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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

Apresentação

 

Presentation

 

 

Paulo Endo; Cristiane Izumi Nakagawa; Chris Haritçalde; Luiz Eduardo Moreira; Pedro Ambra; Vanessa Passarelli

Universidade de São Paulo - Brasil

 

 

Nas madrugadas entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, homens e mulheres, moradores de rua, que dormiam a céu aberto no centro da cidade de São Paulo, foram atacados brutalmente. Não houve tiros à queima roupa, como é característico em assassinatos de moradores de rua no Brasil, mas golpes desferidos com objeto sólido contra a cabeça dos mortos e feridos.

O resultado desses ataques culminou com a morte de 7 pessoas e outras 8 feridas. Ironicamente, quando de seus enterros no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da cidade, quatro das vítimas cujos nomes eram desconhecidos e, por isso, foramidentificadas com números, foram enterrados no mesmo local onde estão os restos mortais de quatro outras vítimas de outro massacre não apurado, o do Carandiru, ocorrido em 1992.

Na ocasião, todos aqueles que acompanhavam as notícias sobre o massacre dos moradores de rua na cidade de São Paulo assistiam perplexos a soma dos assassinatos que adquiriam a característica de crimes em série.

As vítimas, escolhidas a dedo e com um perfil muito específico, eram homens e mulheres que viviam na e da rua. imediatamente após o ocorrido, a consternação foi nacional. A prefeita Marta Suplicy e a secretaria Municipal de Segurança mobilizaram os primeiros esforços na apuração dos crimes, o Secretário da Segurança, Saulo Castro de Abreu Filho, prometeu apurar tudo em 30 dias, porém hoje estamos às vésperas de completar 6 anos de impunidade e descaso. Ninguém foi punido, nada de significativo foi apurado e os primeiros suspeitos foram presos e soltos em novembro de 2004, sem provas consistentes.

Na excelente matéria jornalística publicada por ocasião dos eventos, a partir da reportagem de Marina Amaral, em fevereiro de 2005, na revista Caros Amigos, três hipóteses foram levantadas, algumas delas pela própria polícia que investigava o caso.

As primeiras suspeitas recaíam sobre os comerciantes locais mancomunados com os seguranças das lojas na região, que queriam promover o saneamento do centro da cidade. Considerava-se também a possibilidade da ação de grupos de intolerância e extermínio e, por fim, suspeitava-se de traficantes locais do centro da cidade que cobrariam dívidas ou "queimariam arquivo".

Notem, três hipóteses exequíveis, plausíveis e prováveis, indicando que os moradores de rua eram alvo privilegiado de uma matança iminente. Três grupos organizados com possíveis intenções de extermínio e em prontidão na cidade. Isso suposto e sabido, e nada foi feito para impedir a tragédia. Nas semanas seguintes, mais nove moradores desapareceram, alguns deles prováveis testemunhas do crime.

O silêncio que se seguiu a esse acontecimento foi, certamente, mais aterrorizante que os fatos. Passadas algumas semanas, não se ouviu e não mais se ouvirá falar daqueles homens e mulheres mortos e feridos a pancadas no centro da maior cidade do país. A mudez e a quietude pairará sobre os aflitos..

A resposta a esse silêncio foram novos atentados à bala contra moradores de rua em 2005, 2006 e 2008, apenas para ficar nos atentados noticiados. Todos com vítimas e nenhum esclarecido.

Nenhuma calma, nenhuma pacificação, nenhum testemunho, apenas a atmosfera grotesca dos silêncios impunes e uma vergonha tolerável será somada a tantas outras vergonhas por mais um extermínio que cala, silencia e aterroriza. Imersos no ambiente mórbido das grandes cidades brasileiras, misturados às flagrantes desigualdades entre bairros, distritos e cidadãos que caminham lado a lado, mas que ratificam uma distância flagrante entre mundos e oportunidades vergonhosamente desiguais, nossa vergonha aumenta e se alimenta de lutos impossíveis.

Em novembro de 2007, uma menina de 15 anos foi presa e encarcerada no município de Abaetetuba, no Pará, por tentativa de furto de um celular. Nada incomum numa realidade em que a ameaça aos bens privados supera em muito à preocupação com o bem-estar comum e com os direitos dos presos, sucessivamente violados em diversas carceragens do país.

Mas esse episódio foi marcado pela exposição pública de uma prática repetida: o desrespeito e o aviltamento do corpo da mulher, o desrespeito às suas idiossincrasias e às diferenças que lhe são próprias e fundamentais.

Não se trata mais, infelizmente, de um discurso masculino e chauvinista, mas de um discurso e uma prática sustentados pela negação das próprias mulheres de suas diferenças e de suas necessidades pessoais e próprias.

A adolescente L. foi encarcerada pela delegada Flávia Pereira numa cela com trinta homens adultos, por eles foi estuprada, queimada com cigarro e espancada. Ali permaneceu por dois dias. Em seguida, foi conduzida à presença da juíza, Clarice de Andrade. Na ocasião, L. alegou que era menor. Observem que o fato de que L. era mulher foi antecipadamente esquecido. A juíza, então, determinou que L. fosse devolvida à mesma cela. A situação revoltou alguns dos presos que diziam aos carcereiros que, além de ser uma menina, ela não podia ficar na cela com homens. Os policiais, então, não tiveram dúvida, cortaram o cabelo longo, liso e negro de L. à faca e rente à cabeça, de modo a assemelhá-la a um rapaz, para que ela não fosse reconhecida por quem a visse do lado de fora da cela.

Impressionantemente, a delegada, a juíza e a Governadora do Estado do Pará foram incapazes de proteger L. do chauvinismo degradante, da indiferenciação sexual e da superexposição atroz. Como se engendra tamanha negligencia diante do fato simples de que o que estava em causa ali era o risco a que L. estava submetida, não por ser menor, não por ser pobre, mas por ser mulher?

Qual recalque silenciou todas essas mulheres, em evidente posição de poder, para evitar o pior e proteger o óbvio: a posição feminina de L., seu direito à diferença, sua condição feminina e um discurso feminino, único discurso conhecido de denunciar a violência masculina contra a mulher?

Depois disso, como sempre, soubemos que o caso de L. não era isolado, mas comum em outros municípios do Pará, onde mulheres são encarceradas em celas predominantemente masculinas. Em apoio a essa pratica atroz, sobrevieram a prática dos policiais que tentaram coagir a menina para que sumisse do município. Os pais de L. foram, após a sua soltura, pressionados a mentirem sobre a idade das filha sob ameaça de morte dos policiais. A mesma tentativa patética de salvar a incompetência a golpes de martelo, provocando violações seguidas e repetitivas. Tudo para escapar do "pessoal dos Direitos Humanos."

Tais fatos, sabemos, são sempre deslocados para a zona nebulosa e opaca onde se amontoam, indiferentes, milhares de assassinatos não esclarecidos no Brasil. Eles atingem, em sua imensa maioria, aqueles tidos como restos, reminiscências, excrescências, pedaços de seres humanos eliminados da cena pública e, por isso, incapazes de voltar a ela. Tudo somado ao constrangedor caldo cultural brasileiro que mistura com alegria, corrupção e carnaval, riqueza e homicídio, alta tecnologia e escravidão, democracia e violação dos direitos civis, Vila Mariana e M'Boi Mirim, a tal ponto que, não raro, a tensão entre essas diferenças e oposições parece simplesmente inexistir.

O recalque, a denegação e as alucinações negativas lentamente exibem suas funções complexas na construção das cidades brasileiras: o respeito pela dor e morte alheia e a recordação que o trabalho de luto engendra estão ausentes dos dispositivos citadinos, dando lugar à proliferação de mortos insepultos cuja identidade não será reivindicada.

São Paulo não é apenas uma cidade feia, como dizem tantos, é ininteligível, porque é produzida, em parte, e alucinatoriamente - por isso cidade alucinada-, na ausência de um projeto de oposição à produção cotidiana e enraizada de desigualdades profundas. Uma cidade que se expande ao sabor dos fantasmas privados de boa parte da elite paulistana e destrói qualquer planejamento público consistente.

Esbanjamento de concreto, metal e asfalto não obedece ao horizonte mínimo de um planejamento que ambicionasse o convívio e a circulação pedestres na cidade, mas são reproduções imediatas dos fantasmas de cada um de seus habitantes, certos de que sua mansão, sua casa, seu escritório e seu barraco - seu fragmento - representam, em si mesmos, uma totalidade que, de certo modo, se opõe às demais.

Essa é uma das razões pelas quais a insistência no aprofundamento dessas contradições e oposições no Brasil e a necessidade de pensá-las, dizê-las, testemunhá-las e se opor a elas pode expor o próprio enunciante em situação de perigo. Perigo físico, concreto, e perigo fantasmático, imaginado. A experiência do perigo autoriza o medo e subscreve todos os álibis para o emudecimento e a angústia que daí advém e que são explicitadas nas fracassadas políticas de segurança nas grandes cidades brasileiras. Mais polícia e menos convívio cidadão, mais direitos e mais violação desses mesmos direitos.

Sujeitos angustiados reproduzem e inventam estruturas inteiras em nome de uma suposta salvaguarda psíquica. A angústia produz fantasmas, objetos tangíveis e invisíveis e para combatê-los criam-se estruturas sólidas, concretas, soluções arquitetônicas cujas consequências no desenho da cidade são, muitas vezes, irreversíveis.

Não é certo o alcance ou o impacto que o pensamento tem sobre a desmontagem dessas estruturas, muitos daqueles que estiveram presentes no I Seminário Psicologia e Violência e, agora, nesse evento, e que há décadas se dedicam a pensar, explicitar e denunciar a lógica manifesta ou latente dessas estruturas e sistemas violentos, certamente não têm completamente claro o alcance do que pensam, ensinam e transmitem.

Muito embora após os alertas de Freud, Walter Benjamin, Hannah Arendt, Maurice Blanchot e Paul Celan, seria dramático e constrangedor desistir do próprio pensamento, considerando que muitas das figuras que ele constrói são as únicas estratégias capazes de evidenciar as contradições e os paradoxos que só o pensamento pode denunciar.

Nas próximas páginas, acreditamos que os esforços acadêmicos de muitos poderão deixar entrever esse campo e a complexidade da ordem dos problemas que rapidamente expomos para vocês agora. Quem sabe, a partir desse material, extraído do trabalho cotidiano de pesquisa e pensamento, encontraremos falas novas e escutas diferidas capazes de produzir crítica, resistência e dissenso.

Assim, esperamos que, diante dos nossos impasses inscritos num tempo que não hesitamos em reconhecer como tempos férteis de tantas violências, não nos tornemos meros informantes, a posteriori, de seus efeitos e impactos.

Para finalizar, não poderíamos deixar de agradecer pela estrutura e pelo empenho de vários funcionários do Instituto de Psicologia da USP (IPUSP) na realização do evento. Agradecemos também aos colegas do Dartamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade do IPUSP, da Faculdade de Direito da USP, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP que se apresentaram para compor as mesas, muitos deles compondo também essa publicação.

Por fim, nosso especial agradecimento ao colega e editor da revista Temas em Psicologia, Gerson Yukio Tomanari, cujo convite para esta publicação permitiu revigorar e documentar a estimulante experiência que tivemos no seminário, em 2008.

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