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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.19 no.2 Ribeirão Preto Dec. 2011

 

A "fragilização das funções parentais" na família contemporânea: determinantes e consequências

 

The 'weakening of parental role' in contemporary family: its determination and consequences

 

 

Sandra Aparecida Serra Zanetti; Isabel Cristina Gomes

Universidade de São Paulo - São Paulo, SP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O fenômeno da "fragilização das funções parentais" relaciona-se a dificuldades que os pais possuem em educar seus filhos, na atualidade, devido à insegurança e a dúvidas no exercício de suas funções. Este artigo tem como objetivo apresentar os determinantes deste fenômeno e suas consequências para a família contemporânea. Foram percorridos os aspectos históricos, socioculturais e econômicos desse fenômeno; bem como, partindo de um referencial psicanalítico, mais propriamente freudiano e winnicottiano, foram levantadas as decorrências do mesmo para a construção do desenvolvimento infantil. Desta forma, constatou-se que esse fenômeno se articula com as transformações do novo lugar ocupado pela criança na família, com o desenvolvimento das "ciências especializadas", com a "cultura do narcisismo" e, finalmente, que as crianças expostas a este fenômeno podem se desenvolver em meio a um ambiente de liberdade excessiva, que pode ser prejudicial.

Palavras-Chave: Papel dos pais, Relações pais-criança, Disciplina da criança, Crianças em idade pré-escolar, Permissividade dos pais.


ABSTRACT

The phenomenon of the "weakening of parental role" is related to difficulties that parents have in educating their children, nowadays, due to insecurity and doubts in the exercise of their functions. This article aims to show the determinants of this phenomenon and its consequences for the contemporary family. The historical, sociocultural and economic aspects of this phenomenon were covered, as well as, from a psychoanalytic referential, rather Freudian and Winnicottian, the consequences of that were raised for the construction of child development. Thus, it appears that this phenomenon is articulated with the changes in the child's role in the family, with the development of "specialized science", with the "culture of narcissism" and, finally, that children exposed to this phenomenon may develop themselves in a environment of excessive freedom, which may be harmful.

Keywords: Parental role, Parent-child relations, Child discipline, Preschool aged children, Permissiveness of their parents.


 

 

O Fenômeno da "Fragilização das Funções Parentais"

Observa-se, na contemporaneidade, a presença crescente de crianças pequenas que desafiam intensamente a autoridade dos pais e professores. Tema de programas de televisão em países diversos, de artigos e sites da Internet, esse fenômeno parece mobilizar a sociedade no sentido de refletir acerca do fato dessa nova geração ter um comportamento mais intensificado de indisciplina do que as crianças de "antigamente".

A literatura da área, quando se centra na relação pais-filhos, traz à tona uma "fragilização" em torno da assunção das responsabilidades e do posicionamento de autoridade dos pais hoje em dia (Birman, 2007; Cunha, 1997; Lebrun, 2004; Roudinesco, 2003; Romanelli, 2000; Wagner, 2003). Em função disso, observa-se uma variedade de trabalhos (Casas, 2003; Edwards, 2004; Ferreira & Maturano, 2002; McLaughlin & Harrison, 2006; Pattie, 2005; Sanders & Woolley, 2004; Sidebotham, 2001) focados em estudar a relação entre as práticas parentais e o desenvolvimento emocional dos filhos, ou o comportamento manifesto dos mesmos.

Procurando correlacionar o sentimento de competência dos pais com as suas práticas, uma pesquisa australiana (Sanders & Woolley, 2004), por exemplo, defende a ideia de que pais que são mais permissivos com seus filhos apresentam um sentimento de competência reduzido e que esse sentimento corresponde às suas práticas efetivas. De acordo com McLaughlin e Harrison (2006), o sentimento de competência da mãe no desenvolvimento de seu papel ao cuidar de uma criança com ADHD (Distúrbio de Déficit de Atenção e Hiperatividade) é o principal fator que pode influenciar no desenvolvimento de sua prática parental e isso influencia o comportamento dos filhos. Casas (2003), ao procurar relacionar comportamentos agressivos em crianças pré-escolares com o comportamento de seus pais, percebeu uma correlação positiva entre comportamentos agressivos em crianças pequenas e um comportamento de culpa em seus pais. Ressalta que esses pais se reportavam como permissivos e que percebiam comportamentos de insegurança em seus filhos.

Com base nesses trabalhos, percebeu-se que os comportamentos das crianças poderiam ter um polo de influência considerável advindo do comportamento de seus pais e, desta forma, definiu-se o fenômeno da "fragilização das funções parentais" como característico de pais que sentem culpa, dúvida e insegurança em relação ao próprio posicionamento, enquanto pais, diante do que podem, devem, ou não, fazer por seus filhos, na contemporaneidade (Zanetti, 2008). Assim, o propósito deste artigo será o de compreender os determinantes históricos, socioculturais e econômicos que estão contribuindo para essa mudança de comportamento dos pais, na atualidade.

 

Determinantes Históricos

Baseando-se no trabalho de Lévi-Strauss (1956), Roudinesco (2003) afirma que foi no seio das duas grandes ordens, a do biológico, através da diferença sexual, e a do simbólico, através da proibição do incesto e outros interditos, que se desenrolaram durante séculos não apenas as transformações próprias da instituição familiar, como também as modificações do olhar para ela voltado ao longo das gerações. No entanto, considera que durante essas transformações foi possível perceber uma variedade infinita de modalidades de arranjos e organização familiares, embora nem todas duradouras. Portanto, essa autora compreende a necessidade de não somente definir a família sob o ponto de vista antropológico, mas também saber qual a sua história para que se possa analisar qualquer modificação na atualidade.

Desta forma, no campo dos determinantes históricos, a proposta é de refletir a respeito do modo como o relacionamento entre o adulto e a criança foi-se estabelecendo ao longo dos tempos. Consequentemente, compreender as decorrências dessa relação para a constituição da representação da criança na sociedade, atualmente, e, do mesmo modo, das condições que o contexto histórico reservou à relação pais-filhos na contemporaneidade.

Philippe Ariès (1975) foi pioneiro em mostrar que a infância, ou o sentimento e a ideia que temos dela, não é uma categoria natural. Com isto, o autor quer dizer que quando nos deparamos com uma série de concepções e sentimentos sobre uma criança, isto é, na verdade, o resultado de um processo historicamente construído.

Muito pouco se sabe de atitudes dos adultos frente a crianças na antiguidade, mas tem-se a informação de que havia uma preocupação com relação aos cuidados e proteção de que necessitavam, além da escolarização. Entretanto, segundo Postman (1999), foi após as invasões dos bárbaros ao Império Romano, com o sepultamento da cultura clássica, que a Europa entrou na chamada "Idade das Trevas" e, com ela, todo o sentimento ou ideia de infância que havia sido construído, até então, também foi sepultado.

Nesta época da história, esse autor chama atenção para o fato de que a capacidade de ler e escrever, bem como a educação, também desapareceram. O porquê deste desaparecimento de quase mil anos é um mistério profundo, segundo o próprio autor. Não que o alfabeto tenha desaparecido, explica ele, mas sim a capacidade de o leitor interpretar e compreender o que se escrevia. E, com isso, num mundo não letrado, não houve a necessidade de distinguir com exatidão a criança do adulto. Portanto, Postman (1999) atribuiu esta "falta de lugar" para a infância à falta da necessidade de instrução.

Da mesma forma, Ariès (1975) demonstra que, até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não procurou representá-la. Esse autor realizou seu trabalho procurando recuperar a representação da infância desta época e demonstra que foi por volta do século XIII que começou a surgir algum tipo de representação da criança um pouco mais próximo do sentimento moderno: um anjo, ou o menino Jesus. Dessa iconografia religiosa da infância, aponta esse autor, nos séculos XV e XVI, destacou-se a iconografia leiga. No entanto, não seria ainda uma representação da criança sozinha, mas com sua família.

Para Postman (1999), com a evolução deste sentimento, no século XVI, nas camadas superiores da sociedade, um traje especial passou a distingui-las dos adultos, demonstrando com isso a necessidade simbólica de distinguir uma categoria da outra. Além disso, o sentimento de infância que surgia estava atrelado a uma percepção da criança como ingênua, gentil e graciosa, que se transformava em fonte de distração e de relaxamento para os adultos.

O nascimento do sentimento de infância, para Postman (1999), relaciona-se com avanços tecnológicos da época. A partir de meados do século XV, temos na Europa a invenção da impressão com caracteres móveis, a prensa tipográfica. Essa invenção trouxe consigo a possibilidade de os indivíduos falarem e pensarem sobre eles, um senso de eu, que foi o início do amadurecimento do conceito de infância (Postman, 1999). No entanto, tal como mostra Ariès (1975), a solidificação desse conceito ainda levaria mais dois séculos, ao menos. Com esta invenção tecnológica, formou-se, segundo Postman (1999), uma nítida divisão entre aqueles que sabiam ler e os que não sabiam: o "Homem Letrado" tinha sido criado e, ao chegar, inaugurou um mundo de que não faziam parte as crianças.

Portanto, a partir daí a idade adulta tinha que ser conquistada. Através da necessidade de aprender a ler para conquistar o mundo dos adultos, da necessidade de educação, foi instaurado o conceito de infância, tendo como base a falta de educação que separaria as crianças dos demais membros da sociedade.

Diante disto tudo, pode-se perceber que a ideia de infância praticamente nasce conjuntamente com a de educação, ou com a necessidade de educação, compreendendo-se esta "necessidade de educação" enquanto necessidade de instrução, inicialmente. Ariès (1975) demonstra como esse conceito de educação se difundiu pela Europa e passou a ser atrelado ao conceito de necessidade de disciplina, posteriormente, pois para que uma criança fosse educada, instruída e se concentrasse nos livros, a disciplina era de fundamental importância.

No século XV, tanto para Postman (1999) quanto Ariès (1975), os homens adeptos da ordem, organizadores esclarecidos, procuraram difundir uma ideia nova da infância e de sua educação: as crianças não podiam ser abandonadas, sem perigo, a uma liberdade sem limites hierárquicos, elas precisavam ser educadas por uma disciplina maior e princípios mais estritos. Por isso, os "mestres de escola" não poderiam ser "camaradas" da criança e, aos poucos, os governos autoritários e hierarquizados dos colégios permitiram, a partir do século XV, o estabelecimento e o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso, chegando a ser humilhante.

Desse recorte histórico, destaca-se o fato de que a solidificação do sentimento de infância se desenvolveu à medida em que também se desenvolveu a necessidade de educação, enquanto instrução e disciplina. A infância passou a ser definida pela frequência escolar e a sua descrição ficou atrelada aos estágios escolares que, em cada etapa desta infância, deveriam ser alcançados (Postman, 1999).

Há algo de importância que ocorre juntamente com a solidificação da infância: segundo Ariès (1975), o modelo da família moderna também ganha sua forma. A exigência social de que as crianças fossem formalmente educadas por longos períodos levou a uma reformulação no relacionamento entre pais e filhos. Uma nova "atmosfera" reinava nos lares: a da necessidade de estes pais assumirem as funções de educadores e teólogos, pois também se valorizava que as crianças se tornassem adultos "tementes a Deus" (Postman, 1999). No entanto, com o passar dos tempos, afirma o autor, houve uma extensão do número de escolas e estas responsabilidades começaram a ser delegadas, de maneira que sobrasse para a relação entre pais e filhos algo de maior proximidade, intimidade e carinho.

Foi assim que a família concentrou-se em torno das crianças (Ariès, 1975). Para esse autor, os progressos do sentimento de família seguem os progressos da vida privada, da intimidade doméstica, pois o sentimento íntimo de família não se desenvolve quando a casa está demasiadamente aberta para o exterior. Com a evolução deste mundo privado, a família, a saúde e a educação passaram a ser, no século XIX, as duas principais preocupações dos pais. Comparando o século XVII, em que a criança era um objeto de distração, um instrumento de uma especulação matrimonial e profissional, destinada a promover um avanço da família na sociedade, com o século XIX, vê-se emergir uma rotina elementar para garantir uma boa educação à criança: "Esse grupo de pais e filhos, felizes com a sua solidão, estranhos ao resto da sociedade, não é mais a família no século XVII, aberta para o mundo invasor dos amigos, clientes e servidores: é a família moderna" (Ariès, 1975, p. 270).

A família moderna, portanto, separa-se do mundo e põe toda a energia do grupo na promoção das crianças e sem nenhuma ambição coletiva. Contudo, cabe um questionamento: na época em que estamos vivendo, início do século XXI, toda essa estrutura, que sustentou esta forma de relacionamento entre pais e filhos, permanece? As mesmas condições sociais e culturais permeiam essa relação da mesma forma, ou já se articulam de maneira a tê-la modificado?

Considerando todo esse panorama, Postman (1999) defende a tese de que atualmente vivenciamos uma época em que a infância - enquanto representação histórica e socialmente construída - está desaparecendo. Novamente reportando-se às interferências dos avanços da tecnologia para a constituição subjetiva dos indivíduos, com a invenção do telégrafo, segundo o autor, entramos numa era em que a informação passou a ser divulgada de maneira incontrolável, culminando na corrosão da linha divisória entre a infância e a idade adulta.

A televisão potencializou aquilo que o telégrafo instaurou na sociedade: a acessibilidade, cada vez maior, da informação. As crianças começam a ver televisão sistematicamente aos três anos, já que a imagem na televisão está disponível a todos, independentemente da idade e na televisão tudo é para todos (Postman, 1999).

A presença indiscriminada de um veículo de comunicação e informação, como foi com a televisão, para o autor, é capaz de destruir a linha divisória entre a infância e a idade adulta porque não faz exigências complexas, nem à mente, nem ao comportamento, para que se compreenda o que está sendo veiculado, e porque não tem intenção de segregar seu público.

Dessa tese, o autor conclui que, na era da televisão, as etapas da vida são apenas três: a dos "recém-nascidos", a dos "adultos-crianças" e a do "senis". Define a categoria de "adulto-criança" como "um adulto cujas potencialidades intelectuais e emocionais não se realizaram e, sobretudo, não são significativamente diferentes daquelas associadas às crianças" (Postman, 1999, p. 113).

Pode-se realmente perceber um incentivo, por parte da mídia, em reafirmar a ideia de que as crianças são seres em condições de igualdade para poderem se beneficiar, supõe-se, do fato de que elas também estariam aptas a ser um consumidor em potencial. Mais do que isto, o que facilmente pode-se perceber é que estamos em contato com crianças que realmente reivindicam um lugar de igualdade na sociedade e na família diante dos pais. É como se elas próprias percebessem que não há razão para tratá-las de modo diferenciado, pertencendo à mesma categoria dos adultos e, consequentemente, como se não houvesse razão para tratá-las com autoridade.

 

Determinantes socioculturais

A leitura de Postman (1999) propõe uma ruptura no modo como o relacionamento pais e filhos foi historicamente construído. A intenção, aqui, será a de demonstrar que, além dessa mudança na representação da criança, são diversas as interferências, atualmente, capazes de influenciar na concepção que os pais têm sobre a função que devem assumir em relação às suas crianças.

Esse trajeto, ao longo da história, faz perceber que a noção de infância e a concepção de criança sempre estiveram atreladas à necessidade crescente de colocar-se diante dela com autoridade, para que adquirisse disciplina e conhecimento. Além disso, o que também foi possível perceber é que esta forma de se relacionar, mediada por uma postura rígida e impositiva, diversas vezes foi confundida com a necessidade de uma postura autoritária.

Analisando o contexto sociocultural, nesse sentido, o que se destaca é que com a evolução das ciências seu aperfeiçoamento em conhecimentos especializados1 - quando "debruçou-se" sobre a criança, passou a existir uma preocupação especial em relação às formas de tratá-la. Atualmente, são diversos os saberes, provenientes de "discursos especializados", que passaram a povoar intensamente o imaginário social, defendendo ideia de que o autoritarismo deveria ser a todo custo combatido.

Segundo Priszkulnik (2002), nesse final do século XX e início do século XXI, pode-se afirmar que a criança se tornou ainda mais o centro das atenções e das preocupações dos adultos. A educação, a saúde, o bem-estar, as relações entre pais e filhos, para essa autora, são assuntos, dentre outros, constantes em periódicos científicos, em revistas semanais, em artigos de jornais e, nos dias de hoje, em sites na Internet. Esses especialistas, muitas vezes indicam como tratar a criança e como agir com ela, e essas indicações, frutos de pesquisas científicas, podem interferir de tal maneira no relacionamento entre adulto e criança que acabam levando muitos pais a desconfiarem de sua competência para educar seu filho (Priszkulnik, 2002).

Supõe-se, como propõe Priszkulnik (2002), que essa forma de interferência dos especialistas teve suas consequências nas relações entre pais e filhos. Contribuiu para a ideia de que o saber natural dos pais é desqualificado em relação ao saber dos especialistas e, desta forma, também retira dos pais a autoridade inerente sobre seus filhos, pois esta se justifica quando podem se responsabilizar inteiramente pela educação dos mesmos.

Para Del Priori (1992), esse fenômeno pode ser lido como uma "reação violenta" da sociedade científica contra um posicionamento em que os pais não consideravam as crianças plenamente enquanto cidadãs. Portanto, a preocupação maior destes "discursos especializados" estava em buscar sensibilizar os pais acerca da necessidade de maiores cuidados em relação a seus filhos, mas acabaram por provocar um sentimento exacerbado em que, atualmente, a criança é colocada no lugar de protagonista e de quem decide sobre seu futuro.

Uma possível leitura desse movimento no universo intelectual sobre a infância é a de que, em busca de relações mais igualitárias entre os sexos e isentas de repressões sexuais, diversos autores e profissionais especializados, procurando propiciar melhores condições de vida aos novos seres humanos, acabaram confundindo-se entre um combate ao autoritarismo e/ou ao princípio de autoridade, que passaram a ser concebidos sem distinção nos lares, de modo que ambos passaram a ser atacados e questionados.

Lebrun (2004) considera que a sobrevinda do discurso da ciência, que subverteu profundamente o equilíbrio até então em jogo na família, surgiu para acabar de vez com o poder da autoridade paterna, proporcionando um deslocamento do posicionamento de autoridade para o de responsabilidade.

Para este autor, desde que a autoridade da Igreja passou a ser contrariada pela da ciência, a legitimidade, que a onipotência de Deus autorizava, passou a ser questionada pela legitimidade permitida pela cientificidade. Essa mudança permitiu o embasamento do saber numa legitimidade fundada na autoridade concedida pela coerência interna dos enunciados em detrimento de uma legitimidade fundada na autoridade do enunciador. Assim, o lugar central que acabou tomando a ciência em nossa sociedade promove uma organização social sem referência, já que tudo se equivale na medida em que novos balizamentos ainda não foram validados.

Diante desse contexto, Lebrun (2004) ressalta a dificuldade crescente dos pais em dizer "não!", pois essa dificuldade se relaciona com o fato de que os pais esperam que o social venha ratificá-los em seu dizer. No entanto, o que se constata é que esta dificuldade em dizer "não!" contaminou primeiramente o social, para o autor.

De uma forma geral, a introdução da ciência moderna progressivamente deslegitimou o argumento da autoridade. Um movimento que, segundo o autor, primeiramente abala o lugar daquele que sempre teve o encargo de sustentar a enunciação, o pai. E em segundo lugar, promove um novo modelo de configuração: dirigir-se ao saber como ao pai, ou seja, nossa sociedade assumiu a ciência no lugar da função paterna.

Diante de tudo, importa pensar que, atualmente, não há referências claras sobre a importância e a necessidade de se manter vivo o princípio de autoridade nas relações dos pais com seus filhos. Diversos autores têm apontado para a existência desse fenômeno e suas consequências para a reestruturação da família.

Wagner (2003) considera como fato comum, hoje, pais e mães sem referências claras do que deveriam fazer em questões simples do cotidiano. Para ela, como as regras da educação não estão claras para os pais, tornam-se inconsistentes diante dos filhos. As relações de poder, historicamente estabelecidas de forma hierárquica, nas quais o pai detinha a autoridade e era reforçado pela mãe, estão diluídas. Além disso, essa posição inconsistente dos pais os torna mais vulneráveis às ideias difundidas sobre as novas teorias e alternativas de educação. Consequentemente, um sentimento de culpa os domina, funcionando como um paralisante, principalmente no que se refere a situações que exigem que os mesmos coloquem um limite.

Segundo Romanelli (2000), as relações de autoridade e poder na família devem-se constituir como elementos ordenadores da cena doméstica, definindo posições hierárquicas, direitos e deveres específicos, porém desiguais. A autoridade reporta-se a experiências comuns vividas no passado e seu exercício visa preservar posições hierárquicas já estabelecidas, que fazem parte da tradição de comando no interior de um grupo ou associação. No entanto, a rapidez das mudanças que afetam a família tornam o saber, acumulado pelo pai, inadequado para fazer face a situações novas, que não foram vividas por ele e sobre as quais sua experiência é nula, de modo que, muitas vezes os filhos transmitem aos pais saberes e novos modelos de conduta. Por consequência, essas mudanças contribuíram de modo decisivo para que os filhos assimilassem a posição de "sujeitos de direitos", dentro e fora da unidade doméstica, ficando em segundo plano a condição de "sujeitos de deveres". Assim, ressalta o autor, a ação socializadora das famílias de camada média concorre para que o individualismo dos filhos prevaleça sobre as aspirações de cunho coletivo.

 

Determinantes Econômicos

Associada a essas circunstâncias, considera-se de importância também salientar as interferências decorrentes do sistema econômico na construção atual das subjetividades dos indivíduos. As condições de existência atuais são profundamente marcadas pela disseminação de valores e comportamentos que sustentam e são provocados por uma violência cotidiana, ditada pelo mercado econômico.

A sociedade atual, segundo Caniato (2000), sustenta uma violência estrutural, dita democratizante, pautada num autoritarismo econômico disseminado pela globalização, cujos efeitos são promover a ganância e a exclusão social em todos os países do planeta. Esse fenômeno promove a competição individualista que se potencializa e se nutre do "salve-se quem puder", impondo condições de vida que priorizam as necessidades do mundo econômico, além de sedimentar a impotência individual e a apatia dos grupos na culpabilidade de seus fracassos. Nessa sociedade, o indivíduo solitário é responsável pela sua performance e o resultado não poderia ser outro, tal como aponta a autora, senão seu enclausuramento na destrutividade psíquica e uma redução narcísica perversa.

O que Caniato (2000) aponta realmente tem sido sustentado por alguns autores, como Lasch (1983) e Costa (2003), que afirmam que questões de ordem narcísica têm-se disseminado na cultura, em decorrência das condições socioculturais e econômicas que perpassam as constituições psíquicas dos indivíduos.

A cultura contemporânea do narcisismo, sustenta Lasch (1983), fundamenta-se basicamente na realidade de um mundo exterior que se apresenta como cada vez menos durável, comum e público, onde as associações humanas e as memórias coletivas encontram-se cada vez mais problemáticas. Esses sentimentos intensificam, segundo ele, o medo da separação, ao mesmo tempo em que enfraquecem os recursos psicológicos, que tornam possível enfrentar tal medo de forma realista.

Esse autor explica que os processos de separação e morte só são suportáveis porque o mundo preenchido de cultura humana restaura o sentido de vinculação original em uma nova base. Contudo, mediante condições de existência que enfraquecem os recursos para lidar com as perdas, o medo da separação torna-se quase esmagador e a necessidade de ilusões passa a ser, consequentemente, mais intensa do que nunca.

Esses aspectos culminam por interferir na constituição das famílias e dos indivíduos. Pode-se supor que o mecanismo de culpabilização (Caniato, 2000) de cada um por tudo aquilo que não se pôde conquistar, numa sociedade de extrema valorização por aquisições e conquistas pessoais, além de competitiva, promove nos pais atuais a expectativa de alcançar um ideal em suas funções parentais, também influenciados pelos "discursos especializados". E quando não se sentem em condições de dar aos filhos tudo aquilo que eles querem, ou de que acham que precisam, devem se sentir culpados. Pode-se compreender, ainda dentro desse cenário, que da mesma forma a culpa deve surgir quando se deparam com o fato de que os filhos passam mais tempo em escolas ou creches, diante da televisão, com suas professoras e babás do que com eles próprios, pois, imersos neste sistema, precisam trabalhar muito. Esse sentimento de culpa acaba, por sua vez, interferindo imensamente na dinâmica das relações paterno-filiais porque funciona como um paralisante, diante do medo de ressentimento dos filhos, ou mesmo dificultando que esses pais se coloquem como autoridade diante dos filhos por se sentirem em dívida com os mesmos.

Além destes aspectos, as condições socioculturais e econômicas de existência podem interferir nas formas de construção de vínculos na família, pois esses passaram a ser perpassados por questões e aquisição de valores relacionados à individualidade, liberdade, igualdade de direitos e falta de confiança no grupo social.

Para Roudinesco (2003), a família contemporânea assemelha-se a "uma rede assexuada, fraterna, sem hierarquia nem autoridade, na qual cada um se sente autônomo ou funcionalizado" (p. 155). Caracteriza-se ainda, segundo a autora, por unir dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual, em que o casamento perdeu todo seu valor simbólico de outrora, tornando-se apenas um tipo de união, mais ou menos duradoura, que protege os cônjuges de eventuais desordens do mundo. Os filhos, por sua vez, são cada vez mais concebidos fora dos laços matrimoniais e assistem às núpcias e divórcios de seus pais. Essa autora acentua que em lugar da divinização, a família contemporânea se pretende frágil, neurótica e consciente de sua desordem.

De acordo com A. C. T. Ribeiro e I. Ribeiro (1993), os novos valores da família estruturam-se em torno do caráter idealizado de cuidados, de respeitos à autonomia e às individualidades, e conjectura-se que essas foram as formas em que "individualismo", "igualdade de direitos" e "narcisismo" têm-se apresentado na família. Essas mudanças podem ser entendidas como efeito de uma sociedade pouco compromissada com o próximo que, refletida na família, assume esse caráter de "emergência de cuidados", mas que efetivamente não ocorre, porque se os pais estão tomados pelo ideal, na prática, não se implicam nesta tarefa de educar.

 

Decorrências da "Fragilização das Funções Parentais" para o Desenvolvimento Infantil

A partir da psicanálise, como mostra Kamers (2006), sabe-se que a família é uma estrutura responsável pela transmissão e inserção da criança na cultura e no universo simbólico, através das funções parentais. Ou seja, cabe aos pais se implicar na tarefa de transmissão de uma ordenação simbólica que delimite lugares, de modo que a categoria de pais defina diretamente a categoria de filho. Entretanto, essa autora defende a ideia de que atualmente assistimos a um desvanecimento da diferença necessária a esse ordenamento e a um "inflacionamento imaginário", relativo ao que deveriam ser as funções parentais. Considera que a existência de uma vasta literatura nesta área, referente aos "discursos especializados", encarregou-se de promover uma proliferação de um "exército de pais desesperados", que não se autorizam junto a seus filhos. Essa situação, também para ela, implica numa renúncia do adulto em educar uma criança, em nome de ilusões de uma educação ideal.

Segundo Freud (1914/1969a), se "prestarmos atenção à atitude de pais afetuosos para com os filhos, temos de reconhecer que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que de há muito abandonaram" (p. 97). Para ele, os pais atribuem todo tipo de perfeição aos filhos, ocultando e esquecendo as deficiências dos mesmos. A criança torna-se o centro das atenções em função de uma atitude emocional dos pais, que buscam imortalizar-se por intermédio da criança.

Portanto, o amor dos pais, para Freud (1914/1969a), no fundo "tão infantil", nada mais é senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, revela sua natureza anterior. Lebovici (2004) afirma que o narcisismo primário descrito por Freud (1914/1969a) é algo que dá sentido próprio à criança e permite que se sinta viva quando a sua mãe não está com ela, o sentimento de consciência da própria existência.

No entanto, transpondo essa leitura para a "cultura do narcisismo" e baseando-se em tudo que já foi exposto até aqui, poder-se-ia compreender que a criança, que já se encontra sob os desígnios provenientes do amor narcísico dos pais, assume hoje o lugar do ser ideal. Aquele que, como objeto de projeções, torna-se o ser na família capaz de realizar todas as frustrações destes pais, alguém, portanto, a quem não se pode nunca frustrar.

De acordo com Lasch (1983), as condições de igualdade pretendidas em nossa "cultura do narcisismo" ofuscam o poder de autoridade paterna. Ademais, interferem nas formas de relações entre os membros familiares, pois, perpassados por condições narcísicas intensas, acabam proporcionando modelos de relação regredidos, baseados no medo da separação e na tentativa de suprir toda e qualquer necessidade. Dessa forma, os pais providenciam às crianças um processo de crescimento em que pouco precisam lidar com limites, tornando-as também incapazes de lidar com a frustração.

Para Kehl (2001), na "cultura do narcisismo", os filhos podem ser a esperança da imortalidade e perfeição, e os adultos querem se recuperar narcisicamente à custa de seus filhos. Essa autora afirma que isso faz com que o adulto passe a sustentar sua existência individual na imagem ideal de uma criança, que atualmente é vista como capaz de ser o adulto que eu não fui a quem nada deveria faltar.

À vista disto tudo, o adulto acaba por recusar a sua responsabilidade diante deste mundo, negando à criança a possibilidade de ser introduzida nele (Kamers, 2006). Essa autora ainda defende a ideia de que atualmente assistimos a uma espécie de delírio de exclusão da sustentação simbólica necessária para a humanização da criança. "Delírio", que, segundo ela, está fundado na ilusão de que o adulto poderia intervir de uma forma adequada, ideal, junto à criança. E nisso consiste a ilusão de que seria possível "poupá-la" dos interditos necessários à cultura.

Contudo, a tarefa primeira da educação consistiria, de acordo com Freud (1932/1969b), no dever da criança em aprender a controlar seus instintos. Atenta, diante disso, para o fato de que é impossível conceder às crianças a liberdade de por em prática todos os seus impulsos sem restrição. Por conseguinte, de acordo com esse autor, a educação deve inibir, proibir e suprimir os impulsos da criança, como procurou fazer em todos os períodos da história.

Freud (1939/1969c) ainda explica que o superego - instância do aparelho psíquico responsável por exercer o papel de um juiz ou censor relativamente ao ego, que se constitui a partir da interiorização das interdições parentais, no desenvolvimento do complexo de Édipo (Laplanche, 2004) - é o sucessor e o representante dos pais para o indivíduo. Os pais são os responsáveis por supervisionar as ações no primeiro período de vida da criança; de modo que o superego continua as funções dos pais quase sem mudança. Segundo este autor, a autoridade dos pais da criança lhe exige uma renúncia ao instinto, que por ela decidem o que lhe deve ser concedido e proibido. Mais tarde, quando a sociedade e o superego assumirem o lugar dos pais, o que na criança era chamado de "bem-comportado" ou "travesso", é descrito como "bom" e "mau", ou "virtuoso" e "vicioso".

Para Winnicott (1999), a criança que expressa um comportamento de agressividade demonstra uma vida instintiva que está ativa e que pode usufruir dos impulsos instintivos, incluindo os agressivos, com a possibilidade de converter em algo construtivo, na realidade, o que era um dano na fantasia, que é a base do brincar.

Ainda segundo o autor acima, é tarefa dos pais e dos professores cuidarem para que as crianças nunca se vejam diante de uma autoridade tão fraca a ponto de ficarem livres de qualquer controle ou, por medo, assumirem elas próprias a autoridade.

Em resumo, a agressão em crianças pequenas, para Winnicott (1999), tem dois significados: constitui direta ou indiretamente uma reação à frustração, mas também é uma das muitas fontes de energia de um indivíduo. Disto pode-se concluir, de acordo com o autor, que todas as crianças teriam este impulso agressivo naturalmente no modo de se comportar e necessitariam de pais confiantes, fortes e amorosos que possibilitassem a expressão, continência e contenção destes comportamentos. Do contrário, a criança, assustada com esses impulsos, sentirá necessidade de reprimi-los, tornando-se tímida ou deprimida; construindo um sentimento de culpa; ou ainda, tornando-se tirânica, numa busca pela contenção externa.

Como mostra Winnicott (1999), no começo a criança tem necessidade absoluta de viver num círculo de "amor e força", com a consequente tolerância, para não sentir um medo excessivo de seus próprios pensamentos e dos produtos de sua imaginação, para progredir naturalmente em seu desenvolvimento emocional. Se acontecer de os pais não conseguirem proporcionar-lhe esse ambiente, o sentimento de liberdade excessivo pode gerar na criança, ao contrário do que se possa pensar, comportamentos relacionados não a tudo o que lhe dá prazer, mas sim àquilo que expressa sua angústia. Essa criança procurará, num outro quadro de referências, alguém que a ajude a contê-la e possa se tornar a fonte de amor e confiança.

Diante de tudo, conjectura-se que comportamentos de indisciplina, tirania ou agressividade, que desafiam a autoridade, vinculam-se ao fenômeno de "fragilização das funções parentais" à medida que, quando em excesso, podem refletir a dificuldade que essas crianças estão tendo para lidar com seus impulsos. Ou, em outras palavras, quando não podem contar com pais "confiantes e fortes" que as ajudem nesta tarefa.

Esses pais não conseguem responder às reais necessidades dos filhos, por dificuldades próprias e proporcionam às suas crianças a percepção de mundo como um lugar pouco confiável ou que está "em dívida" com elas, no sentido de que sentem que perderam algo que era delas por direito. Essas crianças poderão desenvolver, mais tarde, e por consequência, comportamentos de indisciplina esperançosos por limite, com tendências "antissociais", para que o que não foi possível de ser realizado pelos pais possa ser realizado pela professora ou por parentes próximos, como tios, tias, etc.

A "tendência antissocial" (Winnicott, 1956/2000) é decorrente da falta de um cuidado, num certo momento do desenvolvimento, que a criança sente que anteriormente teve. Pensando na dinâmica de pais de crianças que não são capazes da imposição do limite, esse acontecimento ocorre num período posterior do desenvolvimento da criança, em que outros cuidados anteriores de que ela necessitava dos pais foram cumpridos. Ou seja, passado o período de "dependência absoluta", onde os pais puderam exercer bem suas funções, no período de "dependência relativa" essa criança se depara com pais que agora não são capazes de exercer adequadamente suas funções - por sentirem dificuldade de exercer a função de autoridade - e um comportamento de agressividade excessivo, então, pode (com o cuidado de não cair em generalizações) estar a serviço de uma destrutividade2 , onde a criança busca no ambiente um embate contra o comportamento impulsivo.

Trata-se, portanto, de uma busca por uma provisão ambiental perdida, por uma atitude humana confiável, que possa proporcionar ao indivíduo a liberdade de mover-se, agir e excitar-se. Ou seja, para esse autor, alguns comportamentos tirânicos de crianças não se referem à onipotência infantil, mas a esse tipo de realidade psíquica. Como se a criança buscasse uma moldura cada vez mais ampla, um círculo que teria como seu primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. "É possível perceber aqui uma série - o corpo da mãe, seu braços, o relacionamento dos pais, o lar, a família, incluindo primos e parentes próximos, a escola, o bairro com a sua delegacia, o país e suas leis" (Winnicott, 1956/2000, p. 411).

Desta forma, esclarece-se a importância que o sentimento de segurança, proveniente de pais que podem desempenhar adequadamente suas funções, proporciona para a constituição psíquica da criança. E, apoiando-se em Winnicott (1999) e em Freud (1932/1969b), conjectura-se que a presença do "princípio de autoridade" na família ultrapassa um caráter de valor cultural. Ou seja, a "perda" deste valor pode implicar em consequências sérias para o desenvolvimento psíquico das crianças.

 

Considerações Finais

Retomando os objetivos propostos, procurou-se demonstrar por meio de uma revisão ampla da literatura sobre o tema, como os determinantes históricos, socioculturais e econômicos contribuíram para a compreensão do fenômeno da "fragilização das funções parentais"; e como esse se estruturou e é sustentado por tais determinantes, na atualidade.

As reflexões deste artigo vão ao encontro do que teóricos e clínicos que se dedicam ao estudo das relações pais/filhos afirmam: hoje a criança já nasce em meio a um contexto que lhe reserva um lugar de maior liberdade para exploração e conhecimento do mundo e do ambiente familiar, já que os valores de democracia, liberdade e igualdade promoveram a abertura deste novo universo à criança. Ao mesmo tempo, esses valores proporcionam uma maior convivência com a diversidade, o que pode trazer contribuições muito ricas para a formação das subjetividades e identidades na família e, consequentemente, para a sociedade.

Contudo, o fenômeno da "fragilização das funções parentais" denuncia a existência de pais que não conseguiram se apropriar de todas essas mudanças de um modo equilibrado: ou seja, proporcionar uma educação não rígida, que dê maior espaço para a participação da criança na família, promovendo formas de relações mais compreensivas e próximas da mesma, ao mesmo tempo em que reconheçam que a criança em idade precoce precisa ser orientada, em termos de limites, e respeitada dentro de suas possibilidades e capacidades características.

Conclui-se, então, que este modo de lidar e cuidar de uma criança só é possível se os pais não se encontrarem plenamente mergulhados em meio a projeções narcísicas, próprias da "cultura do narcisismo". Isso os impossibilita de frustrá-la porque convivem diariamente com exigências egóicas e culturais, que os impedem de lidar com as próprias frustrações e, portanto, buscam se recuperar dessas à custa do filho, projetando nele a possibilidade de reviver o próprio ego em alguém para quem nada falta e nada frustra. Neste processo, os ideais contemporâneos de educação, em que se prioriza o diálogo com a criança, por exemplo, podem ser usados para encobrir alguma dificuldade sentida nesta tarefa de frustrar um filho.

A compreensão de alguns autores, como Kamers (2006) e Kehl (2001), de que é a busca por um ideal, nessa prática educativa, que tem impedido os pais atuais de se implicarem na tarefa de educar seus filhos, não satisfaz plenamente. Isto porque quando um ideal estiver sendo usado com a finalidade de "encobrir" uma dificuldade de caráter emocional, como no caso da projeção narcísica, não se trata de um ideal, mas de um recurso defensivo que muitas vezes serve apenas como justificativa de comportamentos incongruentes, que representam conflitos internos.

Finalmente, é importante considerar que vivenciamos uma etapa de transição e que, nesse contexto, naturalmente as novas formas de relacionamento entre pais e filhos são difíceis de serem assimiladas isentas de conflitos, já que os valores tradicionais que embasavam o processo educacional passaram a ser amplamente questionados e os modelos novos ainda não estão totalmente estabelecidos. Portanto, na atualidade torna-se necessário que os pais construam um modo consistente de exercer a parentalidade, reforçando as relações hierárquicas no interior da família, sem confundir o emprego da autoridade com autoritarismo, e respeitando os lugares e funções diferenciadas de cada um no grupo familiar.

As práticas educativas só podem adquirir um caráter consistente e não ambivalente, se forem construídas com autenticidade e segurança pelos próprios pais, valorizando suas qualidades e experiências pessoais para essa função, em primeiro plano. Como cenário de fundo ou segundo plano, de modo complementar e não em substituição, estaria alocado o saber dos especialistas e as características da sociedade contemporânea.

 

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Endereço para correspondência:
Sandra Aparecida Serra Zanetti
Rua Guaíra, 51 apto 52, Saúde
São Paulo/SP. CEP: 04142-020
Fone: (11) 5589-8180/(11) 9406-2068 Fax: (11) 3021450
E-mail: sandra.zanetti@gmail.com

Enviado em 27 de Julho de 2009
Texto reformulado em 11 de Março de 2011
Aceite em 11 de Março de 2011
Publicado em 31 de Dezembro de 2011

 

 

O trabalho "A 'fragilização dos papéis parentais' na família contemporânea: suas determinações e conseqüências", de Sandra Aparecida Serra Zanetti e Isabel Cristina Gomes (Universidade de São Paulo), foi apresentado na XXXVIII Reunião Anual de Psicologia na Sessão Coordenada 15: "Dinâmicas familiares, suas determinações conscientes e inconscientes", coordenador: Sandra Aparecida Serra Zanetti (Universidade de São Paulo).
Artigo derivado de dissertação de mestrado, realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, com apoio financeiro da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).
1 De acordo com Canevacci (1985),
Nas primeiras décadas do século XIX, começou a se difundir por toda a Europa uma nova metodologia da pesquisa científica: o espírito de especialização. Este autor salienta que este espírito de especialização "deixou de lado completamente a concepção do ser humano como totalidade" (p. 13).
E acrescenta que desta forma só se pode chegar a uma verdade capenga, "à 'verdade funcional' de um aspecto individual, metodologicamente separado das necessárias conexões mais gerais" (pp. 14-15).
2 Para Winnicott (1956/2000) há sempre duas vertentes da tendência antissocial: a do roubo e a da destrutividade. Na primeira, "a criança procura algo em algum lugar e, fracassando em seu intento, procura-o em outro lugar, quando tem esperança" (p. 411). Na segunda, trata-se de uma busca por uma provisão ambiental perdida, por uma atitude humana confiável.

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