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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

O intelectual na sociedade da informação: ensaio sobre subjetividade, conhecimento e comunicação

 

The intellectual in the information society: study concerning subjectivity, knowledge and communication

 

 

Eduardo Carlos Bianca Bittar

Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se de investigar, numa perspectiva frankfurtiana e crítica, a condição do intelectual, dentro de um contexto de intensa produção do conhecimento e de libertação tecnológica das redes de comunicação, para com isto pensar o problema da atualidade do projeto da modernidade.

Palavras-chave: Violência, Intelectual, Modernidade, Informação.


ABSTRACT

This work intends to make an understanding on, from the frankfurtians studies, how operates the life in the interior of the modern society, specialy about the intellectual condition at the information society.

Keywords: Violence, Intellectual, Modernity, Information.


 

 

1. O lugar do intelectual no mundo moderno

A sociedade moderna é a sociedade que nasce embebida dos rumores advindos da vida intelectual, do mundo das ciências, das artes e da cultura, da liberdade da razão e do lugar da emancipação. A esfera pública tem uma grande contribuição para, em seu bojo, construir a identidade de um momento histórico de efervescências como fruto de transformações conjuntivas da vida social. É exatamente neste contexto, especialmente a partir das transformações revolucionárias do século XVIII, que a figura do intelectual, como intelligentsia ativa, ganha maturidade e sentido para a sociedade moderna. No especial "Para que serve um intelectual?", do Caderno Mais! da Folha de São Paulo, de agosto de 2006, no artigo Caos na esfera pública, é Habermas quem afirma:

É já nesse período de incubação, quando o vírus da Revolução Francesa se alastrou por toda a Europa, que se manifesta a constelação na qual o tipo do intelectual moderno encontrará o seu lugar. Ao influírem com argumentos retoricamente afiados na formação da opinião, os intelectuais dependem de uma esfera pública capaz de lhes servir de caixa de ressonância, alerta e informada (p. 4).

À modernidade revolucionária se segue a modernidade produtiva, sendo que esta abafa a possibilidade de realização do ideário contextualizado e oportunizado pela primeira. Por isso, o progresso da modernidade não a conduziu à realização de seus ideais, e, mesmo ultrapassando a sua fase revolucionária, se consolida com a predominância da razão instrumental (Adorno & Horkheimer, 1985). É esta forma histórica de razão, coirmã do progresso e da eficiência, que dinamiza o processo produtivo, mas que torna possível que a vida social se resuma à sua significação laboral-produtiva, o que é responsável pela geração de um cenário de quietude, político-cultural e intelectual, em que, hodierna e estranhamente, predomina o excesso de ruídos.

À pergunta "Qual o lugar do intelectual no mundo moderno?", se segue uma outra, a saber, "Qual o sentido da modernidade hoje?"1 . Num mundo de modernidade instrumental, o intelectual é, por seus arranjos textuais, por suas construções teóricas, por seu apreço à meticulosa pesquisa, à análise reflexiva e à preocupação humanística formadora, um déplacé. Seguir o ideário que inspirou o Aufklärung hoje é seguir um ofício que tem sua significação de-situada. Eis aí a ambígua experiência existencial do intelectual num mundo em que predomina a racionalização como processo de afirmação da preponderância das formas estratégicas de interação; de um lado, os intelectuais foram responsáveis por coagular esforços que culminaram na produção das condições de afirmação superadora de ideais emancipatórios, mas, de outro lado, os intelectuais foram deslocados para fora dos processos de afirmação dos modos de racionalidade que se afirmam historicamente. Quando se trata de falar de um modo de identificar a razão, no início da modernidade, percebe-se que a razão emancipatória, como razão que decorre da esfera pública literária, filosófica e intelectual, é aquela que possibilita a aparição do mundo moderno e de suas feições; quando se trata de perceber o lugar da razão emancipatória na história interior do mundo moderno, percebe-se que ela se tornou redundante, e, por isso, deixou o legado dos ideais modernos emancipatórios estagnados num passado inacabado. A mistificação das coisas produziu o apagamento das pessoas, e onde pessoas são visivelmente adereços do mercado, a banalidade da existência se torna a regra (Habermas, 2006).

Por isso, evocar o conjunto dos ideais mais profundos da modernidade é hoje um exercício démodé. Os intelectuais que pensam as formas de emancipação social, no limite, correm atrás dos prejuízos deixados pelos rastros de predominância da razão instrumental na vida social. Seu exercício é não somente enfadonho, como o é o trabalho de Sísifo, agravado pelo fato de sua tarefa ser considerada uma tarefa social incômoda; demonstra o que ninguém quer ver. Por isso, os intelectuais críticos são deslocados para um cenário de obscuridade, pois o incômodo que provocam é o de tentar manter acesa a perspectiva da continuidade de busca de ideais incubados e recalcados, não realizados, na vida moderna. Assim, vive-se de uma modernidade estagnária, imperfeita, e, por isso, danosa, pois apenas um aspecto funcional de sua teia de identidades prepondera e orienta a forma de atuação de todas as demais engrenagens que permitem o funcionamento global da vida em sociedade. Eis aí um sintoma de que a vida moderna tornou a experiência humana, no mundo, uma experiência marcada pela incompletude e pela falta, sobretudo pela falta de sentido.

Esta é a raiz do problema da violência do mundo moderno. Esta é também a raiz do problema da violência sofrida pelos intelectuais. De fato, os intelectuais críticos da vida moderna constatam e reiteram os aspectos problemáticos do mundo moderno, identificando em seu interior as questões que bloqueiam a consolidação de processos de socialização, justiça e igualdade. O simples fato de parte significativa da atividade intelectual crítica dedicar-se a denunciar as paranoias, violências e inconsistências de nossos tempos, aponta para o fato de que a energia psíquica intelectual desperdiçada neste campo de compreensão poderia estar sendo empregada para finalidades e propósitos ainda mais construtivos e criativos. Diagnosticar os efeitos do funcionamento da razão instrumental é sempre menos agradável que construir novas linhas de acesso à liberdade. Ao exercerem uma atividade de pensamento coligado ao problema da insuficiência da modernidade, praticam uma forma de resistência à simples e vitoriosa ideia de que tudo se governa pelo princípio do progresso, e de que, por isso, o mundo moderno é guiado por uma bússola que dá a si mesma o rumo a seguir, como se esse rumo seguisse independentemente da vontade humana.2

 

2. O intelectual como pária da sociedade da informação

Escreve Habermas (2006): "...eu não deveria sonegar aqui a ocupação mais querida dos intelectuais: eles adoram sintonizar-se com as queixas rituais sobre o declínio "do" intelectual" (p. 4), a propósito do tema "Para que serve um intelectual?", no artigo Caos na esfera pública. A seguir, após uma pausa, afirma ainda: "Confesso não estar inteiramente livre desta tendência" (p. 4). A constatação de que a intelectualidade definha parece ser um tema constante dos debates que politizam a função do intelectual na sociedade moderna. Será que esta desconfiança não se confirma? Será que ela faz parte da lamúria dos intelectuais? Será que ela tem correspondente concreto na vida social? A própria especialização funcional do trabalhador no mundo moderno aponta para uma resposta a este respeito. Na cadeia de produção que define o conhecimento como utilidade econômica, o intelectual só tem lugar onde e quando serve de ferramenta especializada para as engrenagens predominantes. O confinamento dos intelectuais ao lugar-destino do conhecimento, a universidade, é somente um sintoma de seu recolhimento e da não significação da crítica na vida social.

O sociólogo Mannheim (1982) afirma que:

O aparecimento do grupo dos intelectuais assinala a última fase do crescimento da consciência social. Foi o último grupo a adotar a perspectiva sociológica, pois sua posição na divisão social do trabalho não proporciona acesso direto a nenhum segmento vital e operante da sociedade. O gabinete isolado e a dependência em relação à matéria impressa propiciam apenas uma visão indireta do processo social. (p. 101, itálicos nossos)

O que se percebe é que, afinal, como repositório do conhecimento, como lugar de empilhamento do saber, como caixa-forte da informação acadêmica na vida social moderna, a universidade é este lugar que permite ao intelectual encontrar-se em seu "templo de melancolia". Moacir Scliar (2008), ao analisar o tema da melancolia, afirma: "O templo da melancolia intelectual é a biblioteca" (p. 137).

Mas, as bibliotecas não fazem o mundo; delas se pode extrair o que fazer com o mundo. Assim, os solilóquios existenciais e melancólicos sobre o mundo moderno são impotentes sem o amparo direto da ação política, e, quando a política, ela mesma, é tarefa de especialistas, aí se verifica a distância prática entre o que se pensa e o que se faz, ou seja, aí se percebe a distância esculpida entre theoría e práxis. Essa distância, do ponto de vista sociológico, também é percebida como uma distância social que o intelectual possui das demais classes e grupos sociais3. Por isso, é, sobretudo, no mundo acadêmico que o intelectual descarrega o ônus da atividade de pensar a vida social de seu tempo; é ali que as torrentes de palavras e signos retidos na caixa-cabeça podem encontrar vazão na aula-trabalho do dia seguinte, lugar de abertura das torneiras e revelação das reflexivas ruminações subjetivas. Os muros da universidade acabam sendo muros protetores, abençoados como um lugar de refrigério existencial e laboral ao pensar, ao refletir, formar e pesquisar. O não-fazer-parte-do-sistema, como opção consciente, parcialmente, somente é possível nos limites de uma proteção escudada por um dos poucos ambientes onde as ondas de impulsionamento da crítica subsiste: a universidade pública. Ela é, por isso, um bunker do intelectual crítico subsistente, um lugar de refúgio diante da decepção com a política; não há outro sentido inclusive, desde Platão, ao termo Academia4. Nesse sentido, o intelectual não pode reclamar de sua condição, afinal "O sábio está consigo mesmo" (Sapiens... secum est), como afirma Sêneca, em suas Epístolas (9, 16).

Fora da universidade, não há tempo e nem lugar para a reflexão. A reflexão exige todas as condições que o mundo moderno renega, quais sejam, o silêncio do raciocínio, o ruminar lento das ideias, o sentir com as vísceras as certezas dos atos de fala, as leituras prolongadas, o estado de permanente vigilância, o cozimento paulatino de um texto, a fé cética quanto à melhoria da condição humana, estes que são alguns traços daquilo que faz da experiência crítica uma experiência de circunspecção e, também, exatamente por isso, uma experiência de des-ajuste; no limite, torna-se insuportável, simplesmente, viver, pois viver significa, simplesmente, aceitar e, portanto, renunciar aos ideais, donde a compatibilidade sôfrega entre continuar vivendo e renunciar aos seus próprios ideais. No entanto, há que se continuar vivendo.

Mas, continuar vivendo significa, apesar do que se conhece e do que se vê no mundo, um estado de aguardo passivo das decisões políticas, dos encaminhamentos, atinados e desatinados, da política, o folclore das ideologias governamentais, a inércia popular generalizada e a ignorância anestésica com relação às questões sociais. E isto porque, conhecer implica em ver, em ouvir, em intuir, em sentir e em perceber aquilo que ordinariamente não se distingue. Se os olhos vêem mais do que o meu tempo permite, a alma padece acima do que é capaz de suportar. Neste ponto, os intelectuais não têm como bálsamo, nem mesmo a sensação de pertencerem a uma classe, pois, como afirma Mannheim (1982), não chegam a formar nada semelhante: "Deveria ficar claro que os intelectuais não constituem de forma alguma uma classe. (...) Nada está mais distante dessa camada que a unidade de pensamento e a coesão" (p. 104). Donde o fato de, apesar de se falar dos "intelectuais", se falar pouco de um coletivo único, e mais de uma dispersiva similaridade entre indivíduos que exercem o mesmo tipo de atividade. A falta de força de transformação dos intelectuais decorre desta exata condição que ocupam no quadro das demais forças sociais.

Mas, para que o pensamento crítico se exerça, a atividade de reflexão pressupõe a observação, o distanciamento e a reflexão. Estas se escoram na necessidade de colocar-se fora, para enxergar além das aparências, e, com isso, o intelectual age de forma a comprometer sua sociabilidade; ou seja, como exercente de pensamento, é alguém que se des-ajusta. O pensar-diferente pressupõe a desconfiança com as formas-feitas, a análise superadora do status quo, a discordância com relação a toda forma prêt-à-porter das visões de mundo da vida social. Por isso, esse deslocamento de quem observa, e que faz do intelectual crítico alguém que se distancia para analisar antes de ser seduzido, o que tem por efeito uma experiência de pensar em outra dimensão o próprio mundo que se mostra como sólido e constituído, de modo que a experiência ordinária sobre o mundo é colocada em suspenso, donde nasce a renúncia enfadonha a simplesmente estar no mundo pronto e sobre o qual não possa haver outra forma de entrada. Nesta sintonia, todo deslocamento reflexivo se torna também um deslocamento da situação social imperante. Curiosamente, desta forma, o intelectual crítico, apesar de não envergar batina e não participar de votos de reclusão, vive um ritual monástico de sua separação do mundo real, na medida em que a vida ordinária é colocada em suspenso, para que possa haver lugar para a realização separada da reflexão. Neste sentido, o intelectual vive na sociedade, mas, ao mesmo tempo, é um estranho perante ela. O intelectual é admitido nos quadros de uma instituição, mas não é por ela absorvido e digerido, e nem com ela se concilia completamente, sob pena de seu aniquilamento. Daí a sensação, em diversos níveis, de um permanente estado de não pertencimento. Não pertence a classe alguma, mas desloca-se da própria sociedade que pretende pensar.

Por isso, os mesmos muros que protegem, sufocam, e isto em função da insuficiência de seu lugar na vida social. A universidade é este outro espaço, que se define por negação, com relação ao entorno da vida social; universidade é não sociedade, por isso, a atividade acadêmica ainda continua sendo reconhecida como não trabalho. Ao mesmo tempo, se é verdade que a universidade confere aconchego, ela não é o lugar da decisão. O lugar da decisão está no além-muros da universidade, e, nesta medida, é possível reconhecer que a vida das ideias não encontre, necessariamente, vida prática, pois a passagem daquilo que servirá, e daquilo que não servirá, de tudo o que é produzido no mundo das academias no país, sempre passa por um filtro que seleciona o joio do trigo. Por isso, quando o intelectual adere à carreira universitária, sua decisão é já re-ativa, ou seja, é uma decisão de alheamento: não participar, renunciar à ação, renunciar à produção, e, por isso, como ato, tem algo de um refugiar-se. O ato de se refugiar implica a consciência de que o entorno social é hostil à atividade de reflexão, e que, fora do espaço acadêmico, remanescem poucas oportunidades para a afirmação de um trabalho intelectual genuíno na vida social. Procurar na universidade um lugar de saber é colocar-se em uma trincheira onde é possível, por hora, respirar, e, assim, prolongar a existência.

O pensar crítico exige algo mais que simplesmente um engajamento funcional nos quadros universitários. Se este batismo de pertencimento a um mundo onde a atividade intelectual é mais do que um direito, é um dever funcional, é isto que confere ao indivíduo-intelectual a autoridade acadêmica; apesar de ser feito dele o senhor de uma cátedra, isto não faz com que seu RG acadêmico se torne garantidor de sua sobrevivência psíquica. E isto porque, entre outros fatores, na academia se reabrem os espaços de hostilidade do pensar-diferente. A exclusão entre os pares, a ocultação e a sabotagem, também aparecem formas intestinas de desenvolvimento daquilo que se costuma chamar de ambiente acadêmico. Percebe-se, pois, que a fuga para dentro da universidade como refúgio não permite que a dor seja superada, propriamente, pois a dor se mobiliza apenas para se realizar em outro lugar; por isso, o remédio do intelectual crítico talvez seja o de compartilhar, com um auditório sempre finito, aquilo que sente como sendo a si um incômodo.

 

3. A sociedade da informação como sociedade autista

Em tese, a sociedade contemporânea produziu as condições para uma dinamização intensa da informação e autorizou, pelos seus meios, um maior afluxo de comunicação. Esta seria uma sociedade, portanto, convidativa a um aumento da significação social do papel do intelectual, afinal, a sociedade contemporânea se constrói sobre a ideia da imprescindibilidade da informação. Como exemplo, pode-se retomar o que Dávila (2008) afirma: "O norte-americano médio consome por ano 973 horas de TV paga e 630 horas de TV aberta, passa 189 horas online, joga 85 horas de videogames, assiste às 61 horas de DVD, navega 15 horas em internet via celulares e passa 12 horas no cinema, segundo levantamento realizado em 2007 pela Veronis Suhler Stevenson, um fundo de investimentos especializado em mídia".

No entanto, é a não conversão do saldo informacional em capacidade de ação socialmente relevante, ou ainda, de aumento da capacidade de reflexão, o que define propriamente a condição não iluminista da sociedade da informação; aqui vale a velha regra segundo a qual a qualidade não se mede pela quantidade (Dupas, 2001). Por isso, o individualismo do consumo pós-moderno da informação em dosagem elevada não tem representado uma forma de incremento do processo de autossubjetivação consciente e crítica, mas modo de ampliação da sensação de desprovimento, angústia e melancolia, algo que dá continuidade àquilo que a modernidade começou por produzir5. Assim é que, pelo contrário, o individualismo não leva o indivíduo a si, mas o trancafia como a um estranho dentro de sua própria jaula, uma jaula interna e invisível, mas sombria e doentia. O estado microbiano da letargia do indivíduo adormecido no interior dos labirintos do individualismo cria, por isso, uma sociedade autista.

A sociedade autista é aquela na qual, apesar da comunicação existir, ela não significa, pois o seu lugar foi destronado. Todos falam e simultaneamente ouvem, mas, ao mesmo tempo, cada um somente busca de fato a si mesmo, e é por isso que o associativismo está morto para milhões e milhões de indivíduos. São estátuas que estão se comunicando, como se pode depreender da bela metáfora explorada por Norbert Elias, citado por Moacir Scliar (2008):

o indivíduo passa a sentir-se solitário, uma estátua pensante dotada de olhos que podem enxergar, de ouvidos que podem escutar, de um cérebro que pode raciocinar, mas incapaz de estabelecer contato com outras estátuas falantes, ou com o mundo como um todo, do qual está separado pelo abismo da incomunicabilidade. (p. 134)

As pessoas podem estar amontoadas em centros urbanos, podem se acotovelar para dividir espaços, podem acessar celulares e messengers, podem frequentar centros de teleinformação, mas, fundamentalmente, continuam a simplesmente praticar mimeticamente comportamentos padronizados pelas determinações do consumo em massa, do comportamento determinado por regras heterônomas, e, por isso, continuam a se reconhecer como indivíduos estranhos ao mundo da ação socialmente relevante. Apesar das luzes da televisão e dos meios de comunicação em massa, apesar dos instrumentos vários da civilização e da técnica para processarem informação, o que se percebe é obscuridade, pobreza semântica, opacidade, apagamento e ausências. A cegueira se torna possível em plena luz do dia. Uma sociedade assim constituída não é, por isso, uma sociedade do esclarecimento. (Foucault, 2000).

 

4. As violências e o mal-estar dos intelectuais

Muitas vezes, ao longo da história da modernidade, a violência que se exerce contra os intelectuais é aquela que toca de perto a lapidação, o sacrifício corporal, a perseguição, o isolamento físico, o encarceramento, o extermínio. Marx é alvo de hostilidades ao longo de todo o seu percurso intelectual. Walter Benjamin não se sacrificou por vontade própria, assim como Trótski não se exilou por livre e espontânea vontade, e nem Gramsci escreve no cárcere por considerar a prisão mais inspiradora do que seu gabinete de trabalho. A ideia universal de uma liberdade de pensar, como direito humano fundamental desde a Declaração de 1789, sobrevive apenas como cântico sofisticado do discurso liberal, que não sobrevive como direito efetivo enquanto se trata de desafiar a pensar-além. Por isso, o pensamento que desafia, o pensamento que opõe resistência, o pensamento que nada na contramarcha, o pensamento que se faz um ato de inovação plena, é alvo da supressão justificada e fundamentada da liberdade6. A violência que faz sangrar o corpo, como violência física e hostil, que soberaniza a existência do corpo para suprimir a permanência da ideia é aquela que pontua a forma de perseguição política suprema, de cassação da liberdade de pensar e de opinar, como forma de autocrática definição do espaço do pensar. É possível sim pensar, nos limites das próprias convenções. Do contrário, o pensar é simplesmente um ato de vandalismo, e todo vandalismo deve ser vigiado, controlado, castrado, aprisionado. A sociedade moderna promete liberdade, e pratica controle. Mas, o exame da violência na vida moderna que se ofusca pela perseguição do sangue e do corpo oculta impropriamente as outras formas de violência que também se exercem, com maior sutileza, como forma de controle e dominação do espaço da produção do conhecimento.

Por isso, ao lado da violência que faz sangrar o corpo também se deve perceber a violência que faz sangrar a alma. Se as ditaduras e os totalitarismos perseguem e sacrificam intelectuais como portadores de uma ameaça política, nas democracias contemporâneas essa ostensiva eliminação do lugar do intelectual se dá não pela extirpação do corpo, mas pela insignificância de seu lugar. Sob o princípio da tolerância, os intelectuais são admitidos, mas preservam-se como portadores de uma incapacidade de intervir. As democracias contemporâneas, portanto, constroem-se, acima de tudo, a partir da hipocrisia da ideia de uma liberdade intelectual autopropalada, que se exerce, no entanto, sem formação cidadã e sem democratas, como afirma Olgária Matos.7 Nas democracias contemporâneas, atoladas na maré de informação, trocas de mensagens e de conciliação de sentidos múltiplos, a perda de sentido da operação da fala comunicativa, do registro do texto, bem como da memória social, são apenas três sintomas desta perda de lugar daquilo que é intelectual. E isto porque o intelectual opera com estes elementos e através destes elementos, e, por isso, sem eles, a atividade intelectual recai em danação. A palavra é vencida pela fugacidade da imagem e a consciência (política e social) naufraga no mar turbulento da indiferença moral de nossos tempos (Habermas, 2006).

Os novos métodos, as novas tecnologias, as novas formas de comunicação, os meios on-line, as formas de interação programadas, as cobranças acadêmicas de publicação da CAPES, os sem-número de revistas acadêmicas, e outros recursos virtuais, não são um paliativo para a retomada da significação da experiência da leitura, do texto e da reflexão. Todos estes media irrompem com a mesma velocidade interminada do mundo globalizado, e violentam as formas de aculturação centradas na tarefa do texto. A anticultura do texto que se desenvolve dentro de um ambiente de intensa volatilidade de uma massa interminável de textos conspira contra o conjunto dos modos de afirmação de uma cultura capaz de propor na significação do ato de produção intelectual uma forma de intervenção na vida pública. Onde a credibilidade do próprio texto se corrompe, com isto também se deturpa a possibilidade de uma sociedade esclarecida, e é aquilo que a modernidade fica aquém de sua promessa8.

Não é por outro motivo que o desaparecimento da possibilidade do iluminismo autêntico é o que torna hoje impossível de entrever a superação da condição humana apassivada e individualizada da sociedade da globalização. O poder de escolha numa cultura do genérico, numa cultura da multidão absorvida pela unidade, é achatado para fazer desaparecer a subjetividade autônoma, e é por isso que a qualidade do humano desaparece para aparecer a qualidade do genérico.9 A massa somente tem por referências os ícones do próprio processo de construção de identificação a partir do genérico; suas referências são as referências do mercado. A perda da subjetividade no individualismo é a cilada do moderno processo civilizatório, e o preço a pagar está no desaparecimento do laço contínuo que permite a intersubjetividade, elemento fundamental para a constituição da vida social. Presa fácil dos processos de dominação da mídia mercadurizada, o sujeito é encarcerado na dinâmica do gosto, o que acentua ainda mais o caráter melancólico de uma civilização estagnária, presa da hipertrofia individualista do ego, para seguir uma interpretação freudiana.10 Paradoxalmente, o gozo imediato se torna o presídio que mantém o indivíduo em permanente estado de subserviência ao mercado. É a imagem publicitária, agora, o instrumento que sabota o superego ao criar a falsa percepção de que, mesmo aprisionado ao gosto e ao consumo, a cela na qual se encarcera o indivíduo é tão larga quanto as possibilidades de compra (Douglas & Isherwood, 2004).

Nas democracias contemporâneas, banhadas pelo princípio da tolerância, os novos métodos de tortura evitam ao máximo a hostilidade ao corpo, já que temos horror da tortura físico-corpórea. Evitam-se ao máximo as formas explícitas de perseguição ideológica, ou política, ou intelectual, em nome da garantia de direitos constitucionais consolidados. Mas, isso não elimina a continuidade ininterrupta dos processos de construção e sofisticação do alheamento e do exílio, perpetrados ao longo de toda a história da vida moderna. A vida moderna, especialmente a da modernidade instrumental, não convive com uma plena ideia de liberdade intelectual, e, por isso, ao entrar em choque com esta perspectiva, obstrui caminhos e redefine o sentido de liberdades, dando à própria ideia de liberdade muros de definição que somente os soberanos podem identificar quais são. No lugar da ampliação dos espaços de liberdade, a modernidade caminha, contraditoriamente, rumando para um exílio da possibilidade do pensar. Não por outro motivo a vertigem dos intelectuais se consome em forma de revelação do próprio mal-estar na civilização (Freud, 1996, 1997).

Caminha-se, neste compasso, das formas explícitas de denegação das liberdades a formas implícitas de ocultação das verdades. Neste processo, a possibilidade da crítica é absorvida pelo amortecedor do próprio sistema, e por isso, sua drenagem para dentro do sistema torna possível que o pensar crítico sobreviva como forma de adereço do processo de marcha da modernidade instrumental a mais modernidade instrumental. Assim, os intelectuais são aceitos, são admitidos, pois são exercentes de uma liberdade sem-sentido, de uma liberdade esvaziada. Não por outro motivo a percepção sutil de esvaziamento do campo de embate aponta para o fato de que, com armas em punho, o intelectual crítico esgrime diante de um campo de batalha em que não existe oponente. Daí o fenômeno do final do século XX, início do século XXI, que torna possível a vida no mundo em que as ideologias tiveram seu fim decretado, e as meta-narrativas desapareceram: a introspecção psicológica do sofrimento, da angústia e da dor. Os intelectuais críticos falam para plateias surdas, se comunicam com leitores cegos, trocam informações com comunidades inexistentes, publicam para massas informes de pessoas, divulgam textos na internet para multidões de bits e code-nomes em circulação, participam de estatísticas de produção intelectual visíveis apenas para efeitos de cômputo geral de produtividade. Sem dúvida alguma, a tecnologia da informação contribui para o aprimoramento dos meios de comunicação, mas seu valor continua sendo ambíguo para a contribuição para a formação de uma consciência crítica. Por isso, em Caos na esfera pública, Habermas (2006) afirma: "A utilização da internet simultaneamente ampliou e fragmentou os nexos de comunicação. Por isso a internet produz por um lado um efeito subversivo em regimes que dispensam um tratamento autoritário à esfera pública".

O que se percebe, portanto, é que nas democracias contemporâneas, o intelectual pode sim falar, mas não será ouvido, e, se for ouvido, não será compreendido, e, se for compreendido, suas palavras passarão, como tudo passa, diante da sensação de que não há nada a fazer, afinal se vive o fim da história. Daí, sua assimilação sistêmica, e a candidez de seu papel ativo. Por isso, a morte do sujeito histórico na filosofia da história aparece, desde o fin de siècle, não somente como revelação do desaquecimento da chama emancipatória, mas, sobretudo, como indício da morte do próprio sujeito. Os tormentos da reflexão crítica se tornam, por isso, fantasmas que, por sua vez, se convertem em monstros intelectuais produtores do desassossego da alma, donde o nascimento das agitações que marcam uma vida de riquezas internas convertidas em misérias emocionais e sociais (Safatle, 2008).

 

5. Melancolia e crise política

Fora do espaço do lúdico, da socialização, da intervenção na vida social, de um agir fundado no espaço do interlúdio público e da troca comunitária, o pensar crítico se torna um exercício estéril de mimetização das dores sociais. Por isso, o intelectual padece do mal de quem é convidado a tornar, pela hostilidade de um mundo de individualidades autistas, intrapsíquico aquilo que é da ordem do interpsíquico, e, portanto, da ordem do político. O desafio à vida intelectual num mundo que se desmancha em redes de interação virtual é também o de conviver com as formas estratégicas pelas quais o próprio funcionamento das estruturas sociais negam espaço à política (Bauman, 2000). Quando a assimilação da dor se dá através de sua conversão em angústia pessoal, o intelectual se torna aquele que rumina os problemas de seu tempo, destilando-os na forma de um veneno que a si mesmo corrói (Bittar, 2009). A estratégia da invisibilidade, da opacidade e do não lugar, no recluso ambiente onde a crítica é aceita como exercício do socialmente consentido, é anuladora da perspectiva do pensar para alterar a forma de funcionamento da engrenagem da vida social. Nesse sentido, a metáfora encontrada na imagem criada por Dürer (Melencolia I), para representar a Melancolia, ganha toda a sua força; melancolia é a grandeza da potência das asas que acumulam energia potencial para fazer com que tudo permaneça parado.11

A sociedade globalizada e constituída em rede, como sociedade da despolitização é, por isso, moldada para dar lugar a uma nova geração, a geração prosac, a geração da desmobilização. É esta que absorve, na dimensão do subjetivo, aquilo que é da ordem do público, e a confusão destas categorias, torna possível que escoe para dentro dos mares do psiquismo o represamento de angústias sociais que somente podem ser alvo de ações sociais politicamente engajadas no campo da interação (Bauman, 2000, 2003). Não por outro motivo a dor de quem tem ouvidos para ouvir e olhos para ver é vivida como sintoma psíquico individual e, por isso, é assimilada como problema a ser dissolvido no divã, um lugar da prática privada, um lugar recluso, de exercício da mais extrema forma de subjetividade, ainda que supervisionada pela ética da psicanálise (Khel, 2002). Tornou-se possível para a psicanálise falar da depressão como o mal do século XXI, da mesma forma como a histeria o foi do século XIX (Freud, 1996) Os gregos conhecem a noção de krásis (temperamento) desde Hipócrates, e o temperamento melancólico, com relação aos temperamentos sanguíneo, fleumático ou bilioso, é identificado como sendo o mais patológico. O termo temperamento não tem mais utilização desde o século XIX, quando o termo caráter é introduzido no vocabulário da psicologia, assim como o termo melancolia, que acompanha um sem-número de percursos de intelectuais,12 não tem mais uso hodierno, sendo substituídos pelos estudos sobre depressão, em seus sentidos psicossomático e fisiológico. A sociedade da informação frustra as expectativas de integração social.

O que se percebe, portanto, é que o psiquismo sensível no mundo contemporâneo apresenta-se, acima de tudo, como adaptativo e reativo. Mais e mais o princípio de realidade governa a forma de abandono daquilo que o mundo externo reconhece e lê como sendo idealismo; mais e mais, a lógica do mercado impõe um modo de vida, tornando as formas de estruturar o convívio reféns, diante da impossibilidade de ser de outra forma. A adaptação é um imperativo. A imitação, base fundamental da construção da identidade social, é a arma da qual se vale o próprio mercado para a transplantação, em escala global, dos protótipos de vida assimiláveis e obrigatórios (Elias, 1994). Do ponto de vista social, a inveja, corrosivamente, aquece a lógica de construção não dos espaços de socialização, mas da competitividade entre loosers e winers. A perda de significação do espaço da lei e do direito, e sua substituição paulatina pela anarquia do mercado, que deflagra a intensificação da luta e acirra o espírito individualista antissolidário, são consequência esperadas. O psiquismo, diante destas hostilidades do mundo contemporâneo, deve reconhecer-se na defensiva, se ao menos pretende preservar minimamente o controle de si, ou ainda, se pretende sobreviver ao estado sonambúlico em que foram enterradas as formas de vida, quando se poderia estar em condições de recriar permanentemente o espaço da interação, e, com isso, as formas de integração social, gestando formas psíquicas emancipadas e emancipadoras.

Prisioneiro de inúmeras angústias, o sujeito do mundo contemporâneo, apesar do excesso de informações, percebe a ausência de canais políticos de evasão de necessidades sociais, e nisto identifica o caráter sufocante de viver em uma sociedade provida de informações e desprovida de meios de ação socialmente eficazes. Por isso, o homem moderno é refém da angústia dos males que são gestados na vida social, uma vez que é convertido em um soldado derrotado, antes mesmo de dispor-se à luta, e sem mesmo conhecer o seu campo de batalha; não há, em verdade, luta a ser lutada, pois a ideologia do fim das ideologias cria na atmosfera a impressão que assume, no des-limite ou no excessivo, a sua própria expressão. Na sociedade da egolatria consumista não há espaço para o espaço do comum; o comum importa na necessidade de compartilhar, e compartilhar é algo que, como experiência e como conceito, desapareceu da dinâmica dos costumes, pois compartilhar implica na renúncia de gozar, ou na renúncia de gozar narcisisticamente. O individualismo torna neurótica a necessidade de autossatisfação, elemento este que funciona como um fermento disruptivo para a dinâmica do psiquismo social; se a civilização implica uma renúncia ao gozo, não há civilização possível onde todos queiram gozar de todas as vantagens ilimitadamente.

A avaliação individual-isolada da vida social, a privatização das angústias existenciais, o isolamento social construído na base de um marchetamento da ideia decepcionada de natureza humana, o encurralamento das ideologias no perímetro do mundo sem-saída, a desorientação epocal são fatores que têm tornado a existência um cubículo sufocante. Todos estes sintomas convergem para identificar que a colheita da radicalização da visão liberal de mundo está aquém das promessas que seu ideário construiu. Junto com o estado atual do mercado, são suas próprias ideologias que não se sustentam. Na sociedade da anarquia das vontades individuais satisfeitas pelo mercado, fica evidente que o direito ou que toda forma de regulação social não tem vigência e não tem significação social, senão, enquanto tomado, ele mesmo, como um produto. Não se trata de uma questão de eficácia do direito do consumidor, mas se trata de uma questão conjuntural de consumação do próprio direito.

A privatização do sonho e o confinamento da utopia permitem que as fantasias sejam contornadas pelos limites materiais do desejo imediato e reificadas no imediatismo do ato de consumo. Enquanto as práticas de politização definham, seja na juventude, seja nos movimentos sociais, seja no conjunto das ações de estatização da política, uma maré de novos contextos complexos se abre, renovando a perspectiva de dificuldades a serem enfrentadas: desemprego, desestruturação familiar, falta de referências, degradação ambiental. O mundo se torna, por esta medida, assassino de ideais utópicos emancipatórios, e cada derrota da virtude é uma aproximação do ego ao princípio de realidade, que o limita e controla, mas o castra e o condiciona. Que o ego seja construído a partir da limitação relativa de éros nada há de patológico nisto, mas que o princípio de realidade absorva por completo o princípio de vida, isto é a patologia de um mundo que formata, de modo unidimensional, as personalidades para que sejam instrumentais a serviço do processo produtivo (Fromm, 1987; Marcuse, 1999). A civilização que está em curso é aquela do definhamento do sujeito, acossado e definido pelo superego do mundo social que desestrutura a autonomia na medida em que os laços sociais estão mercadurizados e atravessados por formas de interação não fundadas no entendimento, mas em imperativos sistêmicos, que dissolvem as categorias do humano-indivíduo e do humano-integração social (Habermas, 2002).

O não deixar passar da vigilância crítica, o aparecimento da reflexão que pensa a lacuna deixada para trás por um ato de barbárie, a preocupação em torno dos padecimentos do mundo, o compromisso ético com a humanidade: estes são traços do pensar crítico, que orientam a ação teórica, e impedem que ela se converta em legitimadora da barbárie (Adorno & Horkheimer, 1985). Ela é, por isso, fortemente centrada em seu poder de resistência. Não obstante, o anti-humanismo do mundo banha de culpa a decisão do intelectual de projetar-se para dentro do humano, do mundo, e de estar adiante de seu tempo. Pergunta-se, incessantemente: "há compensações para esta dor de ter o fardo de falar da dor"? ou, ainda, de ser "portador da dor dos outros, tornando a dor dos outros um pouco sua?". Há sempre a opção de ser assimilado; ser assimilado é, o tempo todo, o esforço de ajustar-se, de caber dentro das regras, de servir ao sistema, de se converter. E isto tudo significa a renúncia a ir-além, o policiamento do pensar-diferente, e, por isso, a própria impossibilidade da crítica. Diante deste quadro, sua arte se torna, assim, o seu martírio, e sua sofreguidão melancólica, o seu mausoléu. Apesar de Walter Benjamin (1930/1994), em seu texto sobre melancolia de esquerda afirmar: "A melancolia e a obstrução intestinal sempre estiveram associadas" (p. 77), para todos os efeitos, o trancafiada condição do intelectual somente pode significar uma conversão do prazer em dor, o que significa o mesmo nas palavras do poeta inglês novecentista J. Keats, que, na Ode on Melancoly III, versifica: "No mesmo templo do deleite/ A velada melancolia tem seu santuário". Hoje em dia, portanto, o calabouço escuro, discreto, úmido e silencioso ao qual são entregues os intelectuais, por ousarem ser e pensar diferentemente, é exercido em plena luz do dia, e com toda a liberdade e todos os instrumentos da civilização à sua disposição; usar armas já não tem eficácia transformadora.

Sua aceitação está sempre condicionada à sua organicidade. A fórmula vitoriosa e hegemônica exige que, para ser aceito e tragado pelo sistema, o intelectual se alinhe com a vigência e a exigência. O preço? Renegar-se. Tudo conspira a favor de um: converta-se e renegue-se. Giordano Bruno foi obrigado a fazê-lo, diante da Inquisição, mas somos obrigados a fazê-lo todos os dias, em nome de uma racionalidade prática que nos agride por todos os lados com seus jorros de pragmatismo e imediatismo. Se para os antigos, como para Aristóteles, a vida contemplativa, a mais excelente entre as formas de bíoi, era o coroamento da existência feliz, porque mais próxima da atividade dos deuses, já não se pode dizer o mesmo em tempos em que, apesar de sobreviverem, os intelectuais assumem a carga de pensar os paradoxos da civilização, impossibilitados de agirem para a sua transformação. Não é por outro motivo que no filme adaptado da obra O nome da Rosa, de Umberto Eco (1980), em sua clausura, na leitura da noite, o monge que cuida da biblioteca, guardião do saber e reservista do controle da informação, seguido de seu secretário, afirma: "E quanto mais conhecimento, mais sofrimento advém". Não é acidental que, em muitos casos, o amor ao pensamento leve muitos intelectuais críticos ao ceticismo, caminho sem retorno para aqueles que se nutrem apenas do realismo (Freud, 1997; Rouanet, 1993).

O olhar decepcionado, apesar de resistente, daqueles que enxergam o que usualmente se apaga ao olhar superficial e comum, o olhar fatigado, diante da impossibilidade de converter o sonho em realidade, a ideia em ação, a fantasia em concretude. Onde o mundo resiste a mudanças escapa à possibilidade de ser de outra forma, deixando àqueles que sonham utopicamente apenas o lastro pesado de um retorno ao ponto-de-partida, a mesmice do cotidiano. A destilação melancólica da condição humana, algo que ganha estatuto específico de estudo na modernidade desde Burton,13 e o processamento reflexivo das misérias mundanas arrastam o intelectual à decepção ante o sentimento de que do mundo se poderia exigir mais e de que da humanidade se poderia pedir outra coisa. Ali onde não estão o amor, a solidariedade e a compreensão é que aparecem as lacunas a serem preenchidas pela dor da reflexão intelectual que se acostuma com a barbárie, a assisti-la, a reagir perante ela, mas conhecedor da ineficácia de seus meios. Num mundo sem encanto, que se consome em rudeza e que afoga as diversas formas de sensibilidade, o intelectual crítico tem a sensação de que vive em exílio permanente, de que é, entre os diversos profissionais da sociedade moderna, um pária inassimilável, drenando para o universo da melancolia aquilo que deveria ocupar o plano desocupado da política (Lages, 2007).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Eduardo Carlos Bianca Bittar
Departamento de Filosofia e Teoria geral do Direito da FDUSP
Largo de São Francisco, 95, 2º andar, prédio anexo. Centro
São Paulo, SP. CEP.: 01005-010
Fone: (11) 31114015
E-mail:edubittar@uol.com.br

Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

 

 

Sobre o autor: Eduardo C. B. Bittar. Livre-Docente e Doutor, Professor Associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, nos cursos de graduação e pós-graduação. Professor e pesquisador do Mestrado em Direitos Humanos do UniFIEO. Presidente da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP/ NEV-USP). Pesquisador-Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Coordenador do Grupo de Pesquisa "Democracia, Justiça e Direitos Humanos: estudos de Escola de Frankfurt", junto ao NEV-USP.

 

 

1 "... a melancolia, conceito antigo na medicina, ganha novo impulso com o advento da modernidade, um ciclo histórico que se caracteriza pela bipolaridade, pela alternância entre mania e melancolia" (Scliar, 2008, p. 138).
2 "A fé na ciência, independentemente de suas injunções ideológicas, políticas e econômicas, produz a ideologia de que a maior parte dos problemas dos homens pode ser resolvida por ela" (Matos, 2008, p. 10).
3 "A média das pessoas sente nessas duas categorias (cultas e incultas) uma diferença e uma distância social tão grandes quanto entre o rico e o pobre, ou entre o empregador e o empregado" (Mannheim, 1982, p. 105).
4 A exemplo de Montaigne e sua decepção com a política: "O preço a pagar podia ser o retiro, o isolamento: é o caso de Montaigne, que, desgostoso com a vida pública, ele que fora prefeito de sua cidade, refugia-se em seu castelo para ali, rodeado de livros, buscar resposta à pergunta famosa, Que sais-je?, O que sei eu? Montaigne não era exatamente um eremita; os ensaios mostram que continuava atento às coisas de seu tempo. Mas era aquela figura de que fala Milton em Il Penseroso: o melancólico em sua torre solitária" (Scliar, 2008, p. 137).
5 "Essa irrupção do individualismo não é vista sem reservas. Pode resultar em auto-afirmação, mas resulta também em angustiante, melancólico desamparo, conseqüência do esgarçamento do tecido social" (Scliar, 2008, p. 135).
6 Qual, afinal, a tarefa de educar na liberdade e para a liberdade? Adorno responde a esta questão em Educação - para quê?, onde se lê: "A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação" (Adorno, 2003, p. 144).
7 "A predominância do cânone das ciências exatas hoje resulta, entre outras dimensões, em uma sociologia sem sociedade, em uma democracia sem democratas" (Matos, 2008, p. 11).
8 "(...) gostaria de enfatizar, por outro lado, que o fio que pode nos atar dessa maneira à Aufklärung não é a fidelidade aos elementos da doutrina, mas, antes, a reativação permanente de uma atitude; ou seja, um éthos filosófico que seria possível caracterizar como crítica permanente de nosso ser histórico" (Foucault, 2000, p. 345).
9 "Na identificação forçada do homem-massa com a totalidade social, contudo, não havia liberdade alguma" (Jay, 2008, p. 342).
10 "Sigmund Freud deu para isto uma contribuição importante, quando conceituou a melancolia como luto prolongado, patológico, uma verdadeira ferida narcísica, agravada, na cultura ocidental, pela hipertrofia do ego, esta, por sua vez, conseqüência da afirmação da individualidade" (Scliar, 2008, p. 138).
11 "A melancolia, objeto do livro de Burton será também tema de obras artísticas, como a gravura de Melencolia I de Dürer. Ali a Melancolia é representada como uma mulher de asas - ou seja, potencialmente capaz de altos vôos intelectuais" (Scliar, 2008, p. 135).
12 É o caso de Walter Benjamin: "A melancolia é um motivo constante e quase evidente na obra de Walter Benjamin: pode-se dizer que ela constitui um denominador comum que acompanha o encontro entre as concepções místico-teológicas da primeira fase com o engajamento político ao marxismo da segunda" (Lages, 2007, p. 101).
13 "Em 1621 foi publicado na Inglaterra um livro intitulado A anatomia da melancolia (The anatomy of melancoly). Seu autor era Robert Burton" (Scliar, 2008, p. 133).

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