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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

De gestores e cães de guarda: sobre psicologia e violência

 

Managers and watchdogs: psychology and violence

 

 

Maria Helena Souza Patto

Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir de exemplos de práticas profissionais de psicólogos na área da educação escolar, e tomando como pano de fundo a produção de conhecimento em sociedades fundadas em princípios democráticos, mas marcadas por profundas e congênitas desigualdades sociais, o texto trata da adesão das ciências humanas ao estabelecido, adesão que se dá por meio de teorias, conceitos e técnicas que, ao naturalizarem homem e sociedade, participam da justificação da desigualdade social e de várias formas de violência contra a cidadania.

Palavras-chave: Psicologia e violência, Ciências humanas e ideologia, Relações de poder.


ABSTRACT

Based on examples of professional practices by psychologists working with school education, and having as background the production of knowledge in societies grounded in democratic principles, but marked by deep and congenital social inequalities, the text deals with the Humanities adhering to the establishment by means of theories, concepts and professional practices that participate in the justification of inequality and several forms of violence against citizenship as they naturalize man and society.

Keywords: Psychology and violence, Humanities and ideology, Power relations.


 

 

No início dos anos de 1970, recém-formada em Psicologia, morei nos Estados Unidos. Eram tempos de grandes manifestações públicas contra a guerra no Vietnã e em defesa dos direitos humanos. Martin Luter King e outros líderes do movimento haviam sido recentemente espancados, aprisionados, assassinados. O clima era tenso naquele início de década. Lembro-me que entrei numa lanchonete no Harlem, acompanhada de uma professora da universidade, e que deixamos o local, depois de longa espera, sem sermos atendidas. Enquanto procurávamos um outro lugar, ela me contava lances da barbárie racista norte-americana remota e recente que latejava na situação que acabáramos de viver. Voltei para casa com a mala repleta de livros e artigos sobre a teoria da carência cultural, então a última palavra em matéria de explicação da desigualdade social que marcava (e marca) a sociedade que se autoproclama a mais democrática do planeta. Essa experiência e esses textos passaram a fazer parte das lentes pelas quais vejo o mundo e a psicologia.

*

Como resposta da academia à denúncia de desigualdade e às reivindicações de direitos sociais e civis por parte dos negros norte-americanos, a teoria da carência cultural foi discurso oficial gerado por forças-tarefa criadas por órgãos estatais que reuniram psicólogos, sociólogos, antropólogos, economistas, pedagogos, educadores, assistentes sociais, linguistas. A essência da explicação das desigualdades sociais gerada por esses especialistas é tautológica: a pobreza econômica (entendida como falta de recursos para atender às necessidades de todos) gera pobreza cultural que, por sua vez, produz pobreza psíquica decorrente de desenvolvimento deficitário de todas as capacidades e habilidades mentais. O resultado é a diminuição da inteligência, entendida como sinônimo de QI, que barra o sucesso escolar e profissional e reinicia o ciclo da pobreza na geração seguinte. (U.S. Department of Health, 1968/1981).

Num país que se considera meritocrático - ou seja, que acredita que a ascensão social dáse pelo mérito ou talento de cada um - venceriam os mais aptos, seja na escola, seja no mundo do trabalho. E esta crença é tão antiga quanto o país, fundado na ética protestante, base cultural da gênese do capitalismo segundo Weber (1920/1989) em A ética protestante e o espírito do capitalismo. Pelo mesmo motivo, é antiga na América do Norte a presença da psicologia, cujas práticas de avaliação e classificação de indivíduos e grupos encontraram terreno mais do que propício num país plantado na crença de que diferenças individuais de capacidade explicam a desigualdade de condições de vida. Não por acaso, foi nos Estados Unidos que a psicologia aplicada floresceu (Paicheler, 1992). Inicialmente entendidas como genéticas, estas diferenças foram, a partir dos anos de 1960, e por motivos políticos que não cabe desenvolver aqui, tomadas como fruto de diferentes condições de estimulação ambiental. Esta mudança de ênfase nos pólos hereditariedade-meio não impediu, entretanto, que se continuasse a defender a origem genética das diferenças individuais e étnicas, como o fez o professor da Universidade de Harvard R. J. Herrnstein, que, embora falando de dentro de uma sociedade geradora de privilégios e de diferenças profundas de condições de vida, repôs a tese da predominância das capacidades humanas herdadas, realidade biogenética que forma grupos de excelência intelectual, rege a mobilidade social e garante que portadores dos quocientes intelectuais mais altos atinjam status social e econômico privilegiado (Herrnstein, 1971/1975).

No bojo dessa versão ambientalista, o que se pode é tentar reverter, por meio de programas de educação compensatória, as supostas deficiências sensoriais e motoras, intelectuais e neurológicas, verbais e morais, emocionais e de ajustamento presentes entre as crianças das classes populares, para que possam competir com as demais pelos melhores lugares sociais. Programas que, partindo do pressuposto do primitivismo (da irracionalidade) da cultura popular, pretendem democratizar a educação escolar e o mercado de trabalho pelo exercício de "violência simbólica", tal como a entende Bourdieu e Passeron (1975), pela imposição do habitus de classe da classe média (tida, nesta literatura, como sinônimo de classe dominante, dada a sua dominância numérica!) - seus usos e costumes, crenças e estereótipos, valores e expectativas, estilos de pensamento e de linguagem - mediante práticas escolares que mais desqualificam outras formas de viver e de pensar do que oferecem possibilidades reais de formação intelectual. Entre as deficiências apontadas, destaca-se nessa literatura científica a deficiência de linguagem, o código restrito de comunicação. A esse respeito, ouçamos Chauí (1980), comentando análise de Ecléa Bosi sobre o estilo popular de linguagem:

estamos habituados, dizia ela, a supor que o "povo" tem um código perceptivo e linguístico restrito (eufemismo para encobrir palavras como inferior, pobre, estreito), pois tomamos nossos próprios códigos como paradigmas e somos incapazes de apreender a diferença de um outro código, conciso pela fala e expressivo pelo gesto, marcado pela fadiga, por uma relação com o trabalho na forma de cansaço, numa exaustão que determina a maneira de designar o espaço e viver o tempo. Porque já sabemos o que é a consciência de classe correta, tudo o que escapa ao nosso saber serve apenas para afirmarmos a existência de alienação ali onde certamente não se encontra. (p. 47)

A psicologia da carência cultural afastavase temporariamente do biologismo que a dominou por mais de um século e substituía as explicações genéticas, que lastrearam concepções racistas, de forte e permanente presença no imaginário social. Oficialmente, o evolucionismo suplantou o darwinismo social. No discurso oficial de então, negros e pobres não eram tidos como inferiores geneticamente, pois podiam evoluir. Numa sociedade supostamente igualitária, bastava dar-lhes oportunidades educacionais. Nessas circunstâncias, os que continuassem perdedores teriam sua incapacidade comprovada. Voltava-se, assim, ao ponto de partida, embora nos anos de 1970 já houvesse críticas às pesquisas que deram força à crença na inferioridade psíquica dos pobres e fundamentaram os programas de educação compensatória. Críticas que remetiam a desigualdade social à lógica das sociedades capitalistas industriais. Diante disso, é legítimo perguntar se esta nova versão sobre o processo de produção da desigualdade social não foi apenas uma nova expressão da crença na inferioridade de pobres e não brancos, uma forma sutil de repor o preconceito, até porque, nesse contexto teórico, ambiente é concebido como produto da história natural, isento das relações de poder historicamente engendradas pelos homens.

Foi assim que o surgimento de uma especialização - a psicologia - e de sua profissionalização criou um profissional tido como o único competente para dizer como as pessoas são, pois disporiam de teorias e de instrumentos científicos de avaliação, por suposto objetivos e neutros. Num mundo que "cultua patologicamente a cientificidade", de "hipervalorização do conhecimento dito científico", "o discurso competente é o discurso instituído", é "a linguagem institucionalmente permitida e autorizada", é "a ciência como saber separado e como coisa privada" que "se instala e se conserva graças a uma regra que pode ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa a qualquer outro em qualquer ocasião e em qualquer lugar. Com esta regra, ele produz sua contra-face: os incompetentes sociais". Estão dadas as condições científicas para dissimular a "divisão social do trabalho sob a imagem da diferença de talentos e de inteligências" (Chauí, 1980, p. 1-13, passim). Noutras palavras, Chauí (1980) afirma que:

o discurso sábio e culto, enquanto discurso do universal, pretende unificar e homogeneizar o social e o político, apagando a existência efetiva das contradições e das divisões que se exprimem como luta de classes. Este apagamento se faz através de mil recursos institucionais acerca dos quais podemos instruir-nos fartamente com a leitura dos tratados de psicologia, pedagogia e sociologia. O discurso grosseiro e grosso das elites tem exatamente a mesma finalidade, embora seus caminhos não sejam tão...civilizados (p. 52).

Há poucos anos, cruzei num corredor com um grupo de alunos da graduação do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP) que saía de uma sala de aplicação de testes do PSA. Um deles exclamou: "Eu me sinto tão poderosa quando aplico um teste!" A moça tinha razão, pois é disto que se trata: de exercício de poder e da sedução que ele exerce numa sociedade hierarquizada e marcada pelo autoritarismo das elites econômicas e intelectuais.

Por isso, vale perguntar se na psicologia da pobreza não está ao mesmo tempo a pobreza e a riqueza da psicologia. Pobre como produtora de saber e, exatamente por isso, poderosa como instrumento de justificação de uma sociedade atravessada de injustiça. Basta examinar laudos emitidos por psicólogos sobre alunos da rede pública de ensino fundamental que apresentam dificuldades de escolarização para encontrar fortes indícios disso. Neles, encontramos desde absurdos como "o sujeito denota uma certa dissimulação do caráter, numa tentativa de controle. Apresenta personalidade primitiva, agindo mais por instinto do que pela razão" ou "a nível emocional, o paciente (...) tende também a apresentar dificuldades com a realidade do meio, com predomínio da vida instintiva", até textos elaborados com termos e jargões de uma psicologia psicométrica. No entanto, mesmo quando mais elaborados e no formato-padrão ensinado em cursos de psicologia, os laudos falam, com convicção autoritária, de um sujeito abstrato, reduzido a números e a chavões vincados de arbitrariedade e preconceito; silenciam sobre a realidade social, a política educacional, o cotidiano escolar e podem, por isso, culpar a vítima, situando invariavelmente no aluno e em seu ambiente familiar tomados em si mesmos a origem das dificuldades escolares.

Nesses pareceres, não encontramos pessoas: os avaliados, como regra, não pertencem a uma classe social; não se encontram numa instituição de ensino construída no interior de uma sociedade que a determina; não vivem numa sociedade dividida, injusta, preconceituosa e violenta; não têm uma história familiar e escolar; não têm uma vida fora da escola, não fazem parte de grupos de pares onde brincam, dialogam, propõem, negociam - em suma, não têm experiências de vida, reduzidos que são a opiniões e estereótipos incrustados na queixa escolar. A julgar pelas deficiências que lhes atribuem psicólogos e professores, eles não teriam condições de sobreviver, muito menos em condições de vida em geral adversas. O que se tem é um feixe de deficiências deduzidas de seu desempenho na situação artificial e ameaçadora da avaliação psicológica, sobretudo aos que já foram estigmatizados por avaliações peremptórias de competentes que os relegaram à condição de incapazes ou anormais. Interessante notar que opiniões de professores e pareceres de psicólogos geralmente convergem.

As linhas da fala de uma professora dizem o mesmo que as entrelinhas de muitos laudos:

"estas crianças vêm para a escola todas sujas, malcheirosas, a família não está nem aí. Não têm o mínimo de noção de espaço, coordenação, a lateralidade é toda atrapalhada. Algumas crianças não têm nada de discriminação visual, como é que eu posso alfabetizar? As histórias são de amargar: em casa tem pai bêbado, a mãe que espanca e vive cheia de amantes e o irmão drogado."

Aderida "à opinião, principalmente à que está endossada pelo poder" (Bosi, 1992, p. 118), a maior parte dos pareceres psicológicos que entopem arquivos de escolas, delegacias de ensino e de tantas outras instituições disciplinares, nada mais faz do que dar credibilidade a preconceitos de raça e de classe, mesmo quando esses pareceres se valem de concepções caducas no campo das ciências humanas (por exemplo, a crença no primitivismo dos não brancos) e de estereótipos verbais trazidos pela recente epidemia de livros de autoajuda (a psique humana reduzida a autoestima). E a credibilidade vem da condição do especialista, alçado à condição de único competente para dizer. É assim que a maioria dos laudos confirma queixas leigas e afirma o que os solicitantes dos exames psicológicos querem ouvir. Ao agirem assim no âmbito escolar, os profissionais da psicologia cometem pequenos assassinatos, quando minam a identidade do culpado, e crimes de lesa-cidadania, quando justificam a negação do direito à educação escolar.

Diante deste quadro, é imperativo perguntar:

Que ciência é esta que reduz uma complexa questão social a problemas psíquicos?

Que ciência é esta que desconsidera as relações de poder numa sociedade dividida, desigual, fundada na exploração e na opressão?

Que ciência é esta que não percebe que, numa sociedade assim, ela é instrumento de justificação da exploração econômica e da desigualdade que esta produz?

Que ciência é esta que não tem condições teóricas de pensar o seu próprio pensamento do ponto de vista epistemológico e ético-político?

Que ciência é esta que desconsidera as especificidades do tempo e do lugar em que foi inventada?

Que ciência é esta que forma profissionais que não questionam a competência que lhes é atribuída para dizer sobre as pessoas, que não se perguntam sobre a origem das ideias que carregam e sobre as razões econômicas e políticas subjacentes à invenção das teorias e das aplicações profissionais da ciência que praticam?

Que ciência é esta cujos profissionais não podem e/ou não querem perceber que, quando medem, classificam e redigem laudos para subsidiar medidas de adaptação ao estabelecido ou de segregação, estão exercendo violência que mantém o instituído, produz consentimento e dá força aos que dominam?

Que ciência é esta que eterniza seus instrumentos de medida, sem questionar os procedimentos que os construíram e as concepções de inteligência e de normalidade que os presidem?

Que ciência é esta que invariavelmente culpa a vítima, imbuída da crença, tomada como verdade inquestionável, de que os reveses que castigam os vitimados são consequência natural de suas próprias características psíquicas?

*

Psicólogos que exercem a profissão entre a opinião e o estereótipo aproximam-se das pessoas como se elas fossem coisas ou animais e desconsideram a complexidade dos homens como seres sociais historicamente construídos. Psicólogos assim ficam, eles também, reduzidos a coisas: tornam-se máquinas de gestão de riscos sociais, exercem a função de cães de guarda do sistema.
A primeira expressão - gestores de riscos - é de Robert Castel na análise que fez das mutações da psicanálise e da psiquiatria clássica nos centros comunitários de saúde mental norte-americanos da década de 1970, que instalaram práticas preventivas que se queriam inovadoras, mas que repunham práticas de controle e domesticação. Velhos vinhos em novas garrafas: mudaram as formas, continuaram os princípios e conceitos que gerenciam os riscos de desobediência que permanentemente ameaçam a sociedade disciplinar. Novas psicotecnologias póspsiquiátricas e pós-psicanalíticas deram continuidade ao psicologismo e disseminaram novas práticas de administração social e individual supostamente neutras, mito reforçado por psicanalistas que insistiram na neutralidade política da psicanálise. Surgem, assim, novas formas de gestão social praticadas por novos especialistas, que em outro lugar denominei "mutações do cativeiro". Segundo Castel, assistimos, nas últimas décadas, ao advento de estratégias inéditas de gerenciamento de problemas sociais a partir da gestão das particularidades individuais que passaram da instituição totalitária ao totalitarismo psicológico. No fundo, restos de uma apropriação vulgar da psicanálise que agora se vê "mergulhada numa cultura psicológica que ela mesma ajudou a promover" (Castel, 1981/1987, p. 15). A novidade não está, portanto, na administração autoritária das populações de risco, que continua diretamente orquestrada pelo Estado, mas em técnicas pósasilares que gerenciam fragilidades individuais por meio de inovações aparentemente lúdicas: exercícios de intensificação do "potencial humano", técnicas de desenvolvimento do "capital relacional" segundo expressões usadas por Castel. e toda uma parafernália de mercadorias oferecidas a consumidores que buscam a felicidade e a sociabilidade perdidas.1 Diante disso, Castel (1981/1987) conclui:

A análise da cultura psicológica desemboca assim nessa terra de ninguém, onde as fronteiras entre o psicológico e o social se embaralham porque uma sociabilidade programada por técnicas psicológicas e relacionais representa o papel de substituto de um social em crise" (p. 168).2

A expressão "cães de guarda" é o título de um ensaio de crítica da filosofia da autoria do filósofo francês Paul Nizan3 e voltado para a crítica da filosofia. A partir da questão da destinação das idéias, ele interroga a filosofia dominante na época, munido de indagações fundamentais: a que ela serve? Quais as relações possíveis entre a filosofia e os homens? O que ela faz pelos homens? O que ela faz contra eles? A partir da tese de que há "inteligência contra o homem e a favor do homem" (Nizan, 1932/1998, p. 25), ele analisa sistemas filosóficos dominantes nas primeiras décadas do século XX e encontra uma filosofia fechada em si mesma, de costas para o mundo, que se crê atemporal e faz reflexões descarnadas, plenas de abstrações e inversões, sobre o Espírito, as Ideias, a Moral, o Bem Supremo, a Razão, a Justiça. Seus criadores são filósofos idealistas alojados na universidade, instituição cada vez mais anêmica, produtora de uma filosofia-em-si, indiferente às misérias do mundo, que pensa um homem reificado. A isso se contrapõe o jovem filósofo inconformado: "a exploração atual dos operários, a anarquia da terra, a corrupção dos políticos, a miséria sentimental em que todos estão em vias de sucumbir não são desvios do destino de uma humanidade-em-si." (Nizan, 1998, p. 24). Atento às misérias da época, entre as quais a miséria da academia e da filosofia, produtos e produtoras do vazio espiritual dos homens, ele declara: "há uma família de filósofos da qual sou inimigo", entre eles Leon Brunschvicg, filósofo idealista e espiritualista francês influente no mundo político e universitário naquele tempo e lugar. O "desgosto", segundo Hamili (1998a), é o sentimento dominante na geração de Nizan, única palavra escrita numa folha de papel ao lado do corpo de René Crevel, um jovem francês que participou do movimento surrealista e que, ao suicidar-se, encarnou de modo dramático o mal-estar na civilização dos intelectuais de seu tempo.4

*

O psiquiatra inglês Donald Laing, num texto que trata da difícil e polêmica relação entre o psíquico e o social, fala da impossibilidade de dissociar interioridade e exterioridade, indivíduo e sociedade, eu e mundo em termos que permitem a crítica da psicologia da pobreza e a elaboração de uma psicologia social do oprimido:

Uma lição fundamental que quase todos os estudiosos das Ciências Sociais aprenderam é que a inteligibilidade dos acontecimentos socais exige que eles sempre sejam vistos num contexto que se estende espacial e temporalmente. (...) À medida que partimos de micro-situações e nos dirigimos a macro-situações, verificamos que a aparente irracionalidade do comportamento numa pequena escala assume certa forma de inteligibilidade quando visto num contexto. Movemo-nos, por exemplo, da aparente irracionalidade de um único indivíduo 'psicótico' para a inteligibilidade dessa irracionalidade dentro do contexto da família. Por sua vez, a irracionalidade da família deve ser situada no contexto de suas redes circundantes, as quais devem ser vistas no contexto de organizações e instituições ainda maiores. Esses contextos mais amplos não existem lá fora, num lugar periférico do espaço social: eles penetram nos interstícios de tudo o que abrangem. (...) Comecei tentando ver através da densa opacidade dos acontecimentos sociais, estudando certas pessoas tachadas de psicóticas ou neuróticas, como as que vemos nos hospitais de alienados, unidades psiquiátricas e clínicas de pacientes nãohospitalizados. Comecei a ver que estava envolvido no estudo de situações, e não apenas de indivíduos. (...) O comportamento dessa gente era considerado como sinais de um processo patológico em andamento dentro delas (...) Uma pessoa não existe sem um contexto social; não se pode tirar uma pessoa do seu contexto social e ainda considerá-la como pessoa ou agir em relação a ela como tal. E se não agimos para com outrem como pessoa, despersonalizamo-nos a nós mesmos. (Laing, 1968, p. 15-17, passim).

Como exemplo deste olhar, trago um texto que denuncia a brutalidade da colonização, reinterpreta a psicologia do colonizado escrita pelo colonizador, assinala a colaboração de psiquiatras e psicólogos com a doutrinação e a tortura que corre nos porões da guerra colonial5 e apresenta casos de distúrbios psíquicos surgidos num cenário de violência multiforme, longa e extrema: a guerra de libertação da Argélia (1954-1962), colônia francesa desde 1830. Trata-se de Os condenados da terra (1961), da autoria de Paul Nizan e prefaciado por Jean-Paul Sartre.6

Sartre percebe que Fanon não fala aos franceses, mas dos franceses aos colonizados. Sua voz é a de um africano, de um homem do Terceiro Mundo, de um colonizado que não está preocupado com a França, que não quer curá-la, nem fazer-lhe sugestões, mas empenhado em oferecer aos colonizados um diagnóstico da colonização que os municie na ação libertadora: "amiúde fala de vós, mas nunca a vós." (Sartre, 1961/1968, p. 5). Porta-voz das análises de Fanon, o autor de Com a morte na alma fala aos franceses da história colonial como uma história de opressão e de "hipocrisia liberal" de um país que prega o tempo todo a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, mas invade, oprime, tortura e mata. Quando muito, seus representantes fazem propostas de aparente generosidade, como se não soubessem que "essa bela palavra sonora só tem um sentido: estatuto outorgado" e que, para esses escravos dos tempos modernos, "ninguém tem o poder nem o privilégio de dar nada a ninguém. Todos têm todos os direitos." (Sartre, 1961/1968, p. 18). Um país que, ao instituir-se como civilizador de homens primitivos, muniu-se de teorias raciais que desnudam sua "bela alma racista." (Sartre, 1961/1968, p. 14).

Mas se não fala a nós, poderiam argumentar os franceses, este livro não nos interessa. Ao que Sartre contra-argumenta: "nossas vítimas nos conhecem por suas feridas e seus grilhões. Basta que nos mostrem o que fizemos delas para que conheçamos o que fizemos de nós."7. E o que fizeram delas impõe aos franceses o rubor: "Tende a coragem de o ler por esta primeira razão de que ele fará com que vos sintais envergonhados, e a vergonha, como disse Marx, é um sentimento revolucionário" (Sartre, 1961/1968, p. 8).

Por que trazer Os condenados da terra a um evento sobre psicologia e violência? Porque ele examina as várias formas de violência no contexto da guerra colonial. Porque, como psiquiatra crítico, Fanon está atento à psicologia do colonizado elaborada por psiquiatras que insistem numa "ignorância maciça do contexto social" (Laing, 1968, p. 17)e à participação de psiquiatras e psicólogos nas violências cometidas. Porque ele desmonta a versão oficial da psicologia do argelino, mostra seu caráter ideológico e propõe uma outra, que não ignora a presença maciça do contexto social.

O mundo colonial é dividido; no apartheid, há uma cidade indígena e uma européia, há escolas para colonizados e escolas para europeus. Enquanto nos países europeus, colonizadores, procura-se incutir o respeito à ordem por meio do ensino religioso ou leigo, da formação de hábitos morais que passam de pais para filhos, da premiação de operários exemplares, do amor à harmonia e à prudência que torna mais fácil o trabalho das instituições de coerção física; enquanto neles a relação entre o explorado e o poder é mediada pela ação de "uma multidão de professores de moral, de conselheiros, de desorientadores" (Fanon, 1961/1968, p. 28, itálico nosso), o mesmo não se dá nas regiões coloniais. Nelas o policial e o soldado, "por sua presença imediata, por suas intervenções diretas e frequentes, mantêm contato com o colonizado e o aconselham, a coronhadas, ou com explosões de napalm, a não se mover. (...) O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado" (Fanon, 1961/1968, p. 28).

As duas zonas não são complementares:

obedecem ao princípio da exclusão recíproca: não há conciliação possível, um dos termos é demais. A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de ferro e pedra. É uma cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes de lixo regurgitam de sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sonhadas. (...) A cidade do colono é uma cidade saciada, indolente, cujo ventre está permanentemente repleto de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros. (...) A cidade do colonizado, ou pelos menos a cidade indígena, a cidade negra (...) é um lugar mal-afamado, povoado de homens mal-afamados. Aí se nasce não importa onde, não importa como. Morre-se não importa onde, não importa de que. É um mundo sem intervalos, onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade acocorada, uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada. É uma cidade de negros, uma cidade de árabes (Fanon, 1961/1968, p. 28-29).

Ou seja, a colônia é um mundo dividido e habitado por espécies diferentes, e o que o cinde é "o fato de pertencer ou não a tal espécie, a tal raça. (...) A espécie dirigente é especialmente a que vem de fora, a que não se parece com os autóctones, os outros." (Fanon, 1961/1968, p. 30, itálico nosso)

Mas não basta limitar o nativo fisicamente, não só porque, sozinha, a violência física pode produzir reações violentas, mas porque não se pode exterminar aqueles que servem aos interesses do capital europeu, primeiro como mão-de-obra gratuita, depois como mercado consumidor. É preciso limitá-lo pela coerção psicológica, por várias formas de violência simbólica, a violência que afirma a supremacia dos valores brancos, a agressividade que impregna o confronto vitorioso desses valores com os modos de vida ou de pensamento dos colonizado. Uma delas, a imposição arbitrária de um arbitrário cultural - apresentado, no entanto, como o único verdadeiro, pois evoluído, civilizado - opera pela detração do colonizado e de suas formas de viver, chave que abre a porta para a ideologização larga e funda.

O mundo colonizado é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono limitar fisicamente, com o auxílio da polícia (...), o espaço do colonizado. Ilustrando o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal. (...) O indígena é declarado impermeável à ética, ausente de valores, negação dos valores. É, ousemos confessá-lo, o inimigo dos valores. Nesse sentido, é o mal absoluto (...) depositário de forças maléficas, instrumento inconsciente e irrecuperável de forças cegas. (...) Os costumes dos colonizados, suas tradições, seus mitos, sobretudo seus mitos, são a própria marca desta indigência, desta depravação constitucional. (Fanon, 1961/1968, p. 30-31)

Os intelectuais colonizados, sejam eles europeus ou nativos europeizados, "meninos mimados ontem pelo colonialismo", tornam-se cães de guarda do sistema no exercício de cargos administrativos, técnicos e acadêmicos, onde gerenciam riscos de vários modos. As formas mais civilizadas consistem na disseminação da ideologia liberal reduzida ao culto do eu, do individualismo como expressão de liberdade que lhes foi incutido na metrópole, ênfase esta que conspira contra o nós, desmobiliza a ação coletiva. Em cargos universitários, esses intelectuais elaboram e disseminam uma psicologia do colonizado. Magistrados, policiais, advogados ou médicos, eles afirmam a presença de taras no povo argelino valendo-se de um discurso oficial supostamente comprovado pela ciência: os nativos são "indolentes natos, mentirosos natos, ladrões natos, criminosos natos" (Fanon, 1961/1968, p. 256), um discurso oficial "cientificamente estabelecido".

Pesquisa realizada por mais de trinta anos sob a coordenação de um certo Prof. Porot, docente de psiquiatria na Faculdade de Argel, com o objetivo identificar e explicar as modalidades do crime nos países do norte da África, resultou no perfil do criminoso norte-africano e tornou-se matéria do curso de psiquiatria na Universidade de Argel. Médicos jovens aprendiam que o norte-africano é agressivo, instável, insensato, impulsivo, incapaz de pensamento cartesiano. Um discípulo desse professor encontrou traços de melancolia nos sujeitos examinados, mas não a esperada tendência ao suicídio. Para resolver o impasse teórico, deram continuidade à detração do nativo: sendo a melancolia causada por problemas de consciência moral que levam à autopunição, conclui-se pela carência de senso moral do norte-africano, causada por debilidade mental, por capacidade verbal reduzida, por impulsividade e agressividade natas, segundo a semiologia da escola psiquiátrica de Argel. Carentes de senso moral, não se sucidam, matam: são melancólicos homicidas.

Em 1935, o Dr. Porot compareceu ao Congresso dos Alienistas e Neurologistas de Língua Francesa, realizado em Bruxelas, para defender uma tese envolta em credibildiade científica: "o indígena africano, cujas atividades superiores e corticais são pouco evoluídas, é um ser primitivo cuja vida essencialmente vegetativa é instintiva e dirigida principalmente por seu diencéfalo" (Porot, 1935, citado por Fanon, 1961/1968, p. 259). O que equivale a afirmar que, compartilhando com os vertebrados inferiores a predominância diencefálica, distancia-se da espécie humana, cuja característica distintiva é a corticalização. De onde é legítimo concluir que, para o psiquiatra francês instalado na Argélia, os nativos norte-africanos estão privados de córtex. Em 1939, ele voltou à carga: "o primitivismo não é uma carência de maturidade, uma parada observada no desenvolvimento do psiquismo intelectual (...) Esse primitivismo não é somente resultante de uma educação especial; tem fundamentos muito mais profundos, e acreditamos mesmo que tem seu substrato numa disposição particular da arquitetura, pelo menos da hierarquização dinâmica dos centros nervosos". (Porot, 1939, citado por Fanon, 1961/1968, p. 259-260).

A confirmação científica das possibilidades biologicamente limitadas do colonizado foi levada adiante em 1954 pelo Dr. Carothers, um perito da Organização Mundial de Saúde que, em Psicologia normal e patológica do africano, disparou: "o africano utiliza muito pouco seus lóbulos frontais. Todas as particularidades da psiquiatria africana podem ser relacionadas com uma preguiça frontal". Não satisfeito, e sem deixar de lado a comparação, concluiu: "o africano normal é um europeu lobotomizado" (citado por Fanon, p. 260). Sartre (1961/1968) decanta o espírito da coisa: "a ordem é rebaixar os habitantes do território anexado ao nível do macaco superior para justificar que o colono os trate como bestas de carga. A violência colonial não tem somente o objetivo de garantir o respeito desses homens subjugados; procura desumanizá-los" (p. 9).

Fanon dedicou-se a minucioso trabalho de ressignificação da psicologia do colonizado segundo o colonizador, valendo-se não só de estudos de antropologia cultural, mas também de observações sistematizadas que registrou ao longo dos anos em que viveu e praticou a medicina numa terra invadida e em estado de guerra. Este material permitiu-lhe construir uma outra visão dos argelinos, não mais como abstratos seres inferiores , mas como homens concretos numa situação concreta, cujas características é preciso esclarecer.

As múltiplas violências da colonização produzem corpos e mentes violentados. As ações dos encarregados de manter a ordem orientam-se pelo intento de imobilizar os nativos. O cotidiano da cidade ocupada é "imóvel, mundo de estátuas: a estátua do general que realizou a conquista, a estátua do engenheiro que construiu a ponte. (...) A primeira coisa que o indígena aprende é a ficar no seu lugar, não ultrapassar os limites". Disso resultam "núcleos de desespero cristalizados no corpo do colonizado" (Fanon, 1961/1968, p. 254). São muitas as formas de manifestação dessa "agressividade sedimentada nos músculos" que fazem parte da econômica libidinal do oprimido. Seus sonhos são frequentemente "sonhos musculares", de ação, de agressão, de proezas físicas sempre bem-sucedidas, o que leva este autor afirmar que "o colonizado não cessa de se libertar entre as nove horas da noite e as seis horas da manhã". O fatalismo é sustentado por mitos, magias, possessões e danças rituais, onde o corpo "derrama-se em demonstrações musculares" que esgotam por um tempo a tensão acumulada. A violência contra os iguais, individual (as brigas de rua) ou grupal (as rixas de gangues, as lutas tribais), é o recurso mais imediato de autoafirmação (Fanon, 1961/1968). Formas de "rebeldia primitiva" (sabotagens, assassinatos, baixa produtividade do trabalho) são tomadas pelos psiquiatras colonialistas de plantão como prova de tendências inatas ao crime e à preguiça.

Fanon não participa dos preconceitos de raça e de classe validados por cientistas da metrópole; não endossa a crença de que o primitivo é homem-natureza, é animal dotado de violência inevitável, porque incivilizado; supera a tese de que sempre haverá barbárie porque o homem está condenado ao mal-estar (abstrato) na cultura (abstrata); pensa que só se pode "curar" o colonizado se por "normalidade" não se entender "adaptação" ao que existe.

No horror da batalha, chegam diariamente à ala psiquiátrica dos hospitais argelinos casos de distúrbios psíquicos contraídos num confronto desigual8. Fanon sabe que o clima de guerra só continuou e aumentou a produção desses casos, pois "a colonização, em sua essência, já se apresentava como uma grande fornecedora dos hospitais psiquiátricos (...), [pois há] uma regular e importante patologia mental produzida diretamente pela opressão" (Fanon, 1961/1968, p. 212). A colonização mina a identidade do colonizado, nega-lhe qualquer atributo de humanidade, reifica-o ao reduzi-lo a componente de uma paisagem hostil e rebelde em que selva, mosquitos, nativos e febres encontram-se no mesmo plano. Para compreendermos as angústias e defesas da personalidade colonizada, "basta simplesmente estudar, apreciar o número e a profundeza das feridas causadas a um colonizado no decorrer de um único dia passado no seio do regime colonial" (Fanon, 1961/1968, p. 212).

Os casos relatados, atendidos por ele em hospitais, domicílios e postos de saúde do Exército de Libertação Nacional, incluem argelinos e franceses portadores de intenso sofrimento psíquico contraído num cenário de guerra. Havia os que portavam perturbações reativas a fatos bem determinados (por exemplo, homens que presenciaram o estupro de suas mulheres por soldados franceses; sobreviventes de chacinas; torturadores franceses que passaram a torturar suas mulheres e filhos). Outros manifestavam distúrbios contraídos na atmosfera de guerra generalizada, sem evento desencadeador específico (delírios acompanhados de tentativas de suicídio; psicoses puerperais em acampamentos de refugiados; sintomas penosos de ansiedade difusa). Havia ainda os que apresentavam perturbações mentais posteriores a várias formas de tortura, em geral acompanhadas ou realizadas por médicos psiquiatras, e a sessões de dinâmica de grupo para arrancar confissões, declarações de arrependimento e fazer lavagem cerebral, geralmente conduzidas por psicólogos. Sartre (1961/1968) resume a presença da psicologia nessas circunstâncias: "A coisa é conduzida a toque de caixa por peritos: não é de hoje que datam os serviços psicológicos" (p. 10).

Fanon faz questão de enfatizar que esses relatos são apenas "notas de psiquiatria" que falam por si mesmas dos danos causados à "pessoa humana" pela barbárie da colonização. Para dar relevo a essa dimensão, ele evita qualquer discussão semiológica, nosológica ou terapêutica nos termos da psiquiatria clássica. Ao contrário, não rotula, mas acolhe, ouve, dialoga, assinala. Os assinalamentos vêm para ajudá-los a contar o acontecido, nomear o sofrimento e identificar-lhe as causas. Situar o "problema no plano da história colonial, tal como ele aparece nas histórias individuais", "conhecer os motivos" dos distúrbios instalados vale não só como antídoto às falsas explicações da comunidade científica, mas como recurso para trabalhar com os próprios adoecidos a insegurança e o medo, a angústia da humilhação, a identidade destroçada, a personalidade desintegrada e a tendência a se autoculparem pelas situações vividas (Fanon, 1961/1968, p. 263). Por isso, esse psiquiatra nascido na Martinica recusa o argumento comum entre seus colegas de que é preciso levar em conta predisposições individuais, a história psicológica, afetiva, familiar e biológica do paciente. Para ele, fazê-lo é reforçar preconceitos e a tendência a culpar a vítima, é escamotear o principal causador dos sofrimentos relatados: a desumanidade que instala e mantém a colonização. Como Laing, Fanon sabe que a inteligibilidade das condutas exige que elas sejam vistas num contexto; que se trata de estudar situações e não apenas processos patológicos em andamento dentro de indivíduos; que os contextos mais amplos não existem lá fora, em determinada periferia do espaço social, mas estão nos interstícios de tudo o que abrangem.

Qualquer semelhança com concepções, situações e práticas profissionais atuais num país desigual, injusto como o nosso, que sempre exerceu toda a sorte de violências físicas e psíquicas imobilizadoras contra os despossuídos, não terá sido mera coincidência.

Se "o mundo é opaco para a consciência ingênua que se detém nas primeiras camadas do real"; se "a opinião afasta a estranheza entre o sujeito e a realidade e a pessoa já não se espanta com nada, vive na opacidade das certezas"; se, por isso, "tudo recomeça numa afinidade, numa simpatia do sujeito da percepção e da ação pelo seu objeto"; se "para alcançar esse alto grau de tomada de consciência da vida há um momento de recusa do estabelecido". Se, assim sendo, "é preciso que o psicólogo busque simpatizar para que ele possa voltar às coisas e às pessoas" e se "esta atitude não é uma técnica, é uma conversão" - se tudo isto que nos ensina Bosi (1992, p. 116 e 118) é digno de atenção, pois afirma a importância da atitude filosófica na produção do saber e no exercício profissional, então precisamos urgentemente repensar, com coragem e sem corporativismos, a formação de psicólogos como um projeto ético-político.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Maria Helena Souza Patto
Avenida Professor Mello Moraes, 1721
CEP.: 05508-900
Fax: (11) 3813-8895, Fone: (11) 3091-4185
E-mail: spmhelena@gmail.com

Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

 

 

Sobre a autora: Maria Helena Souza Patto: Docente do Instituto de Psicologia - USP. Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Temas Atuais da Educação, Instituto de Estudos Avançados (IEA-USP).

 

 

1 Em Guardiães de Ordem (1995), Cecília Coimbra percorre as "práticas psi" que floresceram no Brasil durante a ditadura militar de 1964.
2 Em 1981, quando A gestão dos riscos foi publicado, a moda milionária da autoajuda ainda não havia invadido o espaço editorial e a prática dos psicólogos. A análise de Castel sobre as técnicas de gestão das fragilidades individuais encontra expressão perfeita nessa literatura e seus jargões que têm nos psicólogos consumidores privilegiados.
3 Nizan, intelectual francês, nascido em 1905, foi colega, na Escola Normal Superior, de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Simone Weil, membros da geração que se formou entre as duas grandes guerras e dedicou-se à militância política e à reflexão sobre temas políticos candentes naquele período, como a miséria social, política e intelectual, a ascensão do nazismo e o neo-colonialismo. Morreu em 1940, aos 35 anos de idade, na batalha de Dunquerque, no início da Segunda Guerra Mundial.
4 Serge Hamili, filósofo e professor na Universidade de Paris VIII, escreveu o Prefácio (Hamili, 1998a) deste livro de Nizan e é autor de Os novos cães de guarda (1998b), ensaio em que dá continuidade à análise dos mecanismos de distorção da realidade social e política pelos novos cães de guarda: os jornalistas a serviço da produção do pensamento único em tempos de economia globalizada.
5 Coimbra (1995) analisa formas de colaboração, com mão-de-ferro ou luva-de-pelica, com ciência ou inconsciência, de profissionais da psicologia brasileiros com a ditadura militar de 1964.
6 Nascido na Martinica, em 1925, colônia francesa desde o séc. XVII, Fanon, filho de pai negro e mãe mestiça, conheceu na pele a barbárie colonial. Estudou medicina e formou-se em psiquiatria na França, em 1951, onde frequentou também cursos de literatura e filosofia e foi aluno de Merleau-Ponty. Em 1953, às vésperas da guerra de libertação, foi enviado pelo governo francês a um hospital na Argélia, onde trabalhou até 1957, quando foi expulso da Argélia, acusado de subversão pelos governantes franceses locais.
7 Este é o tema do filme Caché, dirigido por Michael Haneke, França, 2005.
8 Narrada no filme A batalha de A rgel, direção de Gillo Pontecorvo, Itália, 1965.

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