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Temas em Psicologia

Print version ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.21 no.3 Ribeirão Preto Dec. 2013

 

EDITORIAL

 

 

Esta edição especial da revista Temas em Psicologia aborda o tema da Aids no momento em que a 4ª década da epidemia coloca novos desafios em todo o mundo e, no Brasil, se observa um avanço desnecessário no número de novos casos, especialmente entre a população mais jovem que não vivenciou a "cara da Aids", o adoecimento e morte rápida de pessoas soropositivas. Na resposta brasileira à Aids, reconhecida internacionalmente pelo seu caráter inovador, muita experiência foi acumulada no âmbito do Sistema Único de Saúde e da ação comunitária, produzindo-se tecnologia psicossocial de ponta, tanto no campo da prevenção, como no de cuidados à saúde, aconselhamento e adesão ao tratamento.

A Psicologia brasileira muito contribuiu nesse processo, pois as abordagens que presumiam que simplesmente disseminar informações sobre os meios de transmissão mostraram-se ineficientes para o controle da infecção pelo HIV, assim como as abordagens individualistas que desconsideravam os aspectos sociais e culturais, como a estigmatização e a discriminação associadas à Aids. A multidisciplinariedade, a riqueza de diversas metodologias e a integração da pesquisa qualitativa e quantitativa, como se verá neste suplemento, têm sido fundamentais no combate à epidemia. A fertilização mútua das contribuições oriundas das diversas psicologias na saúde com a medicina e a saúde pública, ou da psicologia social com a epidemiologia, todas integrando ciências sociais e humanas, a distingue da respostas a outros agravos de saúde, assim como o reconhecimento do saber prático desenvolvido pelos movimentos sociais (feminista, homossexual e de pessoas afetadas pela Aids), pela resposta da sociedade civil, nas Organizações Não Governamentais e mesmo por igrejas.

A discussão sobre a temática da Aids tem sido realizada nas Reuniões Anuais da Sociedade Brasileira de Psicologia, que pude acompanhar e valorizar de modo crescente especialmente nas últimas duas gestões para as quais tenho contribuído. Considero fundamental estimular essa discussão na SBP, que é a mais antiga e tradicional sociedade científica em nossa área, e que congrega um grupo seleto de pesquisadores de todo o Brasil.

Considero também fundamental notar que a preferência e escolha de nosso periódico para esse número especial tenha sido, além de sua qualidade e rigor, a possibilidade de publicar os artigos sem grande limitação de número de páginas, o que permite descrição mais detalhada do contexto histórico, dos diferentes e inovadores métodos de pesquisa ou das técnicas e práticas psicológicas avaliadas, assim como de discussão mais aprofundadas. Especialmente quando o tema e o desafio é novo, assim como as respostas tão inovadoras, depende-se de mais espaço para validá-las. O fato de a revista permitir acesso livre e online, e a tradução de artigos em inglês e espanhol, aumenta o impacto da disseminação de seus artigos.

Este número especial expressa um projeto coletivo para aprimorar as publicações deste novo campo de práticas psicossociais produzidas no âmbito da resposta brasileira à Aids, que desenvolveu e realizou de modo singular as práticas em saúde baseadas nos Direitos Humanos e com base na análise da Vulnerabilidade. Este esforço envolveu pesquisadores, ativistas e profissionais do setor público e, com o apoio financeiro da Fundação Ford para a tradução em espanhol e inglês, esteve sob a responsabilidade da Prof. Vera Paiva, do Núcleo de Estudos para a Prevenção de Aids da Universidade de São Paulo (NEPAIDS-USP). Todos os artigos foram submetidos a dois ou mais pareceristas, com inserção nacional e internacional, pessoas de referências na psicologia (em aconselhamento, testagem, psicologia e religião, psicologia comunitária, sexualidade, adesão, entre outros temas) e no campo da Aids.

Na introdução ao suplemento, a Prof. Vera Paiva coeditora deste número especial, localiza essa produção na tradição brasileira que pensa as dimensões psicossociais do processo saúde-doença, cujos autores nem sempre são psicólogos. Discute especialmente o sentido do termo psicossocial na literatura em saúde e descreve os traços comuns das abordagens psicossociais (nas práticas comunitárias, na atenção ambulatorial e na prevenção) que se incluem no quadro da Vulnerabilidade e dos Direitos Humanos. Oferece referências para uma reflexão crítica sobre o contexto histórico e acadêmico dessa produção, que hoje repercute em vários outros campos, além da Aids e na resposta a outros agravos de saúde e no desafio da humanização das práticas em saúde.

Um primeiro conjunto de artigos se refere mais fortemente à história da resposta à Aids no Brasil. O relato de Fernando da Silveira nos brinda com uma reflexão crítica sobre um trabalho, histórico e emblemático, de prevenção às DST/Aids e a promoção da cidadania com jovens do sexo masculino em conflito com a lei privados de liberdade. O artigo de Vera Paiva, Andrea Paula Ferrara, Mafoane Odara e Richard Parker discute o enfrentamento religiosa da Aids em São Paulo, em especial a resposta católica, incluindo instigantes dados históricos, a partir de pesquisa documental, estudos de casos, oficinas com religiosos e entrevistas. O texto de Thiago Félix Pinheiro, Gabriela Junqueira Calazans e José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres faz uma reflexão sobre a produção acadêmica entre 2007 e 2001 a respeito do uso de preservativo como método de prevenção de HIV/Aids. O texto de Eliana Miura Zucchi, Vera Paiva e Ivan França Junior faz uma revisão dos estudos sobre intervenções psicoeducativas para mitigar processos de estigma e discriminação relacionados ao HIV/Aids no Brasil.

Um segundo conjunto de estudos trata mais fortemente da sexualidade e das relações de gênero que são fundamentais para informar ou registrar práticas de cuidado e prevenção, também dá conta de elementos contextuais e históricos. Mario Pecheny, eminente cientista social argentino no campo da saúde pública, faz uma revisão crítica da vulnerabilidade de jovens homossexuais às DST/Aids, analisando o papel de produtor de riscos e danos das desigualdades vivenciadas por jovens identificados nos grupo LGBTs. A pesquisa de Marcos Roberto Vieira Garcia foi realizada com entre lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) em situação de rua na região central de São Paulo, analisa suas trajetórias de vida e os contextos de vulnerabilidade ao HIV/Aids. O artigo de Márcia de Lima e Lilia Blima Schraiber discute o papel desempenhado pelas desigualdades de gênero e da violência contra a mulher soropositiva na produção da vulnerabilidade ao HIV, na prevenção ao adoecimento e nos cuidados de saúde. O estudo de Luís Felipe Rios discute a organização das parcerias sexuais de jovens do sexo masculino com práticas homossexuais para compreender a susceptibilidade à epidemia da Aids, a partir de dados coletados em terreiros de candomblé fluminense. O artigo de Maria Cristina Antunes e Vera Paiva, é mais um exemplo de triangulação de métodos e discutem resultados de um estudo etnográfico integrados a um survey, visando compreender os desafios da prevenção de Aids com base na noção de territorialização das redes sociométricas de homens com práticas homoeróticas em São Paulo.

Este número especiase completa com o conjunto maior de artigos que descreve práticas psicológicas e psicossociais específicas no campo da atenção primária e especializada em Aids e aborda processos inovadores de trabalho no campo da testagem, aconselhamento, adesão à medicação e a importância de integração contínua entre prevenção e cuidado. Para pensar a atenção em saúde estudo de Diva Maria Faleiros Camargo Moreno e Alberto Olavo Advíncula Reis, realizado em dois Centros de Testagem e Aconselhamento em DST/Aids de São Paulo, analisa a partir da teoria de Winnicott, os processos de revelação do diagnóstico da infecção pelo HIV no contexto do aconselhamento sorológico. O artigo de Maria Altenfelder Santos, Maria Ines Battistella Nemes, Ana Cristina Arantes Nasser, Cáritas Relva Basso e Vera Paiva, analisa a implementação de uma intervenção psicossocial individual voltada para a melhoria da adesão ao tratamento antirretroviral, conduzida por três profissionais de saúde, previamente capacitadas. O artigo de Dulce Aurélia de Souza Ferraz e de Maria Ines Battistella Nemes analisa as potencialidades dos espaços de cogestão em Unidades de Saúde da Família no processo de implantação de ações de prevenção das DST/Aids e os referenciais de vulnerabilidade e direitos humanos utilizados para a reorientação das práticas em saúde. O texto de Neide Emy Kurokawa Silva e Luzia Aparecida Oliveira faz uma análise hermenêutica da implantação de um projeto de prevenção por pares em um ambulatório especializado em DST/Aids do município de São Paulo. Renata Bellenzani e Maria Ines Battistella Nunes fazem uma análise qualitativa de uma intervenção psicossocial inovadora e no quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos visando a adesão ao tratamento para HIV/Aids. O estudo de Edith Lucia Mendes Lago, Ivia Maksud e Rafael Soares Gonçalves analisa as representações sociais de profissionais de saúde sobre a sorodiscordância para o HIV e discutem como as relações institucionais influenciam esse processo e suas práticas em um ambulatório especializado em HIV/Aids. A pesquisa de Wedna Cristina Marinho Galindo, Ana Lúcia Francisco e Luís Felipe Rios descreve a relação entre profissionais de saúde e usuários de um serviço de aconselhamento em HIV/Aids em Pernambuco e analisa os modos de aconselhamento realizados. Ligia Rivero Pupo e José Ricardo Carvalho Mesquita Ayres analisam as contribuições da abordagem centrada na pessoa para o construção de estratégias e técnicas de aconselhamento em DST/Aids. O texto de Suzana Kalckmann descreve uma pesquisa sobre uso de preservativo feminino e sua aceitabilidade realizada com mulheres usuárias de serviços especializados de atenção às DST/Aids na grande São Paulo.

Agradecemos fortemente a todas e todos os pesquisadores que contribuíram com a tarefa voluntária de ler, frequentemente mais de uma versão, dos artigos e revisá-los de forma rigorosa e respeitosa oferecendo aos autores pareceres que fizeram diferença na qualidade final dos textos. Agradecemos também aos tradutores que, frequentemente, também acabaram por oferecer alternativas de redação e melhora de estilo do texto em português - e nesse caso um agradecimento especial à Jonathan Garcia.

Espero que essa edição da revista Temas em Psicologia contribua para ampliação das áreas da Psicologia Social, Comunitária e da Saúde dentro da SBP; que colabore para a divulgação dessas experiências acumuladas; que estimule o desenvolvimento de novas tecnologias de prevenção de cuidado não apenas no campo da Aids e, especialmente, colabore para a diminuição da vulnerabilidade ao HIV dos brasileiros e brasileiras de todas as religiões, cores, orientações sexuais e territórios, nas suas dimensões individuais, sociais e programáticas.

 

Maria Cristina Antunes
17 de outubro de 2013