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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.21 no.1 Ribeirão Preto jun. 2013

http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.1-06 

ARTIGOS

 

Sobre a linguagem: considerações sobre a atividade verbal a partir da psicologia histórico-cultural

 

On language: considerations about verbal activity based on historical-cultural psychology

 

Acerca del lenguaje: consideraciones sobre la actividad verbal desde la psicología histórico-cultural

 

 

Giovani Ferreira BezerraI; Doracina Aparecida de Castro AraujoII

ICurso de Pedagogia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Naviraí, Naviraí, Brasil
IIUnidade Universitária de Paranaíba da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Paranaíba, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho se constitui em um artigo de revisão e explora algumas inter-relações entre as funções cognitivas e comunicativas da atividade verbal humana, segundo a perspectiva da Psicologia Históri-co-Cultural. Com o objetivo precípuo de compreender o desenvolvimento filogenético e ontogenético da linguagem humana, analisando-se as principais funções psicológicas por ela desempenhadas ou viabilizadas, é utilizada a técnica da pesquisa bibliográfica. Conforme o referencial teórico adotado, a emergência da linguagem na filogênese relaciona-se ao processo de trabalho, que suscita no homem a necessidade de comunicação objetiva, dotada de significação social. Já na ontogênese, a linguagem infantil é inicialmente caracterizada como pré-intelectual, apresentando-se dissociada do pensamento. Todavia, mediante processos sociais interativos, pensamento e linguagem se encontram, de modo que esta assume propriedades intelectuais complexas, convertendo-se em um importante instrumento de regulação psíquica, sob o qual emergem novas possibilidades cognitivas para a humanização do próprio homem. Isso é possível pela emergência das funções perceptivas, da memorização, atenção, abstração, generalização e constituição da própria consciência.

Palavras-chave: Linguagem, Psicologia Histórico-Cultural, funções psicológicas superiores.


ABSTRACT

This work consists in a literature review article. Are explored some inter-relationships between the cognitive and communicative functions of the human verbal activity, from Historical-Cultural Psychology perspective. It's used the bibliographical research technique. The objective consists of understanding the phylogenetic and ontogenetic development of human language by the analysis of the main psychological functions performed and provided by the language itself. According to the adopted theoretical referential, the emergence of the language in phylogenesis is linked to the work process. The work gives rise to the human need for objective communication, endowed with social significance. Yet in the ontogenesis, child language is initially characterized as pre-intellectual, being dissociated of thinking. However, through interactive social processes, thinking and language come across. Thereby, the language gains complex intellectual properties, becoming an important tool for psychic regulation under which new cognitive possibilities emerge for the humanization of man himself. This is possible by the emergence of perceptual functions, memorization, attention, abstraction, generalization and formation of own conscience.

Keywords: Language, historical-cultural psychology, higher psychological functions.


RESUMEN

Este trabajo constituye un artículo de revisión de literatura y explora algunas interrelaciones entre las funciones cognitivas y comunicativas de la actividad verbal humana, desde la perspectiva de la Psicología Histórico-Cultural. Con el objetivo final de entender el desarrollo filogenético y ontogénico del lenguaje humano, analizándose las principales funciones psicológicas realizadas o posibilitadas por el lenguaje, es utilizada la técnica de investigación bibliográfica. Según el referencial teórico adoptado, la aparición del lenguaje en la filogénesis se relaciona con el proceso de trabajo, lo que da lugar a la necesidad de la comunicación objetiva, dotada de significación social. En la ontogénesis, el lenguaje de los niños inicialmente se caracteriza como pre-intelectual, a la vez que su lenguaje se presenta disociado del pensamiento. Sin embargo, a través de procesos interactivos sociales, el pensamiento y el lenguaje se encuentran, por lo que el último asume propiedades intelectuales complejas, tornándose importante instrumento de regulación psíquica. Así, surgen nuevas posibilidades cognitivas para la humanización del hombre mismo, en virtud del surgimiento de las funciones de percepción, memoria, atención, abstracción, generalización, y la constitución de la conciencia misma.

Palabras clave: Lenguaje, Psicología Histórico-Cultural, funciones psicológicas superiores.


 

 

A linguagem é uma das ferramentas psicológicas mais importantes para o nosso desenvolvimento cognitivo, elaborada pela humanidade na prática sócio-histórica do trabalho, com vistas a garantir ao homem o domínio sobre o seu próprio comportamento e sobre a realidade circundante. Por meio dela, não apenas nos comunicamos uns com os outros, mas também apropriamo-nos de uma série de funções mentais superiores, que imprimem à nossa existência a marca de um comportamento consciente e simbólico, qualitativamente distinto do comportamento animal. Tanto quanto a atividade produtiva, a atividade verbal é uma necessidade vital de cada indivíduo, sendo uma das condições básicas para sua humanização. Em outros termos, trata-se de um processo constitutivo complexo, mediatizado pela interação dialógica entre os homens, no contexto do jogo discursivo que cotidianamente os envolve e pelo qual a linguagem se concretiza enquanto enunciação polissêmica. Como bem já afirmara o linguista russo Mikhail Bakhtin (1995, p. 113), "A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia sobre mim numa extremidade, na outra apóia-se sobre o meu interlocutor".

Tendo em vista a tentativa de formular uma breve explicitação de como se desenrola tal processo constitutivo de grande complexidade no gênero humano, pelo qual cada homem singular se apropria da linguagem e a torna um instrumento simbólico, que mediatiza sua relação com o outro e consigo mesmo, buscamos, neste artigo, o referencial teórico da Psicologia Histórico-Cultural. No que tange ao procedimento metodológico, é utilizada a pesquisa bibliográfica, já que o objetivo precípuo do presente trabalho é revisar o desenvolvimento filogenético e ontogenético da linguagem humana. Procura-se evidenciar as principais funções psicológicas superiores por ela desempenhadas ou viabilizadas, com base nas fontes teóricas legadas por Vigotski1 e seus colaboradores.

Não obstante se possa atestar a existência de diversas formas e modalidades de linguagem, nesta pesquisa, nossa atenção volta-se especialmente para a linguagem verbal, entendida como um processo interativo e dialógico, característico do gênero humano. Vale dizer ainda que interessa-nos, sobretudo, o aspecto oral e comunicativo-cognitivo da expressão linguística, pois este enfoque recebeu atenção privilegiada da Psicologia Histórico-Cultural. O próprio Vigotski, nossa principal referência, não estabelece oposição ou distinções claras entre língua e linguagem(ns), pois esta não era sua preocupação, compreendendo-as como interdependentes, no bojo de um processo psicológico amplo, pelo qual o homem significa a si e ao mundo na atividade discursiva que orienta sua práxis.

Nessa abrangência, o conceito de fala também revela, para o autor citado, tanto a ideia de vocalização em si mesma, como e principalmente a própria capacidade humana de interagir verbalmente em práticas comunicativas, seja consigo mesmo e/ou com os demais (Vigotski, 2001). A título de comprovação do exposto, pode-se mencionar um dos artigos da pesquisadora Suely Amaral Mello, estudiosa da Psicologia Histórico-Cultural, em que ela descreve brevemente a ênfase dada à linguagem oral pela concepção vigotskiana, afirmando mesmo que "Segundo Vigotski, é essa referência da linguagem oral mais desenvolvida [isto é, do adulto] que permite que a criança se aproprie ao máximo da linguagem oral de sua coletividade" (Mello, 2009, p. 374).

Para facilitar a exposição das ideias, apresentamos, de início, uma breve descrição sobre o desenvolvimento da linguagem humana em seu percurso filogenético e ontogenético. Em seguida, buscamos analisar rapidamente como ela se associa, já na tenra infância, com outros processos psicológicos superiores, tornando-os ainda mais complexos e sofisticados, quando explicitamos a importância da interação dialógica na práxis humana. Espera-se, assim, suscitar novos debates acerca das inter-relações entre pensamento e linguagem, explicitando-se possibilidades e conceitos teóricos que, em outra ocasião, venham subsidiar o estudo do desenvolvimento linguístico em casos de deficiência intelectual e/ ou "disontogênese", aspecto que, pelas limitações textuais, este artigo não pôde ainda abordar.

 

Linguagem Humana: Percurso Filogenético

A linguagem situa-se entre aquelas funções psicológicas superiores que possibilitam ao homem a organização de formas complexas de comportamento e atividades simbólicas, qualitativamente distintas da experiência animal (Luria, 2007; Vigotski, 2008). Todavia, para que assumisse tais propriedades e fosse possível sua posterior apropriação e objetivação pelos indivíduos, na dinâmica vital da reprodução do gênero humano em cada ser singular (Duarte, 1993), a linguagem humana passou por um longo período de evolução filogenética, que preparou as condições objetivas de sua existência, ao mesmo tempo em que se constituía a própria História da humanidade.

O estudo das particularidades desse período evolutivo é uma das preocupações da Psicologia Histórico-Cultural, que, assim, propõe uma análise histórica a respeito da gênese dos processos psicológicos superiores, assumindo explicitamente um ponto de vista marxista em sua abordagem metodológica. Isso fica claro se observarmos o posicionamento de L. S. Vigotski, o fundador de tal corrente psicológica, quando este afirma, nas circunstâncias revolucionárias da Rússia Socialista, que "O desenvolvimento psicológico dos homens [do qual a linguagem consciente sem dúvida representa um dos aspectos mais elaborados] é parte do desenvolvimento histórico geral de nossa espécie e assim deve ser entendido" (Vigotski, 2008, p. 62).

Desse modo, segundo os pressupostos de Vigotski e sua escola, não é possível compreender, no contexto de uma Psicologia marxista, nem a importância e nem o funcionamento da linguagem, na ontogênese humana, sem que primeiro sejam explicitadas as características históricas e biológicas desse fenômeno durante a filogênese. Ainda para o autor citado, "A história do desenvolvimento das funções psicológicas superiores seria impossível sem um estudo de sua pré-história, de suas raízes biológicas, e de seu arranjo orgânico" (Vigotski, 2008, p. 42).

Sendo assim, na procura pelas raízes genéticas mais elementares da linguagem, o autor supracitado busca no comportamento dos macacos antropóides (chimpanzés), filogeticamente os mais próximos da espécie humana, pistas para entender como essa função pôde constituir-se de modo consciente e verbalizado para os seres humanos, uma vez que, em si mesma, ela não é uma propriedade exclusiva da nossa espécie, mas somente nesta adquire o caráter de reflexo psíquico generalizante da realidade (Leontiev, 1978; Vigotski, 2001).

Partindo disso, Vigotski reconhece que "... encontramos realmente no chimpanzé uma 'linguagem' relativamente desenvolvida em alguns sentidos (antes de tudo no aspecto fonético) e até certo ponto semelhante à do homem" (Vigotski, 2001, p. 115). Em contrapartida, a emissão de sons por esses animais não passa de uma reação emocional inata, que em nenhum momento se relaciona com a esfera de suas atividades intelectuais ou produtivas (Leontiev, 1978; Vigotski, 2001).

Na concepção vigotskiana,

... os sons que os chimpanzés emitem são sempre uma expressão se seu estado emocional, têm sempre um significado meramente subjetivo e nunca designam algo objetivo, nunca são utilizados na qualidade designo que assinale algo externo ao animal. (Vigotski, 2003, p. 215)

Logo, pela sua não objetividade, essa linguagem de nenhum modo se torna marca distintiva entre os símios, nem chega a provocar alterações significativas em seu comportamento de espécie. As motivações, funções e o conteúdo da vocalização que esses animais emitem permanecem condicionados pela sua atividade instintiva. Não obstante, a possibilidade de articulação sonora pelos macacos, comum a outros animais que dispõem de um aparelho fonador, como os papagaios, não deixa de ter importância para se entender a evolução filogenética da espécie humana, pois "... essa mesma forma de reações vocais expressivas serve indubitavelmente de base ao surgimento e desenvolvimento da fala humana [grifos do autor]" (Vigotski, 2001, p. 126), isto é, antecipa e proporciona as condições orgânicas necessárias ao seu aparecimento, constituindo, nos limites do reino animal, sua raiz genética objetiva (Vigotski, 2001).

Nesse ponto, porém, extinguem-se as semelhanças entre a linguagem nos macacos superiores e no homem. Neste último, não há uma continuação tão-somente quantitativa no aperfeiçoamento dos mecanismos psicológicos subjacentes ao uso racional da linguagem, mas uma verdadeira revolução, uma mudança qualitativa, desencadeada pela alteração das suas circunstâncias de vida (Luria, 1992a). No ser humano, ocorre, finalmente, um salto dialético, passando-se dos domínios estritamente biológicos para o plano do desenvolvimento sócio-histórico. Vale dizer que explicitar as especificidades desse desenvolvimento e seus traços distintivos em relação a outras formas de desenvolvimento animal era de vital importância na URSS2, pois significava "... romper com a tendência biológica em psicologia, isto é, aquela que reduzia o comportamento humano e animal a reflexos e reações fisiológicas, igualando-os" (Tuleski, 2008, p. 121). Tal postura alienava o Homem de si mesmo, de sua relação consciente e criativa frente à realidade e suas contradições, porquanto o mantinha no mesmo patamar psicológico de um animal que poderia ser facilmente adestrado.

Diante dessa abordagem psicológica alienada e alienante, cita Vigotski (2004b, p. 58) que "O estudo do comportamento do homem é abordado do mesmo modo que o estudo do comportamento de qualquer mamífero. E assim fazendo, esquece-se o que acrescentam de novo a consciência e a psique ao comportamento humano". Era preciso, então, uma abordagem materialista e dialética, capaz de reconhecer a natureza sócio-histórica da consciência humana e de suas propriedades. Em outras palavras, significava admitir "... que as ações humanas mudam o ambiente de modo que a vida mental humana é um produto das atividades continuamente renovadas que se manifestam na prática social" (Luria, 2002, p. 23).

Por isso, para Vigotski, a Psicologia Histórico-Cultural, enquanto uma proposta marxista, não podia deixar de reconhecer que a filogênese humana não acontece por uma linha pura e estática, limitada à herança genética (Vigotski, 2004b). Para o ser humano, destaca-se uma nova forma de acumulação da experiência filogenética, relacionada com sua vida em sociedade e às práticas histórico-culturais dela decorrentes (Leontiev, 1978; Luria, 2007; Vygotski, 2004). O comportamento da espécie torna-se historicamente elaborado, transmitido de geração em geração, por meio de sistemas sígnicos, como a linguagem verbal. A fim de melhor compreender esse processo, é preciso levar em consideração que, durante milhares de anos, a evolução orgânica foi permitindo ao homem desenvolver uma estrutura corporal bípede e movimentos cada vez mais complexos com as mãos, do que resultou uma forma peculiar de adaptação ao ambiente (Engels, 2002). Por meio dessas conquistas, o homem pôde construir instrumentos e ferramentas para garantir sua sobrevivência. Iniciava-se, assim, uma nova etapa em sua vida, fundamentada no trabalho, na produção material da de sua própria existência.

O uso de instrumentos, contudo, não aparece pela primeira vez no homem. As premissas de seu aparecimento são encontradas mais uma vez nos macacos superiores. Mas, nesse caso, o emprego de ferramentas caracteriza-se por ser apenas o embrião da futura atividade intelectual e laboral propriamente dita. Para os chimpanzés, esta ainda não alcança, sob nenhum aspecto, a marca de comportamento mediato, consciente e autônomo em relação aos determinantes espaciais e temporais nos quais se produz a própria atividade animal (Vigotski, 2001, 2003). Além disso, "Por complexa que seja, a actividade 'instrumental' dos animais jamais tem o caráter de um processo social, não é realizada coletivamente e não determina as relações de comunicação entre os seres que a efectuam" (Leontiev, 1978, p. 75).

Nessa direção, afirma Marx (conforme citado por Vigotski, 2003, p. 208) que "O uso e a fabricação de meios de trabalho, mesmo já estando presente em estado germinal em certas espécies animais, é uma característica própria do processo de trabalho humano ...". E, como complementa Vigotski (2003, p. 208), do ponto de vista do materialismo histórico, é precisamente esse "... o ponto de partida responsável pela singularidade do desenvolvimento histórico do homem, que o diferencia do desenvolvimento zoológico de seus antecessores", isto é, introduz certa duplicidade para o estudo da filogênese. Isso significa dizer que as leis da hereditariedade passam a segundo plano, enquanto as leis sócio-históricas do desenvolvimento material e psíquico do homem passam a ser determinantes em sua trajetória existencial (Leontiev, 1978; Vygotski, 2004).

A emergência de uma linguagem tipicamente humana situa-se, pois, exatamente nessa linha histórica do nosso comportamento de espécie, quando o homem, estando habilitado a preparar e usar ferramentas, começa a dispor de meios que lhe possibilitam organizar-se pelo trabalho produtivo, elevando-se então à categoria de um ser genérico (Duarte, 1993), ou seja, um ser histórico e cultural. Na prática social do trabalho, os indivíduos passam a se agrupar cada vez mais, o que exige a elaboração de alguma forma de mediação psicológica entre esses indivíduos, de um meio de comunicação. Em termos mais precisos, isso significa que

... o desenvolvimento do trabalho contribuiu necessariamente para aproximar mais entre si os membros da sociedade, multiplicando os casos de ajuda mútua, de ação coletiva e esclarecendo perante a cada um a consciência da utilidade desta cooperação. Em uma palavra, os homens em processo de formação acabaram compreendendo que tinham algo a dizer [grifos do autor] uns aos outros. (Engels, 2002, pp. 1444-1445)

Sendo assim, a palavra articulada e significativa vai se constituindo à medida que a própria atividade do homem sobre a natureza torna-se socialmente mais complexa e interativa. As diversas fases históricas desse processo de socialização dos indivíduos, cuja culminância se dá com a integração da linguagem ao psiquismo, são sinteticamente esclarecidas por Leontiev (1978). O autor esclarece que a priori não existia uma verdadeira comunicação verbal entre os homens, mediada por signos linguísticos culturalmente estabelecidos. Tratava-se antes de uma comunicação bastante pragmática, não diferenciada do próprio ato de trabalho. Semelhante afirmação nos remete às clássicas palavras de Marx e Engels (2002, p. 22), ao afirmarem que "O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens [no qual se insere de modo privilegiado a linguagem] aparecem aqui ainda como efluxo direto do seu comportamento material". A separação entre a atividade prática imediata e a palavra só ocorre posteriormente na humanidade, quando, pela sua experiência cotidiana, os primeiros homens começam a perceber que,

... se em certas condições um movimento de trabalho não conduz, por uma razão ou outra, ao resultado prático esperado, ele está, mau grado tudo, apto para agir sobre os outros participantes, por exemplo, levá-los a executar essa acção colectivamente. Nascem assim movimentos que conservam a sua forma de movimento de trabalho, mas que perdem o contacto prático com o objecto e que, por conseqüência, perdem assim o esforço que os transforma verdadeiramente em movimento de trabalho. Estes movimentos, bem como os sons vocais que os acompanham, separam-se da tarefa de agir sobre o objecto, separam-se da acção de trabalho e só conservam a função que consiste em agir sobre os homens, a função de comunicação verbal. Por outras palavras, transformam-se em gesto.

Ao mesmo tempo, o papel principal na comunicação passa dos gestos aos sons da voz; assim aparece a linguagem sonora articulada. (Leontiev, 1978, p. 86)

Mediante essas circunstâncias, puderam ser efetivadas as condições básicas que tornaram possível aos nossos antepassados o domínio volitivo e consciente da linguagem verbal, tanto como um meio estratégico de interação social, como uma atividade psicológica singular, voltada para a regulação coletiva e individual do comportamento. Consequentemente, a linguagem pôde se converter em um meio de pensamento para a antecipação mental dos produtos do trabalho, tornando-se, na história humana, "... a forma e o suporte da generalização consciente da realidade" (Leontiev, 1978, p. 87). Desse ponto em diante, o homem passa a experimentar maior liberdade em relação aos determinantes objetivos de sua práxis, (re)criando linguisticamente o próprio mundo em que vive e (trans)forma.

 

Linguagem Humana: Percurso Ontogenético

No que tange à ontogênese da linguagem no ser humano, Vigotski também lega importantes contribuições à Psicologia, superando posições que concebem o fenômeno linguístico de forma meramente intelectualista ou mecanicista. O autor adota uma compreensão totalizante e histórica do tema, pois seu intuito é entender, delineadas as raízes filogenéticas, como a linguagem, de um mecanismo elementar, torna-se, ao longo do desenvolvimento infantil, uma ferramenta psicológica complexa, internalizada e intimamente associada ao pensamento verbal. Desse ponto de vista, as relações entre pensamento e palavra não são predeterminadas ontogeneticamente, "... mas surgem e se constituem unicamente no processo de desenvolvimento histórico da consciência humana, sendo, elas próprias, um produto e não premissa da formação do homem" (Vigotski, 2001, p. 395).

Assim, se nos reportarmos aos primeiros anos de vida de uma criança, até os dois anos aproximadamente, notamos que sua atividade verbal ainda não é um processo intelectual e consciente. A linguagem, nesse período, está muito próxima de suas raízes filogenéticas mais remotas, desempenhando apenas funções de expressão emocional instintiva e de contato socioafetivo da criança com as pessoas que a circundam (Vigotski, 2001, 2004a). Essa é, na acepção vigotskiana, uma fase pré-intelectual na constituição da fala humana. Como afirma o autor (2001, pp. 129-130), "O grito, o balbucio e até as primeiras palavras da criança são estágios absolutamente nítidos no desenvolvimento da fala, mas estádios pré-intelectuais. Não têm nada em comum com o desenvolvimento do pensamento". Por outro lado, não se pode negar "... que as risadas, o balbucio, os gestos e os movimentos são meios de contato social a partir dos primeiros meses de vida da criança" (Vigotski, 2001, p. 130), permitindo sua aproximação com outros seres humanos e, por consequência, seu ingresso nas práticas sociais do grupo cultural a que pertence.

Esse contato possibilita que, aproximadamente durante os dois anos de idade, ocorra um salto qualitativo na ontogênese. A linguagem e o pensamento, até então geneticamente separados, encontram-se e reestruturam todo o sistema de atividade psicológica da criança (Vigotski, 2001, 2008). A fala torna-se intelectualizada, o que possibilita o início de uma comunicação intencional entre a criança e seus pares. O pensamento, por sua vez, passa a ser verbalmente constituído (Luria, 1992b; Vigotski, 2001). A partir desse momento, inicia-se, então, uma atividade verbal propriamente dita, pois aparece um motivo consciente que direciona a fala infantil para os outros (Leontiev, 1978). As palavras não representam mais apenas um estímulo condicionado que a criança "recebe" passivamente das pessoas à sua volta, nem são mais "... simples reflexos do aparato vocal" (Luria, 1992b). Agora ela própria "... necessita da palavra e procura ativamente assimilar o signo pertencente ao objeto, signo esse que lhe serve para nomear e comunicar" (Vigotski, 2001, p. 131).

A criança descobre que cada coisa tem um nome (Stern, 1922, conforme citado por Vigotski, 2001), assimilando a linguagem oral e ampliando seu vocabulário. "É como se a criança descobrisse a função simbólica da linguagem" (Vigotski, 2001, p. 131), ou seja, ela "... percebe que estes sons e suas combinações podem realmente significar certos objetos e que muita coisa pode ser obtida por meio deles" (Luria, 1992b). Evidentemente, essa descoberta não é espontânea, nem ocorre com uma precisão temporal rígida. Na verdade, ela é o resultado de todas as conquistas precedentes do desenvolvimento infantil, que levam a criança a se aproximar cada vez mais do significado objetivo da palavra, em detrimento do significado afetivo (Vigotski, 2001), conforme sua imersão em práticas sócio-comunicativas, mediadas pelos adultos e/ou por crianças mais experientes. Nessa direção, as circunstâncias sociais desempenham um papel decisivo, porque a criança, desde seu nascimento, encontra-se, salvo casos excepcionais, "... em um ambiente cultural e produtivo preparado de antemão ..." (Luria, 1992a), isto é, num mundo humanizado (Leontiev, 1978), no qual a comunicação verbal entre ela e as pessoas de seu meio é um fato constante.

Nas fases iniciais desse processo, no entanto, a linguagem é para a criança uma atividade predominantemente externa, voltada para a comunicação interindividual, determinada, em grandes proporções, pelos indivíduos que compõem seu círculo social. O signo verbal não lhe serve ainda como instrumento psicológico de domínio e regulação do seu próprio comportamento, não constitui uma função intrapsíquica (Vigotski, 2008; Vigotskii, 2006). Até que isso ocorra, o desenvolvimento infantil passa por uma série de etapas intermediárias e transitórias, em que o cultural se converte em individual, num movimento dialético de apropriação e objetivação do código verbal.

Uma dessas etapas mais marcantes na ontogênese é o período da fala egocêntrica, definida como uma fala em voz alta da criança para si mesma (Vygotski, 1997). Este conceito, bastante difundido na Psicologia pelos trabalhos de Piaget, serviu de base para os estudos de Vigotski. Partindo das formulações piagetianas (Piaget, 1923/1999), o psicólogo soviético ressignifica os estudos nessa área. Enquanto aquele considerava a fala egocêntrica um mero resquício do pensamento autístico, supostamente típico das primeiras etapas do desenvolvimento ontogenético, sem importância cognitiva e, portanto, fadada a desaparecer, à medida que a socialização da criança levasse ao domínio do pensamento lógico; Vigotski (2001, 2008; Vygotski, 1997), ao contrário, a compreende como uma etapa genética imprescindível, pois medeia o aparecimento do discurso interior, da função planejadora da fala.

Na concepção vigotskiana (2001, 2008), a fala egocêntrica, característica do período situado aproximadamente entre os 3 e os 7 anos de idade, tem origem na fala social da criança, sendo que aparece com mais vigor quando ela se depara com algum problema a ser resolvido, cuja solução não lhe é imediatamente percebida. Assim, essa fala assume um papel estratégico: "... começa a desempenhar a função de formar o plano de ação de uma tarefa que surge no comportamento" (Vigotski, 2001, p. 54). Psicologicamente, a criança começa então a controlar suas ações e escolhas, de modo a torná-las mediadas por signos verbais, antes usados para se referir apenas às ações de outras pessoas, nas atividades coletivas, interpsicológicas. "Desta forma, a fala deixa de ser apenas um meio para dirigir o comportamento dos outros e começa a desempenhar a função de autodireção" (Luria, 2006a, p. 30). A fala social começa a perder a exclusividade, "... com a criança transferindo formas sociais de pensamento e formas de colaboração coletiva para o campo das funções psicológicas pessoais" (Vigotski, 2001, p. 64).

Com base no exposto e dada a complexidade das mudanças interfuncionais observadas, Vigotski (2001) rejeita a tese de Piaget (1923/1999) sobre o simples desaparecimento da linguagem egocêntrica, supostamente explicado pela insignificância desta na conduta infantil. Em vez disso, a interpreta como "... uma das manifestações da transição das funções interpsicológicas para as intrapsicológicas ..." (Vigotski, 2001, p. 429), principalmente no que se refere à transformação da fala externa (social) em fala interna (individual) na criança. Essa transição se caracteriza por "... um lento acúmulo de mudanças estruturais e funcionais ..." (Vigotski, 2001, p. 148) que imprimem à linguagem egocêntrica uma estrutura cada vez mais abreviada e incompreensível para os outros, muito próxima de uma fala para si, embora fenotipicamente ainda lembre a fala social. O egocentrismo verbal é superado aos poucos e, por volta dos sete anos, deixa de ser vocalizado. Ele não desaparece, mas se desloca para o início das ações práticas, até antecedê-las totalmente, na forma de linguagem interiorizada, para-si.

Desse ponto de vista, ocorre uma transformação, pela qual o fala egocêntrica torna-se propriedade constitutiva da psique infantil, em íntima conexão com o pensamento verbal (Vigotski, 2001, 2008), circunstância que escapou à análise de Piaget. Uma vez internalizada, a linguagem pode atuar na antecipação mental daquilo que ainda é necessário ou se pretende executar. Ela converte-se em discurso interior, alcançando a plenitude de função psicológica instrumental, "... que ele [Vigotski] acreditava ser característica de todas as crianças mais velhas e dos adultos" (Luria, 2006b, p. 30). Consequentemente, deixamos de agir por simples impulso ou reflexo, haja vista a possibilidade de avaliarmos o resultado de nossas ações antes mesmo que ocorram; além de, obviamente, também podermos refletir sobre elas durante e após sua realização. Isso significa dizer que a internalização linguística se confunde com a tomada de consciência, se por este processo entendemos a representação verbal de uma situação a fim de torná-la inteligível.

A célebre comparação feita por Marx entre a abelha e o arquiteto ilustra com clarividência os fatos apresentados. Desses dois, conforme cita o filósofo, somente o arquiteto, que é um ser humano e, portanto, pode dispor da linguagem como meio elaborado de pensamento, forja um plano em sua cabeça antes de começar qualquer construção. Logo, "No término do processo de trabalho, ele obtém um resultado que já existia em sua mente antes que ele começasse a construir" (Marx conforme citado por Luria, 2006b, p. 25), ao passo que a abelha age sempre no limite das possibilidades biológicas e instintivas pré-determinadas para sua espécie. Nesse sentido, a interiorização da linguagem representa um momento de ápice na ontogênese, porque "A criança começa a ... operar com relações interiores em formas de signos interiores" (Vigotski, 2001, p. 138), que estabelecem uma mediação ativa entre ela o mundo e lhe asseguram o domínio consciente do próprio comportamento (Luria, 2007; Vigotski, 2001, 2008).

Em outras palavras, o cultural supera o biológico (Vigotski, 2008) à proporção em que vai se estabelecendo uma complexa inter-relação entre a atividade verbal e as diversas funções psíquicas, na práxis sócio-histórica. Por consequência, "As funções cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, então, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianças, distinguindo-as dos animais" (Vigotski, 2008, p. 18). Essa interação dinâmica e recíproca da linguagem com outros processos intelectuais, que promove uma autêntica reconfiguração do comportamento humano, é justamente abordada na sequência, com maior riqueza de detalhes.

 

Linguagem: Uma Função Central

A apropriação da linguagem verbal, como instrumento de mediação psíquica, proporciona às crianças a emergência de novas características à atividade consciente. Esta assume uma estrutura semântica e sistêmica (Luria, 2002). Por meio do domínio simbólico da palavra, as diversas funções psíquicas se interpenetram e se interinfluenciam em torno do pensamento verbal. Providas deste poderoso instrumento simbólico, a palavra, as crianças fazem a transição da consciência sensorial, elementar e direta, para a consciência racional, cultural e lógica (Luria, 2002). Segundo Luria (2002, pp. 135-136), tal transição constitui "... um fenômeno que os clássicos do marxismo consideram um dos mais importantes na história", não só da humanidade, mas também de cada indivíduo singular. Isso fica evidente quando, na ontogênese, observamos as mudanças que a aquisição da linguagem introduz em cada uma daquelas funções, ampliando sobremaneira a esfera de sua atuação no psiquismo humano.

A percepção, por exemplo, torna-se um processo psicológico mediado por categorias verbais e abstratas bem definidas, pelas quais a criança significa seu campo visual e se liberta das impressões imediatas e gráficas dos objetos (Luria, 2002), ao mesmo tempo em que se forma a atenção voluntária. Como analisa Vigotski (2008, p. 23),

Pelas palavras, as crianças isolam elementos individuais, superando, assim, a estrutura natural do campo sensorial e formando novos (introduzidos artificialmente, e dinâmicos) centros estruturais. A criança começa a perceber o mundo não somente através dos olhos, mas também através da fala. Como resultado, o imediatismo da percepção "natural" é suplantado por um processo de mediação; a fala como tal torna-se parte essencial do desenvolvimento cognitivo da criança.

Desse modo, emergem também amplas possibilidades para o desenvolvimento da abstração e generalização. De acordo com os dizeres de Luria (2002, p. 38), parafraseando o psicólogo americano Jerome Bruner (1957), "... toda percepção é um processo ativo, inerentemente complexo de classificar informações novas em categorias conhecidas, sendo um evento intimamente ligado às funções de abstração e generalização da linguagem". A partir das considerações mencionadas acima, verificamos o seguinte: ao mesmo tempo em que faz uso da palavra para nomear e descrever objetos e fenômenos percebidos, a criança começa a discriminar seus traços essenciais e incluí-los numa classe determinada, sob influência das condições sociais em que vive e nas quais se baseia sua comunicação com os adultos. Consequentemente, inicia-se o desenvolvimento do pensamento abstrato e categorial (Luria, 2002).

Assim sendo, a utilização do signo verbal como meio de pensamento abstrato e categorial condiciona, por sua vez, diversas outras conquistas à psique infantil. A criança adquire, nessas condições, a possibilidade de formular conceitos, de pensar logicamente e estabelecer relações entre objetos e eventos apenas no plano verbal e simbólico, sem a necessidade de apoiar-se estritamente na atividade prática (Luria, 2002, 2007). Dito de outro modo, a palavra "Liberta os atos da criança" (Vigotski, 2003, p. 281), conferindo-lhe a prerrogativa de refletir sobre suas ações e sobre o sentido dos objetos percebidos. Os significados das palavras se ampliam, tornando-se mais e mais abstratos e genéricos (Vigotski, 2001). Aparece a imaginação no sentido mais exato do termo, pois

A linguagem libera a criança das impressões imediatas sobre o objeto, oferece-lhe a possibilidade de representar para si mesma algum objeto que não tenha visto e pensar nele... . A criança pode expressar com palavras também aquilo que não coincide com combinação exata de objetos reais ou das correspondentes idéias. Isso lhe dá a possibilidade de se desenvolver com extraordinária liberdade na esfera das impressões designadas mediante palavras. (Vigotski, 2003, p. 122)

Experimentando de modo crescente essa liberdade em relação ao mundo material e objetivo, possibilitada pelo uso dos signos verbais, a criança começa a superar também não só os limites do campo visual e espacial, mas também começa a dominar complexas relações temporais. Ela pode não só evocar situações do passado, como suas ações também se projetam para além das circunstâncias diretamente vivenciadas no presente, isto é, ela começa a agir com a perspectiva do futuro. O domínio do campo temporal, graças à apropriação e ao emprego ativo da fala pela criança como um instrumento de controle psicológico "... leva, por sua vez, à reconstrução básica de outra função fundamental, a memória [grifo do autor]" (Vigotski, 2008, p. 28). Esta deixa de se basear apenas na retenção de informações imediatas e concretas dos estímulos externos para se converter em um processo sofisticado e volitivo da consciência humana, de natureza simbólica e associativa (Vigotski, 2008). Nessa direção, afirma Vigotski (2008, pp. 28-29) que:

Através das formulações verbais de situações e atividades passadas, a criança liberta-se das limitações da lembrança direta; ela sintetiza, com sucesso, o passado e o presente de modo conveniente a seus propósitos. .

. . A memória da criança não somente torna disponíveis fragmentos do passado, como, também, transforma-se em um novo método de unir elementos da experiência passada com o presente [grifos do autor].

A participação da linguagem no campo das funções psicológicas superiores, todavia, não termina por aqui. Sobre esse aspecto, Luria (2007, p. 111) ainda acrescenta que "A atividade verbal, além de ser um meio de generalização e uma fonte de pensamento, é também um meio para regular o comportamento". Dessa perspectiva, o autor apresenta outro processo psicológico superior, que podemos chamar de regulação verbal do comportamento, caracterizado pelo fato de que a criança, antes dependente em grande medida das ordens e instruções verbais dos adultos para a execução de ações propositadas, passa, com o domínio de formas desenvolvidas do discurso, a dar ordens a si mesma e a controlar suas próprias atividades, de modo intencional e reflexivo (Luria, 2007). Primeiro, "Um indivíduo ordena e outro cumpre" (Vigotski, 2004b, p. 113); depois, "O indivíduo ordena a si mesmo e ele mesmo cumpre (Vigotski, 2004b, p. 113). Para uma compreensão mais exata dessa função, é válido recorrermos a uma citação de Luria, que, mesmo sendo um pouco extensa, é bastante esclarecedora nesse momento. O autor assim explica a regulação verbal:

Quando a mãe diz ao filho: "Isto é uma xícara", a criança vira a cabeça e olha para o objeto mencionado; quando a mãe lhe diz "bate palmas", a criança levanta as mãos e aplaude. A mãe regula assim o comportamento da criança.

Mas a possibilidade de regular o comportamento de alguém por meio da palavra é apenas um aspecto desta importante função da linguagem. A criança, primeiro subordinada às instruções dadas pelos adultos, assimila depois este meio de organização das ações; ela mesma começa a formar imagens das suas ações futuras. A palavra, que reflete as conexões e as relações da realidade e descreve os métodos das ações futuras, a palavra dirigida como uma ordem a alguém, converte-se rapidamente, durante o desenvolvimento, num dos meios mais importantes da auto-regulação do comportamento. (Luria, 2007, pp. 111-112)

Destarte, é fácil perceber a conexão que a linguagem estabelece com as diversas funções psicológicas, mediatizando a emergência de formas superiores de comportamento volitivo e cognição, o que, de outra maneira, seria inviável ao psiquismo infantil. Nesses termos, pode-se dizer que a atividade verbal, em suas dimensões inter e intrapsicológica, é fundamental para a humanização do próprio homem, para a produção simbólica de sua humanidade. Dito de outro modo, a linguagem verbal é um instrumento cultural e semiótico que regula o comportamento individual e coletivo, mediando a atividade psíquica e intelectiva na ontogênese, de tal maneira que todos os indivíduos precisam dela se apropriar, como membros do gênero humano.

 

Considerações e Proposições Finais

Ao longo deste texto, demonstramos como os autores clássicos da Psicologia Histórico-Cultural entendem a apropriação e a intelectua-lização da linguagem na filogênese e ontogênese humanas. Isso nos possibilitou explicitar a influência decisiva que o signo linguístico desempenha para a organização cognitiva das funções psicológicas de atenção, memorização, percepção, regulação verbal, entre outras tantas, inclusive quanto à constituição da própria consciência. Em síntese, pode-se dizer que, partindo do materialismo histórico-dialético, o referencial teórico adotado situa a constituição filogenética da linguagem humana no processo de trabalho, que suscitou no homem a necessidade de comunicação objetiva, dotada de significação social e destacada da atividade produtiva propriamente dita.

Retomando brevemente os dizeres de Marx e Engels (2002, p. 34), a "... a linguagem só nasce, como a consciência, da necessidade, da carência física do intercâmbio com outros homens". A atividade verbal humana é, nesse sentido, um processo social desde o início, distanciando-se cada vez mais da comunicação animal tanto pelo seu caráter consciente e teleológico, quanto pelo seu aspecto interativo-discursivo. Conseguintemente, ela é também uma função psicológica superior, que, assim, não escapa à tese fundamental de Vigotski, segundo a qual "... as funções psíquicas superiores, no processo de seu desenvolvimento ... têm uma origem social, tanto na filogênese como também na ontogênese" (Vygotski, 1997, p. 213).

Dessa perspectiva, foram demonstradas ainda algumas especificidades do percurso ontogenético. Como explicitado, na ontogênese, a linguagem infantil tem, de início, um caráter pré-intelectual, apresentando-se dissociada do pensamento. Aos poucos, entretanto, com a interação cultural e dialógica mediatizada por adultos e parceiros mais experientes, a linguagem da criança assume funções intelectuais progressivamente complexas, convertendo-se em importante instrumento psicológico, sob o qual seu pensamento se reorganiza e incorpora novas possibilidades cognitivas. Nesse processo é que o homem se diferencia dos animais filogeneticamente mais próximos, inclusive dos macacos, constituindo-se em um ser genérico que, pela palavra, aqui tomada em sentido lato, apropria-se de sua própria humanidade e (re)constrói sua história na práxis cotidiana. Pela atividade verbal, cada homem interage discursivamente com a humanidade dos seus semelhantes e consigo mesmo, fazendo da linguagem e do trabalho as categorias fundantes de sua existência.

Como pedagogos, envolvidos com o estudo dos processos de aprendizagem e desenvolvimento cultural infantil, entendemos que esta revisão de literatura pode colaborar com a prática docente, ao retomar a importância da mediação verbal para a constituição do psiquismo humano. A linguagem, enquanto uma função psicológica superior, de natureza sígnica, não é uma capacidade inata ao ser humano. Por isso, precisa ser apropriada pelos indivíduos singulares, mediante sua participação compreensiva e enunciativa em diversas práticas comunicativas, interativo-dialógicas, nas quais possam se expressar oralmente, mediados por parceiros mais experientes. Ora, com base nos apontamentos supra de Vigotski e seus colaboradores, nosso entendimento é de que a escola, como instituição formal de ensino, responsável pela formação das novas gerações, apresenta-se como espaço-tempo privilegiado para que as crianças se apropriem o máximo possível das palavras e dos significados objetivados nas práticas sociais discursivas. Nas atuais condições históricas, à instituição escolar, local onde as crianças têm passado cada vez mais tempo, desde os primeiros anos ou mesmo desde os primeiros meses de seu nascimento, cumpre possibilitar-lhes um contato mais íntimo e intencional com os aspectos abstratos e refinados da linguagem, pela interação social entre sujeitos com diferentes experiências intelectuais.

Na esteira dessas considerações, a interação verbal, planejada e mediada pelos professores, precisa tornar-se uma prática constante nas escolas, em vez de se insistir no modelo de sala de aula silencioso e repressivo, monológico, pelo qual a voz prevalecente é sempre uma: a do professor; ou, então, pautado em respostas verbais condicionadas, pré-determinadas pelo professor. Mas também não se defende, aqui, a redução da sala de aula a um espaço dominado pelas conversas cotidianas, em detrimento dos conteúdos sistematizados, da escrita ou mesmo de outras formas de mediação pedagógica. O que queremos ressaltar é que a interação verbal perpasse todas essas atividades escolares, porquanto as crianças necessitam falar para se desenvolver plenamente. Este é, afinal, um princípio vigotskiano que não pode ser perdido de vista, no plano teórico-metodológico, quando nos propomos a realizar, de modo sistematizado, o trabalho educativo. O diálogo com os demais membros da coletividade é o meio pelo qual elas se apropriam do pensamento verbal elaborado e das demais funções psicológicas superiores. Por isso, como bem expressa Luria (2002, p. 178), "A significância da escolaridade está não somente na aquisição de novos conhecimentos, mas também na criação de novos motivos e modos formais de pensamento verbal, discursivo e lógico divorciado da experiência prática imediata".

Ao se engajarem em práticas discursivas, com a mediação intencional do professor, os alunos podem estabelecer uma relação mais consciente com a palavra, signo verbal que "... está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação" (Bakhtin, 1995, p. 38). Os processos de (inter)locução, desencadeados nas e pelas interações verbais, mobilizam o repertório linguístico e cognitivo dos estudantes, ampliando, assim, sua capacidade argumentativa. Quanto mais necessitarem e puderem se objetivar verbalmente, mais os alunos tomarão consciência de seu pensamento, bem como das contradições e imprecisões que este encerra, tendo que elaborar formas mais desenvolvidas de expressão linguística, tanto no plano externo como no plano interno do discurso. Quanto mais palavras dominamos, tendo em vista a apropriaçaõ de seus sentidos e significados, mais amplo é nosso entendimento a respeito do que o outro nos comunica ou tenta nos comunicar e, consequentemente, maiores são também nossas possibilidades de replicar, dialogar, pensar, compreender e conhecer. A escola deve, então, "... organizar a vida da criança de tal maneira que a linguagem lhe resulte necessária e interessante ..." (Vygotski, 1997, p. 90).

O professor, que é um adulto e mantém uma relação mais consciente com a linguagem, desempenha um papel imprescindível de mediador. Na acepção vigotskiana, "Através da comunicação verbal com a criança, o adulto pode determinar o caminho por onde se desenvolvem as generalizações e o ponto final desse caminho, ou melhor, a generalização daí resultante" (Vigotski, 2001, p. 193). Seu papel consiste, pois, em auxiliar a criança para que esta domine "... o emprego funcional da palavra ou de outro signo como meio de orientação ativa da compreensão, do desmembramento e da discriminação de traços, de sua abstração e síntese ..." (Vigotski, 2001, p. 168), operações fundamentais para o domínio de conceitos. Disso decorre que a expressão verbal oral se constitui em atividade mediadora ao desenvolvimento psíquico e linguístico para os estudantes, não podendo ser preterida na sala de aula, em nome da cultura do silêncio e da disciplina. Em especial na educação infantil e nos primeiros anos de escolarização, momento em que pensamento e linguagem estão se cruzando na ontogênese, a atividade verbal pode e deve ser explorada pelo educador em diversas situações comunicativas com as crianças. Assim, quando chegarem a níveis mais avançados de ensino, já terão internalizado satisfatoriamente as funções psíquicas superiores, de maneira que consigam dominar novas e mais desafiadoras relações mentais no âmbito de sua própria atividade cognoscitiva, facilitando-se em muito a compreensão dos conteúdos escolares.

Nessa abordagem, entende-se que as interações verbais estimulam duplamente a cognição infantil: de um lado, ampliam as possibilidades de objetivação do pensamento por meio do signo verbal; por outro, viabilizam a apropriação de diferentes recursos linguísticos e psicológicos, advindos do diálogo com outras pessoas, nas atividades coletivas e interpessoais. Nas trocas discursivas, as crianças apropriam-se de novos vocábulos e formas de uso da língua, o que, conforme Kostiuk (2007, p. 46), "... melhora a expressão verbal das crianças, faz surgir nelas necessidades novas, novas atitudes perante os processos verbais". A própria habilidade para pensar logicamente só aparece na criança como uma função intrapsíquica depois de um longo processo de interação verbal desta com os indivíduos à sua volta, por meio do qual ela se vê forçada a refletir sobre suas próprias palavras, pois "... só no processo de comunicação surge a possibilidade de verificar e confirmar o pensamento" (Vigotskii, 2006, p. 114). Dialogando umas com as outras, as crianças começam a sentir "... a necessidade de demonstrar a correção de suas próprias ideias, de replicar, de apresentar justificativas" (Vygotski, 1997, p. 220).

Dessa feita, a atividade verbal não é só mais uma atividade para ser realizada na escola, mas é uma necessidade vital para aprendizagem e desenvolvimento cognitivo dos educandos. Especialmente com as condições de trabalho imperantes e o ritmo acelerado da vida contemporânea, muitos pais e familiares dispõem de pouco tempo para dialogar com as crianças e conduzir eventos de mediação verbal. Por outro lado, a violência e a insegurança crescentes, em particular nas cidades maiores, provocaram mudanças no comportamento da população, de maneira que a escola costuma representar a principal coletividade em que a criança interage e encontra outras pessoas, ficando isolada em casa nas demais circunstâncias; ou sob a tutela de cuidadores contratados, porque os familiares se ausentam para trabalhar e competir na sociedade produtora de mercadorias. Já no contexto escolar, ao se comunicarem com parceiros mais experientes e entre si, os estudantes acabam se apropriando de uma série de aptidões intelectuais, antes existentes, para eles, apenas como funções interpsicológicas. Por isso, à luz do referencial teórico adotado, defendemos a importância de se praticar a atividade verbal na sala de aula, permitindo-se a interação dialógica entre todas as crianças, para que, mediadas intencionalmente pelo professor, tenham condições para desenvolver seu repertório verbal e cognitivo; apropriando-se, assim, das complexas relações entre pensamento e palavra. Isto é, trata-se de oportunizar às crianças várias situações para que se apropriem da linguagem oral desenvolvida e, consequentemente, das complexas funções psicológicas sintetizadas em cada palavra, em cada frase, em cada ato de fala.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Giovani Ferreira Bezerra
Curso de Pedagogia, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Rodovia 141, Km 4, saída para Ivinhema
Naviraí, MS, Brasil 79950000
E-mail: gio_bezerra@hotmail.com e doracina@uems.br

Recebido: 15/11/2012
Aceite final: 02/12/2012

 

 

1 O nome desse autor aparece grafado de várias maneiras. Sendo assim, manteremos a grafia original, quando se tratar de referências a citações. Nos demais casos, adotaremos a forma Vigotski, que mais se aproxima da nossa língua e tende a se tornar um consenso entre os pesquisadores brasileiros, sobretudo pelo fato de ter sido bastante popularizada pela Editora Martins Fontes.
2 União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Formada em 1922 (Tuleski, 2008), a URSS reunia diversos países de orientação socialista, sob a liderança da Rússia, que desde 1917 adotara o regime socialista, por meio de uma Revolução.