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Temas em Psicologia

versión impresa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

Violência, natureza e cultura: considerações acerca da sedimentação psíquica da violência difusa

 

Violence, nature and culture: considerations about the psychic sedimentation of diffuse violence

 

 

Pedro Fernando da Silva

Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste ensaio é examinar algumas implicações do entrelaçamento entre natureza e cultura para a análise e crítica da violência difusa. Considerando o impacto provocado pelas determinações sociais sobre a adaptação às condições de existência, argumenta-se que a internalização da violência, historicamente presente como uma das principais mediações do processo de constituição psíquica dos indivíduos, favorece a sedimentação de conteúdos destrutivos na esfera pulsional. Para fundamentar a suposição de que essa violência difusa se consolida como uma segunda natureza recorre-se ao entendimento comum aos pensadores frankfurtianos de que a história da civilização tem se caracterizado pela continuidade da dominação. A regressão psíquica, exigida para o ajustamento à hierarquia social, completa o cerceamento das possibilidades de autonomia individual: a internalização da violência se tornou condição sine qua non da sobrevivência. Em contraposição a esse processo, resta à crítica explicitar o caráter cultural e histórico da barbárie, bem como os mecanismos psicossociais que favorecem sua conversão em força pulsional, pois assim pode contribuir para desmistificar sua suposta origem na natureza biológica.

Palavras-chave: Violência, Dominação, Barbárie, Teoria Crítica.


ABSTRACT

The purpose of this essay is to examine some implications related to the interlacing of nature and culture to the analysis and critique of diffuse violence. Considering the impact caused by social determination upon the adaptation to the conditions of existence, one argues that violence internalization, historically presented as one of the main process mediations of the psychic constitution of the individuals, favors the sedimentation of the destructive contents into the instinct sphere. The establishment of the supposition that this diffuse violence consolidates as a second nature requires the support of shared comprehension of the Frankfurtian philosophers that the civilization's history is characterized by the continuity of domination. The psychic regression demanded to hierarchy adjustment completes the restriction of possibilities of the individual autonomy: the internalization of violence became a condition sine qua non to survival. Conflicting with this process, it remains to the critique to make explicit cultural features and the barbarism history as well as the psychic social mechanism that favors its conversion into strength, contributing to expose its presumed origin into the biological nature.

Keywords: Violence, Domination, Barbarity, Critical Theory.


 

 

O objetivo deste ensaio é desenvolver algumas considerações teóricas a respeito das mediações exercidas pela natureza e pela cultura no fenômeno da violência difusa. Compreende-se que essas mediações são centrais tanto para o entendimento teórico, quanto para a pesquisa empírica a respeito da violência e de sua articulação com a dimensão e a ciência psicológicas. O tema é abrangente e permite pensar o problema da violência a partir de perspectivas diversas e, em muitos casos, antagônicas. Atualmente, não são poucos os estudiosos de diferentes áreas, como é o caso das ciências naturais e jurídicas, que também conservam grande interesse na pesquisa sobre essa confluência de fatores. Ela remete, por exemplo, ao antigo debate entre naturalistas e culturalistas, o qual, apesar de aparentemente superado, ainda é de extrema importância para a pesquisa científica no campo psicológico, pois compreende definições que podem encaminhar a crítica à violência para dimensões absolutamente distintas. Dado o imenso valor dessa questão geral, pretende-se oferecer uma singela contribuição à análise da violência, colaborando para o entendimento acerca da articulação entre violência, natureza e cultura a partir de uma perspectiva teórica fundamentada na radicalização da determinação histórica. Compreende-se que somente a partir dessa radicalização é possível considerar, com o devido cuidado, a relevância da continuidade histórica de certas tendências culturais, frequentemente confundidas com disposições naturais. Para o desenvolvimento desta análise, tomar-se-á como referência o pensamento de alguns pensadores ligados à primeira geração da Escola de Frankfurt, bem como algumas ideias de Marx e Engels que os inspiraram em sua crítica da sociedade.

Um primeiro ponto que apresenta relevância para a análise da relação entre violência, natureza e cultura é a noção de história natural, discutida por Adorno (1932/1991) em seu ensaio A idéia de história natural. Na análise que desenvolveu nesse texto, a respeito do entrelaçamento de história e natureza, ele elaborou considerações epistemológicas que permitem compreender a natureza humana como uma formação essencialmente histórica, portanto irredutível a qualquer definição ontológica que a restrinja às dimensões biológica ou espiritual.

Com base nessa perspectiva, é possível entrever o processo por meio do qual a violência presente nas condições sociais e históricas de cada época infiltra-se nas profundezas da psique humana; compondo uma estrutura relativamente fixa e constante que, pela repetição ao longo do tempo, cristaliza-se como conteúdo natural. Ao indicar a possibilidade de operarmos teoricamente com esses conceitos sem reduzi-los a definições essencialistas, Adorno tornou possível vislumbrar a superação da antítese habitual entre natureza e história. Nesses termos, a história natural compreende a codeterminação inevitável de ambas as dimensões, dissolvendo a aparente independência de uma e outra:

Sí es que la cuestión de la relación entre naturaleza y historia se ha de plantear con seriedad, entonces sólo ofrecerá un aspecto responsable cuando consiga captar al Ser histórico como Ser natural en su determinación histórica extrema, en donde es máximamente histórico, o cuando consiga capturar la naturaleza como ser histórico donde en apariencia persiste en sí mismo hasta lo más hondo como naturaleza. (Adorno, 1932/1991, p. 117)

Ao longo da história humana, parte dos conteúdos constituídos a partir da experiência existencial se tornou um dos recursos imprescindíveis à autoconservação e, por essa razão, adquiriu imenso poder de determinação. As forças naturais que em épocas remotas impulsionaram o homem primitivo ao desenvolvimento de suas habilidades propriamente humanas, inclusive ao uso da inteligência e ao desenvolvimento da cultura, foram absorvidas e transformadas por ele. O pensamento lógico não pode ser abstraído da função que exerceu no âmbito da autoconservação. Corpo e espírito, que em muitos momentos estiveram completamente indiferenciados à percepção geral, foram igualmente importantes para que se tornasse possível garantir a sobrevivência humana.

Provavelmente, a herança arcaica nunca abandonará a espécie humana, mas o fato de poder ser relembrada, no mais das vezes como uma elaboração mítica, não lhe concede, ao menos não como uma dimensão pura, força de determinação independente. Seu entrelaçamento irreversível com as diferentes formações culturais constituídas ao longo da história já representa uma ressignificação do conteúdo originário; neste caso, envolvido na determinação dessas formações e por elas modificado. As formações que se cristalizaram para além da transitoriedade mais imediata compuseram uma segunda natureza que não apenas ocupou arbitrariamente o lugar da primeira, mas se revelou, ela mesma, a primeira natureza: uma natureza histórica. Segundo Adorno (1932/1991), "La dialética histórica no es un mero retomar o protohistórico reinterpretado, sino que los mismos materiales históricos se transforman en algo mítico e histórico-natural" (p. 134). O mundo bárbaro que dia a dia é automaticamente reproduzido a partir do modo de organização da vida social é parte constitutiva do que se compreende como natureza humana. Entretanto, a forma predominante de agressividade que também é atribuída a ela não decorre do fato de estas disposições subjetivas, intrinsecamente relacionadas às condições objetivas do mundo bárbaro, estarem inscritas em algum elemento da composição biológica, constituindo uma determinação invariável, mediante a qual as pessoas seriam impulsionadas a ser tão agressivas como seus ancestrais pré-históricos.

Pode-se ponderar que o homem primitivo, assim como todos aqueles que se desenvolveram nas civilizações subsequentes, somente conseguiu modificar suas condições de existência frente à força descomunal da natureza muito lentamente e de modo muito precário. Mesmo a civilização contemporânea mais avançada ainda não conseguiu modificar as condições brutais que historicamente oprimem as pessoas por ela constituídas, manifestando-se em cada novo período histórico como uma síntese de ruptura e continuidade do anterior. Apesar das mudanças ocasionadas pela adaptação cada vez mais eficiente à civilização e, em função do progresso cultural produzido pelos homens em luta contra a natureza, essas condições objetivas, intimamente relacionadas à necessidade de sobrevivência, permaneceram constantes ao longo dos séculos. Mantiveram-se similares quanto à fragilidade e à força humanas. Amalgamadas com as reações subjetivas, desencadeadas em resposta a suas demandas, sedimentaram-se na estrutura psíquica, constituindo um substrato aparentemente invariável.

Em consonância com a formulação de Benjamin (1940/1994), de que a cultura não é isenta de barbárie, sobretudo por comportar em seu cerne uma inteira tradição de opressão, sucessivamente ratificada no triunfo de cada novo dominador, é possível indicar que a violência arcaica ainda subsiste na civilização esclarecida; não por meio da permanência de um núcleo a-histórico, misteriosamente mantido inalterado ao longo do tempo, mas sim como um conjunto de reminiscências constantemente transformado em natureza. Diante da força propulsora da naturalização ideológica, a formulação de Benjamin é precisa ao delimitar a árdua tarefa de desvendamento do trabalho da história como um dos principais desafios a ser enfrentado pelo materialista histórico:

Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura. Por isso, na medida do possível, o materialista histórico se desvia dela. Considera sua tarefa escovar a história a contrapelo. (Benjamin, 1940/1994, p. 225)

Se, tal como sugere o excerto citado, a barbárie que está presente nos monumentos da cultura também está presente em sua transmissão, a crítica cultural, ao contrário, deve poder revolver os sedimentos já cristalizados e explicitar o material dinâmico subjacente às tendências sociais dominantes. A continuidade da opressão dependeu da continuidade da divisão dos homens em opressores e oprimidos. O fato de as configurações históricas efetivamente existentes até o presente terem reservado aos opressores a possibilidade de produção e consumo da cultura não torna aqueles que dela foram excluídos isentos de sua mediação. A barbárie produzida para a garantia dessa divisão atinge a ambos os lados, de modo que também a crítica, na medida em que é crítica da dominação e, também, não é neutra quanto ao lado do qual provém sua força, deve ser cuidadosamente refletida para que não recaia na mesma participação na barbárie. Escovar a história a contrapelo compreende a não participação na dominação; remete à possibilidade de uma análise da cultura que não vise à reprodução de suas contradições, mas sim à confrontação com tudo aquilo que nela tem servido à continuidade da dominação.

Não são necessários muitos argumentos para se demonstrar que a história da humanidade transcorrida até o presente foi a história da dominação do homem pelo homem, em cujo processo a violência não foi mero acaso. Marx e Engels (1948/1998) consagraram tal entendimento de forma precisa, em seu Manifesto Comunista, ao delimitarem a dominação presente na relação entre as classes sociais ao longo da história da sociedade:

A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes.... Homem livre e escravo, patrício e plebeu, senhor feudal e servo, mestre de corporação e companheiro, em resumo, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em conflito.... a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismo sociais de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois campos opostos, em duas grandes classes em confronto direto: a burguesia e o proletariado. (p. 40)

Além de remeter o constante estado de conflito entre as classes sociais à cisão dos homens em proprietários dos meios de produção e em trabalhadores assalariados - homens sem propriedade alguma além de sua força de trabalho -, a crítica elaborada por Marx e Engels permitiu vislumbrar as duas alternativas históricas possíveis; ambas mediadas pela violência, mas absolutamente distintas quanto aos fins para os quais deveriam servir: a transformação revolucionária da sociedade inteira ou a destruição das classes sociais em conflito. É importante considerar que o critério de distinção das classes utilizado pelos autores é a posse da propriedade privada dos meios de produção e não a estratificação da população por faixas de rendimento; portanto, pode-se considerar que tinham clareza de que por mais que a propagação da violência esteja atrelada às condições de miséria a que os homens estão submetidos, a dominação que a engendra ultrapassa o problema final da distribuição da renda, diz respeito à disposição dos homens no mundo do trabalho, da economia e da política.

Horkheimer e Adorno (1944/1985) também indicaram que a dominação tornou-se descomunal na sociedade industrial avançada. A formalização da razão permitiu que os mais bem posicionados nas relações econômicas pudessem fazer uso do saber para o exercício do poder sobre os demais. A razão instrumentalizada, reduzida ao pensamento operacional e voltada aos interesses dos financiadores do progresso econômico, tornou-se instrumento de dominação política. Os excessos da dominação obtida por meio do recurso à lógica e à técnica desvinculadas dos fins humanos resultaram nos horrores do holocausto e ressoa nas múltiplas manifestações cotidianas de pequenos atos bárbaros que, no conjunto, tornam a via social uma arena para manifestação da destrutividade liberada. Horkheimer e Adorno analisaram os efeitos desastrosos que a exploração do trabalho impôs, e ainda impõe, à subjetividade. Com isso, sua crítica tornou nítido o dano irreversível provocado por este processo ao núcleo da individualidade: pessoas impossibilitadas de pensar livremente são também impotentes frente às condições sociais às quais estão submetidas. A possibilidade da autonomia é negada conjuntamente com a possibilidade de os homens refletirem e interpretarem o mundo ao seu redor. As marcas impressas pelo capitalismo tardio são indeléveis. Permanecem inscritas no espírito humano como mutilações com as quais os homens têm de sobreviver. Os pensadores frankfurtianos não se eximiram do embate com as condições materiais de opressão vigentes em seu tempo, entretanto sua crítica abrangeu uma dimensão maior do que aquela caracterizada pela exploração burguesa do trabalho. Eles estenderam sua análise aos primórdios da humanidade, às relações primitivas entre os homens e a natureza, aos esforços humanos para nomear, abstrair, conceituar o universo de fenômenos que os ameaçava. Reconheceram que a dominação remonta às primeiras formas do esclarecimento e permaneceu nele impregnada até o momento presente.

Não obstante o fato de a divisão dos homens em classes sociais antagônicas superar em muito a camada mais superficial dessa condição estrutural, irredutível às diferentes possibilidades de consumo reservadas aos membros de cada classe, o que na vida cotidiana se torna efetivamente perceptível àqueles que estão em conflito é, precisamente, a posse da propriedade e a subsequente disputa que ela suscita. Essa percepção imediata não se refere à posse da propriedade privada dos meios de produção ou dos meios necessários ao investimento de capital no campo das transações financeiras internacionais, dotadas de igual poder de propulsão ao acúmulo de riquezas, mas sim à percepção da propriedade ostentada nas relações sociais cotidianas; o que efetivamente demarca a distinção entre as classes é o acesso a padrões de consumo e de conforto impensáveis para a grande parcela das pessoas ainda privadas da supressão de suas necessidades básicas. Para a percepção do homem absorvido pelas exigências da vida cotidiana - na qual a alienação reinante em nível elevado impossibilita que se reconheça em uma sociedade na qual não influi em nada de decisivo -, a riqueza e tudo que se assemelha a ela constitui uma camada aparente segundo a qual as classes sociais e os homens que as compõem são classificados. Conforme estipulado pelas relações mediadas pelo equivalente geral, os homens são aquilo que possuem, independente de possuírem precisamente as mercadorias que movimentam e dão sustentação ao sistema econômico responsável pela perpetuação de sua condição existencial reificada. A reificação internalizada faz parecer espontânea a redução dos homens às mercadorias que possuem, assim como, também os leva a comportarem-se em função da posse ou do desejo de posse dessas mecadorias que supostamente os tornariam reconhecidos como portadores de algum valor.

O ódio decorrente do antagonismo não consciente entre as classes em permanente conflito nas relações produtivas se torna crescente com os avanços das forças produtivas, impondo-se como uma força tácita que impulsiona para a aniquilação. Distante da possibilidade de transformar a sociedade e inteiramente mobilizado pela opressão internalizada, o indivíduo sob o capitalismo tardio é paulatinamente levado a conformar-se com a realidade que o oprime para garantir sua adaptação às condições de existência que estão ao seu alcance com o emprego de algum esforço, mesmo que este, por vezes, se torne descomunal. Para garantir sua sobrevivência física e psíquica, deve abrir mão de seus ideais particulares, substituindo-os pela própria realidade onipotente. Ao invés de formular utopias que conservem a intenção de superar a ordem estabelecida, a idealização hiper-realista da realidade converte-se no único ideal afirmado como possível. Como consequência desse grau tão extremo de ajustamento, as contradições sociais, compactadas em um amálgama que se tornou parte funcional da própria vida social, são aceitas como parte inalienável do próprio ser social, contribuindo para o recrudescimento do desconforto inominável consigo próprio e com os outros que representam ameaça ou oposição.

A introversão do sacrifício se converte na matéria-prima do ódio entre as classes sociais. Sem meios minimamente razoáveis de disfarçar sua irracionalidade injustificável, a gama de frustrações e sofrimentos socialmente produzidos encontra nas disposições psíquicas degradadas os canais apropriados para sua conversão em destrutividade. As frustrações produzidas pela vida, objetivamente tolhida, facilmente se convertem em agressividade indiscriminada. A autoconservação, em si mesma verdadeira, mas falsa perante as condições históricas já possíveis no atual estágio do desenvolvimento técnico, é convocada a legitimar o direcionamento da agressividade produzida no processo social para as supostas fontes de ameaça externa, dentre as quais se destacam todos aqueles que, por sua condição favorecida pela lógica social, realizam os desejos que para a maioria permanecem frustrados, ou que, em razão de sua exclusão do grupo de beneficiados, representam a possibilidade sempre presente de destruição da ordem vigente.

Apesar de amplamente disseminada, a agressividade decorrente da frustração e da ameaça sociais é frequentemente percebida de forma distorcida. É reduzida a apenas uma de suas fontes de produção ou à sua manifestação mais evidente; como violência física exercida contra os mais ricos. A que recebe maior destaque é a violência que emana da miséria material e ameaça os mais abastados. Portanto, quer seja por suscitar um poder negativo, nocivo à estruturação repressiva da vida social - ora neutralizado pela identificação de ambas as classes com os mesmos interesses mediados pela dominação -, quer seja por configurar uma ameaça real à posse da propriedade e à vida que por ela é beneficiada, os mais pobres são comumente percebidos como portadores principais da violência.

A despeito da distorção ideologicamente produzida, não se poderia desconsiderar a real fusão da violência social exercida sobre os mais vulneráveis com os impulsos hostis despertados naqueles que cedem à agressão pela via do crime. O ódio de classe remete à injustiça social, mas também pode participar da produção dessa mesma injustiça, favorecendo o acirramento das disputas em torno da propriedade, manifestando-se por meio de uma espécie de descarga da agressividade sobre aqueles que julga serem merecedores de desprezo.

De um lado, o ladrão ocasional que revela a finitude da propriedade é tão odiado socialmente quanto o assassino que, por motivos torpes, retira a vida de um inocente. A repressão social pune de modo indistinto um e outro, mas não considera verdadeiramente os fatores que participaram da produção de cada um desses diferentes desfechos. Se a vida somente é percebida por sua relação com a propriedade, é logicamente consequente que os crimes dirigidos originalmente para ela causem igual ou maior repulsa do que os crimes direcionados exclusivamente contra a vida e suas qualidades constitutivas. De outro lado, os mais favorecidos pela concentração de renda pagam, muitas vezes com a própria vida, o preço pela desigualdade social. Nesse sentido, não é irrelevante que o sequestro pareça tão justificável a seu praticante e que tantas crueldades injustificáveis sejam cometidas em sua ação geralmente bem planejada. De fato, é possível supor que, apesar desse tipo de crime contar com uma pesquisa a respeito das condições mais favoráveis ao sucesso da operação, geralmente a vítima não é escolhida por motivos pessoais, mas cuidadosamente selecionada como um exemplar da classe dos mais favorecidos que deve pagar o preço pela desigualdade social. Em todos esses casos, o ódio manifestado vai além do indivíduo vitimado, visa atingir de forma indiferenciada tudo aquilo que ele representa.

As manifestações de violência propagadas nos meios urbanos sob a forma de assassinatos, roubos, sequestros, tráfico de drogas etc, cada vez mais caracterizadas pela racionalidade do crime organizado, não devem, contudo, ser colocadas em primeiro plano, obliterando a percepção da violência social difusa. No que diz respeito ao poder de determinação social, a violência inerente ao próprio modo de organização da sociedade, presente nas relações de produção e na intensa rede de dominação política que dá sustentação a ordem econômica, é, certamente, muito mais abrangente e importante do que as violências particulares; são violências derivadas da ordem social. Por mais que não se possa negar sua existência em uma sociedade inteiramente distinta da atual, ainda assim, também não se pode desconsiderar sua identidade com os princípios e valores centrais da sociedade capitalista. Além disso, devem-se considerar os fatores indiretamente produzidos pelo atual modo de configuração da sociedade que também são importantes para a compreensão das violências cometidas por indivíduos contra a pessoa humana em ração de desavenças pessoais e conflitos que fogem ao âmbito do interesse na posse da propriedade. Dentre alguns destes fatores, podem-se mencionar: a reificação e a subequente redução do valor dos homens que, com isso, assemelham-se às coisas; a racionalidade técnica e a impossibilidade do pensamento sobre objetos diferenciados; a apatia generalizada e a incapacidade de reconhecimento da semelhança entre si mesmo e algum outro que apresente qualquer tipo de diferença significativa; a regressão do indivíduo e sua vinculação a massas nas quais prescinde de sua racionalidade e autonomia necessárias à resistência a seus próprios impulsos destrutivos e às exigências da adaptação ao processo social.

Definitivamente, os homens não podem ser melhores do que o mundo no qual se constituem. Isto implica em se reconhecer que a violência social, em geral decorrente da dominação racional, somente se relaciona com a dimensão psicológica quando é internalizada e reproduzida pelos indivíduos. Os filhos da dominação não poderiam deixar de reproduzi-la nos âmbitos em que atuam, sobretudo na relação que mantêm com aqueles que julgam mais fracos; todavia, a efetivação desse processo depende da sedimentação das tendências sociais, hoje predominantemente destrutivas, nas camadas profundas do psiquismo dos indivíduos.

As primeiras palavras, os primeiros progressos motores, os primeiros desejos já representam a adaptação ao mundo circundante. A renúncia pulsional e o ajustamento ao processo civilizatório trazem consigo a violência que Marcuse (1955/1981) nomeou como mais-repressão. Cada vez mais cedo é fixado o entendimento do que significa ser parte da comunidade de seres humanos; esta aprendizagem ocorre mediante o ajustamento espontâneo ao princípio de realidade circunscrito pela dominação. Atualmente, as crianças passam a se relacionar com o mundo das mercadorias em idade muito precoce e, logo, tornam-se perfeitos exemplares da espécie: predadores competitivos.

Nesse sentido, as mediações exercidas pela violência no processo de constituição psíquica e no constante choque provocado pela realidade social opressiva convertem-se em determinações sociais objetivas, as quais, principalmente em função do ajustamento às condições da autoconservação, favorecem a sedimentação de conteúdos destrutivos, advindos da vida social, em esferas profundas do aparelho mental. A violência social difusa converte-se em uma segunda natureza. Longe de se constituir como mera abstração, aferra-se ao psiquismo individual, amalgamando-se com o conteúdo pulsional. A produção social de formas de regressão psíquica ajustadas ao princípio da dominação confere maior eficácia e poder de determinação às relações sociais hierárquicas e aos padrões de conduta impostos, consubstanciando o cerceamento das possibilidades de autonomia individual: por meio de mediações caracterizadas pela dominação, a internalização da violência se tornou condição sine qua non da sobrevivência. Adaptar-se passou a significar uma forma de participação integral na lógica social: submissão às determinações sociais e imposição da opressão aos subalternos. Nesse processo, a regressão a formas de comportamento irracionais e a aplicação puramente técnica, essencialmente apática, da racionalidade para fins de dominação se entrelaçam, constituindo um poderoso veículo de transmissão da violência social difusa.

Apesar de comporem uma unidade funcional, dominação e barbárie são fenômenos distintos, sobretudo quanto à mobilização das pulsões destrutivas e à sua subsequente vinculação com a racionalidade. Configuram formas diferentes de articulação da natureza e da cultura em um contínuo processo de destruição. A partir de um denominador comum, claramente perceptível ao indivíduo massificado - a brutalidade final do ato violento -, os homens reproduzem a violência presente na cultura e cegamente repetida na história como se fosse sua própria natureza biológica. Tal repetição é tão constante que os comportamentos que a manifestam assemelham-se à compulsão. Tornam-se algo naturalizado.

De um lado, somente os efeitos mais espetaculares do processo de sedimentação da violência difusa são percebidos; de outro, a restrição imposta pela dimensão perceptiva recria os fenômenos, concedendo-lhes mais especificidade e um significado imediatamente inteligível. Sob o império da indústria cultural, somente a violência física, representada pelo confronto interpessoal, é nomeada como violência; o cerceamento coercitivo, efetivamente responsável pela sedimentação das experiências constantes de medo, submissão e ajustamento, é relegado à esfera do desconforto inominável; converte-se em um mal-estar difuso, aparentemente desvinculado da violência social a que os homens estão amplamente submetidos. A silenciosa corrosão da capacidade humana de transformar a natureza, sua animalização, é negligenciada. O efeito principal das relações de produção capitalistas é desconsiderado, concedendo maior força à reificação. Esse fenômeno básico do sistema produtivo capitalista de mercadorias promove a redução dos homens à condição de mercadorias entremeio a outras mercadorias igualmente redutíveis ao equivalente geral:

A produção produz o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o homem na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva, precisamente como um ser desumanizado (entmenschtes Wesen) tanto espiritual quanto corporalmente - imoralidade, deformação, embrutecimento de trabalhadores e capitalistas. (Marx, 1844/2004, p. 92)

Empenhado em distinguir a agressividade necessária à autoconservação de uma forma de destrutividade e crueldade que chamou de agressão maligna, Fromm (1973/1979), no início da década de 1970, posicionou-se criticamente ante a fácil aceitação apresentada por pesquisadores da época em relação ao modelo instintivista de explicação da agressão humana formulado por Konrad Lorenz; o qual, segundo ele, além de reduzir a agressão a uma dimensão instintiva, também não a diferenciava da agressão que ao longo do processo evolutivo foi necessária à sobrevivência da espécie. Argumentou que, em função da precária condição da consciência, era mais fácil às pessoas conformadas explicarem a origem da destrutividade humana por meio de uma dimensão biológica invariável do que reconhecer que os próprios homens são os autores efetivos dessa destrutividade; que eles mesmos produzem-na a partir de seu modo de vida social imensamente contraditório:

Talvez o neo-instintivismo de Lorenz tenha sido tão bem sucedido, não por causa de seus argumentos tão poderosos, mas porque as pessoas sejam muito susceptíveis a eles. Que poderia ser mais satisfatório às pessoas que mostram-se amedrontadas e sentem-se impotentes para mudar o rumo das coisas que conduzem à destruição do que uma teoria que nos assegura que a violência origina-se de nossa natureza animal, de uma ingovernável impulsão para a agressão, e que o melhor que temos a fazer, como afirma Lorenz, é compreender a lei da evolução que é o elemento responsável pela potência dessa impulsão? (Fromn, 1973/1979, p. 22-3)

Hoje, com o grande avanço da sociedade administrada, o hiper-realismo exacerbado tornou o conformismo identificado por Fromm ainda mais efetivo. Mesmo partindo do entendimento de que a vida social produz, a partir de si mesma, a destrutividade que durante séculos foi exclusivamente atribuída a uma natureza biológica invariável, há uma espécie de recusa em se reconhecer a origem da degradação no próprio modo de organização das relações produtivas. A distorção ideológica que, segundo a compreensão de Fromm, outrora permitia racionalizar o sentimento de impotência e mitigar o medo por meio da naturalização biologicista, agora pode prescindir desse tipo de teorização e encampar, sem explicações minimamente razoáveis, o rol das disposições destrutivas como expressão natural da vida em sociedade. Transferido da natureza para a cultura, da dimensão biológica para a social, o caráter invariável concede à vida um aspecto estático. A natureza radicada no passado é também projetada no futuro, constituindo uma limitação intransponível. As tendências históricas tornadas naturais pela incessante repetição se tornam um destino invariável.

A explicação de que a desigualdade social produz violações de direitos e de que a imoralidade do crime é legitimada pelas instâncias que deveriam trabalhar para impedi-lo é prontamente aceita, assim como também é aceita a explicação de que os diferentes níveis de corrupção e abuso de poder, comuns em certas esferas do poder político, comumente atingem a sociedade como um todo, legitimando a corrupção geral. Entretanto, o entendimento de que violência emana da exploração do trabalho e interfere decisivamente nos efeitos que esse processo imprime na subjetividade são tratados com desconfiança. A violência exercida por meio da relação de dominação entre as classes sociais, a internalização da racionalidade própria do sistema produtivo, o ajustamento a condições de existência imensamente competitivas e destrutivas, criadas pela organização política e econômica, assim como a completa deterioração da capacidade de autonomia dos indivíduos, não são reconhecidas como manifestações de violência e nem tampouco suficientemente compreendidas como mediações determinantes do ato violento final cometido pelo indivíduo desesperado. A ideologia processada como mentira manifesta não oculta a violência atinente à exploração social, mas a justifica como condição inevitável. A realidade aparece como máscara de si mesma, constituindo uma força centrífuga a partir da qual o cerceamento real das possibilidades de autonomia individual transforma-se em condição natural. A configuração histórica petrificada é apresentada pela distorção ideológica como única alternativa para a sobrevivência; em consequência, é fortalecido o entendimento de que só resta aos homens adaptarem-se, tornarem-se tão úteis ao sistema que sua sobrevivência possa ser assegurada, mesmo que à custa da reprodução da forma por meio da qual o sistema os coage. Se, de fato, é por meio do ajustamento à organização hierárquica da sociedade e da intensa competitividade, que caracteriza as relações sociais, que as pessoas conseguem sobreviver; pode-se ponderar que, a partir da justificativa ideológica, esta condição, em si mesma contrária ao desenvolvimento dos potenciais humanos, passa a ser a única forma de sobrevivência possível, portanto, a forma natural da vida em sociedade. Com isso, o postulado hobbesiano, assumido como um clichê inquestionável, passa a ser mais verdadeiro do que nunca: o homem é o lobo do homem; não há outra alternativa para a vida social.

A violência tornou-se uma evidência empírica. Como um fato social que se impõe inevitavelmente à percepção cotidiana, ganhou intensa visibilidade e absorveu em sua forma estandardizada parte dos fatores que lhe são constitutivos e que participam de sua produção. Os noticiários que cotidianamente a descrevem são definitivos para seu encarceramento na forma unívoca por meio da qual é frequentemente percebida pela multidão de espectadores. Quanto mais as pessoas são instruídas por esta indústria da informação, mais impotentes e estúpidas se sentem. Os holofotes da imprensa atribuem glamour ao acontecimento espetacular, à fantástica tragédia, à barbárie fascinante, com isso, restringem a percepção da realidade e a possibilidade da consciência. De modo cada vez mais grotesco, a destrutividade humana é tratada pela indústria cultural como uma mercadoria altamente lucrativa; atrai multidões. Da exploração sensacionalista dos recentes casos de filicídio, crimes passionais e demais tipos de tragédias familiares, que incitam as multidões ao desejo de linchamento e à conclamação pública por severa punição dos monstros que povoam o universo midiático às já bem acomodadas notícias de assalto à mão armada, homicídios, sequestros etc., o que se perfila com veemência é a redução da violência ao ato individual. Seu caráter renitente exclui o contexto histórico sem o qual ela é tratada apenas como produto da ação condenável do indivíduo isolado; fruto de seu desespero ou das paixões desenfreadas cuja motivação remonta ao próprio indivíduo, sobretudo a algo interno que supostamente não pode controlar.

Esse tipo de redução da violência exclui muito mais do que a referência às quadrilhas especializadas do crime organizado e às gangues juvenis motivadas pela hostilidade impulsiva: exclui a própria noção de violência social. Mesmo quando contempladas, estas variações da prática da violência também são comumente julgadas a partir da referência ao indivíduo isolado, como se emanassem exclusivamente dele próprio; o que é negligenciada é a referência à totalidade social, à civilização contraditória.

Distintamente, empenhado em evitar a repetição de Auschwitz, Adorno (1971/2000) também considerou os elementos individuais e psicológicos da violência manifestada pelos homens individual ou coletivamente, mas não deixou de associá-la à totalidade social. Sua análise foi precisa ao indicar que a barbárie consiste no fato de os homens apresentarem um comportamento destrutivo peculiarmente atrasado em relação ao grau de civilização já alcançado. Um tipo de destrutividade que parece desprezar as exigências da razão e a condição do homem como ser racional. Ela expressa a regressão à agressividade primitiva; a um tipo de ódio primitivo que pode ser compreendido como expressão da pulsão de destruição. Nesse caso, um tipo de herança arcaica parece ser reativado por forças irracionais, representando a ameaça de que "toda a civilização venha a explodir" (p. 155), o que, conforme o entendimento de Adorno, é uma "tendência imanente que a caracteriza" (p. 155). À primeira vista, é a vingança da natureza que, soerguendo-se como sujeito autoconsciente, invade e desequilibra o mundo da cultura.

A despeito da preponderância desses elementos primitivos, seria equivocado supor que o arcaico pode ser atualizado de forma integral, ou que a dimensão biológica ainda preserve inalterada a memória de eras remotas nas quais a violência realmente imperava como principal regulador da vida social. A esse respeito, as ponderações de Horkheimer e Adorno (1944/1985) acerca do tipo de reverência à natureza que a personagem de Sade (1797/2007), Juliette, parece fazer em prol da crueldade é muito esclarecedora:

Os comportamentos proto-históricos que a civilização declarara tabu e que haviam se transformado sob o estigma da bestialidade em comportamentos destrutivos, continuam a levar uma vida subterrânea. Juliette não os pratica mais como comportamentos naturais, mas proibidos por um tabu.... Assim, quando repete as reações primitivas, já não são mais as primitivas, mas as bestiais. Juliette... não encarna, em termos lógicos, nem a libido não-sublimada nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão, amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência, e maneja excelentemente o órgão do pensamento racional. (Horkheimer & Adorno, 1944/1985, p. 92-93)

Não é na dimensão biológica que a força imensamente destrutiva da violência permanece ancorada, tal como um conteúdo latente prestes a emergir, mas, ao contrário, são as próprias condições de existência que a engendram incomensuravelmente a partir das relações cotidianas. O conteúdo violento manifestado no processo social é internalizado, acomodando-se em dimensões psíquicas profundas e misturando-se a conteúdos característicos dessa dinâmica, muitos dos quais dotados de uma lógica de funcionamento muito distinta daquela que regula a vida mental consciente e sua participação na esfera social. A regressão do indivíduo a comportamentos irracionais e o uso instrumental da razão se complementam, produzindo um misto de crueldade e apatia.

A natureza originária foi inteiramente transformada. O que ainda subsiste como conteúdo primitivo já é produto da própria civilização decorrente da dialética do esclarecimento; da vontade humana de se libertar e de governar sobre as forças que coagiram os homens na infância da humanidade. O poder da razão já estava presente nas formas mais arcaicas de esclarecimento. Horkheimer e Adorno foram precisos quanto a este ponto: o próprio mito já era esclarecimento; comportava o princípio da razão autocrática. Portanto, a mediação exercida pela razão é tão remota na história humana que ela já não pode ser pensada sem que consideremos seu impacto. A dominação que até o presente serviu para dividir os homens em classes antagônicas, em senhores e subservientes de todos os tipos, não seria a mesma e não teria significado igual uso da violência se não fosse por meio do próprio esclarecimento. O princípio civilizatório criou as condições necessárias para que a violência primitiva se transubstanciasse em violência esclarecida. Dominação e barbárie são as duas faces do mesmo processo; de uma civilização não reconciliada, na qual cultura e natureza foram de tal modo cindidas que somente se reencontram por meio da mediação exercida pela violência.

Conforme as considerações de Horkheimer e Adorno (1944/1985), a origem primitiva do esclarecimento teve como força propulsora a necessidade demasiado humana de confrontar o descomunal poder da natureza, que se impunha sobre eles como uma ameaça constante de aniquilação. O medo da destruição física perante a desproporcional potencia da natureza ameaçadora levou às primeiras formas de esclarecimento. Estas representaram o início do projeto que animou o esclarecimento durante todo seu processo histórico, convertendo-se em título de glória da civilização. Todavia, o fracasso desse projeto de livrar os homens do medo por meio da dominação das forças naturais ameaçadoras não diminuiu em nada a força propulsora do medo, que hoje continua impulsionando ao poder, assim como também não diminui em nada a centralidade da dominação que ao longo da história manteve sua identidade com o saber.

Para que conseguisse sustentar sua postura soberana ante as forças naturais, a natureza externa, o homem teve de aprender a dominar essas forças, o que implicou em também aprender a dominar as forças da natureza interna: seus impulsos. A violência que teve de exercer sobre si mesmo, o sacrifício que garantiu a continuidade de sua existência, sempre serviu de justificativa para a violência que foi exercida sobre os outros homens. Como o poder se tornou uma força autônoma intrínseca à própria racionalidade e determinante das relações estabelecidas daí por diante, foi ela, a dominação, que se tornou a essência da civilização, e não a autonomia. No processo do esclarecimento, o sujeito tornou-se autocrático, distanciando-se do objeto, da natureza e da efetividade. O homem tornou-se senhor, mas, na medida em que também é natureza e foi alvo da dominação, simultaneamente também se tornou escravo. Àqueles que pelo medo, por sua fragilidade biológica ante as demais espécies, não houve outra opção senão erguer o império da dominação, o objeto primitivo desse medo, a natureza, e tudo que ainda a representa, é sempre visto como algo a se dominar. O ódio à natureza ameaçadora foi substituído ao longo do tempo por uma espécie de ódio civilizado a tudo o que é natureza ou leva à sua recordação. Essa fúria se dirige principalmente ao animal, mas também à mulher e à criança, que, por sua fragilidade física, remetem à natureza. A dominação foi sobretudo masculina e seus efeitos históricos persistem na atualidade de forma ambígua: a violência doméstica contra mulheres e, principalmente, crianças, atesta sua continuidade. A dominação sempre foi dominação exercida sobre a natureza; uma espécie de vitória malograda da cultura:

Um pressuposto da devoção dos fascistas pelos animais, pela natureza e pelas crianças é a vontade de perseguir. A carícia negligente da mão que roça os cabelos de uma criança ou pêlo de um animal significa: esta mão pode destruir. (Horkheimer & Adorno, 1944/1985, p. 236)

A barbárie, hoje menos explícita do que em configurações sociais manifestamente totalitárias, mas não menos frequente e intensamente intrincada na vida social, tão perfeitamente instalada a partir do fascismo, é a sombra da civilização. É certo, como já indicado acima, que se relaciona com a racionalidade, em especial, com a racionalidade instrumental voltada à dominação. Mas sustenta-se como seu subproduto indesejado. Seu caráter francamente regressivo contrasta com a crueldade apática, típica da dominação racional; esta é comum à sociedade administrada e à sua forma equilibrada de gerir os conflitos suscitados pelo processo social contraditório. Nesta realidade social caracterizada pelo cerceamento opressivo das forças que representam oposição à ordem estabelecida, a razão instrumental é incitada a exercer todo seu poder. Essa forma de dominação também é barbárie, mas, em circunstâncias favoráveis à sua propagação, pode prescindir do terror explícito, comumente ocasionado pela estimulação de processos regressivos manifestamente violentos, caracterizados, sobretudo, pela recaída no uso descontrolado da violência física.

A indiferença completa diante do objeto destruído, o desinteresse pelas particularidades da vítima, faz da apatia o produto absolutamente irracional da racionalidade técnica. Esse tipo de violência segue despercebida no mundo administrado, como a dominação mais eficiente: a destruição da própria humanidade. O mundo burguês por ela construído, cuja racionalidade organizativa permitiu o implemento da produção que retirou os homens da situação de escassez e a organização do trabalho em prol de uma minoria favorecida, controla as possibilidades de satisfação em função da operacionalidade do sistema. Ao distribuir os homens de forma hierárquica, o sistema social concede a eles formas de prazer substitutivos, como a manipulação autoritária e a submissão masoquista. As pulsões destrutivas são colocadas a serviço da ordem social injusta. Sob tais condições de controle, a impotência do indivíduo frente à totalidade social é exacerbada até um valor limite; não há autonomia possível. O ajustamento destaca-se como a alternativa mais provável quando se está submerso em condições de existência tão contrárias à expressão da individualidade. A ordem é a adaptação a todo custo.

Em consonância com o entendimento de Adorno (1955/2004), pode-se ponderar que, além da crueldade insuperável dos manipuladores, ainda é o medo, que no caso da grande massa, impulsiona para o ajustamento. O medo frente à ameaça real, objetiva, quer da aniquilação física, quer de ser banido da civilização; de ser excluído das compensações que ela oferece. O medo é medo da violência, mas não exclusivamente da violência advinda da ação de outros homens, é, principalmente, medo da sanção social. Quer seja o medo de ser submetido pelo criminoso desesperado, que sucumbiu ao impulso irracional e assumiu o descumprimento da lei como norma, quer seja o de se tornar vítima do ajuste financeiro da empresa, que, para salvar sua contabilidade, decide cortar mão-de-obra, eliminando tudo que é pouco lucrativo; em ambos os casos, a vulnerabilidade perante a vida social é ainda muito intensa. Ninguém que deixe de cumprir passo a passo as exigências sociais de ajustamento está livre de sofrer as punições sociais mais severas, incluindo a de ficar desabrigado ou ter de passar fome.

Se considerarmos o fascínio que a manipulação da oferta de segurança provoca tanto nas camadas mais abastadas, quanto na massa dos economicamente desvalidos, poderemos, sem muitos esforços, perceber que a ameaça atinge a todos, porém, é em torno da posse da propriedade, e do acesso aos bens que ela propicia, que a ameaça principal se estrutura. É claro que não se pode desconsiderar o alcance destrutivo do crime organizado, que hoje constitui uma das principais fontes de ameaça à integridade física, contudo, a despeito de sua sistemática agressão à vida, o interesse principal, subjacente às ações que o constituem, ainda parece ser a propriedade. Tanto por meio do crime organizado, quanto por meio da desvirtuação criminosa do poder político, estas manifestações da violência somente chegam a ameaçar diretamente a vida humana porque ela se coloca em seu caminho. A agressão dirigida à vida é secundária em relação ao interesse na propriedade, mas torna-se inevitável em um sistema no qual a esfera do valor é definida pela posse de riquezas. A racionalidade dessas formas de organização da violência é indiferente às vidas sacrificadas para que seus autores possam alcançar o maior lucro possível em suas transações. A barbárie processada pelas chacinas, extermínios e execuções sumárias é na maior parte das vezes uma decorrência lógica do interesse financeiro, frequentemente revestido pela justificativa de que a ameaça deve ser enfrentada; de que o que supostamente ameaça deve ser destruído.

De um lado, o tráfico de drogas, imbuído da racionalidade administrativa do mundo empresarial, busca, por meio do sacrifício do exército de trabalhadores reificados que mobiliza, comercializar a mercadoria que ajuda os homens a suportarem sua condição de mercadoria: a droga que propicia o alívio imediato do mal-estar e anestesia a consciência. De forma direta e imediata, produz a alienação absoluta em relação a uma realidade na qual as pessoas já não se reconhecem; da qual já estão alienados de antemão. Ao colaborar para a destruição da consciência, obviamente também contribui para a propagação da barbárie. Todavia, sua produção e comércio é antes de tudo relação de produção, dominação por meio da exploração do trabalho. O fato de ter sua circulação proibida somente explicita a verdade imanente de todo comércio; nele, o ser humano é um empecilho à completa autonomia da mercadoria. Boa parte da violência física cometida no âmbito do tráfico de drogas decorre do modo de negociação possível sob as atuais circunstâncias; a condição de ilegalidade na qual se encontra favorece sua vinculação com o submundo do crime, com isso, seu poder destrutivo é intensificado. O cálculo do lucro se sobrepõe à contagem do número de vítimas que produz, de modo que, de acordo com a escolha do mal-menor, somos impulsionados a estimar qual seria o coeficiente de redução das vítimas se fosse legalizado o uso e a comercialização das drogas ilícitas, como ocorre com uma série de outras drogas também letais, mas que circulam livremente.

Atualmente, o crime organizado recorre às técnicas e à astúcia, engendradas pela ciência, com a mesma destreza que as instituições empenhadas em combatê-lo. Sua eficácia sustenta-se no emprego da racionalidade técnica para fins ilícitos; seu espírito é o da dominação e não hesita em produzir destruição. Se a racionalidade da dominação, a lógica sem autorreflexão, já produz a barbárie a partir de si mesma, de um modo espontâneo, a racionalidade do crime organizado se apropria estrategicamente do desespero já instalado para fazer prosperar seus interesses mesquinhos. Quando empregada para o crime, a força destrutiva da racionalidade técnica tende a tornar-se descontrolada, pois ele também se sustenta nos mesmos mecanismos utilizados para a dominação social em geral, porém desrespeita descaradamente todos os valores humanos implementados pela civilização. A regressão psíquica requerida dos indivíduos para que participem de sua propagação conta com a deterioração prévia da consciência e do caráter dos homens; manipula, em seu favor, a animalização produzida pelo modo de organização da sociedade.

O terror propagado pelo tráfico de drogas é facilmente percebido pela opinião pública como objeto de repúdio. Até mesmo as pessoas que o tornam possível são também suas vítimas diretas e, em geral, se reconhecem impotentes frente ao poder coercitivo que hoje representa. Entretanto, não se pode desconsiderar que, apesar de toda a barbárie que propaga, o mecanismo do tráfico de drogas se nutre das contradições da própria civilização. O desconforto generalizado e impreciso que acomete parte da sociedade, sobretudo as camadas economicamente menos favorecidas, é transformado em motivação para práticas criminosas e em justificativa para ações pautadas exclusivamente no interesse financeiro dos administradores dessa indústria bilionária. Ao analisar o impacto desestabilizador dos ataques provocados por uma das facções criminosos que comanda o tráfico de drogas em São Paulo - Primeiro Comando da Capital (PCC) -, Sérgio Adorno e Salla (2007) desvelaram o teor das intervenções sociais protagonizadas por esse tipo de crime organizado:

Não se espere, contudo, que o PCC e suas demandas por justiça constituam o embrião da revolução social e da construção de uma nova sociedade baseada na justiça, na igualdade e na democracia. O que está em jogo são interesses em torno dos negócios.... Suas lideranças não têm pudor punitivo; não hesitam em matar e aplicar justiça sem direito à defesa. Esperam vencer seus inimigos; porém, não esperam conquistar a simpatia, a solidariedade e o apoio daqueles que vivem atormentados por suas ações criminosas. Não têm projeto político para a construção de uma sociedade democrática; sua concepção de sociedade é tosca, fundada na lealdade entre "irmãos" e na concepção do social como família extensa, constelação de interesses materiais e morais. (p. 24)

De outro lado, as milícias, cada vez mais frequentes nas regiões mais pobres de grandes metrópoles como o Rio de Janeiro, constituem-se como comércio privado da segurança pública, oferecem o terror e a coação direta à margem do Estado. Compostas pela ação organizada de policiais, políticos e civis que se julgam acima da lei, as milícias exploram o medo de maneira ainda mais irracional, pois instalam o terror em nome do combate à ameaça. Seu inimigo manifesto, o tráfico de drogas, comumente suplantado por elas, vendia a alienação imediata, a tranquilidade alienada que remete os homens ao amorfo, ao indiferenciado. Elas vendem a falsa segurança, passam a ocupar o lugar do crime. E, não apenas por também serem crime, mas, principalmente, por oferecerem o controle do medo, realizam a face sombria da dialética do esclarecimento.

Para Alves (2008), as atuais milícias disseminadas em áreas pobres do Rio de Janeiro não constituem um fenômeno novo, são o resultado de décadas de corrupção e violência policiais. A semelhança entre seus métodos ilícitos e os que são utilizados pelo crime organizado para a prática manifesta de delitos socialmente reprovados são indicadores de uma importante mudança na economia política da criminalidade urbana. Hoje também controlada por membros do próprio aparato policial, essa dimensão dinâmica da vida social indica a mobilidade dos pólos representados pelo Estado detentor do monopólio da violência legal e o crime organizado. O fato de nos anos de 1990 ter havido a ascensão de membros de grupos de extermínio à classe política, bem como a subsequente ocupação, por eles protagonizada, de áreas anteriormente comandas pelo tráfico de drogas, não é um fenômeno incoerente, mas sim o desfecho lógico das negociações diretas da polícia corrupta com o crime em áreas de grande miséria e abandono do poder público. À margem do Estado de direito, essas áreas, em geral favelas e periferias pobres, se tornaram laboratórios de gestação do poder paralelo das milícias:

Uma década e meia foi necessária para a gestação dos grupos de extermínio/milícia organizados pelo aparelho policial. O acúmulo de conhecimento obtido pela participação direta nos negócios do crime em cada área foi determinante para o sucesso desse projeto. Cada acordo que envolvia a permanência do tráfico e a obtenção de propina, cada seqüestro de traficante com recebimento de resgate, cada operação para dar entrada de uma facção na área de outra facção para ampliar seu mercado, pavimentou o caminho dos grupos de extermínio/milícias a atual hegemonia em determinadas regiões. (Alves, 2008, p. 34)

O repugnante fenômeno das milícias revela o lado sombrio do Estado burguês, cujas contradições funcionais decorrem das contradições estruturais da sociedade de classes. A brutalidade das ações do Estado repressivo adquire um caráter ainda mais destrutivo quando é apropriada por esse tipo de poder paralelo, que se sustenta na utilização ilegal do próprio aparato estatal. Ele só progride com tanta facilidade porque o Estado, em si mesmo, já é a execução literal de um tipo de violência da sociedade contra parte de seus membros; sobretudo da classe detentora do poder econômico sobre a imensa massa de produtores e consumidores que cotidianamente são espoliados de seu direito à cidadania. A violência a que estão relegados antecede a perversão criminosa da instituição policial. É produzida a partir do próprio modo de organização das relações sociais produtivas. A divisão dos homens em classes sociais antagônicas não poderia ser mantida senão por meio da delimitação de um poder legítimo representado pelo Estado. A violência criminosa que complementa a violência legítima do Estado burguês por meio de seus próprios recursos pervertidos dificilmente se sustentaria como uma força inabalável se o sistema jurídico não fosse também proveniente das injustiças que estão na base do modo de organização da sociedade. A dominação manifestada sob a forma de dominação de classe é garantida pela dimensão jurídica como um poder legítimo. A esfera do direito é beneficiária direta da violência. Benjamin (1921/1972) desvelou a sórdida cooperação do Estado moderno com a violência sem a qual o próprio direito não existiria e da qual depende para sua manutenção. Em Crítica da Violência - crítica do poder, explorou a ambiguidade do termo alemão Gewalt - que tanto pode significar violência quanto poder - para demonstrar a origem e sustentação do direito a partir da violência:

Todo poder [Gewalt] enquanto meio é ou instituinte ou mantenedor de direito. Não reivindicando nenhum desses dois atributos, renuncia a qualquer validade. Portanto, qualquer poder [Gewalt] enquanto meio, mesmo no caso mais favorável, tem a ver com a problemática geral do direito. (p. 167.)

A violência/poder que engendra o direito e lhe dá sustentação torna-se parte inalienável da esfera jurídica, de modo que a desigualdade de forças presente em sua origem contamina toda a estrutura daí decorrente. Os excessos cometidos pela poder corrompido em qualquer das esferas do Estado, inclusive nas esferas jurídica ou policial, são manifestações criminosas contrárias aos princípios do Estado democrático de direito, mas não são absolutamente estranhas a seus elementos fundamentais. A moderna sociedade tecnológica parece realizar com perfeição o crime mais hediondo: o extermínio planejado.

Para concluir, pode-se ponderar que a redução do problema da violência à noção de crime exclui sua manifestação mais perversa: a violência presente de forma generalizada na vida cotidiana; produzida nas relações sociais, repetida pela história e convertida em segunda natureza. A analogia estabelecida por Engels (1845/2008), em A situação da classe operária na Inglaterra, entre o assassinato comum e o que na ocasião era cometido pela sociedade capitalista em expansão desvela o alcance da violência; a força concreta da mediação que exerce:

Quando um indivíduo causa a outro um dano físico de tamanha gravidade que lhe causa a morte, chamamos esse ato de homicídio; se o autor sabe, de antemão, que o dano será mortal, sua ação se designa por assassinato. Quando a sociedade põe centenas de proletários numa situação tal que ficam obrigatoriamente expostos à morte prematura, antinatural, morte tão violenta quanto a provocada por uma espada ou um projétil; quando ela priva milhares de indivíduos do necessário à existência, pondo-os numa situação em que lhe é impossível subsistir; quando ela os constrange, pela força da lei, a permanecer nessa situação até que a morte (sua conseqüência inevitável) sobrevenha; quando ela sabe, e está farta de saber, que os indivíduos haverão de sucumbir nessa situação e, apesar disso, mantém, então o que ela comete é assassinato. Assassinato idêntico ao perpetrado por um indivíduo, apenas mais dissimulado e pérfido, um assassinato contra o qual ninguém pode defender-se, porque não parece um assassinato: o assassino é todo mundo e ninguém, a morte da vítima parece natural, o crime não se processa por ação, mas por omissão - entretanto não deixa de ser um assassinato. (p. 135-136)

Apesar de se referir à Inglaterra do século XIX, a crítica de Engels parece imensamente atual. Atualidade parcial, mas ainda assim assustadora. É necessário reconhecer que as condições de vida de parte dos trabalhadores não mais se caracterizam por tão extrema miséria como aquela a que estava exposto o proletariado da época. A integração dos trabalhadores por meio da esfera do consumo significou avanços materiais importantes em relação à qualidade de vida e ao acesso aos bens de consumo outrora exclusivos da burguesia, contudo a relação de força e a possibilidade de causar nos indivíduos debilitados danos tão irreparáveis que possam levá-los à morte permanece um dado de realidade inquestionável. A divisão da sociedade em classes antagônicas ainda se mantém inalterada. A dominação ainda não foi superada.

Para os frankfurtianos, essa superação somente é possível por meio do próprio esclarecimento, que ainda permanece vinculado à dominação. É necessário levá-lo a refletir sobre si mesmo e, com isso, recuperar as finalidades humanas perdidas ao longo de sua trajetória em prol da dominação da natureza. Por meio da autorreflexão, a razão pode ativar o poder transformador do pensamento negativo.

Hoje, não mais são formuladas utopias sobre um mundo verdadeiramente humano, e as pessoas conformadas com a imagem assustadora que possuem de si mesmas não mais ousam pensar na transformação radical das condições objetivas; aceita-se o mundo como supostamente é. Os empenhos ainda executados no sentido de melhorá-lo limitam-se a reduzir os excessos da barbárie, porém não questionam o fato de ela ser proveniente da própria civilização; das contradições ainda não superadas que fazem da vida social uma organização rígida e hierarquizada. O conformismo, o medo, as satisfações psíquicas substitutivas, a incapacidade de suportar a consciência das contradições sociais, a necessidade desesperada de se adaptar a todo custo; enfim, o crime de omissão diante do assassinato daquilo que é especificamente humano, diante da violência social difusa e inominável que constrange os homens a reproduzi-la incessantemente, garante a vigência perpétua da natureza historicamente produzida.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Prof. Dr. Pedro Fernando da Silva
Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo
Av. Prof. Mello Moraes, 1721. Cidade Universitária
São Paulo, SP. CEP.: 05508-030
E-mail: pedrofernando.silva@usp.br

Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

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