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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto  2010

 

Voz da poesia, vozes do poeta: um jovem em conflito com a lei

 

A voice from poetry: a young offender poet's voice

 

 

Roberta Arueira ChavesI; Elaine Pedreira RabinovichII

IUniversidade Católica do Salvador
IIUniversidade Católica do Salvador

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é baseado em pesquisa realizada sobre a história de vida de um adolescente em conflito com a lei, que cometeu suicídio em 2006, e cuja memória foi suscitada por meio de entrevistas, poemas e cartas deixados pelo jovem. O texto desenvolve uma análise teórica interconectada à análise dos poemas escritos no período em que ele cumpriu medida socioeducativa na Fundação da Criança e do Adolescente (FUNDAC), em Salvador, Bahia, até o momento de sua morte, poucos meses após ser libertado. O presente artigo tem por objetivo compreender, com base no conteúdo identificado nos poemas, aspectos como: poesia, identidade, amor, ato infracional e reconhecimento do outro. Os poemas põem em evidência a força da temática amorosa e a desilusão do jovem em sua trajetória pessoal e em sua relação com a sociedade. O estudo conclui apontando dois aspectos: a responsabilidade mútua e complexa do próprio adolescente e da sociedade marcada por estigmas e intolerância na produção do ato infracional, e a importância de pesquisas sobre história de vida para a compreensão de sujeitos submetidos a processos de exclusão.

Palavras-chave: Jovem em Conflito com a Lei, Poemas, Amor, Identidade, Alteridade.


ABSTRACT

This paper is based on a study about the life history of a young offender who committed suicide in 2006, and whose memory was brought alive by interviews, poems and letters he had written. A theoretical analysis is developed in regards to perusal of the adolescent poems written from the period he was convicted in Salvador, Bahia, until his death a few months after his release. Departing from his poetic production, the paper aims at understanding aspects identified in the poems, such as: poetry, identity, love, criminal act and otherness. His poems show the importance of love as a theme, and the youngster's disillusion with his personal trajectory, and his relation to society. The study concludes pointing out two issues: the mutual and complex responsibility of the adolescent, as well as society's role marked by stigma and intolerance towards his offenses, and the need of further research to comprehend the life histories of individuals submitted to exclusionary practices.

Keywords: Young Offender in Conflict With Law, Poems, Love, Identity, Otherness.


 

 

Este estudo se baseia na história de vida e nos poemas de um adolescente, nascido em 1985, tendo cursado até a oitava série do Ensino Fundamental, procedente do município de Itabuna, Bahia, que cumpriu medida socioeducativa na Fundação da Criança e do Adolescente (FUNDAC), Salvador, Bahia, durante o período de 2003 até março de 2006. O jovem cometeu suicídio em setembro de 2006, com a idade de 21 anos, quando ainda era acompanhado pelo programa de egressos dessa instituição.

A medida socioeducativa cumprida pelo jovem, devido à gravidade do ato cometido (homicídio), correspondeu aproximadamente ao tempo máximo de três anos permitido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), segundo consta no Art. 121, parágrafo terceiro. Cabe aqui ressaltar que, apesar de ter tido apenas uma entrada na referida instituição, o adolescente já mantinha uma vida infracional no município de Itabuna, o que foi expressamente confessado por ele.

A passagem do jovem pela FUNDAC incluiu os três anos de reclusão e o período de atendimento no programa que acompanha alguns dos egressos dessa instituição. O encontro da primeira autora com o sujeito deste artigo, cujo nome é D. F., ocorreu no período posterior à liberação judicial dele, quando atuava como psicóloga na Coordenação de Apoio à Família e ao Egresso (CAFE) da FUNDAC.

O objetivo deste trabalho foi alcançar a compreensão da trajetória do jovem, cujo perfil foi brevemente traçado por meio de um estudo baseado em história de vida, incluindo como corpus de pesquisa as cartas enviadas para a mãe, as produções artísticas, principalmente os poemas escritos no período de internação, e as entrevistas realizadas com técnicos e pessoas que conviveram intensamente com o jovem. Parte de sua poesia foi reunida e publicada em um livro lançado no ano de 2006, com o apoio da FUNDAC. Outras produções, não publicadas, foram cedidas pela mãe.

A metodologia adotada, no presente estudo, seguiu a linha das pesquisas que vêm se voltando para as narrativas individuais, tendo em vista a tendência de diversas disciplinas da atualidade que lançam mão da história oral na pesquisa qualitativa (Ferreira, 2002). A consolidação da história oral como metodologia de pesquisa, segundo Alberti (2000), advém da valorização da subjetividade e da experiência individual como componentes importantes para a compreensão do passado. Além disso, a biografia é capaz de revelar aspectos do funcionamento social por meio da história de vida de sujeitos individuais:

"A ênfase na biografia, na trajetória do indivíduo, na experiência concreta, faz sentido porque a biografia mostra o que é potencialmente possível em dada sociedade ou grupo. Acredita-se que as biografias ilustram formas típicas de comportamento e concentram todas as características do grupo; mesmo as desviantes mostram o que é estrutural e estatisticamente próprio ao grupo - elas permitem identificar as possibilidades latentes da cultura e deduzir 'em negativo' o que seria mais freqüente". (Alberti, 2000, p. 3)

A pesquisa da qual derivou este artigo utilizou a biografia de um sujeito com o objetivo de alcançar a compreensão de sua trajetória (favorecendo a compreensão da trajetória de outros em situação semelhante). Os aspectos suscitados por meio do contato com sua história de vida foram considerados em seu conjunto, incluindo as ressonâncias e transformações provocadas por esse contato sobre a vida das pesquisadoras. A fase de coleta de dados envolveu as seguintes etapas: 1) Visitas, com registro em diário de campo, a alguns locais frequentados pelo jovem, como a casa em que passou parte da infância, o local onde cumpriu medida socioeducativa e a oficina de arte que frequentou até poucos dias antes de morrer; 2) Entrevistas gravadas em mp3 com os técnicos, a mãe e pessoas que com ele tiveram contato frequente; 3) Acesso aos poemas e cartas deixados pelo jovem, obtidos com a colaboração da mãe e dos técnicos da FUNDAC. Dentro desse conjunto, uma ênfase maior foi dada à produção poética, compreendida como parte da biografia do jovem, tendo em vista que a poesia representava a única via de acesso direto à subjetividade de D. F., dada à interrupção trágica de sua vida por meio do suicídio.

A análise dos poemas, das cartas e das entrevistas foi feita, a princípio, por meio de uma categorização dos conteúdos, de modo empírico, a partir da leitura dos textos, identificados e agrupados em tabelas temáticas. Na forma de um estudo eminentemente qualitativo, as teorias que aprofundarão os temas serão expostas à medida que a análise for apresentada.

A presente análise visa compreender aspectos atinentes ao amor, tema central de seus poemas, à construção identitária e à relação com a alteridade, tomando como ponto de partida a produção poética do jovem.

Poesia e identidade

Não é preciso ler mais que poucas páginas da poesia de D. F. para esbarrar com a já tão antiga associação entre amor e o inescapável de seu reverso, a dor: "Ai, que vontade me dá de voltar ao passado!/ Hoje, meu coração é solitário./ O poeta, agora chora a saudade de sua amada" (D. F., 2006, p. 12).

"O que é poesia?" (D. F., 2006, p. 49), questiona nosso jovem, movido pela genuína curiosidade de saber a quê serve sua monção poética, "um grito mudo e desesperado do coração". Não haveria salvação fora da poesia, o que na voz do poeta Mário Quintana (2008) se traduz pelos versos que dizem: "Enquanto o poema não termina/ A rima é como uma esperança/ Que eternamente se renova". Na voz de D. F.: "[...] a poesia é uma grande nave/ que nos leva a qualquer dimensão/ Seja de amor ou de dor [...]" (D. F., 2006, p. 49), estados estes visitados incessantemente pelo jovem poeta.

Na voz de Rilke (2007, p. 191) "as criações de arte são sempre resultado do ter-estado-em-perigo, do ter-ido-até-o-fim numa experiência, até um ponto que ninguém consegue transpor". D. F. o reconhece intuitivamente quando afirma: "[...] Assim é a poesia/ Diz o que a boca se recusa a dizer./ A poesia é o grito mudo e desesperado do coração./ A poesia é o consolo e desabafo de qualquer coração" (D. F., 2006, p. 49).

A produção artística, e, em particular, a poética, só adquire sentido pleno quando alcança e consegue despertar alguma reação no suposto receptor da mensagem que porta. Aqui, tal fato é assumido pelo poeta quando afirma: "Não quero que minha poesia seja linda,/ Só quero que seja lida" (D. F., 2006, p. 49).

No poema "Eu", a necessidade de um interlocutor fica evidente quando, ao final do poema, ele se dirige a uma pessoa hipotética:

Quantos "eu" existe em mim?

Eu poeta, eu sofredor, eu feliz.

Chato, insensato, rebelde, bicho do mato?

Ou eu sincero, eu crítico, eu masculino, eu feminino...

Quantos "eu" existe em mim?

Será o eu apaixonado, cafajeste, agressivo ou pacífico?

Sou todos estes e no fundo ainda não sei quem sou eu.

Quantos "eu" existe em mim?

Eu pobre, miserável, fruto do pecado?...

Eu milionário, estúpido, covarde?...

Eu santo, defensor da boa ética e moral?...

Ou "eu" sou somente "eu", tomando um cafezinho e lendo um jornal?

Quantos "eu" existe em mim?

Quantos "eu" existe em você?

(D. F., 2006, p. 98)

Nesse poema, D. F. abre o horizonte para uma discussão acerca da identidade na era pós-moderna. Para Hall, o sujeito pósmoderno pode ser descrito como uma espécie de "celebração móvel" (Hall, 1992/2000, p. 13), em outras palavras, um sujeito cuja identidade encontra-se fragmentada em meio a um leque de possibilidades reais de identificação, existindo nele uma série de identidades contraditórias e temporárias, que mudam ao sabor da maneira como é interpretado e representado nos sistemas culturais em que se encontra inserido. Hall postula que a pósmodernidade trouxe consigo o esfacelamento dos sólidos padrões de referências nos quais cada indivíduo baseava sua construção identitária e forjava a ilusão de um "eu" permanente e definido. A crença na existência de um núcleo representado pelo "eu" foi irremediavelmente abalada pelas ideias a respeito da pós-modernidade, entrando em cena a noção de uma subjetividade sem fronteiras definidas.

Isso fica evidente no poema transcrito em que D. F. se mostra perplexo diante da descoberta de sua multiplicidade e da incapacidade de auferir desse universo complexo uma imagem precisa e definida de si mesmo. Ao contrário, mostra-se perdido, orbitando em círculos em torno de seus "eus" sem parecer encontrar solução para sua aparente crise identitária. Crise que, embora previsível em seu estágio desenvolvimental, prefigura-se, segundo Hall (1992/2003), como sintoma característico da contemporaneidade.

As abordagens dialógicas definem a subjetividade, ou "self", colocando em relevo o aspecto relacional da existência (Salgado e Gonçalves, 2007). Assim, quaisquer atos e gestos humanos só têm significado se pensados dentro de um contexto de interações dialógicas com outros que tornam esses atos e gestos significativos. Hermans (1999) explora esse fenômeno, postulando que o self se constitui no contexto de conversações imaginárias - com diversos outros - durante as quais uma multiplicidade dinâmica de posições de "eu", relativamente autônomas entre si, é gradualmente estabelecida.

Com base no princípio dinâmico - um dos pilares desta abordagem - esse processo não ocorre em estágios ou parâmetros determinados, sendo marcado pela abertura e contínua flexibilidade, na medida em que ocorre em meio a um diálogo constante com as vozes que emergem das realidades internas e externas ao sujeito. Nesse sentido, é importante ressaltar que, para Hermans (2001), não só o self, mas também a cultura deve ser entendida como uma multiplicidade de posições estabelecidas dentro de relações dialógicas. A partir dessa visão, self e cultura passam a ser concebidos como essencialmente móveis e susceptíveis à mudança, de modo que, para Salgado e Gonçalves (2007), são as qualidades dinâmicas da experiência que devem ser colocadas em relevo.

A alteridade, por sua vez, constitui um aspecto fundamental da relação dialógica, pois esta implica sempre na existência do outro (uma pessoa, um grupo, uma comunidade ou uma sociedade). Assumindo uma postura relacional, não faz sentido estudar pessoas como entidades isoladas. A linguagem e a vida humanas são sempre endereçadas para alguém, tornando-se esse endereçamento uma característica da existência e da produção significativas. Tudo que é dito ou feito o é em função de um outro, ausente ou presente, e cada indivíduo torna-se algo novo na infinita medida do horizonte ao qual se dirige.

D. F. desenvolve uma série de diálogos internos com outros a quem parece destinar seus versos, como quando relata a conversa com a própria tristeza em um de seus poemas, escritos dois dias antes de morrer: "A tristeza veio aqui me visitar/ A tristeza falou demais, me abalou, me deprimiu, me chateou." (D. F., 2006, não publicado, cedido pela mãe). Ou em suas frequentes conversas com pessoas distantes, ausentes ou mortas, como o pai tão querido, de quem se queixa de maneira comovente: "Pai, meu painho, por que me deixastes sozinho?" (D. F., 2006, p. 47).

Para Hermans (2001), as categorias sociais às quais as pessoas se percebem pertencentes exercem sobre elas profunda influência, valendo ressaltar que esse aspecto se torna marcante na adolescência, quando a convivência com os pares tem forte poder atrativo. De fato, nosso jovem afirma sobre um companheiro: "Você é mais que um amigo/ É como um irmão de sangue!" (D. F., 2006, p. 7), fazendo-se solidário, em outros poemas, com os que vivem, junto a ele, a experiência de privação de liberdade. E se ora torna-se deles portavoz, em muitos outros momentos dialoga com os jovens exortando-os para que não sigam um caminho semelhante ao seu.

Por outro lado, D. F. revela-se especialmente carente de um lugar na vida das pessoas com quem desenvolveu um vínculo afetivo. Esse anseio expresso por reconhecimento pode ser evidenciado à luz da entrevista realizada com a psicóloga que o atendeu no Projeto de Egressos da FUNDAC:

"E ele teve um histórico [...] do filho rejeitado, ele, como filho rejeitado por essa mãe. [...] ele era o preterido, porque tinham os filhos mais velhos, né, que já eram os filhos dos olhos dela. E ele sempre foi o bom aluno, ela nunca viu, sempre se saiu bem na escola, né, [...] então era uma casa que não valorava o conhecimento, né. Não valorava... É tanto que ele passava mas ela... os outros perdiam e não era aquilo que valia naquela casa, não. As poesias... [...] então, foi quando ele começou a enveredar por um outro lado, né [...]" (Entrevista com psicóloga, 2007).

A importância do processo de suplementação fica patente, num sentido negativo, neste trecho da entrevista, o qual sugere um processo de desqualificação da família diante do caminho encontrado pelo jovem para ser valorado e legitimado dentro dela. Desse modo, todo o seu esforço parece cair no vazio, desde que sua aventura poética lança sementes numa terra infértil, insensível aos apelos artísticos de D. F. Diz D. F., "Da vida a única esperança/ É um dia ser alguém..." (D. F., 2006, p. 26).

Amor

O amor é o tema que predomina em seu livro, dos 93 poemas, 58 falam especificamente do amor a uma, ou algumas mulheres. Amor eivado da angústia da perda e da dor da separação. Amor prenhe de toda a fantasia que o faz ver nos olhos da amada o que procurou por toda a sua vida. E que faz com que, transformada em lembranças, torne-se também a sombra que recai sobre o jovem.

Um suspiro!

Perdi a minha calma!

Perdi o meu grande amor

Que trauma

Uma vida!

Mas de que valerá essa vida?

Se já perdi a razão de viver.

[...]

Desespero-me e vejo-me num abismo

letal.

Procuro meu amor por toda parte,

Mas não o encontro.

(D. F., 2006, p. 14)

Segundo Nasio (1997), a dor psíquica associada à perda do ser amado faz com que o eu se dissocie entre dois estados. Por um lado, concentra-se na imagem do outro desaparecido, com o qual se encontra profundamente identificado, e, por outro, sofre um intenso empobrecimento por concentrar suas energias num só ponto, esvaziando-se em relação a todo o resto.

Sua amada, por sua vez, é o estandarte em carne viva de todo o processo de desilusão que o jovem sofre no desenrolar de sua história afetiva, pois para ele, amar é sentir-se vivo, mas, por outro lado "Amar é sofrer!" (D. F., 2006, p. 94) e, consequentemente, "não amar é morrer" (p. 94). Nesse sentido, sentir saudades da amada "é morrer aos poucos" (p. 5), pois, sobretudo, é apenas o amor que o faz sentir-se verdadeiramente humano, ou, em suas palavras "Pois só somos verdadeiramente humanos quando/ Abrimos nossos olhos e descobrimos/ O privilégio de amar! (D. F., 2006, p. 23).

Não é possível identificar, pelos poemas, aquilo (o objeto perdido) que provocou o estado melancólico (Freud, 1915/1917), ou desde quando o jovem nele se encontrara. Porém, não é difícil arrolar uma lista de possibilidades, que vão desde a morte trágica do pai, assassinado no período em que D. F. morou com ele na cidade de São Paulo, até as perdas afetivas relacionadas às mulheres com quem se envolveu, à morte dos amigos, do filho, ou mesmo a experiência de "desenraizamento" (Weil, 1949/2001) vivenciada em razão do afastamento compulsório de sua terra, seus vínculos, sua história.

Assim, o poeta lamenta:

E quem poderá explicar o enigma da morte

Se é tão difícil entender a vida?

Quem?

Regressei em meu passado, fui fundo,

Bem adentro de mim.

Lá, vi que perdi todos que amei,

Ou simplesmente perdi-me deles no abstrato do tempo,

Ou nas estradas ilícitas do destino.

(D. F., 2006, p. 93)

Por trás e além das inúmeras perdas sofridas pelo jovem, há nelas o que Nasio (1997, p. 50) denomina "fratura da fantasia" em que a dor não é a simples reação à perda de um objeto amado. Ela representa o transtorno interno causado por essa perda - "perdi todos que amei", "ou simplesmente perdi-me deles" (D. F., 2006, p. 93) -, pois, segundo esse autor, a imagem do ser amado gerada no interior do sujeito que ama é recoberta por inúmeras fantasias (de natureza identificatória) que servem como mecanismo regulador da intensidade do desejo e como base sobre a qual o psiquismo se estrutura. Desse modo, a perda é uma ruptura factível e externa, mas, sobretudo, dá-se na vida interior, ou nas palavras de D. F., "bem adentro de mim" (D. F., 2006, p. 93), provocando o que Nasio define como enlouquecimento pulsional - na medida em que o objeto amado não se acha mais disponível na realidade para modular o desejo e ser receptáculo da fantasia.

Por outro lado, esse trecho também esclarece a associação entre as perdas sofridas e a escolha por trilhar o caminho arriscado da vida infracional, pois aí o jovem afirma que perdeu todos que amou, e, em seguida, que se perdeu nas "estradas ilícitas do destino" (D. F., 2006, p. 93).

Quanto à perda da autoestima, presente nos estados melancólicos, não é difícil encontrar nas palavras de D. F. traços da aspereza de seu autojulgamento: "Às vezes sinto-me um miserável,/ O último dos homens..." (D. F., 2006, p. 38), e a maneira como este é amenizado por meio das fantasias pintadas sobre a imagem da mulher, a quem atribui a grave incumbência de ensiná-lo a amar: "Cuida de mim!/ Ensina-me a viver intensamente,/ Ensina-me a amar! [...]/ Cuida de mim!/ Ensina-me a amar!/ Quero aprender".

Esse aspecto aparece também de maneira bastante significativa nos poemas dedicados à figura materna, pois o jovem não só atribui à mãe o fato de o haver desviado constantemente da rota depressiva, como reconhece que é ela que o endereça ao amor. Assim diz, comovido, num poema dedicado à mãe: "Mãe, você é tão importante para mim!/ A saudade aperta o coração./ Lá no fundo alguém me pede para amar!" (D. F., 2006, p. 15).

Frase essa que se repete, tornando-se emblema da representação psíquica do feminino encarnado na figura da mulher: "Quem será essa mulher/ Que vem em meus sonhos/ Pedindo-me para amar?/ Quem é ela?" (D. F., 2006, p. 75). Ou mesmo "De repente.../ Uma voz mansa e doce soou no ar./ Era uma linda morena que me perguntou/ Se eu sabia o que era amar." (p. 52). Mulher que não é só a parceira do amor e a figura materna, mas é representada por todas as "mulheres guerreiras" (D. F., 2006, p. 41) que, segundo seu julgamento, alcançarão a conquista do mundo.

A mulher de seu cenário interno é representada sob múltiplas facetas. É, por um lado, a figura lasciva que desperta seu desejo ardente, a musa eleita de sua veneração poética, o sol que lhe transmite força e ensina a amar, a paixão que o atormenta e o leva a padecer de um intenso sofrimento, a esperança que o faz suportar seus pesares e dias de solidão, e, por fim, aquela que o devolve à vida e faz com que esta tenha sentido e valha à pena. Nessa última acepção o poeta diz: "Sem você, fico triste,/ Não encontro motivo para sonhar." (D. F., 2006, p. 6). Ou mesmo: "Esse amor é a base da minha vida" (p. 77).

Porém, em muitos momentos evidencia-se a natureza idealizada e projetada da mulher pintada pelo jovem poeta, a "Dulcinéia" longínqua que se oculta por detrás das lutas diárias contra seus próprios fantasmas e dificuldades emocionais. Assim, é principalmente nas derradeiras páginas do livro que a mulher se transforma mais e mais numa figura distante, personificada como uma "lua" enigmática que lhe rouba a voz e faz calar a expressão emotiva: "Lua minha!/ Minha rainha!/ Escondi meus olhos dos teus/ Para que não percebesse o amor/ Que se esconde dentro dos meus." (D. F., 2006, p. 78).

Esse aspecto pode ser compreendido à luz de relatadas decepções, as quais derivam, em parte, da dissonância entre a mulher "ideal" e aquela que frustra suas expectativas - principalmente as de retribuição amorosa.

Comte-Sponville (1995/2007) relata que o amor, dentre outras acepções, pode ser definido como o "erôs" do Banquete de Platão, tal qual aparece no discurso de Aristófanes. Segundo o mito conhecido como o "dos andróginos", em um tempo remoto, cada homem era constituído por quatro mãos e pernas, dois rostos idênticos em um pescoço redondo, sob a forma de uma única cabeça, embora com rostos em posição oposta. Outros caracteres existiam em duplicidade, como os órgãos genitais, que ora eram da mesma natureza, ora de sexos diferentes. Tais seres eram dotados de uma bravura e força excepcionais, de modo que, ao tentarem escalar os céus para combater com os deuses, foram prontamente punidos por Zeus que decidiu cortá-los ao meio. Desse modo, a felicidade, a completude e a unidade de que gozavam esses seres chegam ao final. Eles são condenados a buscar eternamente sua metade perdida para reencontrar a felicidade e efetuar a "cura" de sua natureza humana partida.

O olhar de Comte-Sponville (1995/2007, p. 249) sobre o discurso de Aristófanes o define como o amor essencialmente mítico, tal como muitos ainda almejam; o Grande Amor, total, definitivo, exclusivo e absoluto. Esse anseio corresponde a um desejo de fusão total, e representa uma projeção maciça no ser amado, o qual passa a ser responsável absoluto pela felicidade do amante.

Nesse sentido, pode-se dizer que o amor de D. F., pelo menos em boa parte de seus poemas (porque algo acontece ao final que parece modificar essa concepção), é o amor idealizado de Aristófanes, tal como fica claro nos versos que se seguem: "Quando estou com você/ Sinto-me livre./ Acho que encontrei a tão falada felicidade./ Acho que encontrei minha cara-metade." (D. F., 2006, p. 38), ou, ainda, "E assim juntamos os nossos corações./ Sei que nosso amor é eterno./ Eu sei!/ Sei que você nasceu para mim./ E somos assim, você e eu, numa paixão sem fim." (p. 9), ou mesmo "É tão maravilhoso olhar em teus olhos/ E ver que neles estão o meu único e verdadeiro amor/ Você!" (p. 18).

Esse desejo de D. F. de reencontrar na amada a felicidade perdida, talvez só vivida nos primórdios do desenvolvimento (com a díade mãe-bebê), pode ser compreendido como uma encarnação poética do ideal já milenar de Aristófanes.

No entanto, não é preciso avançar muitas páginas do livro do jovem para perceber a transmutação desse amor, que passa a apresentar elementos passíveis de serem associados a um novo discurso, encarnado na figura de Sócrates (Comte-Sponville, 1995/2007).

Segundo a concepção socrática, o amor está eternamente condenado à carência, à incompletude e à miséria, de modo que, por meio do amor, cada um é inevitavelmente conduzido ou à infelicidade ou à religião. Assim, para Sócrates, ao contrário de Aristófanes, o amor não é completude, mas incompletude, não é perfeição plena, mas pobreza devoradora (Comte-Sponville, 1995/2007), e muito distante de ser fusão, representa uma busca incessante e sem remédio.

Um detalhe interessante do discurso de Sócrates se assemelha ao do próprio D. F.: a visão de amor do filósofo é tomada de empréstimo, confessadamente, a uma mulher, Diotima. Quanto a isso Comte-Sponville (1995/2007, p. 252) pontua: "e não é indiferente, sem dúvida, que, em matéria de amor, que não lhe é costumeira, Sócrates se faça discípulo de uma mulher".

E também não nos é indiferente as repetidas vezes em que nosso poeta, como anteriormente citado, endereça à mulher e somente à mulher a demanda de lhe ensinar o que é amar. Assim nosso jovem se coloca igualmente na posição de discípulo, declinando humildemente em face do universo amoroso feminino.

Cabe ainda lembrar o que coloca Platão sobre como o amor pode encontrar uma saída para a própria miséria parindo (Comte-Sponville, 1995/2007, p. 255), seja por meio da arte, seja por meio da família (procriação). E não é difícil perceber, embora relativamente tão jovem, o esforço de D. F. em se lançar à procura dessas saídas em sua vida, permeada de arte poética e do amor ao filho, precocemente morto.

Por outro lado, a regressão, ocorrida na melancolia, ao que Freud (1915/1917) define como a fase narcisista da libido - lembrando que a escolha objetal do melancólico é de tipo narcisista - em certa medida indica o conflito de D. F. no sentido de desenvolver uma atitude de amor para com o outro da diferença, pois ele só se faz capaz de amar o outro do espelho, o outro cujo rosto lhe reenvia, nos reflexos da identificação. Por isso talvez o jovem fale tanto de amor e se coloque numa clara posição de aprendiz.

O amor e o ato infracional

Pode-se pensar o ato infracional como um pedido de socorro e uma tentativa de recuperar o objeto bom que em algum momento existiu na história do adolescente (Winnicott, 1984/2005). No caso, tal existência pode ser suposta, de maneira indireta, a partir da presença da culpa. Culpa que só pode existir na medida em que há ambivalência que, por sua vez, implica na formação prévia de uma imago do objeto bom ao lado da ideia de sua destruição (Winnicott 1984/2005, p. 111).

Nos poemas de D. F. há a presença inequívoca da culpa, o que pode ser exemplificado por meio dos seguintes trechos dos poemas "Esperança" e "Fugitivo do Passado": "Vou entregar a Deus a minha vida,/ Vou acreditar nas palavras da Bíblia./ Arrependido de todos os pecados." (D. F., 2006, p. 17), e "Cadê a luz que vem lá do céu?/Jesus!/ Vem julgar mais este pobre réu/ Que se arrependeu dos erros do passado." (p. 26). Assim, pode-se dizer que a presença da culpa implica um grau de integração no ego individual e a retenção da imago de um objeto bom.

Por outro lado, Winnicott (1984/2005) associa a delinquência à privação da vida familiar. Nesse sentido afirma que "uma criança sofre privação quando passam a lhe faltar certas características essenciais da vida familiar" (p. 138), "como a depressão da mãe em um momento crítico, ou mesmo a dissolução da família" (p. 173).

Segundo dados do prontuário e das entrevistas concedidas à pesquisadora pelos técnicos da FUNDAC, aos cinco anos D. F. foi separado da mãe devido à ruptura do casamento dos pais. Em decorrência disso, foi levado pelo pai para morar em São Paulo sob a tutela dele e de uma madrasta, a qual não mantinha um bom relacionamento com a criança (fato relatado em duas entrevistas com técnicos das unidades de internação da FUNDAC). Quando D. F. retornou à sua cidade de origem, após o assassinato do pai e da madrasta, já com 12 anos, sentiu-se claramente preterido em relação aos irmãos, revelando que nesse momento não se sentia mais acolhido na casa materna, segundo relatou o jovem para a psicóloga que o atendeu na Coordenação de Apoio à Família e ao Egresso, CAFE, da referida instituição (dado obtido na entrevista concedida por essa profissional à pesquisadora).

Algo bom certamente lhe foi proporcionado pela presença da mãe até os cinco anos de idade, e permitiu-lhe o início do desenvolvimento da capacidade de envolvimento. No entanto, esse processo foi prejudicado pela perda da mãe que, segundo Winnicott (1984/2005), anula o processo de integração que havia se iniciado, inibindo a vida instintual da criança e comprometendo, por conseguinte, o senso de envolvimento.

Assim, torna-se mais compreensível a noção de que o ato antissocial é uma tentativa de forçar o ambiente a reconstituir o quadro de referência perdido em algum momento da infância; o reconhecimento de uma falha ambiental leva à busca de novos suprimentos no próprio ambiente, traduzidos sob a forma de uma busca de controle por parte de pessoas fortes, amorosas e nas quais pode confiar.

Nesse sentido, fica clara também a sobrevivência de alguma esperança, ou seja, se por um lado a pessoa privada de algo passa por momentos de depressão e inibição, por outro, é nos momentos de esperança que é capaz de cometer atos antissociais que representam um "SOS" ou um pedido de socorro que possa ser ouvido. Nas linhas do poema "Passado", de D. F. (D. F., 2006, p. 12):

Então, fico aqui

Poeta calado, Homem solitário, criança sofrida (grifo nosso)

Esperando que alguém estenda a mão e diga:

Ei, levante! Erga a cabeça e siga em frente. Nem tudo está perdido. [...]

A privação pode ser percebida na marcada busca do poeta pelo amor e pela compreensão da natureza desse sentimento, pois para D. F., ser poeta é possuir amor dentro de si, engrossando o coro dos que associam amor e poesia. Assim, ele reza que "o importante é que num poeta ainda existe amor" (D. F., 2006, p. 12), e que ser poeta é ainda alimentar esperança contra todas as adversidades, ou "alimentar no coração as esperanças" que lhe restaram (p. 12).

O reconhecimento do "outro"

O processo de construção da alteridade, ou o reconhecimento do "outro" como dotado de um estatuto próprio, independente e digno de respeito, é uma questão suscitada pelos que refletem sobre a natureza da agressão humana, representada ora por atos de natureza grave, como o homicídio, ora pelo simples e frequente desrespeito cotidiano aos direitos alheios. Para Winnicott (1984/2005), a capacidade de envolvimento, que guarda relações diretas com a questão da alteridade aqui formulada, surge nas fases iniciais do desenvolvimento, como fruto de uma personalidade integrada em que o senso de responsabilidade se desenvolveu normalmente e se traduz na capacidade de um indivíduo "importar-se" ou "preocupar-se", sentindo-se responsável e mesmo assumindo responsabilidade para com outrem e o mundo que o rodeia (p. 111).

A capacidade de envolvimento implica na retenção da imagem de um objeto bom, ao lado da ideia de sua destruição. Implica que a criança - além de já se perceber como uma unidade estabelecida - dispôs em algum momento de seus primeiros anos de um ambiente suficientemente bom, ou seja, de cuidados adequados que lhes foram constantemente proporcionados. É preciso, igualmente, que o bebê tenha sido capaz de combinar a experiência erótica e a agressiva em relação ao mesmo objeto, alcançando o estágio da "ambivalência" (Winnicott, 1984/2005, p. 113), ou seja, ao mesmo tempo em que busca satisfação e objeto, desenvolve, também, um complexo de raiva em relação a esse objeto.

A mãe passa a ser um objeto total, objetivamente percebido, na medida em que o bebê cada vez mais se percebe como um ego independente do ego auxiliar da mãe e ganha a noção de um "esquema corporal" (Winnicott, 1984/2005, p. 114).

Para o bebê, existiriam duas mães, a mãe-objeto e a mãe-ambiente, e o envolvimento surge da integração dessas duas imagens maternas. A mãe-objeto é denominada desse modo por possuir aquilo que pode satisfazer as necessidades instintuais urgentes do bebê, e a mãe-ambiente é aquela que age afastando do bebê todos os perigos e cuidando dele ativamente. A integração dessas duas imagens maternas, portanto, dá início ao desenvolvimento da capacidade de envolver-se.

Para compreender melhor essa questão, é preciso ter em vista o conflito que nasce do confronto entre as fantasias destrutivas do bebê com relação à mãe-objeto, alvo de suas pulsões instintuais, e a necessidade de proteger a mãe-ambiente da força destrutiva desses instintos, a fim de não consumi-la e perdê-la (o que por sua vez provoca angústia e ansiedade).

A solução desse conflito advém quando a criança percebe que pode dar alguma contribuição para a mãe-ambiente, e a partir desse momento, torna-se também capaz de administrar sua ansiedade, transformada agora em sentimento de culpa (Winnicott, 1984/2005). A capacidade de reparar e contribuir com algo para com a mãe-ambiente liberta a vida instintual do bebê, na medida em que este se sente mais à vontade para vivenciar as pulsões do id, e se vê livre da consumição pela culpa sobre os atos destrutivos. Assim, quando a criança acredita que há essa possibilidade de reparação, não se deixa dominar pelo sentimento de culpa e, por conseguinte, desenvolve a capacidade de envolvimento, que se traduz pelo sentir-se responsável pelos próprios impulsos instintuais e funções a eles relacionadas.

Winnicott (1984/2005) coloca a necessidade desse processo continuar a ser reafirmado em fases subsequentes da vida, sobretudo na adolescência, quando se torna urgente que sejam dadas oportunidades para que o adolescente coloque em prática suas capacidades, estabelecendo uma relação construtiva com a sociedade.

Isso fica claro quando D. F. expõe o significado expressivo e social de seus poemas, manifestando o desejo de que sua história sirva de exemplo para os que estão começando a trilhar um caminho como o dele. Ou seja, um caminho de destruição voltada contra o ambiente e que, ao final, volta-se contra o próprio jovem, na medida em que certos atos ilícitos são por ele considerados como um "passaporte para a falência" (D. F., 2006, p. 17).

No âmbito dos estudos psicológicos atuais, há a tendência a tomar a alteridade como elemento constitutivo da subjetividade (Coelho Junior & Figueiredo, 2004). Trata-se, segundo esses autores, de "exigências éticas" da ciência pós-moderna (p. 10) no sentido de promover um resgate da alteridade, que por muito tempo ficou alijada do pensamento psicológico sobre os processos de subjetivação. Essa questão é importante por mobilizar a compreensão da natureza social do ser humano situado histórica e culturalmente, bem como à construção compartilhada de significados numa dimensão intersubjetiva em que a interação e a alteridade são condições constitutivas da pessoa e da sua identidade.

Lévinas (2004) toma de empréstimo da matemática o conceito de "infinito" para apontar que a alteridade é sempre algo transcendente e inapreensível (como a própria noção de infinito). No entanto, esse Outro, que sempre nos escapa e ultrapassa, é tomado aqui não necessariamente como fonte de angústia, mas como base da proximidade e da sociabilidade. Isso na medida em que, para encontrar o Outro é necessário ao "Eu" se desinstalar de si mesmo, substituindo-se a esse Outro, o que representa uma atitude contrária à simples tentativa de apreendê-lo a partir da própria subjetividade, pois transformar o Outro, radicalmente diferente, no "Mesmo", tomando como referência a própria subjetividade, é negar a essência da alteridade. Ou seja, "enquanto este indefeso Outro for produto da subjetividade do Mesmo, a alteridade pura e simplesmente não existe" (Brander, 2008, p. 3).

É possível fazer uma associação com o conceito levinasiano de alteridade como "traumática" (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 20), pois a experiência subjetiva se traduz como uma abertura inelutável ao outro, que sempre nos exige duramente uma resposta, embora sempre ultrapasse a nossa capacidade de acolhê-lo e compreendê-lo: um outro excessivo, sempre a puxar a corda bamba da existência estendida entre dois extremos donde nunca se atravessa, mas onde cada um deve se equilibrar eternamente.

E o poeta o diz, recordando um verso popular: "E como dizia Vinícius de Moraes:/ 'A vida é a arte do encontro,/ embora haja tanto desencontro pela vida '. E lembrando dessa frase, me dei conta de que/ Encontrome em fantasias e me desencontrei pela vida." (D. F., 2006, p. 87). O desencontro em relação ao outro parece correr em paralelo ou mesmo impulsionar o encontro com a própria fantasia, reconhecida pelo poeta em momentos nos quais enuncia: "Tenho um amor,/ Mas esse amor só existe em meus sonhos."; ou mesmo "Fantasias lindas são as que existem na mente de um poeta./ São coisas loucas, pensamentos inocentes./ É o poeta à procura de verdadeiro amor" (D. F., 2006, p. 61).

Dentre tantos outros, é no outro do amor que mais busca força e sentido para viver, como se evidencia em frases como "Nada mais parece ter sentido./ Já não tenho o amor de minha vida aqui comigo" (D. F., 2006, p. 8) ou "Se não fosse por te amar, eu não estaria mais aqui" (D. F., 2006, p. 9).

À guisa de um final

Muitos dos estudos atuais sobre a figura do adolescente em conflito com a lei giram em torno do cumprimento da medida socioeducativa sob diversos aspectos e perspectivas (Alcântara, 2007; Costa e Assis, 2006; Liberati, 2002; Njaine e Minayo, 2002; Oliveira, 1999; Saraiva, 2003). Esses estudos são importantes por problematizar a inadequação do tratamento, até hoje conferido ao adolescente em conflito com a lei no Brasil.

Há, no entanto, um contingente reduzido de pesquisas voltadas para a história de vida e a narrativa de sujeitos em conflito com a lei (Silva, 2003), e dos significados e vivências do ato infracional para os próprios autores, no caso, os adolescentes (Oliveira, 2008). Acreditamos que essas pesquisas são relevantes por permitirem uma compreensão dos jovens em conflito com a lei como donos de uma história singular e, ao mesmo tempo, personagens de uma complexa relação entre indivíduo e sociedade. E é apenas no diálogo com os próprios autores que se pode alcançar uma verdadeira compreensão sobre seus atos.

Quando a sociedade se coloca como intérprete desses atos, ditos "antissociais", não deve deixar de refletir sobre os pré-conceitos que se infiltram nessa interpretação, pois compreender não é ter assimilado o ponto de vista do outro, nem tampouco impor a este a própria perspectiva, mas antes a produção de algo novo que se dá nesse encontro, e que transforma de maneira concomitante as partes envolvidas no diálogo compreensivo (Gadamer, 1960/2003).

No caso do adolescente em conflito com a lei, dificuldades existem tanto do lado deste, cujos atos transgressivos se voltam contra a sociedade, quanto da sociedade mesma, que se mostra alheia aos problemas enfrentados pela juventude em fase de transição para a vida adulta. Isso se evidencia na atitude pouco tolerante da sociedade, que, ao invés de dar suporte, só contribui para transformar os jovens em verdadeiros "marginais" quando os estigmatiza com rótulos de exclusão. Assim, canta D. F.: "Derramo-me em lágrimas/ Quando vejo o pobre menino do mundo descendo a ladeira./ Menino de rua,/ Maltrapilho, marginal... trombadinha/ Assim o tratam quando pede esmola, prato de comida/ Porque está passando mal" (D. F., 2006, p. 30).

A escuta ausente da sociedade, que fecha os olhos para os graves problemas envolvidos com a questão da juventude no Brasil, pode ser muito bem compreendida na voz de D. F.: "Não adianta gritar/ Ninguém pode ouvir./ Não adianta chorar/ Ninguém poderá consolar" (D. F., 2006, p. 44).

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Roberta Arueira Chaves
R. Wanderley de Pinho, n. 466, ap. 1201, Itaigara
CEP: 41815-270. Salvador, BH
E-mail: robertaarueira@gmail.com.br

Elaine Pedreira Rabinovich:
R: Maranhão, 101
São Paulo, SP. CEP: 01240-001
E-mail: elainepr@brasmail.com.br

Enviado em Maio de 2009
Revisado em Novembro de 2009
Aceite final em Março de 2010
Publicado em Dezembro de 2010

 

 

Nota dos autores:

Elaine Pedreira Rabinovich: Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador.
Roberta Arueira Chaves: Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea, Universidade Católica do Salvador

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