SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17 número1Teoria Crítica em Habermas: diálogos com Psicologia SocialEnsino de História da Psicologia e desenhos animados: possibilidades de novas articulações índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.1 Ribeirão Preto  2009

 

ARTIGOS

 

Técnica de governo e práticas psicológicas: humanismo e empreendedorismo

 

Governmental techniques and psychological practices: humanistic psychology and entrepreneurship

 

 

Arthur Arruda Leal FerreiraI; Flávio Vieira CurvelloII; Gabriel Gouvêa MonteiroIII

IUniversidade Federal do Rio de Janeiro - RJ - Brasil
IIUniversidade Federal do Rio de Janeiro - RJ - Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir do tema da governamentalidade proposto por Foucault e aprofundado por Nikolas Rose, este estudo visa delinear quais são as possíveis tecnologias de gestão trazidas por algumas práticas patrocinadas pela psicologia humanista, especialmente no contexto organizacional e no trabalho com pequenas comunidades. É neste território que pode ser encontrado um claro exemplo do que os autores acima citados classificaram como modo de governo liberal (independente da doutrina econômica liberal). Isto, pois aqui se reúnem claramente os modos de governo pela liberdade e pela autenticidade, assim como a incitação aos modos empreendedoristas de vida, almejando-se a auto-gestão do próprio sucesso.

Palavras chave: Genealogia do governo, História do indivíduo, Psicologia humanista, Psicologia organizacional, Administração.


ABSTRACT

From the theme of governmentality proposed by Foucault and deepened by Nikolas Rose, this study aims to outline which are the possible management technologies brought by some practices sponsored by the humanistic psychology, especially in the organizational context and within the work with small communities. In this territory it can be found a clear example of what the aforementioned authors classified as a form of liberal government (regardless of the liberal economic doctrine). This, for here come together clearly the modes of government through freedom and authenticity, as well as the encouragement to entrepreneurial ways of life, aiming to self-management of one 's own success.

Keywords: Genealogy of the government, History of the individual, Humanistic psychology, Organizational psychology, Management.


 

 

A presente pesquisa tem por objetivo tratar das relações entre as práticas psicológicas e o tema do governo, encontrando suas principais referências nos cursos de Michel Foucault, Segurança, Território, População (2004/2008a) e O Nascimento da Biopolítica (2004/2008b) e nos estudos de Nikolas Rose em Inventing Our Selves (1998) e Governing The Soul: The Shaping of the Private Self (1999). Nesse sentido, não será adotada uma perspectiva tradicional da história, evitando-se noções de continuidade ou de evolução, bem como a existência de objetos universais e prévios como o poder legítimo ou Estado que antecedesse a própria história e fosse sua condição de inteligibilidade. Em oposição a isso, serão consideradas as práticas de governo (de existência demarcada na história), que, por sua vez, possibilitam que novos objetos surjam, tornando-se pensáveis e operáveis. Por práticas de governo, ou governamentalidade, entende-se a "maneira de condução da conduta dos homens" (Foucault, 2004/2008b, p. 258), ou as relações de poder caracterizadas como conduta da conduta alheia. Dentro desta genealogia da governamentalidade, o "governar", como busca da melhor forma de gerir a vida dos homens (a vida de todos e de cada um), teria um percurso singular desde o cristianismo primitivo até os modos de governo contemporâneo.

Uma oportuna ilustração de como se dão esses movimentos históricos é fornecida por Senellart (1995/2006), autor cuja obra se desenvolve sob influência deste trabalho de Foucault. Ele descreve tais processos a partir de dois tipos de deslocamento, o turbilhonar e o laminar. Segundo o autor, há períodos em que a história das práticas pode ser descrita por um escoamento laminar, em que superfícies discursivas singulares e heterogêneas se sobrepõem. Da mesma forma, haveria períodos de regime turbulento, marcados por brusca aceleração, em que os fluxos de práticas e discursos perdem sua individualidade, decompõem-se e misturam-se.

É no trabalho de Nikolas Rose, contudo, que as relações entre as formas de governo e a psicologia se aprofundam. Este autor considera que é no bojo da racionalidade liberal de governo, surgida no século XVIII, que podemos encontrar uma condição de possibilidade consistente entre as diversas práticas do campo psicológico. Sua constituição seria decisiva na construção de uma tecnologia de governo dos indivíduos compatível com os modos de gestão liberais e democráticos. A psicologia, assim como as demais práticas psi, surgiria fornecendo não somente os termos pelos quais se definiriam e se tornariam inscritíveis e referenciáveis as faculdades humanas, como o intelecto, a afetividade, a motivação entre outros. Elas atuariam igualmente na produção dessas mesmas dimensões, na urdidura das próprias subjetividades. Através de uma série de técnicas de inscrição, essas faculdades seriam passíveis de conversão em gráficos, cálculos e dados em geral, permitindo seu manejo em consonância com as aspirações governamentais (Rose, 1999). Esse conjunto de técnicas de produção e inscrição dos indivíduos foi, no século XX, fundamentalmente voltado à constituição destes como seres subjetivos, dotados de um "eu", ou self, aspirantes à autonomia e à auto-realização. A relação com os modos de governo e seus efeitos de subjetivação não se resume, contudo, ao período de emergência dos saberes psi, sendo ainda pertinentes a diversas práticas contemporâneas (Rose, 1998). Assumindo tais referências, este estudo se voltará especificamente sobre a disseminação do conjunto de enunciados e conceitos de uma orientação (a humanista) em um campo de práticas (a psicologia organizacional e o trabalho com comunidades ou workshops) cuja articulação com os modos de governamentalidade liberal de governo são bastante expressivos.

 

O tema da governamentalidade

A título de balizamento conceitual, procedemos agora a uma breve descrição do desenvolvimento do tema do governo na obra de Michel Foucault. Antes, contudo, de considerarmos o trajeto de seus cursos, é importante que precisemos alguns dos conceitos por ele propostos em sua genealogia das formas de gestão. Como já indicado, por práticas de governo não se entende aqui o mero exercício do poder por uma autoridade pública reconhecida, como no sentido tradicional, mas sim as formas pelas quais se estrutura a condução da conduta alheia, desde as formas pastorais do cristianismo primitivo até os modos presentes nos Estados contemporâneos.

A expressão governamentalidade é sugerida pelo autor em 1978, no curso Segurança, Território, População (2004/2008a), definindo um conjunto de instituições, procedimentos, cálculos, táticas e estratégias que permitem o governo da população. No curso de 1979, Nascimento da Biopolítica (2004/2008b), este conceito é entendido como uma grade para a análise das relações de poder em geral, prevalecendo a mais simples definição de "condução da conduta" (Senellart, 2008).

O termo conduta, empregado nas definições apresentadas, designaria não só a atividade própria de conduzir, mas também a maneira de seu exercício, as formas pelas quais alguém se conduz ou é conduzido. A elas se oporiam as contracondutas, insurreições específicas que visam à desautorização dos critérios de efetivação de uma conduta, bem como os fins aos quais ela atende, buscando implementar outras formas de gestão (Foucault, 2004/2008b). A matriz das formas de condução a serem desenvolvidas no Ocidente, notadamente a partir do século XVI, segundo Foucault, se encontra na pastoral cristã desenvolvida no fim da Antiguidade e na Alta Idade Média.

O poder pastoral

Ao buscar pelos registros da noção de um governo dos homens entre os Antigos, Foucault encontra em alguns textos de povos do Oriente próximos, como os assírios, babilônicos e egípcios, a pregnante analogia da divindade ou do rei com o pastor, a ser seguido pelo rebanho do qual cuida (Foucault, 1994/2003). As culturas grega e hebraica, contudo, mostram desenvolvimentos mais peculiares desta analogia. Se entre os gregos trata-se de negar as aproximações da figura do magistrado à do pastor, como no diálogo O Político, de Platão, com os hebreus há certo aprofundamento de tal noção em uma dimensão não-temporal. Jeová seria reconhecido como legislador e pastor de seu povo, subsistindo, cuidando e guiando o mesmo tal qual a um rebanho em suas errâncias para seu pasto, a Terra Prometida. Em tal relação verifica-se o paradoxo do infinito cuidado sobre todos e cada um, em que o pastor deve cuidar da totalidade do rebanho, mas deve estar atento também a cada ovelha em sua singularidade, devendo ser capaz de abandonar mesmo o rebanho em prol do cuidado de cada qual (Foucault, 2004/2008b).

A história do pastorado como matriz do poder político, porém, só começará, no Ocidente, com o cristianismo. Entre os cristãos primitivos, a pastoral judaica foi profundamente modificada, originando uma arte de condução dos homens à salvação que introduz uma instância de obediência pura na relação da ovelha com seu pastor. Trata-se de uma relação de dependência integral, caracterizada pela submissão não a leis ou a princípios de ordem, mas a um indivíduo, o pastor, para questões espirituais e materiais (Foucault, 2004/2008b).

Desde a Antiguidade até fins da Idade Média, serão identificadas diversas formas de resistência ao pastorado cristão, contracondutas que possibilitaram sua dispersão e o surgimento de formas temporais de conduta em certa medida tributárias das próprias formas pastorais. A existência de privilégios civis, econômicos e espirituais aos clérigos em detrimento do demais (Foucault, 2004/2008b), a instituição da confissão obrigatória e as práticas de indulgência são exemplos dos motivos de tais oposições, das quais a Reforma é o episódio mais expressivo.

Século XVI e as artes de governar

Segundo Foucault (Foucault, 2004/2008b), para se entender as formas políticas nos séculos XIII e XIV pode-se tomar a teologia de São Tomás de Aquino como um bom modelo, no qual se busca constituí-las à imagem da regência de Deus na terra, e não visando meramente à felicidade terrena de seus súditos. Há, nessa perspectiva, um continuum cosmoteológico que une as formas de gestão terrenas às divinas.

A partir do século XVI, verifica-se um complexo deslocamento das funções pastorais ao âmbito temporal da gestão1 A soberania, então no trânsito dos modelos feudais para a consolidação dos Estados modernos, começa a assinalar a questão da condução, que até então não a concernia. Aqui começa a ser colocada a questão de qual seria a configuração do bom governo: como ser governado, por quem, até que ponto, com que fim e por que métodos (Foucault, 2004/2008b). Para além de uma série de governos então reconhecidos, como o do pai de família e do juiz, tratava-se de definir qual era a especificidade de sua forma política. A atividade do soberano agora escapa ao continuum do terreno ao divino, outrora mencionado, abrindo-se um campo específico de racionalidade para discussão deste tema.

A contento dessa necessidade surge, em meados do século XVI, uma profusão de tratados que se apresentam como artes de governar (Foucault, 2004/2008b), pautados em uma literatura sobre o governo que adota O Príncipe, de Maquiavel, como ponto de crítica. Nessa obra, a questão-chave é a manutenção do governo e a defesa do principado, considerando-se o príncipe exterior ao território e o vínculo que os une fraco, de forma que o território será sempre ameaçado (Foucault, 2004/2008b). Contra essa visão unívoca da regência, o novo horizonte das artes de governar introduz um modelo familiar na gestão, entendendo o poder do príncipe como contínuo ao governo de si e da família, termos que seriam precondições para o bom governo do Estado (Foucault, 2004/2008b). Tais artes passam a se encarregar dos homens em seus vínculos com as riquezas e as condições naturais do território, de forma a se atingir um bem comum. Afastam-se, portanto, da regência soberana, caracterizada pela mera sujeição do homem às leis e aos encargos que lhe são atribuídos (Foucault, 2004/2008b).

As artes de governar permaneceram restritas às formas da monarquia administrativa do século XVI, tendo sido bloqueadas em sua difusão por uma série de beligerâncias, crises financeiras, revoltas rurais e urbanas. No século XVII, o mercantilismo desponta como a primeira racionalização desta nova prática de governo, buscando efetivar a arte de governar em função dos interesses soberanos (Foucault, 2004/2008b). O desbloqueio total desta arte, contudo, concebida antes que o aparato administrativo comportasse sua plena instauração, ocorre apenas com as questões agrícolas, monetárias e o crescimento demográfico que caracterizam o problema da população no século XVIII (Foucault, 2004/2008b).

Século XVII e a razão de Estado

Essa necessidade de uma racionalidade a ser praticada no âmbito governamental traz consigo dois problemas que ganham vulto no século XVII: qual seria seu caráter e o que seria o objeto de suas intervenções (Foucault, 2004/2008b). Tal prática, que excede a soberania e não se reduz ao pastorado, será chamada razão de Estado por italianos como Antonio Palazzo e Giovanni Botero, inauguradores do referido pensamento. Estes consideram o Estado não mais em termos de domínio territorial, sendo a razão de Estado o conhecimento dos meios pelos quais se fundar, conservar e ampliar essa dominação (Foucault, 2004/2008b). Tal racionalidade constitui a essência do Estado e de seu conhecimento, visando à sua conservação e não possuindo outros fins além de si mesma (Foucault, 2004/2008b).

Como conseqüência de tais princípios teóricos, que impõem a existência sem término de Estados plurais, há a constatação de que estes se encontram lado a lado em um espaço de concorrência (Foucault, 2004/2008b), no qual buscam se afirmar no sentido da dominação comercial, monetária, da expansão marítima e colonialista, conforme as ambições mercantilistas. No seio da própria prática política se desenvolve a idéia da força como novo elemento da razão política (Foucault, 2004/2008b), o que faz da nova governamentalidade a própria manipulação, distribuição e conservação das relações de forças dos Estados. Tal forma de governamentalidade se dará por dois grandes conjuntos tecnológicos ou dispositivos: o diplomático-militar e a polícia.

O dispositivo diplomático-militar atende à necessidade de que se limite, mas não impossibilite o crescimento destas forças múltiplas e independentes que são os Estados, visando ao equilíbrio europeu. O dispositivo de polícia, por sua vez, será a instituição cujos cálculos e técnicas efetivam o crescimento das forças próprias de um Estado, na manutenção da sua ordem (Foucault, 2004/2008b). Essas tecnologias adotam um instrumento em comum, a recém-surgida estatística, que tornava possível o conhecimento dos elementos de cada Estado, de suas próprias forças, permitindo sua comparação e a manutenção do equilíbrio (Foucault, 2004/2008b).

O funcionamento da polícia é o que aqui mais nos interessa, pois torna explícito o papel da população na política do século XVII. Antes de tudo, deve-se dizer que o sentido deste termo no século XVII é bem mais amplo que o atual, limitado ao escopo das forças de segurança. Neste período, seu conjunto de controles tem por objeto o próprio homem enquanto sujeito de atividades, objetivando nestas a verdadeira virtude política e social. Considera-se, portanto, a atividade do homem na medida em que ela tem relação com o Estado e seu fortalecimento, tratando-se de criar uma utilidade estatal de sua atividade (Foucault, 2004/2008b). A polícia regula as formas de coexistência dos homens, buscando garantir não só a subsistência destes, mas indo além dela. Ao se ocupar da habitação, dos víveres, da reprodução e dos problemas da saúde, ao zelar pela atividade do homem, fazendo-o trabalhar e garantindo que os frutos desse trabalho sejam aqueles de que o Estado necessita, a polícia visa ao bem-viver da população, do qual o Estado passa a tirar sua força (Foucault, 2004/2008b).

O nascimento da polícia nesse período está intimamente ligado à urbanização e ao disciplinamento do mercado, atuando sobre os problemas da coexistência densa que se verifica nas cidades e buscando efetivar a circulação das mercadorias (Foucault, 2004/2008b). O expansionismo urbano então verificado buscava o desencravamento da cidade das limitações do burgo, a otimização de sua circulação física pela reforma do espaço viário e o planejamento estratégico de suas áreas mercantes, administrativas e residenciais, o que evidenciava sua necessidade de avanço em termos de espaço físico, subsistência e comércio. Buscava-se, então, ressituar a cidade em termos de circulação (Foucault, 2004/2008b).

A política agrícola do sistema mercantilista não só exemplifica o profundo caráter regulamentar da polícia, como delineia o ponto sobre o qual incidem as críticas que paulatinamente começam a se formar. A escassez alimentar era vista com preocupação por ser uma das grandes fontes de sedições populares, de forma que o Estado mercantilista buscava evitá-la a todo custo. Por intermédio de todo um sistema de pressões, eram estabelecidas regras de cultivo, venda e estocagem, ambicionando manter os preços dos cereais baixos, proibindo-se, por exemplo, a estocagem (Foucault, 2004/2008b), estimulando-se o comércio externo, e regulamentando-se o que era plantado e em que quantidade. Em suma, buscava-se manter a economia a tal ponto esquematizada, que o funcionamento da cidade a custos mínimos fosse possível - o menor gasto com a lavoura e com o salário do trabalhador e preços baixos dos produtos, para que estes fossem amplamente exportados e o máximo de ouro entrasse no país. O problema deste esquema residia na abundância da colheita, uma vez que ela significaria prejuízo, pois tendia à baixa dos preços e do lucro, por vezes nem se equiparando ao gasto com o plantio. Esse prejuízo tornaria pobre um plantio subseqüente, o que levaria à escassez perante a menor irregularidade climática. Desse modo, a política de preço mínimo mais aproximava a população do flagelo que ela buscava conjurar (Foucault, 2004/2008b).

Século XVIII e a fisiocracia

Na primeira metade do século XVIII, o Estado de polícia começa a ser desarticulado pela difusão de algumas teses, como a fisiocrática, que surgiam a propósito da crise dos cereais e da escassez. Considerando que a abundância dos cereais é proporcionada por seu bom pagamento, os fisiocratas se opõem à tese mercantilista de custo mínimo, introduzindo na política o interesse agrícola, suas possibilidades de investimento e o bem-estar do camponês (Foucault, 2004/2008b). O privilégio urbano de outrora é abandonado em prol do problema do campo, objeto privilegiado da nova governamentalidade que então se insinuava. A produção passa a ser enfocada, deixando-se as questões do mercado e da circulação das mercadorias, e a pretensão de muitas vendas devido ao baixo preço é substituída pela busca de maior retorno ao produtor. Esses deslocamentos constituíram um grande abalo no sistema mercantilista (Foucault, 2004/2008b).

O princípio do governo econômico, portanto, se torna a liberdade de comércio e circulação dos cereais, entendendo-se a escassez como fruto de uma administração excessivamente interventora e que se desvia da realidade da própria produção, ou seja, das intempéries da natureza, das oscilações sobre as quais não se age, dando atenção exclusivamente à realidade de mercado. A realidade do próprio cereal, sua abundância ou seu rareamento segundo o próprio funcionamento da natureza deve ser o foco da administração (Foucault, 2004/2008b). Todas as regulamentações sobre o plantio, a estocagem, o comércio externo e os preços são revogadas, como se defende na tese do preço justo, que considera que se deve deixar os preços subirem tanto quanto a oferta e a demanda possibilitarem, pois assim eles se estabelecerão adequadamente. Há que se deixar as coisas andarem, laissez-faire.

A população deixa de ser entendida como um bem em si. O sistema da polícia a via em um sentido quantitativo, pois uma população grande significa trabalho intenso e renda alta (Foucault, 2004/2008b). Com os economistas, porém, verifica-se a necessidade de uma população expressiva, principalmente no campo, mas não tão grande, para que haja bons salários, estímulo ao trabalho e possibilidade de consumo que sustente os preços. Há, então, um número relativo da população a ser buscado, não mais absoluto, variando em função dos recursos, do trabalho possível, do consumo etc. Ela seria auto-ajustável, numericamente determinada pela situação natural em que se encontra (Foucault, 2004/2008b). O Estado, por conseguinte, passa a ser tomado como um regulador ocasional dos movimentos da população em sua natureza, não um interventor autoritário. Acaba a circularidade entre bem-estar e fortalecimento estatal, aquele passando a ser viabilizado pelos comportamentos e interesses individuais (Foucault, 2004/2008b).

Temos neste momento, portanto, uma oposição da nascente economia (ao menos no sentido atual) à política (como racionalidade de Estado). Em relação àquele poder calcado nos modelos teológicos, caracterizado pela perspectiva de governo perfeito, os políticos do século XVII opuseram o cálculo de forças das artes de governar (Foucault, 2004/2008b), uma racionalidade própria do Estado, ocasionando assim uma ruptura da naturalidade medieval pelo artificialismo da governamentalidade da polícia. Com os economistas do século XVIII surge outro tipo de naturalidade (Foucault, 2004/2008b): não mais aquela do cosmo, mas a da sociedade, que surge como um domínio de intervenção e saber.

Liberalismo e neoliberalismo

É a partir desse moldes que se desenvolvem, no século XVIII, os modos liberais de governo, que surgem não necessariamente imbricados nas práticas de governo estatais, mas justamente colocando-as em questão, seja em nome do mercado ou ainda da sociedade civil. Ao longo do tempo, entretanto, este processo é invertido: o mercado, por exemplo, não seria apenas um instrumento crítico do governo, mas a própria racionalidade deste, que regularia outros domínios, como a família, a natalidade, a delinqüência e a política penal (Foucault, 1994/1997, p. 96). Inaugura-se aqui um governo embasado no acompanhamento do movimento das populações enquanto processos naturais, como preconizado pela fisiocracia. Essa naturalidade seria acessível à ação concreta do governo, que produziria efeitos benéficos através da possibilidade da constituição de saberes sobre a população.

É nos marcos de um liberalismo que a ciência econômica passaria a ter um papel preponderante, especialmente através dos fisiocratas. Mas, além da economia, saberes como a higiene pública e a medicina social na seqüência trazem a questão da população e do saber sobre ela como técnica indispensável ao bom governo. O conhecimento científico torna-se condição para uma racionalidade governamental que atuaria sobre os processos supostamente naturais. A liberdade aqui não é tomada mais como simples direito dos indivíduos, mas como condição para se governar, não sendo tanto um direito fundamental, mas uma técnica de governo. E é nesta necessidade de delinear técnicas de governo que conciliem o conhecimento científico da população com o respeito a sua liberdade enquanto processo natural que a psicologia se apresenta como um componente essencial. Segundo Rose (1998):

Governar de forma liberal era tentar reconciliar estes dois princípios: os perigos de governar demais com os perigos de não governar o suficiente... Programas para o governo liberal da sociedade inauguraram um espaço em que as ciências psicológicas viriam a desempenhar um papel-chave, pois estas ciências estão intrinsecamente atadas às estratégias que, em seu desejo de governar os sujeitos como cidadãos responsáveis, porém livres, descobriram que precisam conhecê-los. (p. 69)

A partir do início do século XX, ganham força as manifestações para uma renovação dos pressupostos liberais. A prática governamental neoliberal virá a confrontar aspectos fundamentais dos pensadores iniciais do liberalismo, como Adam Smith. As manifestações neoliberais, não mais submetidas a uma verdade natural do mercado, têm seu foco na constante expansão e intensificação dos mecanismos de competição ao longo do tecido social, estes encarados como a essência reguladora do próprio mercado. É aqui que se faz uma inversão em relação às primeiras manifestações do liberalismo: se estas na sua maior parte buscavam pôr em questão as ações do Estado na sua busca de controle da economia, agora se promove a articulação positiva entre governo e mercado: será preciso governar para a produção de mercado e não em função deste (Foucault, 2004/2008a). A arte neoliberal de governo fundará, então, suas reflexões não mais em quais objetos devem ou não ser governados, mas sim em como eles deverão ser abordados. Em contigüidade a isso, vemos surgir em meados do século, intenções como as dos ordoliberais alemães ou as dos neoliberais da escola de Chicago que encontram seu ponto comum na idéia de reconfiguração da sociedade sob o que consideram o "modelo da empresa", mais precisamente, a transformação da vida individual e social em uma multiplicidade de empresas conectadas entre si, nelas incluídas suas relações familiares, laborais e mercantis, por exemplo. Nessa nova gestão, o indivíduo será tomado em seu caráter empreendedor, não mais inserido no grande e distante marco de um Estado, mas imerso em uma série de pequenos âmbitos sobre os quais este teria efetivo poder de cálculo e ação. E é neste ambiente discursivo em que se encontra mais claramente a conexão entre a racionalidade de governo e uma série de práticas em desenvolvimento no campo psicológico. Neste campo discursivo, a linguagem neoliberal da empresa é uma dentre diversas maneiras de articular uma transformação mais crucial da governamentalidade contemporânea, na qual todo um vocabulário psicológico se torna fundamento para as novas formas de gestão. Examinemos de forma mais detalhada um modo de discurso psicológico, o humanista, operando em importantes campos de gestão das novas tecnologias liberais, a empresa e os grupos de encontro.

 

O humanismo como técnica de governo

No que se refere ao nosso objeto específico de estudo, há que se considerar o conjunto de práticas trazidas sob a insígnia do humanismo, de forma a entender como este pode se constituir como um instrumento de gestão através da liberdade, inscrito nos parâmetros liberais. Para tanto, é importante que retomemos alguns aspectos históricos do surgimento e constituição de tais práticas, passando pelo modo como se demarcam certos conceitos regulatórios.

O humanismo caracterizou um movimento no cenário da psicologia norte-americana, cujos primeiros esboços se deram nos anos de 1930, adquirindo maior expressividade a partir da década de 1960. Propondo uma compreensão do homem divergente das aventadas pelo behaviorismo e pela psicanálise, os primeiros psicólogos humanistas posicionaram-se em uma veemente negação destas duas grandes orientações da psicologia de seu país, acusando-as de postularem um determinismo, respectivamente, ambiental e psíquico em suas interpretações da condição do homem. Chamado, por conseguinte, de uma terceira força, o humanismo buscava valorizar a consciência como via de acesso ao homem, à experiência que este tem de si e do mundo. Aqui, o homem é tomado por um ser fundamentalmente livre e autônomo, impassível a determinações de ordem ambiental, social ou psicológica (Boainain Jr, 1994; Buys, 2005).

Nesse quadrante, o conceito central de tais psicologias é o de auto-realização ou auto-atualização, o qual descreve um movimento entendido como próprio da vida e norteador do desenvolvimento humano, subjacente à potência de ação e autodeterminação do indivíduo. Trata-se de uma tendência natural ao crescimento psicológico, à satisfação e à busca de formas mais equilibradas e plenas de existência (Rogers, 1961/2001b; Maslow, 1968). Diferentes autores o compreendem de maneira singular, concordando, contudo, em que tal movimento é basilar à existência humana, universal, definindo sua natureza. Maslow, por exemplo, estrutura-a como a mais nobre de uma hierarquia de necessidades que inclui aspectos fisiológicos, de segurança, pertença, estima, entre outros (Maslow, 1968). Este autor a define como:

um episódio (...) no qual os poderes da pessoa se unem de uma forma particularmente eficiente e intensamente proveitosa, em que ela se torna mais integrada e menos dividida, mais aberta à experiência, mais idiossincrática, mais perfeitamente expressiva ou espontânea, ou plenamente funcional, mais criativa, mais bem humorada (...) mais independente de suas necessidades inferiores. (p. 97)

Por sua vez, Rogers a considera uma tendência do homem para reorganizar sua personalidade e sua relação com a vida, independente dos constrangimentos que sobre ela se depositem. Para ele (1996/2001b):

Essa tendência pode se tornar profundamente oculta sob camadas de defesas psicológicas incrustadas que se sobrepõem; pode estar escondida atrás de fachadas elaboradas que negam sua existência; porém sustenho que ela existe em cada indivíduo, e aguarda somente pelas condições apropriadas para ser liberada e expressa. (p. 40)

Após esse breve preâmbulo, observemos as manifestações governamentais do humanismo em dois campos distintos: a empresa e as comunidades ou workshops.

 

Humanismo na empresa: empreendedorismo como micro-governo

A - Maslow e a nova administração

Uma referência chave para compreender a disseminação dos enunciados e conceitos humanistas no campo das práticas organizacionais é o estudo empreendido por Maslow sobre as formas de gerenciamento, notadamente tendo em vista o amplo emprego de suas teorias no âmbito das empresas.

Em seu artigo "Is a Normative Social Psychology Possible?", o autor desenvolve a proposta de uma nova abordagem ao "problema da administração", refletindo acerca de quais seriam as forças envolvidas na possível sinergia entre o individual e o social de forma não a criar um manual para somente maximizar a produção de funcionários, mas sim apresentar valores tanto mais eficientes quanto verdadeiros (Maslow, 1968). Para tanto, postula a necessidade de uma "ciência humanística" que englobe assuntos tanto da vida pessoal e social, quanto teorias políticas e econômicas (Ferreira, 1979). Neste sentido, buscamos tratar da entrada deste projeto humanista na área da administração empresarial, mesmo que autores como Sampaio (2004) problematizem grande parte das apropriações dessa teoria, na medida em que estas têm gerado manuais cuja compreensão do homem é em muito irrefletida, além de negligenciarem aspectos não-laborais da vida.

"Administração Eupsíquica" é o nome dado por Maslow a seu modelo administrativo, o qual aprofunda a oposição iniciada por autores do behaviorismo e pela Teoria Y de McGregor aos modelos tradicionais de administração. Estes últimos, supostamente baseados na prescrição e normatização dos comportamentos na direção dos objetivos da organização, entenderiam os funcionários como objetos, cuja produtividade estaria diretamente relacionada às noções de hierarquia, disciplina, treinamento, remuneração, entre outros (Dornelas, 2005). Na contrapartida desse pensamento, Maslow, apoiado em sua teoria da hierarquia das necessidades, aponta que a estrutura empresarial tradicional contemplaria somente as mais básicas destas, passando ao largo da necessidade dos indivíduos de realizarem um trabalho que lhes dê significado, que lhes permita serem eficientes, criativos, de atingirem dado grau de excelência e realização pessoal. Cabe aqui, com fins à melhor caracterização da eupsiquia de Maslow, mencionar alguns de seus pressupostos:

1) Há nos indivíduos uma tendência ativa para a auto-realização;

2) As pessoas são aperfeiçoáveis;

3) Todos, mas especialmente as pessoas mais desenvolvidas, preferem responsabilidades à dependência, buscando serem impulsionadores ao invés de ajudantes passivos;

4) Há nos indivíduos preferência por serem tomados por suas individualidades e singularidades, em contraste ao anonimato e à intermutabilidade (Ferreira, 1979).

É por conta de tal conhecimento acerca da natureza humana que, segundo Maslow, as empresas, em uma posição intrinsecamente ética, deveriam, para além das relações salariais, criar condições em que os trabalhadores pudessem se realizar em mais alto nível, dessa forma atingindo o ponto central de sua motivação. Isto seria, inclusive, o passo crucial no alinhamento das aspirações de ambas as partes, na medida em que gerasse uma elevação do grau de produtividade por um menor custo monetário. Para tanto, o planejamento organizacional deveria visar o oferecimento aos funcionários de liberdade para assumirem responsabilidades, investindo-se na capacidade de auto-condução destes para o cumprimento de metas. Tais metas devem ser estabelecidas não por uma junta separada de diretores, mas pelo conjunto de funcionários da empresa, o que canalizaria suas energias criadoras na direção dos objetivos desta, propiciando, em uma via dupla, satisfações sociais e pessoais com conseqüente ganho em eficácia e produtividade para a empresa (Ferreira, 1979).

Nota-se, portanto, que, em Maslow, a empresa não figura como uma entidade física ligada puramente ao âmbito do trabalho. É possível observar que nas múltiplas apropriações e atualizações de seu estudo (que ainda hoje proliferam em manuais, vídeos e apresentações na área de gestão de recursos humanos) as existências profissional e pessoal do funcionário são tomadas em suas afinidades e homogeneidades.

Esta aliança empreendida por Maslow entre os campos clínico e administrativo pode soar estranha. No entanto, para Rose (1998), essa aliança entre os chamados "especialistas da subjetividade" das culturas terapêutica e organizacional é estranha apenas em aparência, encontrando significado no constante estímulo feito ao sujeito contemporâneo para que assuma responsabilidade por sua vida e a encare como um empreendimento. É neste sentido que as formas de gestão humanistas puderam adentrar no território das empresas

B - Técnicas humanistas nas empresas

Segundo Maslow, seria necessário um constante investimento na postura empreendedora dos funcionários por parte da empresa, pois, apesar de tomar esta inclinação por natural no homem, aponta que indivíduos advindos de condições não totalmente eupsíquicas tenderiam a movimentos contrários a uma convivência mais harmônica e auto-atualizante (Ferreira, 1979). Nesse aspecto, além da simples política de treinamento técnico, vemos surgir programas baseados na suposição de que o processo empreendedor possa ser ensinado e entendido por qualquer pessoa (Dornelas, 2005). Com base em autores da psicologia humanista e seus trabalhos com grupos, tais programas visam desenvolver condições entre os trabalhadores para que as características empreendedoras destes propriamente se expressem.

Em Jogos, Dinâmicas & Vivências Grupais, Militão e Militão (2000) afirmam que, nas empresas, as equipes precisam experimentar e exercitar condições de comunicação aberta, autêntica e transparente; alívio de tensões de sentimentos negativos; sincronia de esforços para atingimento de metas para que estas se tornem coesas, produtivas, autodirigidas - condições muito similares à eupsiquia. Para tal reforma do ambiente interpessoal na organização, é sugerida uma variedade de intervenções em formato de grupos, como nos chamados Grupos de Formação de Equipes e Grupos de Encontro, ambos bastante influenciados pelas teorizações de Rogers.

Segundo este autor, os trabalhos com grupos têm a pretensão de acentuarem o crescimento pessoal e o aperfeiçoamento da comunicação e das relações interpessoais, através de um processo experiencial que permitiria que o indivíduo se conhecesse mais completamente do que nas relações habituais ou de trabalho. Rogers descreve o processo grupal como uma forma de interação que tenderia, após seus habituais primeiros momentos de hesitação e impessoalidade, a possibilitar a expressão dos sentimentos particulares dos envolvidos e que estes assumam suas próprias direções e objetivos, desde que certos critérios de aceitação e não-diretividade sejam empregados pelo facilitador. Este não só deve evitar dirigir um grupo para um objetivo específico, confiando em seu auto-direcionamento, mas também se posicionar como um primeiro e fundamental ponto de aceitação desses movimentos, evitando interpretá-los ou taxá-los de alguma forma. Dessa maneira, o grupo possibilitaria mudanças pessoais de diferentes graus de profundidade, na medida em que autonomizaria a pessoa e a faria confiante em si mesma, em seus sentimentos e opiniões, em detrimento das avaliações externas (Rogers, 1970/2002). Nessa concepção, os grupos de encontro nos meios industrial e empresarial não difeririam tanto dos trabalhados com finalidades pessoais, ainda que a ênfase daqueles seja de fato a boa configuração institucional.

No entanto, as formas humanistas de gestão não se limitam a campos específicos como o clínico e organizacional. É preciso avaliar como veio a se desenvolver a própria proposta de uma comunidade em moldes humanistas, alçando os seus modos de governamentalidade a um plano mais amplo.

 

As comunidades centradas na pessoa: a duplicação do governo liberal

Além de tais dispositivos clínicos, trabalhos grupais e propostas administrativas, a psicologia humanista produziu uma de suas tecnologias de gestão mais ambiciosas na forma dos projetos comunitários desenvolvidos por Rogers. Para tanto, é necessário se descrever a Terapia Centrada no Cliente como um modo peculiar de intervenção da psicologia humanista. Tal procedimento enfatiza, antes de tudo, a relação terapeuta-cliente como um meio para se promover o crescimento pessoal, cabendo ao terapeuta a criação de um ambiente de pleno acolhimento da experiência do cliente, de forma a permiti-lo ser em sua plenitude.

Segundo o autor, uma relação de ajuda terapêutica seria configurada por três princípios fundamentais: 1) a congruência, ou equilíbrio entre o que o terapeuta pensa, sente e faz, colocando-se livremente como pessoa no processo terapêutico ao expressar seus sentimentos e opiniões; 2) a aceitação positiva incondicional, uma postura de receptividade absoluta a todo e qualquer sentimento, atitude ou opinião que o cliente venha a demonstrar, evitando julgá-los ou avaliá-los de qualquer maneira; e 3) a empatia, ou busca da compreensão das significações que o cliente dá ao que experiencia (Rogers, 1961/2001b). Rogers (1961/2001b) assim comenta tais princípios:

"(...) a relação que considerei útil é caracterizada por um tipo de transparência de minha parte, onde meus sentimentos reais se mostram evidentes; por uma aceitação desta outra pessoa como uma pessoa separada com valor por seu próprio mérito; e por uma compreensão empática profunda que me possibilita ver seu mundo particular através de seus olhos. Quando essas condições são alcançadas, torno-me uma companhia para o meu cliente, acompanhando-o nessa busca assustadora de si mesmo, onde ele agora se sente livre para ingressar. (p.39)

De certo modo, o que faz Rogers no contínuo de sua obra é um largo passo de um procedimento clínico, a Terapia Centrada no Cliente, a uma postura mais ampla, cujo exercício não se restringe ao contexto terapêutico, a Abordagem Centrada na Pessoa. Nesse movimento, os critérios pelos quais definiu a intervenção clínica não são mais entendidos como restritos a essa atuação, mas como uma filosofia das relações interpessoais, logo, aplicável a qualquer contexto em que haja relação entre pessoas. De uma terapia a uma abordagem indiferenciada quanto à sua aplicação; do cliente a toda e qualquer pessoa. A produção do autor demonstra esse raciocínio ao se enveredar pelos grupos de encontro, pela pedagogia, pelos casamentos, entre outros temas (Rogers, 1977/2001a).

No sentido desta ampliação de objetos de estudo, as chamadas "comunidades centradas na pessoa" despontam como interessante exemplo de um tácito caráter político de sua obra (Rogers, 1977/2001a), concebendo uma configuração social específica que excede as pretensões dos já descritos grupos de encontro do autor. Mais do que atividades grupais de pequena proporção, o trabalho pretendido envolvia um grande conjunto de pessoas, de forma que a facilitação fosse realizada sobre uma pequena sociedade, distanciada em alguma medida dos contatos com a sociedade convencional e localizada em algum ambiente particular. Rosenberg (1977/2005) assim descreve: "A proposta (...) seria a de tentar criar numa mini-sociedade ou num macro-grupo condições que permitam a escolha autêntica de interesses, de modos de ser, de se relacionar e de realizar" (p.104).

Em um sentido formal, essa configuração social se dava em um caráter temporário, habitualmente de duas semanas, e visava criar um espaço de ampla aceitação das condutas dos participantes, de suas expressões afetivas ou opiniões, a partir da atuação de uma equipe facilitadora. Essa equipe habitualmente se preparava antes da experiência da comunidade, tendo seus membros por alguns dias uma experiência de grupo de encontro entre si, de forma a aprofundarem seus laços e estarem plenamente abertos não só uns aos outros, mas também aos participantes, aceitando verdadeiramente suas diferenças e abrindo-se a novos aprendizados (Rogers, 1980/1983, p. 56).

Cada facilitador se responsabilizava por um pequeno grupo dos participantes, de forma a construir a comunidade como um conjunto de pequenos grupos. Os efeitos de sua atuação são comentados por Rogers (1980/1983):

(...) na presença de uma atitude facilitadora criada pela equipe e por muitos participantes, os indivíduos gradualmente começam a ouvir uns aos outros e, lentamente, a compreender e respeitar. O ambiente se torna mais propício ao trabalho, tanto nos grandes quanto nos pequenos grupos, à medida que as pessoas começam a pesquisar a si mesmas e a seus relacionamentos." (p. 60)

Ainda que a aceitação figure como pilar fundamental da ambiência procurada nas comunidades, segundo Rogers, esta não se dá por uma atitude de pleno laissez-faire. Se os facilitadores permitem que os participantes sejam, não os persuadindo, interpretando ou manipulando, também lhes é reservada, em contrapartida, a mesma liberdade que proporcionam. Há a perspectiva de que o compartilhamento das próprias potencialidades e experiências é um processo ativo, que se dá a partir da autenticidade e da liberdade de se posicionar e expor de cada indivíduo, o que impediria a efetivação de uma permissividade total (Rogers, 1980/1983).

Para que o modo de funcionamento dessas comunidades seja devidamente exposto, procedemos a seguir a descrição de um dos primeiros eventos realizados pelo Center for Studies of the Person, de Rogers. Em agosto de 1975, ele e sua equipe de facilitadores organizaram um workshop com 135 participantes nas dependências do campus de Mills College, em La Jolla, California. Em uma estadia programada para duas semanas, os participantes encontraram como única atividade proposta pelos organizadores a realização de pequenos grupos de encontro diários, para aqueles que quisessem. De resto, absolutamente nenhuma diretiva. A própria equipe, não se entendendo como dirigente, buscava agir em plena horizontalidade com todos, reafirmando a filosofia do encontro como um espaço aberto à autenticidade de cada indivíduo, disponibilizando suficientes condições para que este exercesse sua autonomia como bem lhe parecesse (Rosenberg, 1977/2005).

Após uns primeiros dias de discordância e leves conflitos, em que alguns sugeriram roteiros de atividades, cursos, colóquios, trabalhos terapêuticos etc., e ante ao fracasso de estabelecerem atividades totalmente consensuais que abarcassem todos os interesses de todos os participantes, estes começaram um simples e informal movimento de auto-organização. Quem desejava trabalhar de algum jeito, discutir dado tema ou ministrar certa aula decidiu fazê-lo. Após um abalo pela falta de algo objetivamente tão simples como uma organização instituída para se fazer as coisas, os participantes, que haviam investido consideráveis somas de dinheiro para participarem de um evento com o criador da abordagem centrada na pessoa, assombrados com a possibilidade de fracasso do evento, passaram a experimentar as plenas possibilidades de sua auto-gestão ao verem em si mesmos os responsáveis pela realização de suas ambições de aprendizado, laços de amizade, produção acadêmica etc. (Rosenberg, 1977/2005).

Ainda segundo Rosenberg (1977/2005):

(...) até o final da experiência, os participantes passaram a se organizar a seu modo, incluindo ou não membros da equipe de facilitadores, tomando iniciativas ditadas pelos seus próprios interesses. A total ausência de líderes, no começo pouco entendida e aparentemente temporária, foi se confirmando hora a hora, consolidando na comunidade um senso de seu próprio poder, transmitido a cada um de seus membros. (p.108)

Interessante notar a própria compreensão de poder que tais propostas explicitamente sustentariam, ao discursarem sobre essa dissolução das relações verticalizadas e seus efeitos na plena aceitação conjunta. Rogers (1977/2001a) compreende esse processo como a definição de um próprio "organismo social unificado", em que o crescimento pessoal se daria pela reapropriação do poder de ação individual, sua liberdade, e o estreito contato com as próprias vontades e sensações, agora passíveis de realização em uma condição favorável a tanto. Rosenberg (1977/2005) sugere que o próprio conceito de poder passa a ser reformulado a ponto de se propor como propriedade de toda uma comunidade que se centrasse na pessoa.

O conteúdo afetivo-vivencial adquiriu predominância nas experiências de grupo, havendo pouca persistência em atividades exclusivamente intelectuais, gerando uma ênfase na experiência, de forma que os participantes pudessem perceber o quanto de si mesmos habituavam-se a manter submersos nas relações da sociedade convencional (Rosenberg, 1977/2005).

A autora caracteriza ainda o que seria uma comunidade auto-governada, produtiva e satisfatória do ponto de vista do crescimento humano:

(...) a atuação de governantes ou coordenadores seria eliminada e substituída pela participação de facilitadores, pela inclusão de grupos de encontro intensivos e por outras providências que levariam em conta a pessoa inteira, sem separá-la artificialmente em emocional e racional. (p. 123)

Este e outros eventos de mesmo propósito organizados pelo Center for Studies of the Person foram considerados bem sucedidos, como o episódio de 1976, também no Mills College (O 'Hara, 1975/1983), ou a experiência brasileira na Aldeia de Arcozelo, em 1977 (Tassinari & Portela, 1994). Malgrado tais sucessos, compreende-se a fragilidade dessas propostas no cotidiano de uma comunidade mais ampla, caso se pense sua implementação na sociedade convencional. Rosenberg (1977/2005) entende esses recursos como viáveis ao adquirir caráter instrumental, "em 'laboratórios ' aonde as pessoas viriam para se desenvolver e elaborar novas formas de estrutura e convivência para a sua sociedade" (p. 132).

Ao considerar os problemas não resolvidos em suas experiências comunitárias, Rogers aponta para o fato delas serem ainda inteiramente limitadas a comunidades temporárias, sendo necessárias experiências de caráter permanente. De igual importância seria a resolução daquilo que ele chamou de "problema da reinserção", ou seja "pessoas que parecem regredir naquilo que conseguiram no workshop, quando retornam ao seu lar", para o qual ele considerava estar conseguindo importantes progressos, mediante a discussão dos possíveis problemas antes do término do workshop e formação redes de apoio que continuariam após o mesmo (Rogers, 1980/1983).

 

Conclusão

Pode-se compreender o episódio da psicologia humanista não só como um exemplo histórico da constituição do saber psicológico a partir dos novos modos de gestão liberal, mas como uma prática fecunda ainda hoje, na medida em que penetrou outros âmbitos da psicologia como o empresarial, efetivando muitas de seus conceitos, enunciados e formas de atuação. A partir do momento em que seus autores propõem a existência de uma natureza livre e indeterminada no homem, sua direção natural ao aperfeiçoamento de si e seu pleno poder de se constituir enquanto um ser total e elevado, parece razoável inferir que o humanismo é talvez o exemplo modelar dos parâmetros liberais que Rose (1998) identifica no campo psicológico como um todo. A maior parte de suas práticas, como se pode ver nos conceitos de Rogers e Maslow, surge a reboque de uma dada compreensão definida do homem, que se coloca como referência para as boas condições da interpessoalidade, as distinções entre necessidades menores e outras mais transcendentes e as formas de promover a ascensão da pessoa. A própria existência de pretensões comunitárias como a descrita, efetivadas em condições provisórias, mas pretendendo a permanência; as propostas de um serviço psicológico que permita ao sujeito desenvolver novas formas de convívio na sociedade ordinária; a identificação de um "problema da reinserção" a ser sanado, quando estas formas ditas ideais de conduta não se mantêm; enfim, todas estas considerações mostram um arcabouço prático-teórico que atende perfeitamente aos modos de subjetivação produzida pelos modos de governo liberais.

No que se refere ao âmbito das empresas, devemos novamente remontar ao trabalho de Rose (1998). Seguindo seus apontamentos, vemos que a noção de uma "cultura empresarial" emerge no vocabulário político neoliberal dos Estados Unidos e Inglaterra da década de 1980, trazendo uma compreensão muito específica do ser humano, segundo a qual este se constitui enquanto um self que deve, pelo exercício de sua autonomia e liberdade, encontrar significado em sua vida particular. O autor sugere que analisemos as relações de poder implicadas neste tipo de discurso sob a ótica de três dimensões: a da governamentalidade, a institucional e a ética.

Em relação à governamentalidade, nos perguntamos de que modo esta imagem empreendedora propagada na população se articula à série de cálculos e estratégias de governo com fins de que esta atinja determinado nível ótimo de saúde, liberdade e tranqüilidade. Sobre a dimensão das instituições, estas visariam a uma racionalidade prática: uma disciplina dirigida a maximização de capacidades individuais, incluindo habilidades diversas como a responsabilidade e a prudência. Por último, a dimensão ética, aqui entendida em sua forma prática, articula-se a modos de avaliação e atuação sobre si, a partir de um prisma do que seria verdadeiro ou falso, desejável ou indesejável.

A empresa surge, então, como um ponto de articulação entre estas três dimensões por poder traduzir uma racionalidade política em programas específicos de gestão de capacidades. Ou seja, soma a retórica da autonomia e da liberdade a programas regulatórios focais a fim de explorar a capacidade de auto-condução dos indivíduos, como pudemos observar nas propostas de gerenciamento previamente consideradas. Mais do que simples unidades competindo entre si no mercado, o modelo empresarial e sua linguagem produzem uma imagem do ser humano como ativo, calculador e aspirante à autopromoção.

Dessa forma, percebe-se que é no próprio seio de uma governamentalidade liberal que se revela a importância entre os governados de um caráter livre, ativo, responsável e gestor do próprio sucesso e satisfação. Portanto, colabora para tal subjetivação a produção de discursos como os do humanismo em várias de suas instâncias. Isto, notadamente ao ancorar em uma essência livre do ser humano a dimensão ética em que as formas de governo contemporâneas se apoiam, promovendo-a pelas atuações do psicólogo na clínica particular, nos grupos terapêuticos, nas composições coletivas e nos parâmetros administrativos. Como alternativa, resta se perguntar se não haveria qualquer outra experiência de liberdade que não esteja carregada pelos pressupostos de uma natureza humana autêntica e auto-empreendedora. Mesmo que a resposta não seja óbvia, a postulação da pergunta é fundamental na articulação de formas de resistência aos modos de gestão contemporâneos. Podendo apontar para formas de liberdade mais ancoradas na recusa e na problematização do que no culto de si e na autenticidade.

 

Referências

Boainain Jr., E. (1994). O estudo do potencial humano na psicologia contemporânea: a corrente humanista e a corrente transpessoal. Recuperado em 14 de Abril de 2009, de http://www.encontroacp.psc.br/estudo.htm.         [ Links ]

Buys, R. (2005). A psicologia humanista. In A. M. Jacó-Vilela, A. A. L. Ferreira, & F. T. Portugal (Orgs.), História da psicologia: rumos e percursos (pp. 339-348). Rio de Janeiro: Nau.         [ Links ]

Dornelas, J. C. A. (2005). Empreendedorismo. Rio de Janeiro: Campus/Elsevier.         [ Links ]

Ferreira, M. J. L. (1979). Grau de Aceitação dos Pressupostos da Administração Eupsíquica por Parte de Diretores de Escolas Públicas de 1º Grau do Município do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Foucault, M. (1994-1997). 1978 - 1979: Nascimento da Biopolítica. In M. Foucault, Resumo dos cursos (pp. 87-97). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

Foucault, M. (1994-2003). Omnes et Singulatim : para uma crítica da razão política. In M. Foucault, Ditos e Escritos IV: estratégia, poder, saber (pp. 354-385). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Foucault, M. (2004-2008a). Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Foucault, M. (2004-2008b). Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Maslow, A. H. (1968). Is a Normative Social Psychology Possible? In A. H. Maslow, Toward a Psychology of Being (pp. 220-222). New York: Van Norstrand Reinhold Company.         [ Links ]

Militão, A. e R. (2000). Jogos, Dinâmicas & Vivências Grupais: Como Desenvolver Sua Melhor "Técnica" em Atividades Grupais. Rio de Janeiro: Qualitymark Editora.         [ Links ]

O 'Hara, M. M. (1975-1983). Reflexão Acerca de Um Workshop Centrado na Pessoa. In C. R. Rogers, J. K. Wood, M. M. O 'Hara, & A. H. L. Fonseca, Em Busca de Vida (pp. 123-133). São Paulo: Summus Editorial.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1961-2001b). Tornar-se Pessoa. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1970-2002). Grupos de Encontro. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1977-2001a). Sobre o Poder Pessoal. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Rogers, C. R. (1980-1983). A Formação de Comunidades Centradas na Pessoa: Implicações para o Futuro. In C. R. Rogers, Um Jeito de Ser (pp. 52-68). São Paulo: E.P.U.         [ Links ]

Rose, N. (1998). Inventing Our Selves: Psychology, Power and Personhood. Cambridge: Cambridge University Press.         [ Links ]

Rose, N. (1999). Governing the Soul: The Shaping of the Private Self. Londres: Free Association Books.         [ Links ]

Rosenberg, R. (1977-2005). Uma Comunidade Centrada na Pessoa. In C. R. Rogers, & R. Rosenberg, A Pessoa Como Centro (pp. 103-132). São Paulo: EPU.         [ Links ]

Sampaio, J. R. (2004). O Maslow Desconhecido: uma Revisão de seus Principais Trabalhos sobre Motivação. Recuperado em 14 de abril de 2009, de www.rausp.usp.br/download.asp?file=v4401005.pdf.         [ Links ]

Sennelart, M. (1995-2006). As Artes de Governar. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Sennelart, M. (2004-2008). Situação dos cursos. In M. Foucault, Segurança, território, população (pp. 495-538). São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Tassinari, M., & Portela, Y. R. (1994). História da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil. Recuperado em 14 de abril de 2009, de http://www.encontroacp.psc.br/historia_da_acp.htm.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Arthur Arruda Leal Ferreira
Rua do Riachuelo, 169/405. Centro
Rio de Janeiro, RJ. CEP: 20230-014
E-mail: arleal@superig.com.br

Enviado em Abril de 2009
Aceite direto em Dezembro de 2009
Publicado em Junho de 2010
Apoio financeiro: CAPES e FUJB.

 

 

1 Para Sennelart (1995/2006), discordando de Foucault , esta passagem já se faria presente na própria obra de São Tomás de Aquino.

Creative Commons License