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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.18 no.1 Ribeirão Preto  2010

 

Resenha: a violência, o corpo e a cidade

 

Book review: violence, the body and the city

 

 

Luiz Moreno Guimarães ReinoI; Vanessa Lopes dos Santos PassarelliII

IUniversidade de São Paulo
IIUniversidade de São Paulo

 

 

Resenha do livro: Endo, P. C. (2005). A Violência no Coração da Cidade: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta.

Sobre o autor e a obra

O livro A Violência no Coração da Cidade: um estudo psicanalítico, escrito por Paulo Cesar Endo (psicanalista, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo - USP), é resultado do intento de compreender e refletir sobre a problemática da violência urbana, especificamente na cidade de São Paulo, a partir do pensamento psicanalítico freudiano.

O risco de um tema

Toda vez que se aborda o tema da violência ou da destrutividade de uma forma lúcida, corre-se um risco: perder o interlocutor. Isso se dá mais pelas vicissitudes do assunto em si do que propriamente pela relação entre os interlocutores. Pois há temas em que no mínimo hesitamos, ou quando deles falamos nos servimos de um tom próprio que nos distancia do assunto tratado - um daqueles momentos em que falar cala o assunto. E quando um autor se propõe a tratá-lo com certa honestidade, fechamos o livro, ou o lemos recorrendo àquela distância segura: "isto não fala de mim", ou "é apenas uma ficção" (para citar apenas as justificativas mais vulgares).

Mas haveria ainda outro motivo pelo qual o interlocutor se vai. Motivo este mais próximo do falante: "Dizer o terrível acaba gerando atos ou atitudes que também viciam em si mesmas. Quem procura pensar o terrível logo se vê repetindo. Assim o traumático esteriliza a quem fala e a quem o escuta." (Endo, 2009). Dizer o terrível pede um inventar, um recriar de novas formas. Afinal, aquilo que se quer comunicar fica na franja do dizível e do indizível.

É nesse sentido que consideramos que a escrita do livro Violência no coração da cidade teve um trabalho a mais (além do labor cotidiano do escritor): evitar que a sua própria fala fosse repetitiva ou silenciada. Pensamos que essa laboração o autor cumpre com excelência.

A violência no coração da cidade

Na primeira parte do livro, Endo (2005) nos conduz a conhecer diversas nuances da cidade de São Paulo, seja quando revela sua geografia, ou quando conta sua história, num esforço de nos mostrar que a análise de um fenômeno implica conhecer as condições que contribuíram para sua produção. O autor revela com maestria que estamos todos implicados, embora muitas vezes preferíssemos nos ver distantes ou destacados desse retrato cotidiano, muitas vezes, cruel. Somos implicados a contragosto.

São Paulo é hoje uma das cidades mais violentas do Brasil e do mundo. Conjunturas extremas e interligadas convivem, fazendo dela uma metrópole fragmentada em diferentes cidades e com diferentes cidadãos. Apesar do quadro gravíssimo, as medidas de combate à violência implementadas pelo Estado e a mobilização da sociedade civil frente a esse montante de problemas geralmente são muito discretas, tímidas e anódinas, quando não igualmente brutais e violentas.

Como aponta Endo (2005), vários autores, no contexto sobre violência e cidadania no Brasil, grifaram a intrínseca relação entre os processos violentos do período escravocrata e as formas de violência na conjuntura atual. Esse é um modelo de organização social violenta não superada e de diversas maneiras mantido intacto em zonas onde o Estado se ausentou e nas quais vigoram os padrões da ilegalidade e do arbítrio. Um modelo que resiste, paradoxalmente, ao advento da própria democracia.

A violência condenável quando aplicada ao cidadão seria tolerada, permitida ou mesmo desejada, pois ela demonstraria inequivocamente que entre o corpo que bate e o corpo que apanha há uma diferença intransponível. Ao cobiçar uma cidade só para si - limpa, rica e segura - as instituições, os grupos e cidadãos inventariam um objeto fantástico que vai sendo gradativamente desfigurado à medida que é conquistado. Quanto mais a cidade é privatizada, menos cidade ela se torna.

O autor fala, então, da tortura como forma de violência ilegal institucionalizada. Além de todos os seus muitos efeitos nefastos, torna-se, também, um caminho curto para a corrida pelo dinheiro fácil. Paga-se para não ser violentado, uma vez que a violência quando do contato direto com a polícia pode ser quase certa, e a propina é a forma de evitá-la. Deter, prender, privar da liberdade não é o bastante; é preciso possuir o corpo sob o qual se intervém, dessubjetivá-lo.

O sistema carcerário, por sua vez, sem condição alguma de reabilitação, apresentase cada vez mais como um depósito de carne que perpetua a violência. Faz-se de tudo para poupar a sociedade do "mal", mesmo já aprisionado. Submetendo-o a crueldades, humilhando-o, desumanizando-o e eliminando-o. Mas, ainda assim, os motins, as rebeliões, os incêndios acontecem e são, invariavelmente, espetacularizados nas mãos das mídias. E a parte estragada, má e indesejável, ao mesmo tempo em que apavora, entretém. A população excitada pede o massacre ou é conivente com ele.

Endo (2005) afirma ainda que a tendência à separabilidade, à distinção clara é evidente, se manifesta no traçado da cidade, nas suas divisões espaciais e geográficas. A cidade recortada em função da discriminação e da segregação entre os espaços elitizados e os espaços deteriorados, clandestinos e ilegais, define linhas de corte que recaem invariavelmente sobre o corpo cidadão.

Um auxílio original

Explicitada a lógica que monta a cartografia da violência em São Paulo, que, como vimos, é uma violência que recai sobre o corpo, Paulo Endo (2005) nos conduz, na segunda parte do livro, à pergunta: qual o impacto desse cenário urbano violento nas subjetividades?

Para respondê-la pede auxílio ao pensamento freudiano, iniciando um percurso no interior da obra de Freud que, como veremos, não deixa de ter suas contribuições originais. Nesse ponto, encontramo-nos em meio a uma elaboração metapsicológica que visa pensar nas relações entre violência, ego e corpo.

Reflexões sobre o cenário de guerra e seu produto (a neurose traumática); as relações entre corpo e violência; o sadomasoquismo; o paradoxo da pulsão de morte; o superego; e as violências das pulsões, formam a trama conceitual que devolve à temática da violência e ao pensamento freudiano a complexidade requerida. Vejamos uma de suas reflexões centrais e destaquemos as sugestões teóricas do autor.

O produto psíquico dos campos de batalha recebeu o nome de neurose traumática. Mas pode-se dizer que, antes da guerra, os desastres, os acidentes ferroviários, os choques mecânicos desencadeavam semelhante neurose. E o suco dessas experiências não torna o homem mais rico, e sim mais pobre, pobreza esta que se expressa na literalidade dos sonhos e na insistente repetição da cena vivida e sofrida. Poderíamos nos perguntar: mas o que teria acontecido no interior do aparelho psíquico após tais acontecimentos traumáticos?

Freud define o ego como "uma essência corpo; não é só uma essência-superficie, senão a projeção de uma superfície" (Freud, citado por Endo, 2005, p. 112). No entanto, ao vivenciar uma experiência excessiva (morte eminente, a catástrofe, o desastre), o ego assume outra função: "Tratar-se-ia de uma perturbação que colocou o ego numa posição coincidente ao corpo, não como uma projeção ou representação psíquica do corpo, mas o ego, nesses casos, seria o corpo funcionando" (Freud citado por Endo, 2005, p. 113). O ego perde seu caráter de "projeção de uma superfície" e passa a se confundir com o próprio corpo. Essas experiências tornam o ego cego, incapaz de autonomia e restrito a uma obediência inexorável. A violência muda a relação do ego com o corpo. A violência cola o ego ao corpo.

Aqui surge uma contribuição metapsicológica de Endo, a saber, o princípio de sobrevivência. O homem, até então, habitando o conflito dualista princípio de prazer/princípio de realidade, na iminência da violência, passa a ser regido pelo princípio de sobrevivência/princípio de realidade (Cromberg, 2006, p. 187). "É como se a única e principal providência a ser tomada fosse afastar o corpo imediatamente da chama que o queima" (Endo, 2005, p. 113), o que nos lembra o provérbio: "meu reino por um prato de comida". Ou seja, abro mão do meu reino psíquico para poder sobreviver, ideia que consta na epígrafe dessa segunda parte do livro: "Um homem necessita de todas as suas energias para combater eficazmente a fome. Na verdade é mais fácil encarar a aflição, a desonra e a perdição de nossa própria alma - do que uma fome prolongada. É triste, mas é verdade" (Endo, 2005, p.105).

É neste instante de violência iminente que o ego sai do reino psíquico e é obrigado a agir imediatamente na realidade. O corpo passa a representar o ego de forma literal, sem mediações.

Nesse sentido, dizemos que a originalidade dessa segunda parte do livro de Paulo Endo está não só na apresentação de algumas noções inéditas, mas - antes - no próprio percurso que evidencia como, no interior da obra de Freud, podemos encontrar uma recorrente questão que recai sobre a problemática da violência. E o fato de esta aparecer através de diversos prismas na obra de Freud (como Endo nos faz ver) não significa que Freud não soube defini-la. Talvez seja esta uma das suas características: "o caráter incapturável das violências", nas palavras de Endo, o que nos pede uma reflexão contínua, um trabalho de pensamento que a própria violência quer calar.

Flores no asfalto

Na terceira parte da obra, deparamo-nos com experiências concretas de violências que já fazem parte do cotidiano da cidade. Elas representam a face exposta de processos que, de algum modo, se banalizaram reproduzindo-se de modo mais ou menos organizado.

Como aponta o autor:

A violência muitas vezes ocorre nesse intervalo entre a constatação da diferença e o imperativo de ter de coexistir com ela que se impõe no convívio público. Ela se instaura ante a constatação de que o convívio com as diferenças é inevitável, e acaba por fazer parte das estratégias de que se lança mão para suprimi-lo, adiá-lo ou negá-lo (Endo, 2005, p. 224).

A degradação do corpo no espaço público seria uma face do fenômeno. A outra seria a exposição das violências pelas mídias, transformadas então em espetáculo, imagens consumíveis que não têm como objetivo estabelecer qualquer tipo de vínculo.

Em seguida, Endo (2005) traz a partilha e o testemunho como possibilidades de expressão e resistência à violência vivida. Segundo ele, seriam como um diapasão afinado com um dos objetivos de seu trabalho, a saber: "poder repercutir e ser de algum modo instrumentado por aqueles que vivem e reconhecem a dimensão da violência na cidade com crueza, constância e sem atenuantes" (p. 266).

Conhecemos, então, a experiência do autor nas atividades do Fórum em Defesa da Vida Contra a Violência do Jardim Ângela e na Caminhada pela Paz e Pela Vida. Com ele, acompanhamos a possibilidade de dar contorno ao indizível, mesmo que ainda em borrões. Reconhecemos o impacto importante e necessário do compartilhar. Conseguimos enxergar uma alternativa, um ponto de resistência ao excessivo que atinge os citadinos em seu cotidiano.

Endo (2005) faz ainda uma articulação entre o pensamento freudiano e o do filósofo italiano Giorgio Agamben na tentativa de discutir a questão fundante da violência na civilização.

Para terminar, gostaríamos de destacar a beleza do texto em si, que flui e, de tempos em tempos, olha para trás, vê suas pegadas e continua. Não por menos, rendeu ao autor o prêmio Jabuti 2006, principal do país tratando-se de literatura.

E assim termina o percurso, que, como vimos, articula violência, corpo e cidade. Mas, ao final, o livro não se fecha, não se sintetiza; o final é prolongamento, e nos dá uma sensação de continuidade entre o que está no livro e a vida...

 

Referência

Cromberg, R. U. (2006). Um jabuti no labirinto da violência. Percurso, v. 40, 182-190.         [ Links ]

Endo, P. C. (2005). A Violência no Coração da Cidade: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Endo, P. C., & Nogueira, R. (2009). Ditadura Militar no Brasil e suas conseqüências psicosociais [Palestra]. Em Produção de Sedes Sapientiae. São Paulo: Instituto Sedes Sapientiae. 1 DVD.         [ Links ]

 

 

Enviado em Março de 2010
Revisado em Abril de 2010
Aceite final em Outubro de 2010
Publicado em Dezembro de 2010

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