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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.21 no.1 Ribeirão Preto jun. 2013

http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.1-05 

ARTIGOS

 

O desafio da construção do cuidado integralem saúde mental no âmbito da atenção primária

 

The challenge of building care comprehensive mental health in the context of the primary care

 

El reto de la construcción cuidado de la salud mental integral en la atención primaria

 

 

Ana Izabel Oliveira LimaI; Ana Kalliny SeveroII; Nathaly da Luz AndradeIII; Gabriela Pinheiro SoaresIII; Larissa Melo da SilvaIII

IPós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Brasil
IIDepartamento de Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, Brasil
IIICurso de Psicologia da Escola de Saúde da Universidade Potiguar, Natal, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou analisar o cuidado que as Equipes de Saúde da Família exercem diante dos usuários da saúde mental. Como perspectiva teórico-metodológica tomamos a Análise Institucional. A pesquisa foi realizada com três Equipes de Saúde da Família de um município da região metropolitana de Natal/RN. Realizamos entrevistas semi-estruturadas e observação participante do cotidiano da Unidade. Apontamos como elementos instituídos: a precarização dos vínculos de trabalho prejudicando a construção do vínculo e responsabilização, a reprodução irrefletida do conhecimento técnico sobre o diagnóstico psiquiátrico, a reprodução de práticas de encaminhamento e medicalização. Os processos instituintes a serem investidos: a ampliação da noção de saúde-doença mental, o reconhecimento da necessidade de escuta ampliada no cuidado, o vislumbre do acolhimento individual, grupal e/ou familiar como prática importante de cuidado, a necessidade do atendimento compartilhado seguindo a lógica do apoio. Os resultados indicam a necessidade de investir em formações permanentes, discutindo a importância dos cuidados em saúde mental na Atenção Primária através dos cuidados territoriais, sobrepondo a lógica dos especialismos.

Palavras-chave: Saúde mental, cuidado, atenção primária, análise institucional, profissionais de saúde.


ABSTRACT

This study aimed to analyze the care that Family Health Teams play on users' mental health. As a theoretical-methodological approach we take to Institutional Analysis. The research was conducted with three Family Health Teams of a municipality in the metropolitan region of Natal / RN. We conducted semi-structured interviews and participant observation of everyday Unit. We point out the elements instituted: the precariousness of working ties hindering the construction of the link and accountability, unthinking reproduction of technical knowledge about psychiatric diagnoses, playing practical routing and medicalization. The instituting processes to be invested: the broadening of the concept of mental health and illness, recognizing the need for extended listening in care, the glimpse of the host individual, group and / or family as important practice of care, the need for shared care following logic support. The results indicate the need to invest in permanent formations, discussing the importance of mental health care in Primary Care through territorial overlapping logic of specialization.

Keywords: Mental health, care, primary care, institutional analysis, professional.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo analizar la atención que los Equipos de Salud Familiar jugar en salud de los usuarios mental. Como enfoque teórico-metodológico que tomamos para el análisis institucional. La investigación se realizó con tres equipos de Salud de la Familia de un municipio de la región metropolitana de Natal / RN. Hemos llevado a cabo entrevistas semi-estructuradas y observación participante de la Unidad de todos los días. Señalamos los elementos instituidos: la precariedad de las relaciones laborales que impiden la construcción de la línea y la rendición de cuentas, la reproducción irreflexiva de conocimientos técnicos acerca de los diagnósticos psiquiátricos, jugando ruta práctica y medicalización. Los procesos instituyentes para ser invertidos: la ampliación del concepto de salud y enfermedad mental, reconociendo la necesidad de una audición prolongada en la atención, la mirada de la persona acogida, de grupo y / o familiar como una práctica importante de la atención, la necesidad de atención compartida siguientes una lógica de soporte. Los resultados indican la necesidad de invertir en las formaciones permanentes, discutiendo la importancia del cuidado de la salud mental en la atención primaria a través de la lógica territorial superposición de especialización.

Palabras clave: Salud mental, atención primaria, el análisis institucional, los profesionales.


 

 

As discussões que envolvem a produção de cuidados em saúde são cada vez mais instigantes na agenda dos que estão implicados com a questão do compromisso em relação à saúde coletiva no Brasil. Dessa forma, buscamos analisar o cuidado que as Equipes de Saúde da Família estabelecem diante das demandas de saúde mental. Para isso, investigamos como a Unidade de Saúde atende demandas de saúde mental que chegam até as equipes de Saúde da Família, as dificuldades nesse atendimento, bem como as práticas vislumbradas como necessárias pelos trabalhadores para um bom atendimento.

Segundo o Ministério da Saúde (2009), a Estratégia Saúde da Família (ESF) é uma vertente brasileira da Atenção Primária a Saúde, constituindo-se como um complexo conjunto de conhecimentos e procedimentos, demandando intervenções que contemplem diversos aspectos, com a finalidade de ter um efeito positivo sobre a qualidade de vida da população. Apresenta como eixo a reorganização da Atenção Primária em novas bases assistenciais, constituindo uma ampliação da perspectiva de um programa de ações, ao estabelecer o primeiro contato com a população e o serviço de saúde, seguindo os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS) (Vecchia & Martins, 2009).

A Estratégia de Saúde da Família (ESF), por objetivar promover mudanças no perfil epidemiológico, introduziu um modo ativo da intervenção em saúde, a de não esperar a demanda chegar para intervir, mas de agir sobre ela preventivamente, representando, assim, um instrumento real de reorganização da demanda. Ela possui uma característica imprescindível para o atendimento às famílias: tem o domicilio como espaço terapêutico e a assistência humanizada como instrumento facilitador para criação de vínculos e aproximação dos profissionais com o cotidiano das famílias. Nesse sentido, a ESF tem potencial para o atendimento de pessoas com transtornos mentais, já que atua na área de abrangência de suas famílias (Estevam, Marcon, Antonio, Munari, & Waidman, 2011).

De acordo com Dimenstein, Santos, Brito, Severo e Morais (2005), no campo da saúde pública brasileira, a Atenção Primária vem tornado-se um espaço privilegiado de intervenções em saúde mental, priorizando-se as ações focadas no eixo territorial. As autoras dizem que diariamente, diversas demandas em saúde mental são identificadas por profissionais de Equipes de Saúde da Família, configurando situações que exigem intervenções imediatas, na medida em que podem evitar a utilização de medicamentos, como também ações mais invasivas e desnecessárias no campo da saúde. Nesse sentido, é de extrema importância que os profissionais que compõe a equipe tenham um olhar e práticas de cuidado ampliadas, para que assim seja garantido o direito ao acesso à saúde integral como um dos fundamentos básicos da ESF.

Frente a isso, que tipo de cuidado um profissional de saúde pode vivenciar em sua prática? Como esse cuidado é produzido e como se dá sua atuação frente às demandas de saúde mental que chegam até uma Unidade de Saúde? São questões que estão ao longo da nossa pesquisa e que vamos embasá-las com as discussões de Merhy e Franco (2003), sobre o modelo assistencial da saúde, o qual tanto pode estar centrado no poder hegemônico do saber médico - e que acaba influenciando a prática dos profissionais de outras áreas - como também pode voltar-se ao cotidiano das relações interpessoais e da produção do cuidado em saúde.

Quando falamos de cuidado, partimos da noção, adotada Bosi e Ushimura (2007), de que o cuidado transcende o âmbito técnico do atendimento ou do nível de atenção em saúde, embora represente a materialidade das relações interpessoais que se estabelecem nesse campo. Essa apreensão se articula intimamente à noção de integralidade - um dos pilares filosóficos da proposta do SUS no Brasil - ao impor um olhar ampliado sobre o homem, a saúde e o cuidado, traduzida na necessidade de se estabelecer múltiplos olhares.

Juntamente com Barros, Oliveira e Silva (2007), acreditamos que cuidar é mais que um ato: constitui-se como uma atitude. Deste modo, compreende mais que um momento de atenção e de zelo, pois concebe uma atitude de ocupação, preocupação e de envolvimento afetivo com o outro. Cuidar é uma ação de responsabilização, ao ser capaz de responder, trazer para si a função da resposta por determinada situação ou ato, assumindo um ato como seu.

Além disso, o cuidado no modo de Atenção Psicossocial tem determinantes políticos e biopsicosocioculturais e seus meios de auxílio à pessoa em sofrimento psíquico são as psicoterapias, socioterapias e um conjunto amplo de dispositivos de reintegração sociocultural (Costa-Rosa, 2002). O sujeito aqui ganha ênfase, sendo visto como participante principal no tratamento, e é dada ênfase ao fato de que o indivíduo pertence a um grupo familiar e social. Dessa forma, não é somente com o indivíduo que é necessário trabalhar, mas também a família e o grupo social com o agentes de mudança. A partir disso, é evidente a relevância das ações de descentralização das práticas do cuidado em saúde mental para além dos serviços substitutivos tipo Centros de Atenção Psicossocial, passando a integrá-las nos serviços que atuam na Atenção Primária.

No entanto, pesquisas apontam que profissionais que trabalham da rede primária de saúde, geralmente têm sua atuação embasada em um modelo de atenção a saúde burocratizado e mecanicamente organizado, onde as ações se limitam a reprodução de receitas e encaminhamentos aos níveis especializados do SUS. Como justificativa para tais ações alegam angústia frente ao sofrimento humano e certo medo em relação à necessidade de lidar com pessoas em sofrimento psíquico grave, como também avaliam que sua formação não contribui para que possam intervir nesse campo (Figueiredo & Campos, 2009; Silveira & Vieira, 2009). Tais dados nos fazem questionar o tipo de atuação que esses profissionais apresentam em seu campo de trabalho, que deixa transparecer despreparo em lidar com tais demandas. Além disso, Estevam et al. (2011) enfatizam que esse atendimento constitui um dos desafios que enfrentam os profissionais da Atenção Primária, pois a saúde mental, do ponto de vista formal, não é reconhecida pelo programa como alvo de sua atenção, já que as ações no âmbito da saúde mental nem sequer possuem espaço para os registros oficiais nos relatórios de produtividade.

A prática do cuidado depende de como o profissional atua dentro do seu espaço de trabalho e de como este concebe o cuidado e a relação com os usuários que estão à procura de um serviço. Embasadas nas teorias que cercam os cuidados que podem ser produzidos na atenção em saúde mental na rede primária, ao analisar o cuidado que as Equipes de Saúde da Família estabelecem diante das demandas de saúde mental, esperamos que esta pesquisa possa produzir reflexões e que possamos, de alguma maneira, contribuir para uma melhor atuação dos profissionais da área da saúde, especificamente da saúde mental.

 

A Construção do Método

Este estudo é orientado pela perspectiva qualitativa de pesquisa, pois procura compreender a dinâmica das relações sociais, buscando as vivências, experiências e a cotidianidade, bem como privilegia os sentidos e afetos dos movimentos de uma comunidade ou grupo social (Romagnoli, 2009).

A pesquisa foi realizada em uma Unidade de Saúde da Família (USF) de uma das regiões metropolitanas do Nordeste brasileiro. O bairro no qual se insere a USF apresenta uma população geral de 7.702 habitantes, o que representa 5.36% da população total do município (143.598). A escolha dessa Unidade foi realizada pela Secretaria de Saúde do município, que mediante a proposta da pesquisa apontou tal bairro por este apresentar vulnerabilidade social e elevado uso de drogas.

Realizamos entrevistas semi-estruturadas com 18 (66,7%) dos 27 profissionais das três equipes de Saúde da Família. Os profissionais que não foram entrevistados foram 02 médicos e 07 Agentes Comunitários de Saúde, devido à falta e/ou elevada rotatividade de profissionais nas equipes. Tivemos então ao longo dessa pesquisa a participação de 01 médico, 03 enfermeiros, 03 técnicos de enfermagem e 11 agentes comunitários.

Dentre as ferramentas utilizadas a observação participante mostrou-se apropriada à realização da pesquisa por permitir entrar e fazer parte do cotidiano da equipe, possibilitando o contato próximo aos discursos, práticas, afetos. As observações realizadas ao longo desta pesquisa ocorreram entre os meses de junho e julho de 2010, totalizando 10 visitas distribuídas em momentos de entrevistas e observação das conversas entre membros da equipe.

As entrevistas semi-estruturadas foram feitas individualmente com cada profissional da equipe, na qual utilizamos um roteiro contendo pontos abordados durante a conversa, tais como: concepções de saúde mental, demandas de saúde mental que chegam até a Unidade, como a equipe lida com tais demandas, a necessidade ou não de ter algum apoio ao lidar com saúde mental, articulação com a rede, responsabilidade sobre os casos de saúde mental e habilidades necessárias para lidar com demandas de saúde mental.

Esta modalidade de entrevista, de acordo com Marconi e Lakatos (2008), é uma conversação efetuada face a face, de maneira metódica; que proporciona ao entrevistador, verbalmente, a informação necessária, no entanto, não se prendendo a esse roteiro, deixando de certa forma, o entrevistando livre para desenvolver suas questões. No momento da entrevista foi informado ao entrevistando sobre o interesse da pesquisa, a utilidade, o objetivo, as condições da mesma e o compromisso com o anonimato.

A escrita do diário também evidenciou-se bastante pertinente, tendo em vista que é de interesse desta pesquisa questões de ordem mais subjetiva/afetiva, que normalmente seriam deixadas em segundo plano (Lourau, 1993). A intenção do uso do diário é trazer à tona afetos e o modo como os fatos desencadeiam esses afetos, constituindo-se em um instrumento complexo que permite o detalhamento das informações, observações e reflexões sugeridas no decorrer da investigação ou momento observado, é o relato escrito daquilo que o investigador ouve, vê, experiência e pensa no decorrer da coleta de dados.

Depois de coletados, os dados foram analisados qualitativamente, abordando o referencial teórico condizente com a Estratégia de Atenção Psicossocial e fazendo uso de alguns autores da Análise Institucional. Sobre esta, Baremblitt (2002) explica tratar-se de uma investigação permanente, sempre lacunar e circunscrita de como o não-saber e a negatividade operam em cada conjuntura. Através desta corrente teórico-metodológica tem-se a finalidade de se chegar a uma análise crítica e fértil que consiga abordar os diversos fatos, valores, crenças, que agem na lógica das instituições. Para a Análise Institucional, as instituições são forças dominantes em nossa sociedade, valores, regras oficializadas ou não, que se configuram como uma rede, um tecido de instituições e que, no caso desta pesquisa, permeiam a atuação desses profissionais no que se refere aos cuidados em saúde mental (Baremblitt, 2002).

 

Resultados e Análises

Perfil dos Profi ssionais Entrevistados: A Formação e os Vínculos de Trabalho em Questão

Foram entrevistados 18 profissionais, sendo destes 14 do sexo feminino, estando a maioria (n= 8) na faixa etária predominante entre 30 e 40 anos.

Sobre a formação, podemos constatar que o médico e as enfermeiras possuem especialização em saúde da família, enquanto 03 dos agentes possuem curso de técnico de enfermagem. Os demais profissionais relatam não possuir especialização. A maioria dos profissionais (n=11) trabalha a menos de 10 anos em sua área.

No que se refere ao regime de contratação dos profissionais da Unidade, todos os agentes de saúde são concursados, enquanto os demais profissionais são contratados. O que pode estar associado à elevada rotatividade de alguns membros da equipe como os médicos. O tempo de permanência dos profissionais na Unidade de Saúde é de 40hs por semana, sendo dividida em 8hs diárias de trabalho.

Apesar de reconhecer-se a Estratégia de Saúde da Família como modelo principal da Atenção Primária no Brasil, a elevada rotatividade é muito frequente no Brasil, o que dificulta o vínculo, e consequentemente o cuidado a longo prazo, entre os profissionais da equipe e a comunidade.

Sobre isso, Taveira, Souza e Machado (2012) destacam que a ESF surge nas décadas de 1980 e 1990, momento histórico no qual os vínculos de trabalho assumiram a forma de contrato, e estes, cada vez mais precários. Em estudos citados por esses autores, é apontado que a "insegurança gerada pela contratação temporária está ligada à procura por empregos múltiplos, obstáculo considerável à dedicação em tempo integral necessária na ESF" (p. 103).

Essas formas de contratação resultam em danos nos cuidados aos usuários, dentre os quais há o rompimento ou fragilização do vínculo entre profissional e usuários, como também a descontinuidade da assistência, contrariando assim a filosofia da Estratégia de Saúde da Família (Taveira et al., 2012). Outro problema que podemos citar é a fragilização do vínculo necessário para o desenvolvimento do trabalho em equipe.

Desse modo, apesar da maioria dos profissionais terem especialização na área, apontamos a necessidade de investir em vínculos profissionais estáveis e duradouros, que permitam aos profissionais desenvolverem trabalhos coerentes com os princípios da Atenção Primária com a qualificação para o cuidado integral à comunidade adscrita, conhecendo as potencialidades e fragilidades do grupo social atendido, e construindo redes de cuidado.

Concepções de Saúde Mental: Entre a Reprodução do Técnico e a Construção do Sucesso Prático

De modo geral, os profissionais demonstraram dificuldades em falar sobre como identificavam um caso de saúde mental. Quando o definiam, eles descreveram de modo diverso, utilizando sintomatologias, códigos diagnósticos, consumo prévio de psicotrópicos a partir de prescrição de psicotrópicos por psiquiatras de outros serviços e sofrimentos ligados a fatos cotidianos.

Quando se referiram aos códigos diagnós-ticos do Código Internacional de Doenças e sintomatologias apareceram descrições como agressividade - mais frequente -, transtorno bipolar, pânico, ansiedade, stress, distúrbio emocional, depressão - principalmente em mulheres -, insônia, transtorno mental, crises e depressão pós-parto.

O que ficou mais evidente, a priori, é a demasiada quantidade de casos identificados pelos profissionais como de saúde mental pelo fato de terem sido encaminhados de outros serviços especializados para renovação de receitas na Unidade de Saúde. Sobre isso, 07 entrevistados relataram que as demandas de saúde mental, que surgiram em seus cotidianos, foram identificadas por eles como sendo específicas através dos cuidados já utilizados, como ingestão de psicotró-picos ou acompanhamento psiquiátrico.

Em pesquisas similares realizas constatou-se que a utilização de medicamentos psicotrópicos ainda é vista como prática terapêutica na rede pública de saúde para os casos de saúde mental, com uma assistência ainda bastante precária na Atenção Primária, o que provoca a perpetuação do consumo e a dependência na vida dos usuá-rios (Dimenstein et al., 2005). Podemos ainda enfatizar a predominância do saber biomédico, onde somente o conhecimento e as ferramentas do especialista podem lidar com tais demandas.

Todavia, 02 profissionais entrevistados falam da concepção de saúde mental atrelando ao contexto de vida das pessoas e apontando como possíveis causas o excesso de trabalho, problemas na família, alguma perda ou problema na vida pessoal e o uso de álcool e outras drogas.

Isso nos leva ao conceito de saúde mental relacionada à noção da condição desejada de bem-estar dos indivíduos e das ações necessárias que possam determinar essa condição. Dessa forma, a saúde mental evidencia-se como um conceito complexo na medida em que considera as dimensões psicológicas e sociais da saúde e os fatores psicossociais que determinam o processo saúde - doença (Arce, Sousa, & Lima, 2011). Podemos pensar então que quando se passa a considerar o sujeito em sofrimento psíquico em seus contextos familiar e social, constroem-se alternativas de cuidado que rompem com a dimensão instituída do cuidado médico-centrado e medicalizante, para pensar os inúmeros aspectos da vida dos sujeitos, fortalecendo o movimento instituinte.

Nesse sentido, a concepção que os profissionais entrevistados apresentaram do que seja saúde mental estava diretamente relacionada ao que eles identificaram em seu cotidiano de trabalho, isto é, aos casos que chegavam até a equipe, porém interpretando-os de diversos modos. Podemos dizer, em relação às concepções de saúde mental apresentadas que embasam o cuidado, que há muito mais um "êxito técnico" do que um "sucesso prático".

Sobre isso, Schraiber (2011) afirma que há possibilidade dos profissionais de saúde conseguirem estabelecer um 'êxito técnico', centrado mais no "como fazer", sem questionar o "que fazer". Nessa perspectiva, o 'êxito técnico' "representa parte do potencial do profissional como sujeito, reduzindo-o ao empreendimento de encontrar as tecnologias adequadas, com base no diagnóstico da patologia" (Schraiber, 2011, p. 3041). Nesse sentido, os profissionais perpetuam a reprodução das receitas e dos diagnósticos, sem dialogar com o saber científico sobre o que seria necessário para cada pessoa em sua singularidade.

Quando os profissionais se questionam sobre a noção pré-estabelecida das categorias diagnósticas e articulam a noção de saúde mental às dificuldades relacionadas à vida concreta dos usuários, acreditamos que isso propicia a construção de práticas de cuidado centradas no sucesso prático e na perspectiva de interrogação sobre o que é necessário fazer. Nesse sentido, o profissional se dispõe a uma relação intersubjetiva, reagindo criticamente a essa tradição técnica, modificando-se como sujeito e modificando sua ação pelo que recebe do outro com quem interage (Schraiber, 2011).

Desse modo, acreditamos ser necessário para o atendimento em saúde mental na Atenção Primária, um novo referencial, assentado no compromisso ético com a vida, que amplie a complexidade das ações a serem desenvolvidas pelos profissionais de saúde.

Habilidades e Conhecimentos Necessários: O Conhecimento Técnico e o Acolhimento

Quando questionados sobre o tipo de habilidade/conhecimentos que a equipe precisa ter para realizar um acolhimento em saúde mental, 07 profissionais responderam que é necessário um treinamento específico para lidar com esse tipo de demanda, uma técnica. No entanto, 05 profissionais acreditam que para fazer um acolhimento em saúde mental é necessário saber conversar calmamente com as pessoas, saber escutar, acolher o que essa pessoa trás.

Merhy e Franco (2003) afirmam que o modelo assistencial da saúde tanto está centrado no poder hegemônico do saber médico - e que acaba influenciando a prática dos profissionais - como também se volta ao cotidiano das relações interpessoais e da produção do cuidado em saúde. A essa segunda relação, os autores chamam de tecnologias leves por apresentar caráter relacional, que a coloca como forma de agir entre sujeitos trabalhadores e usuários, individuais e coletivos, implicados com a produção do cuidado.

Existem ainda as tecnologias duras, as quais estão inscritas nos instrumentos, porque já estão estruturadas para elaborar certos produtos da saúde. Já o que diz respeito ao conhecimento técnico, Merhy e Franco (2003) identificam como leve-duras: a parte dura está representada em sua estrutura técnica, e a leve está relacionada ao modo singular de cada profissional aplicar o seu conhecimento na produção do cuidado. Tanto as tecnologias duras como as leve-duras estão voltadas para o saber predominante da medicina e sobre a organização do trabalho com fluxo voltado à consulta médica (Merhy & Franco, 2003).

Sousa, Pinto e Jorge (2010) afirmam que na produção de saúde é necessário inverter as tecnologias, ao centrar nas tecnologias leves e leve-duras para que o serviço seja realmente produtor de cuidado, por meio de algumas estratégias básicas, tais como: apoio para inserção social, visita domiciliar, grupos e oficinas terapêuticas, que visem à garantia dos direitos dos usuários.

Tendo em vista tais conceitos e reflexões que os autores nos apresentam, podemos relacioná-las com o contexto da saúde mental. Partindo de nossa discussão, constatamos que ao longo da história, utilizam-se de tecnologias duras de cuidado para com os sujeitos em sofrimento psíquico, ao enfatizar técnicas, reproduções, diagnósticos, enquanto o sujeito encontra-se excluído de seu processo terapêutico (Merhy & Franco, 2003).

Os debates em torno da saúde mental não estão ligados somente ao sofrimento acarretado pelas faltas orgânicas e psíquicas, mas, principalmente, pelas conseqüências sociais que o diagnóstico carrega, propiciando preconceitos, discriminações e falta de esclarecimentos por parte dos atores sociais que circundam o território dessas pessoas que sofrem e que, por sua vez, desdobram-se na exclusão, no medo e na falta de atenção em relação a essa problemática (Siqueira, 2006).

Dessa forma, os profissionais que lidam com demandas de saúde mental não devem trabalhar de forma unidirecional, e sim devem utilizar-se de uma proposta compartilhada, ou seja, a educação e orientação devem se constituir em uma proposta de parceria, entre quem está propondo e a própria família, para juntos construírem programas de intervenção e desenvolvimento que promovam a saúde e o bem-estar.

Práticas de Cuidado: Da Escuta Especializada à Escuta Ampliada

Percebemos que as estratégias de cuidado exercidas pelos profissionais entrevistados variam desde o encaminhamento para especialistas, a reprodução do receituário de psicotrópicos, até o diálogo e a conversa.

Diante dos casos de saúde mental, 08 profissionais acreditam que para lidar com tais demandas seria necessário um acompanhamento com profissionais especializados, ou seja, psicólogo e psiquiatra. Diante disso, a equipe atua encaminhando os casos a esses profissionais e mantendo a receita de psicotrópico, o que indica a vigência da estratégia medicamentosa frente a uma possível dificuldade em atender a demanda.

Indo nessa direção, Baremblitt (2002) lembra que a civilização contemporânea tem produzido um saber acerca de seu próprio funcionamento como objeto de estudo e tem gerado profissionais, intelectuais, isto é, os experts. Esses conhecedores têm-se colocado - ainda seguindo as ideias do autor acima citado - em geral, a serviço das entidades e das forças que são dominantes na sociedade, o que nos faz pensar sobre uma possível despotencialização de determinados coletivos, a partir da prática desses especialistas, propiciando a produção, ou melhor, a reprodução da lógica dos encaminhamentos constantes, por exemplo.

No entanto, alguns agentes comunitários 05 dizem que quando se deparam com algum caso de saúde mental, geralmente pedem para a pessoa se acalmar enquanto alguém pega o remédio, procurando conversar com a pessoa o mais claro possível. "Com os casos de saúde mental é um jogo de empurra. O psiquiatra descontrola as receitas. Aí fica só repetindo as receitas, precisa é de um profissional que escute a pessoa" (Agente de saúde).

Mesmo estando presente nesse discurso o elemento medicamentoso, podemos perceber a utilização de tecnologias leves de cuidado em saúde, ao priorizar o diálogo e as relações intersubjetivas, ou seja, tornando presente uma força inovadora mesmo diante do pensamento da necessidade de especialistas e medicamentos já impregnados nas ações em saúde.

Possibilidades de Cuidado: OsGrupos, o Acolhimento, a Qualificação das Equipes, e o Acompanhamento Especializado

Quando perguntados sobre como a equipe deveria lidar com as demandas de saúde mental, os profissionais sugeriram: a criação de grupos de ajuda: grupos para idosos, grupos de ajuda em saúde mental (n=2); conversas com a família, praticando o acolhimento (n=5); a qualificação dos agentes e participação da equipe (n=3); a necessidade de acompanhamento com psiquiatra e psicólogo (retratando a dificuldade em lidar com uma demanda considerada tão específica e que supostamente somente o especialista poderia lidar; n=8).

Podemos perceber nesses discursos que além da necessidade do médico ou psicólogo, surge também a importância da prática do acolhimento quando o assunto é saúde mental, seja um acolhimento em grupo (como os grupos de mútua ajuda, por exemplo) seja numa simples conversa na sala de espera. Cunha (2010) vem nos dizer que se torna necessário deixar-se tomar pelas diferenças singulares do sujeito para produzir um projeto terapêutico que leve em conta o que inicialmente é um limite do saber e que pode vir a ser transformado em uma possibilidade prática de intervenção.

Uma questão importante na dinâmica de assistência à saúde mental, como também da Estratégia de Saúde da Família, é o acolhimento e o envolvimento da família no cuidado aos usuários em sofrimento psíquico. O acolhimento profissional às famílias com um membro em processo de adoecimento mental se faz urgente, pois estas sofrem dificuldades diversas - financeiras, emocionais, assistenciais - (Rosa, 2008; Severo, Dimenstein, Brito, Cabral, & Alverga, 2007), e por vezes são marcadas por elevado grau de vulnerabilidade social, dificuldades sociais e econômicas. Apontamos a necessidade da Atenção Primária realizar tal acolhimento, com vistas a superar o quadro histórico e violência nesses espaços, além de intervenções centradas nos indivíduos e de responsabilização da família pelo transtorno do usuário (Melman, 2001). A partir daí pode-se construir estratégias de co-responsabilização entre a família e o serviço, onde a família deve ser compreendida como parte da comunidade constrói contratos, ou seja, a constituição de relações conscientes (Ribeiro & Inglez-Dias, 2011).

Dessa forma, o acolhimento não se configura apenas um dispositivo de recepção - limitando a potência das práticas voltadas à saúde mental com os profissionais na unidade - como também não pode ser considerado como um protocolo do serviço, como mais um procedimento a ser realizado, mas que seja uma oportunidade de estabelecer relações produtoras de vínculo, através da escuta solidária e do comprometimento com a trajetória do usuário no serviço. Ou seja, entendemos juntamente com Pinheiro e Mattos (2008) que os usuários denominados de saúde mental não precisam, necessariamente, de um psicólogo ou psiquiatra para vivenciarem um acolhimento em um serviço de saúde.

Sobre isso, concordamos com os profissionais quando estes apontam ainda a necessidade de qualificação dos agentes e participação da equipe. Apontamos que a proposta do Apoio Matricial pode ajudar a fortalecer essa qualificação e maior envolvimento e participação da equipe nas estratégias de cuidado. O Apoio Matricial visa que os trabalhadores em saúde de um determinado território se comprometam e compartilhem saberes acerca dos casos em saúde mental visando resolubilidade e conjunta parceria para melhores condições de atendimento.

A Lógica dos Especialismos X o Compartilhamento do Cuidado: O Apoio Matricial como uma Necessidade

Em relação às equipes de SF, foi possível constatar que 14 profissionais entrevistados dizem necessitar de apoio na área de saúde mental com o usuário e com a família e que, segundo dados desta pesquisa, nunca houve nenhum treinamento para a equipe sobre saúde mental.

Quando perguntados como poderia ser esse apoio, 10 profissionais acreditam que seria necessário o apoio de profissionais especializados em saúde mental, como o psicólogo e o psiquiatra, para auxiliá-los em seu dia a dia no contato com casos como esses. O Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) foi citado como uma possibilidade de apoio para os profissionais, pois, segundo 02 profissionais, o NASF poderia realizar grupos com pessoas em sofrimento psíquico. Nenhum dos profissionais entrevistados já ouviram falar especificamente sobre apoio matricial. No período da pesquisa, havia uma equipe de NASF realizando trabalhos nessa Unidade de Saúde.

Salientamos a importância de os trabalhadores da Atenção Primária se apropriarem da noção do Apoio Matricial. Mediante as dificuldades já citadas e o atendimento centrado na prescrição de medicamentos, o Apoio Matricial poderia funcionar como uma estratégia facilitadora do processo de trabalho em saúde mental, nas Unidades com equipes de Saúde da Família (Caçapava & Colvero, 2008).

O Apoio Matricial é uma metodologia de trabalho complementar àquela prevista em sistemas hierarquizados (mecanismos de referência e contra-referência, protocolos e centros de regulação). A noção de apoio baseia-se na construção coletiva de projetos de intervenção, valendo-se tanto de ofertas originárias do núcleo de conhecimento, experiência e visão de mundo do apoiador (psicólogos, psiquiatras ou especialistas em saúde mental), quanto incorporando demandas trazidas pelo outro também em função de seu conhecimento, desejo, interesses e visão de mundo (Campos & Domitti, 2007).

Em relação ao termo Matricial, Campos e Domitti (2007) expõem que é necessário: (a) mudança radical de posição do especialista em relação ao profissional que demanda seu apoio; (b) profissionais de referência e especialistas manterem uma relação horizontal, e não apenas vertical como recomenda a tradição dos sistemas de saúde; (c) oferecer retaguarda assistencial e suporte técnico- pedagógico às equipes de referência; (d) construção compartilhada de diretrizes clínicas e sanitárias entre os componentes de uma equipe de referência e os especialistas apoiadores; (e) prever critérios para acionar o apoio e definir o espectro de responsabilidade tanto dos diferentes integrantes da equipe de referência quanto dos apoiadores matriciais.

A equipe entrevistada aponta para a necessidade de um suporte pedagógico e assistencial no atendimento em saúde mental, além de outras alternativas para o atendimento em saúde mental, o que poderia ser ofertado pela equipe de referência em um arranjo de Apoio Matricial. Uma vez que a partir das visitas e dos casos atendidos pelas ESF, a equipe de Referência pode oferecer apoio e orientação às equipes de SF, promovendo espaços de discussões de casos, realização de consultas individuais nas unidades, se necessário, assim como participar das visitas domiciliares às famílias dos usuários em sofrimento psíquico.

 

Considerações Finais

Ao longo desta pesquisa tivemos como propósito discutir o cuidado em saúde mental a partir da perspectiva dos profissionais de equipes de Saúde da Família. Apesar de com a Reforma Psiquiátrica brasileira pensar-se em um cuidado não excludente e centrado na inserção do sujeito na comunidade, vemos que há um movimento contraditório, expresso pelo instituído e instituinte, com concepções e práticas que ora favorecem o cuidado em saúde mental ligado a integralidade, ora não.

Na pesquisa, percebemos que um dos desafios a serem enfrentados na realidade brasileira para garantir o cuidado em saúde mental na Atenção Primária é a formação profissional e a fixação dos profissionais nas Equipes de Saúde da Família, principalmente dos médicos. Para garantir um cuidado efetivo, é necessário o investimento no vínculo entre os profissionais e os usuários atendidos, e a organização do trabalho em equipe.

Outro desafio em âmbito nacional para a construção do cuidado na perspectiva da Atenção Psicossocial é a construção de práticas profissionais que sejam reflexivas, inventivas, baseadas nas necessidades dos sujeitos. O processo formativo dos profissionais para o exercício do cuidado em saúde mental de acordo com a Atenção Psicossocial precisa ir além das categorias diagnósticas universalizantes para ir ao encontro da singularidade da vida concreta dos sujeitos e de suas condições sociais, econômicas e culturais.

Dessa maneira, podemos constatar que mesmo que a saúde mental seja cada dia mais pensada como uma prática psicossocial - embasada em princípios como a integralidade - ainda percebemos a recorrência continua da população por especialistas, no caso da nossa pesquisa, psicólogo e o psiquiatra. Essa sistematização focada nos profissionais acaba limitando a atuação das equipes de Saúde da Família, por não se sentirem qualificados diante desses casos. Caçapava e Colvero(2008) compartilham da ideia de que o processo de acolhimento pode ocorrer em qualquer etapa do trabalho de saúde, estendendo-se até a resolução do problema apresentado pelo usuário.

Hoje é possível pensar em profissionais que tanto transformem suas práticas teóricas e políticas, quanto coloquem em questão suas funções e sejam capazes de inventar novas possibilidades de compreensão e de relacionamento em seu cotidiano de trabalho. Partindo deste ponto de vista defendido por Bosi et al. (2011), é importante estabelecer um novo olhar voltado para o cuidado baseado no diálogo e na criatividade, para que assim possa ser possível a transformação social do papel dos profissionais de saúde no exercício da sua prática. São as chamadas tecnologias leves de cuidado que Merhy e Franco (2003) defendem como possuidoras de potencial a ser utilizado nos cuidados em saúde.

Por isso, acreditamos que é necessário o fortalecimento do Apoio Matricial como principal estratégia de trabalho do Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Como vimos nos resultados, apesar de os profissionais apresentarem dificuldades em produzir práticas de cuidado além da prescrição medicamentosa e especializada, há práticas condizentes com a proposta do cuidado no modo de Atenção Psicossocial que são vislumbrados pelos profissionais, tais como práticas de acolhimento grupal, visitas domiciliares, atendimento às famílias.

Para fortalecer um cuidado territorializado, acreditamos ser necessário que o NASF conduza práticas de atendimento embasadas na ideia de Apoio, atendendo conjuntamente, utilizando na proposta pedagógica saberes e experiências dos próprios trabalhadores da Atenção Primária. Isso é importante para que superemos o peso histórico do discurso da estigmatização da loucura, com a ideia de que os sujeitos em sofrimento psíquico apresentam demandas pertencentes aos médicos e especialistas, como pessoas que devem ou ser encaminhadas ou medicalizadas.

Quando pensamos e acreditamos em transdisciplinaridade não somente é a partir da ideia de junção de saberes e práticas. Juntamente com Passos e Barros (2000) pensamos esse conceito com outros contornos. Não se trata de abandonar o movimento criador de cada disciplina, mas de produzir intercessores, agenciar, interferir. Não uma verdade a ser preservada e/ou descoberta, mas que deverá ser criada. Tais intercessores se fazem, então, em torno dos movimentos. Esta é a aliança possível de ser construída quando falamos de transdisciplinaridade, quando falamos de clínica, uma clínica que possa ultrapassar o encanto dos especialismos.

Rolnik (1997) nos dá uma idéia de clínica em que é necessária a construção de mediações não somente entre os vários territórios, mas entre cada um deles e o da família, entre todos eles e a paisagem da cidade. É preciso criar possibilidades reais de vida não doente. Compor possíveis territórios de existência, novos modos de subjetivação, novas temporalidades. A fusão dos sujeitos que se dispõem a estabelecer práticas de cuidado pode ser pensada como um produtor de possibilidades, de criação de novos modos de cuidar, de exploração e experimentação do novo.

Dessa forma, apontamos, a partir de nossas análises, a necessidade de investir em formações permanentes para as Equipes de Saúde da Família, discutindo a importância dos cuidados em saúde mental na Atenção Primária através dos cuidados territoriais, sobrepondo assim a lógica dos especialismos. Como também acreditamos que diante do fato de os profissionais da Estratégia Saúde da Família ainda não se sentirem familiarizados com o universo do sofrimento psíquico, demandando algum tipo de proposta que abarque essas angústias, vemos que o investimento no Apoio Matricial seria de extrema importância, potencializando o saber e a prática dos profissionais da Atenção Primária na resolutividade dos problemas que antes consideravam difíceis.

Aumentando o potencial das equipes de Saúde da Família em lidar com o sofrimento psíquico e articulando esse serviço com os demais serviços da rede assistencial, o apoio matricial possibilita que a promoção da saúde e reabilitação psicossocial aconteçam a partir da Atenção Primária, voltando o olhar dos profissionais para o sujeito e seu processo de saúde/doença a partir do compartilhamento dos saberes. Processo esse que cria, de fato, uma lógica de rede e melhor acesso da população com efetivação no tratamento, de forma a garantir equidade e universalidade no atendimento, pensando a saúde mental não de forma separada da saúde, mas como um componente que está inserido em nosso cotidiano.

 

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Endereço para correspondência:
Ana Izabel Oliveira Lima
Departamento de Psicologia, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Campus Universitário Lagoa Nova
Natal, RN, Brasil, 59078-970
E-mail: anaizabel.psi@gmail.com, akssevero@gmail.com, nathalylandrade@yahoo.com.br, gabypsoares@hotmail.com e larissameloo@yahoo.com.br

Recebido: 05/09/2012
Aceite final: 13/11/2012