelo Estado Social ou pelo mercado (greves e reivindicações). Os movimentos sociais não se apaziguam com recompensas usualmente utilizadas pelo sistema, não se desencadeiam nos âmbitos de reprodução material e não são canalizados pelos de canais formais (institucionalizados) de participação. Os conflitos dos quais os movimentos sociais são protagonistas estão relacionados às perturbações na reprodução cultural, integração social e socialização anteriormente destacadas. Eles se explicitam como extraparlamentares e subinstitucionais. Assim, os movimentos sociais defendem e procuram restaurar as formas de vida ameaçadas ou procuram abrir espaço para a implantação de novas formas e projetos societários. Esses conflitos são relativos à "gramática das formas da vida" (Habermas, 1987, p. 556) e sinalizam uma nova política, que preconiza: qualidade de vida, igualdade de direitos, auto-realização individual, participação e direitos humanos. São, por um lado, movimentos de resistência contra a colonização do mundo da vida e, por outro lado, na sua condição de novos conflitos, pontos de sutura entre os sistemas e mundo da vida (esquematicamente no Quadro 3, na p. 254).

Habermas antecipa os desdobramentos do que entende como uma "nova política", capaz de operar com a emergência deste atores sociais, na proposição de uma política participativa (Habermas, 1995). Esta se traduziria no entrelaçamento da política dialógica e discursiva (comunicacional) e da instrumental (de natureza sistêmica, sustentada em barganha) no campo das deliberações, em consonância com a institucionalização de formas ou procedimentos de decisão e reflexividade.

O formato de ação aqui enquadrado se desenrola no universo complexo das relações ideológico-culturais. Habermas expande a discussão dos processos de democratização para além dos limites do Estado e das instituições estritamente políticas, além de revigorar, criticamente, a noção de influência. Ao fazê-lo, no entanto, o filósofo da ação comunicativa valoriza a ação transformadora e os formatos de atores coletivos. Ele coloca desafios relativos ao modo como a sociedade se constrói historicamente e acerca de qual seria o papel dos movimentos sociais contemporâneos e outros processos e sujeitos e mecanismos propositivos.

Como vimos, a incursão crítica de Habermas no estrutural funcionalismo e no interacionismo simbólico resulta em uma ênfase nas relações comunicativas entre atores que ganham maior capacidade de agência. Estas relações, de colorido emancipatório, são particularmente situadas na dinâmica societária em uma posição analítica que tem precedência com relação aos imperativos sistêmicos. Habermas sinaliza a construção de cultura e de estruturas normativas quando elas se convertem em processos inerentes ao mundo da vida, tendo como lócus privilegiado a esfera pública. A integração social deixa de ser um processo simplesmente adaptativo e passa a se articular com a geração de novos sentidos, de identidades, de sociabilidades (relações e estruturas).

O esclarecimento político e as questões relativas à integração social ganham autonomia relativa à integração sistêmica e à produção material (economia). O filósofo da ação comunicativa procura superar dialeticamente a contradição entre o individualismo na esfera da produção, decorrente da economia de mercado capitalista (ser auto-interessado), e a universalização da condição de membro do Estado, na esfera política (ser genérico).

Assim sendo, o processo de esclarecimento político se remeteria a um processo prático-moral, comunicativo, entre "iguais", operacionalizável a partir do dispositivo analítico das esferas públicas (Habermas, 1992, 1994, 1995, 1996). Ele amplia as formas de exercício da política, de forma revitalizadora, pois o processo de autoconstrução da história é tratado como um produto dos sujeitos inseridos nas comunidades em que vivem, numa atitude dialogante e capaz de potência transformadora (Goulart, 2004).

 

A Psicologia crítica e Teoria da Ação Comunicativa

Quais são as ferramentas teóricas com as quais podemos contar para o exercício crítico em Psicologia Social? A filosofia e a história se colocam como possibilidades de produção de inquietação, como ferramentas do esforço de crítica no campo da Psicologia Social e nos defronta com a necessidade de diálogo com a teoria social que ultrapassa e desafia as fronteiras do mundo disciplinar da Psicologia.

Ao nos defrontarmos com a Teoria Crítica de Habermas, descortina-se uma pauta de preocupações específicas e um conjunto de parâmetros que tem efeitos para a historiografia e que são de interesse da Psicologia Social crítica. Destaquemos algumas que podem abrir debates e descortinar horizontes.

O criador da Teoria da Ação Comunicativa recupera a discussão sobre a produção de racionalidade, descometida do positivismo e utilitarismo. Isso ocorre numa via de relativa independência em relação à hegemomia das leituras psicanalíticas que marcam a produção no campo da Psicologia Social e carreiam, muitas vezes, interpretações individualistas, atomísticas, ou pior, nos projetam em leituras irracionalistas e niilistas do ponto de vista ético.

A teoria desenvolvida por Habermas é distinta em relação às demais perspectivas da Escola de Frankfurt, pela sua capacidade de pensar o fortalecimento da sociedade (civil) no interior da teoria de diferenciação social frente aos processos de mercantilização e burocratização das relações sociais. Ela reflete sobre os mecanismos de defesa frente aos constrangimentos estatais e mercadológicos (processos de colonização) dos quais podem lançar mão, voluntária e intencionalmente, os atores sociais. Esta distinção auxilia o pesquisador - psicólogo social interessado nos processos históricos - a entender melhor os fenômenos de transformação ou reprodução que investiga, qualificando os conflitos e identificando variáveis societárias em cenários estruturados, de grande complexidade.

Além disso, o filósofo recupera criticamente o conceito de interação social e confronta-o com a prática política democrática contemporânea, onde se destacam os movimentos sociais, a ação coletiva e a esfera pública como espaço analítico de expressão e de produção de entendimento. Nos estudos de formação de políticas públicas, esta perspectiva permite aproximação em relação à perspectiva dos atores coletivos enredados na construção do chamado "bem comum" ou de reconstrução ética. O filósofo enfrenta o reducionismo marxista que circunscreve os problemas da política à superestrutura e, ao mesmo tempo, não dilui o tema do poder perdendo-o de vista em capilaridades diáfanas. Além disso, distingue as crises do capitalismo das crises de integração social, conferindo-lhes direção, autonomia, especificidade; tornando o esclarecimento político e a possibilidade de emancipação humana menos dependente dos determinismos econômicos.

Habermas estrutura a Teoria da Ação Comunicativa com base, então, no paradigma da comunicação, que entende a utilização pragmática da linguagem entre os indivíduos como orientada para a produção de consensos e legitimidade, que são inerentes à ação social na modernidade. A política e a democracia seriam tributárias destes processos discursivos, componentes essenciais da autodeterminação e da autolegislação. Esta compreensão fortalece as metodologias da Psicologia Social crítica que operam através de estratégias de análise institucional e de intervenção psicossocial, liberando a palavra e os projetos locais, de forma substantiva. Valoriza também a pesquisa de material discursivo, no que concerne também à história, de forma distintiva e conectada com a crítica da modernidade e suas possibilidades emancipadoras. Porém, ao fazê-lo, fortalece também o estudo das práxis. Neste sentido, é uma perspectiva que dialoga com as metodologias de análise de discurso, mas oferecendo ferramentas delimitadoras e a possibilidade de delineamento de horizontes propositivos, de agência. Ao fazê-lo, escapa tanto dos impasses freudomarxistas, quanto das perspectivas relativistas.

A interação, para o frankfurtiano enfocado, está fortemente vinculada aos processos discursivos originados nas redes públicas de comunicação, que se vinculam aos processos de institucionalização legal possibilitando o diálogo com o Estado (aparato administrativo). Esta é uma visão psicossocial dos processos de mudança convidativa. Há um diálogo entre as perspectivas microssociais e as macrossociais amparado por um modelo societário totalizante, porém crítico, sem que se tenha que por de lado os atores sociais e sua potência transformadora.

Habermas se contrapõe aos diagnósticos pessimistas da primeira geração da Escola de Frankfurt e discorda da contradição entre ética e secularização. Procura as vias de superação dos impasses da modernidade. O processo de racionalização ética teria continuidade a partir de um fundamento secular. A expressão disto seria o desenvolvimento da noção de direitos humanos e do funcionamento do sistema democrático. A autonomia ganha destaque não como utopia, mas como prática essencial na construção histórica. Os movimentos sociais exemplificariam este esforço de racionalização ética, que seria exercitado a partir das esferas públicas contemporâneas e suas possibilidades de inclusão de temas e atores coletivos.

O filósofo da ação comunicativa acusa a emergência de uma moralidade pós-convencional, decorrente de processos de reflexivização, realizada em processos interativos, o que não o obriga a negar a dimensão da efetividade e da instrumentalidade dos planos sistêmicos. Ele desdobra, na verdade, a democracia moderna em dois níveis: o primeiro, relativo à formação discursiva da vontade geral (como na democracia participativa); o segundo, ao exercício administrativo do poder político (democracia representativa). A distinção entre as esferas pública e privada que se colocam são da maior importância quando se pretende trabalhar com a história das instituições sociais e das políticas públicas.

Estes pontos sinalizam, esperamos, a fertilidade analítica da Teoria da Ação Comunicativa que tem sido vitalizada pelo vigoroso debate e confrontação crítica que, obviamente, existe e que não pudemos explorar neste texto e que nos projeta tanto nas teorias de escolha racional como nas tensões com as análises desconstrutivistas e pós-modernas.

Fica a expectativa de que seja dada maior atenção à potencialidade e especificidade da crítica que tomou a forma de uma teoria tão ambiciosa como a desenvolvida por Habermas, para que seja possível acompanhar suas conexões e desdobramentos nas teorias sociais que dão suporte freqüentemente às concepções de sociedade que fundamentam, às vezes silenciosamente, os estudos históricos e a própria Psicologia Social contemporânea.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maria Stella Brandão Goulart
Rua Expedicionário José Assumpção dos Anjos, 405. Pampulha (São Luiz)
Belo Horizonte, MG. CEP: 31310-050
Fone: (31) 3491 3037 / (31) 3409 5027 (fax)
E-mail: goulartstella@yahoo.com.br

Enviado em Abril de 2009
Revisado em Abril de 2010
Aceite final em Maio de 2010
Publicado em Junho de 2010

 

 

Nota da autora:

Maria Stella Brandão Goulart. Departamento de Psicologia da FAFICH/UFMG, Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, Doutora em Sociologia e Política (FAFICH/UFMG), Mestre em Sociologia (FAFICH/UFMG), Especialista em Saúde Pública (ESP/MG; ENSP/RJ).

 

 

Artigo construído a partir de versão apresentada no I Simpósio de História da Formação em Psicologia e VIII Encontro da Rede Interinstitucional de Pesquisadores da História da Psicologia (2-4 abril de 2009, Belo Horizonte, MG).
1 Esta perspectiva vem sendo explorada nas pesquisas que temos realizado ao abordar a história da reforma psiquiátrica e a construção das políticas de saúde mental brasileira e estrangeira no Grupo Psicologia Democrática do CNPq.
2 John Elster (1986; 1998) é uma referência fundamentas na crítica ao formato dos fóruns discursivos propostos por Habermas, tomando-as como idealistas e de conseqüências duvidosas e até negativas.

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