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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.21 no.3 Ribeirão Preto dez. 2013

http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.3-EE18PT 

ARTIGOS

 

Preservativo feminino e dupla proteção: desafios para os serviços especializados de atenção às DSTs e Aids

 

 

Suzana Kalckmann1

Diretoria do Núcleo de Práticas de Saúde do Instituto de Saúde da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, São Paulo, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute o uso de preservativos femininos por 713 usuárias de sete serviços especializados de atenção às DSTs/Aids da Grande São Paulo incluídas em um estudo longitudinal de avaliação da continuidade de seu uso. A maior descontinuidade ocorreu no primeiro mês; do total, 335 (47,0%) mulheres não voltaram para o primeiro seguimento. Ao final dos 12 meses de observação, 23 (3,37%) mulheres estavam em uso contínuo do preservativo feminino. Considerando as que voltaram para seguimento, o tempo médio de uso contínuo do preservativo feminino foi de 4,6 meses e a mediana de 3,4 meses. A análise do tempo de uso pelo Método de Kaplan Meier mostrou haver associação estatísticamente significante com o estado sorológico para o HIV(p=0,02). As mulheres com sorológico positivo aderiram por mais tempo ao método do que as soronegativas que são parceiras de homens vivendo com o HIV. A opinião dos parceiros foi decisiva para a interrupção e para a manutenção do uso do preservativo feminino, indicando que o casal e a intersubjetividade no contexto das relações de gênero, e não apenas a informação da mulher sobre o uso do método, deve ser o foco da promoção do preservativo. Muitas mulheres que usaram o insumo e interromperam são mulheres soropositivas e parceiras de soropositivos e pretendem voltar a usá-lo. Os serviços devem ampliar o escopo da suas orientações sobre o preservativo e repensar sua atuação junto às parceiras soronegativas e aos homens.

Palavras-chave: Preservativo feminino, mulher soropositiva, HIV, aids.


 

 

Ao longo do tempo, as mulheres adotaram inúmeras práticas para tentarem controlar o número de filhos e a melhor época para tê-los. A história da anticoncepção indica que as práticas adotadas variam na história, a cada cultura considerada e, principalmente, dependeu do estímulo e valorização que a sociedade confere a cada método contraceptivo (Rousselle, 1984).

Essa história nos conta que, em geral, as mulheres colocaram sua saúde em risco ao adotar métodos fundamentalmente usados no corpo feminino. Para pensar a promoção da contracepção, portanto, deve-se também considerar como as relações assimétricas de gênero e de nível socioeconômico se estabelecem em cada sociedade (Saffioti, 1992; Scott, 1993) considerando como interferem diretamente na capacidade e possibilidade de cada mulher negociar com o parceiro o uso do método escolhido (Barbosa, 2003; Guimarães, 1996; Gupta & Weiss, 1994; O'Leary & Cheney, 1993; Paiva, Lima, Santos, Ventura-Filipe, & Segurado, 2002; World Health Organization [WHO], 1997). Ao mesmo tempo em que exemplifica essa dinâmica, o surgimento da Aids e a forma como a epidemia vem ocorrendo nesses últimos 30 anos têm exigido que as mulheres também se preocupem em evitar a transmissão do HIV quando se relacionam sexualmente.

Do ponto de vista dos programas de saúde, portanto, para o planejamento da promoção de qualquer prática contraceptiva é fundamental que se considere sua eficácia em prevenir a gravidez e, ao mesmo tempo, impedir a transmissão de agentes causadores de doenças - uma "dupla proteção". As alternativas contraceptivas que propiciam a dupla proteção , ou seja, evitam a gravidez não desejada e as DSTs/HIV, estão restritas ao preservativo masculino e ao preservativo feminino (Berer, 2007; Núcleo de Estudos da População [NEPO], Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS [ABIA], & Fundo de População das Nações Unidas [UNFPA], 2011).

Ainda assim, a promoção do preservativo masculino tem sido o foco das políticas de controle da epidemia da Aids e do discurso técnico que informa programas de prevenção de gravidez e a prevenção das DST/Aids na população em geral e entre as mulheres. Permanece também como centro do aconselhamento e da atenção psicossocial à saúde sexual e reprodutiva das pessoas vivendo com HIV. Na medida em que oferece às mulheres um método de dupla proteção sob seu controle e interfere nas relações assimétricas de gênero, a compreensão dos limites e possibilidades da promoção do preservativo feminino (chamado de camisinha feminina ou de condom feminino), tema deste artigo, merece a atenção dos pesquisadores e profissionais da área.

 

Notas sobre o Preservativo Feminino

O protótipo do preservativo feminino foi desenvolvido em meados dos anos 1980, por uma equipe dinamarquesa, coordenada por Lasse Hessel, que acreditava que, por ser uma método cuja colocação fica sob controle das mulheres que eliminaria ou, pelo menos, facilitaria a negociação com os parceiros. Foi colocado no mercado suíço com o nome de Femidom, em 1992, pela empresa Female Health Company (FHC). Em 1993, a Food and Drug Administration (FDA) aprovou sua comercialização nos Estados Unidos, onde passou a ser chamado de Reality (FC1). No Brasil, o preservativo feminino (Reality, versão FC1) obteve licença para ser comercializado em dezembro de 1997 e seu uso esteve restrito a estudos para avaliar sua aceitabilidade entre as mulheres no Brasil, como o projeto "Beija flor"2, um estudo exploratório do qual participaram 103 mulheres e 33 homens (Kalckmann, 1998). Outro estudo, realizado em seis cidades do país entre 2.382 mulheres, reafirmou a viabilidade da adoção do preservativo feminino pelos participantes e, com base nele, o Programa Nacional de DST/Aids decidiu investir em sua dispensação (Barbosa, Kalckmann, Berquó, & Stein, 2007).

O Reality é um tubo de poliuretano fino, cerca de 0,042-0,053 mm de espessura, resistente, transparente e pré-lubrificado, com cerca de 17 cm de comprimento e 7,8 cm de largura. Possui dois anéis flexíveis, também de poliuretano. Um deles fica solto dentro do tubo e serve para ajudar na colocação e fixação do preservativo junto ao colo do útero.

Essa mesma versão do preservativo feminino esteve no mercado de 142 países da África, Ásia, Europa e América Latina, em muitos deles, disponibilizado por meio do marketing social (NEPO et al., 2011; Warren & Philpott, 2003).3 Deixou de ser fabricado no final de 2009, quando foi substituído pelo FC2, desenvolvido pela FHC. (NEPO et al., 2011) O FC2 é produzido com látex sintético (borracha nitrílica), com desenho similar ao FC1. Este modelo tem uma produção mais barata, podendo ter custo menor do que o FC1, e foi aprovado para comercialização nos EUA em 2009, quando também passou a ser comercializado no Brasil.

No Brasil, desde 2000 foi incorporado a poucos serviços de saúde selecionados, a maioria deles relacionada ao Programa de Aids. Para sua dispensação no país não ocorreram campanhas de divulgação e marketing, manteve-se baixa a comercialização e houve interrupção de sua disponibilidade, fatores que mantiveram o seu uso muito limitado (Barbosa & Perpétuo, 2010; NEPO et al., 2011). Recentemente o Ministério da Saúde do Brasil realizou uma grande compra de preservativo feminino e retomará a sua disponibilização no Sistema Único de Saúde (SUS) em 2013. Sabe-se que as pessoas vivendo com HIV/Aids pertencem aos segmentos mais vulneráveis à infecção por DST/AIDS (e portanto, à reinfecção e a serem transmissoras do vírus) e que este será um grupo prioritário ao acesso a uma alternativa ao preservativo masculino.

Como seria a adoção e seu uso cotidiano por mulheres soropositivas para o HIV ou que são parceiras de soropositivos? Como ocorre a adesão ao uso do preservativo feminino entre as mulheres usuárias de serviços especializados para o atendimento de DST/Aids? Entender melhor como e por que ocorreram as interrupções no uso do preservativo feminino por mulheres convivendo com o HIV pode contribuir para o dimensionamento da atividade de dispensação do insumo nos serviços públicos de saúde. Este foi o objetivo deste estudo.

 

Método

Os dados analisados neste artigo são provenientes de um estudo maior, longitudinal e de avaliação da continuidade de uso do preservativo feminino, que selecionou participantes em diversos tipos de serviços de saúde e em condições de rotina do Sistema Único de Saúde da Grande São Paulo (Kalckmann, 2007). Para esse artigo, foram selecionados apenas os dados referentes aos sete serviços especializados para o atendimento às DSTs/Aids, não analisados anteriormente.

Todos os serviços incluídos no estudo se comprometeram a realizar a atividade de dispensação do preservativo feminino e a indicar profissionais que se responsabilizaram pela atividade (nomeadas de "pessoas- chave"). As "pessoas- chave" foram previamente capacitadas e participaram de atividade educativa, onde foram abordados o manuseio do método, seus critérios de dispensação, como organizar os fluxos e preencher fichas de registro. Estes profissionais eram responsáveis pela atividade de captação de participantes e pela atividade educativa sobre o preservativo feminino, pela sua dispensação e pelo registro das informações em cada serviço.

As pessoas-chave, nos serviços especializados eram, em sua maioria, psicólogas que realizavam atividades de sala de espera, de pós consulta, e os grupos para os quais as mulheres eram convidadas a participar e que consistia de atividade educativa para conhecerem o preservativo feminino. As interessadas em conhecer o preservativo feminino participaram de atividade educativa individualmente e/ou em grupo, com duração de cerca de trinta minutos, que abordava informações sobre o insumo, as formas de manuseio e eram informadas sobre o estudo.

As mulheres que aceitaram participar do estudo, responderam a questões de caracterização (idade, escolaridade, cor, estado marital, trabalho, número de relações/mês, estado sorológico para o HIV, uso anterior de preservativo masculino e uso anterior de preservativo feminino) em uma ficha preenchida pela pessoa-chave, que também registrava a data e o número de preservativos masculino e feminino dispensados. Recebiam 12 preservativos femininos e 12 masculinos e eram convidadas a retornar após um mês.

A cada retorno ao serviço, registrava-se na ficha da participante: a data do retorno, as quantidades levadas e usadas de preservativos femininos e de preservativos masculinos no período e sua opinião sobre o preservativo feminino. As cotas de preservativos eram dimensionadas para cerca de um mês, quando deveriam voltar para o seguimento. A quantidade dos insumos foi garantida durante todo o estudo.

Foram incluídas todas as mulheres que quiseram experimentar o preservativo feminino e aceitaram participar do estudo de seguimento por pelo menos por 12 meses, no período de janeiro de 2000 a julho de 2002.

Considerou-se como tempo inicial (tempo zero) a data em que o método foi levado pela primeira vez, com intenção de uso. O tempo de uso foi tratado como uma variável quantitativa contínua e, para a sua caracterização nos segmentos de interesse, utilizou-se a média e a mediana, como medidas resumo. A análise da interferência de cada variável no tempo de uso foi feita pelo Método Kaplan Méier, com uso do teste de Log-Rank (Armitage & Berry, 1994). Para avaliação dos testes estatísticos foi considerado um nível de significância de 5% (p = 0,05).

As questões relacionadas às opiniões e/ou queixas referentes aos preservativos femininos, assim como aos motivos de abandono ou interrupção de uso, tiveram preenchimento bastante heterogêneo pelos serviços. Por outro lado, os registros, tomados como expressões interessantes e expressivas do ponto de vista qualitativo fornecem pistas que podem subsidiar futuras atividades de dispensação. Esse é o sentido da sua inclusão neste artigo.

O estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Saúde e aprovado para a sua realização.

 

Resultados e Discussão

Foram incluídas 713 mulheres, com idade média de 32,5 anos (+7,4); do total, 55,5% (376) exerciam trabalho remunerado; 16,1% (111) não tinham pelo menos ensino fundamental completo; 45,3% (323) se autodeclaravam de cor branca. Do total 92,4% (631) afirmaram ter parceiro fixo, das quais 74,6 % (471) residiam com eles. A maioria, 72,9% (447), das mulheres em idade reprodutiva referia o uso de preservativo masculino como método contraceptivo.

A frequência de atividade sexual na inclusão do seguimento indicou alta variabilidade, de 0 a 81 relações sexuais por mês, média de 8,1 relações/mês (+8,9). Quanto ao estado sorológico para o HIV, 86,1% (568) eram mulheres com sorológico positivo para o HIV, 13,9% (92) tinham sorológico negativo e eram parceiras de homens soropositivos e essa informação não foi registrada para 7,4% (53) do total de mulheres do estudo, como se observa na Tabela 1.

Ao final dos 12 meses de observação, apenas 3,37% (23) das mulheres estavam usando o preservativo feminino; no terceiro mês de seguimento, essa proporção era de 28,5% (203), e no sexto mês 18,8% (134).

O tempo médio de uso contínuo de preservativo feminino foi de 2,4 meses (IC 95%: 2,1822,68), a mediana foi de 1 mês. A maior descontinuidade ocorreu no primeiro mês, pois 47,0% (335) das mulheres não voltaram para o primeiro encontro agendado para seguimento, o que configura uma "aceitabilidade imediata" de 53%.

Considerando-se apenas as mulheres que voltaram pelo menos uma vez para o seguimento agendado, o tempo médio de uso foi de 4,6 meses (IC 95%: 4,24-4,94) e a mediana de 3,4 meses (IC 95%: 2,8-3,9).

Como se pode observar na tabela 2, a análise pelo método Kaplan Meier mostrou não haver associação estatisticamente significante entre o tempo de uso do preservativo feminino e a idade das mulheres (p=0,51), com o seu grau de escolaridade (p=0,42) ou cor autorreferida (p=0,16). Não se observou associação significativa também com o fato de a mulher manter trabalho remunerado (p=0,29), manter ou não parceiro sexual fixo (p=0,12) ou residir com o parceiro (p=0,57), com a sua frequência de atividade sexual mensal (p=0,65) ou tipo de prática contraceptiva (p=0,30).

Por outro lado, observou-se associação estatisticamente significante entre o tempo de uso e o estado sorológico para o HIV (p=0,02) , as mulheres com sorológico positivo tiveram maior tempo de uso do que as mulheres soronegativas que são parceiras de soropositivos.

Como se pode observar na Figura 1, a média de tempo contínuo de uso entre as mulheres soropositivas4 foi de 4,7 meses enquanto entre as mulheres soronegativas foi de 3,7 meses; a mediana no grupo de soropositivas foi de 3,5 meses e das soronegativas de 2,4 meses.

Apesar de as mulheres com sorológico positivo para o HIV sustentarem um tempo de uso maior do preservativo feminino, as respostas sobre os motivos de interrupção de uso sugerem que a adesão ao método é menor quando elas sabem que o parceiro também é soropositivo:

"Nós não usamos nada, eu sou operada, e nós dois somos positivos".

"Tô achando ótimo namorar com soropositivo, não precisamos usar nada".

"Depois dos remédios novos, a gente desistiu de usar camisinha ..."

"Ele não gosta de usar e eu não ligo, já peguei!"

O risco de reinfecção pelo parceiro ou do parceiro e da transmissão de cepas de vírus diferentes ou resistentes entre parceiros, com consequências danosas à saúde não apareceu nas respostas. As respostas indicam que a preocupação com a transmissão para os parceiros negativos é um motivo para diferença encontrada, estatisticamente significante, do maior uso de preservativo feminino pelas mulheres soropositivas com parceiros de estado sorológico desconhecido e/ou negativo em comparação às soronegativas:4

"Meu parceiro não gosta da masculina, tenho medo de passar para ele [HIV]".

"Meu namorado não sabe, não quero passar para ele".

"Ele não aceita usar a masculina, como não quero passar para ele, eu uso".

"Meu marido é negativo e ele prefere a feminina, se sente mais seguro".

Verificou-se que muitas mulheres tiveram dificuldade com o manuseio inicial do preservativo feminino, mas conseguiram superar as dificuldades:

"No começo foi difícil, agora adaptei".

"Achei difícil, nas primeiras vezes, acostumei".

"Nas primeiras vezes, sangrou, eu colocava errado, argola ficava atravessada. Agora aprendi".

Para algumas, essas dificuldades iniciais foram determinantes para que desistissem nos primeiros meses:

"Muito difícil colocar, não consegui".

"Achei muito larga, parece que não entra".

"Tive impressão que ia sair, porque é muito lubrificada".

"Não conseguia dobrar, escorrega é muito lubrificada".

"Anel escorrega, não dava para dobrar.

"Senti muita dor para colocar".

"A argola interna não encaixa".

"Incomodo, esteticamente desagradável".

Entre as que não voltaram para o primeiro encontro de seguimento podem estar muitas que não conseguiram manusear o método adequadamente e perderam o interesse em continuar no seguimento. O número de preservativos dispensados segundo algumas delas também influenciou a descontinuidade, pois as obrigava a ir ao serviço mensalmente.

"O meu marido queria pegar pra mim, eu não precisaria ir".

"Gostei da camisinha, mas tenho dificuldade para comparecer nas consultas e daí, fico sem".

"Usei com clientes e com meu parceiro, eles gostaram, pensei até em comprar, mas é muito caro".

"Meu marido queria comprar, mas não achou!"

"Precisava aumentar a cota de feminino, nós gostamos mais".

Outras não continuaram a usar o preservativo feminino porque o parceiro não gostou:

"Ele achou ruim".

"Ele não confia".

"Meu parceiro não gostou, queixa não sentir nada".

"Ele não quer porque diz que o aro machuca".

Embora poucos estudos façam referência ao casal, nem sempre o uso ou não de um método depende da escolha da mulher. Deve-se ter claro que não se trata apenas de uma escolha individual, pois é determinado por muitos fatores sociais, econômicos e culturais que restringem o desejo e a ação individual. O sentido mais citado para a intenção e desejo de usar a camisinha feminina foi a curiosidade pelo desconhecido e a autonomia conferida por ele.

Observou-se que muitas mulheres que descontinuaram o uso, o fizeram devido a questões relacionadas à condição de ser portadora e ao fato de estar doente e/ou de seu parceiro estar nessa condição. Algumas tinham a expectativa de voltar a usá-lo.

"Não utilizei, depois do último remédio fiquei em depressão, nem tive relações".

"Fiquei doente, internada".

"Parei com tudo porque o meu marido morreu".

Outras falas exemplares de obstáculos para intenção de uso e da dimensão intersubjetiva na escolha do método são:

"Estou sem parceiro, experimentei sozinha, quando conseguir um parceiro, já sei o que vou usar! "

"Meu filho foi internado, quando a vida voltar ao normal, vou usar".

"Não posso usar porque não estou mexendo o braço direito, é da doença".

"Meu marido tá preso, é ruim para colocar, lá".

"Meu marido tá na UTI, nem sei quando vamos nos relacionar".

"Ele não se deu com o remédio novo, perdeu a vontade de transar".

Importante observar que entre as 23 mulheres que mantiveram o uso contínuo do preservativo feminino por 12 meses, a maioria usava tanto o masculino quanto o feminino. Tal como àquelas que interromperem o uso, mantiveram o preservativo masculino como parâmetro de comparação. Mesmo quando o método é usado pelas mulheres, predominaram razões relacionadas ao parceiro:

"Meu parceiro não gosta da masculina, tenho medo de passar para ele [HIV]".

"Meu marido não consegue segurar e sempre a camisinha [masculina] escorregava e ficava dentro".

"Meu marido adorou, eu prefiro a masculina".

"Com a masculina ele não segura ereção".

"Ele diz sentir mais prazer com feminina.

"Meu parceiro gostou, fica bem natural".

"Meu esposo acha mais confortável e segura".

"Ele gosta de variar, fica diferente".

Apenas uma explicitou problemas com o uso anterior do preservativo masculino.

"Sem problemas com a feminina, tenho alergia com a masculina".

 

Discussão

A descontinuidade de uso do preservativo feminino nos primeiros meses de seguimento indica que as mulheres participantes do estudo, apesar do interesse inicial, não se sentiram suficientemente motivadas para usá-lo.

Apesar de ser considerado um método feminino e sob seu controle, no princípio do estudo as mulheres desejaram a autonomia que o método oferece, mas a opinião dos seus parceiros permaneceu indicada como fundamental para a sua adoção, fortalecendo as sugestões para que se aborde e leve em consideração a desigualdade de gênero, como já apontado em estudos anteriores (Barbosa et al., 2007; Kalckmann, 2006). Os serviços dedicados à atenção às pessoas vivendo com HIV e Aids devem disponibilizar atividades educativas direcionadas aos parceiros e dimensionar atividades específicas de orientações e dispensação para as soronegativas que são parceiras de homens soropositivos.

Uma limitação deste estudo a considerar foi o fato de o número total de mulheres convidadas para atividade educativa não ter sido registrado de modo consistente. O estudo foi dimensionado apenas para monitorar o uso do preservativo feminino e o uso do preservativo masculino também foi registrado enquanto a participante estava no estudo. Não fazia parte das rotinas dos serviços, entretanto, registrar informações sobre a dispensação, uso e ou opiniões sobre o preservativo masculino e este registro não foi introduzido. Assim, o fato de deixarem de usar o preservativo feminino não significa que a participante ficou sem proteção.

De todo modo, os resultados observados também são coerentes com os encontrados por Paiva, Latorre, Gravato e Lacerda (2002) quanto a relação entre o uso de preservativo masculino e a sorologia do parceiro. Os autores observaram a associação estatisticamente significante (p < 0,001) entre o uso do preservativo masculino e a sorologia do parceiro, entre 1068 mulheres vivendo com HIV/Aids que entrevistaram. Indicaram que o seu uso frequente/consistente foi relatado por 59% das mulheres vivendo com HIV quando o parceiro era também portador do HIV e era maior (64% e 79%) quando a mulher não conhecia a sorologia do parceiro e quando sabia que o parceiro era soronegativo, respectivamente.

Revisões sobre o assunto mostraram que a aceitabilidade imediata (no primeiro encontro agendado para seguimento) e a longo prazo do preservativo feminino é muito variável - de 37% a 96%. Apesar das diferentes abordagens em cada estudo que prejudicam a comparação, dos distintos desenhos de estudo e dos critérios diferentes para definir o que é aceitação e da diversidade das populações investigadas, o preservativo feminino é um método cuja promoção vale a pena e cuja adoção é viável (Hoffman, Mantell, Exner, & Stein, 2004; Kalckmann, 2007; NEPO et al., 2011; WHO, 1997).

Contudo, não se pode deixar de considerar, como também se pôde observar neste estudo, a complexidade dos fatores que interferem na sua aceitação e uso (Hoffman et al., 2004; NEPO et al., 2011; WHO, 1997).

Um exemplo da complexidade é o fato de se imaginar o casal como uma unidade consensual. Ainda assim, a maioria dos estudos é centrada nos desejos e perspectivas contraceptivas da mulher, minimizando as opiniões dos parceiros, não considerando ou superestimando a capacidade de negociação da mulher para impor suas vontades ao parceiro (Barbosa, 2003).

É importante notar a importância da promoção de atividades educativas e de um leque de informações que devem ser mais completas e adequadas às mulheres. Além de mostrar a inserção da camisinha feminina em "modelo pélvico"5, por exemplo, o serviço deveria incorporar à rotina de dispensação do preservativo feminino uma consulta ginecológica, onde a interessada pudesse experimentá-lo no próprio corpo com supervisão, o que permitiria resolver dificuldades iniciais com o insumo. Ao mesmo tempo, é importante retomar informações que parecem desaparecer da pauta e roteiro típico das consultas ou ficarem submersas na grande quantidade de informações recebidas: o desconhecimento sobre os perigos da reinfecção merecem, como se viu nos resultados deste estudo, atenção especial, pois muitas relataram não sentirem necessidade de usar proteção quando o parceiro era também positivo.

Estes resultados merecem, de todo modo, que novos estudos sejam realizados para aprofundar a compreensão mais densa do sentido da decisão que leva casais sorodiscordantes para o HIV (neste caso quando a mulher é soronegativa) a manterem menor adesão ao uso do preservativo feminino.

Não se pode deixar de considerar que a mudança de atitudes diante de um novo método (a aceitabilidade neste caso) assim como as mudanças de comportamento necessárias a estabilização de seu uso e a adoção de quaisquer novas práticas, trata-se de um processo sociocultural e não apenas individual. É, portanto, lento e depende de apoio.

Seria muito interessante que, juntamente com as informações sobre o método, a mulher pudesse ser ensinada a colocar o preservativo feminino no próprio corpo em consulta ginecológica e/ou atendimento de enfermagem. O número de preservativos deve ser acordado com a usuária e ou com o parceiro, especialmente importante no caso das mulheres soronegativas de parceiros soropositivos que não deveriam precisar ir sempre aos serviços para consultas.

 

Conclusões: A Reorganização dos Serviços é Fundamental

A aceitabilidade e, principalmente, a continuidade de uso de um determinado método contraceptivo, como se viu também no caso do preservativo feminino, não se restringe à sua disponibilização pelos serviços e do acesso do segmento abordado ao insumo.

Envolve uma série de questões programáticas, ligadas à logística de distribuição - a regularidade da disponibilização, a adequação da quantidade de insumo - mas também depende da manutenção da atividade educativa integrada à rotina sustentada dos serviços para atenderem as dificuldades que surgem com o uso dos métodos.

Envolve diferentes graus de vulnerabilidade social, já que as dificuldades que devem ser abordadas têm como cenário a cultura e a organização social da diferença entre homens e mulheres, sua maior ou menor vulnerabilidade social no âmbito da interação com os parceiros e a intersubjetividade no âmbito do casal. Em outras palavras, não pode ser pensada como dependente apenas da mulher como organismo bio-psicológico.

As atividades educativas, portanto, não podem se restringir ao modo de usar o preservativo feminino. Devem ter maior abrangência, possibilitando a abordagem de outros temas, como as dificuldades produzidas pela normatização tradicional das relações homem/mulher e pela desigualdade de poder no âmbito das relações de gênero, da sexualidade e nas negociações com os parceiros. Outros temas deveriam ser ainda abordados, como a necessidade de integrar, eventualmente, a contracepção de emergência, de compreender a necessidade da prevenção de DSTs mesmo quando ambos são soropositivos, e conciliar todas essas questões com o desejo da maternidade, possibilidade de ficarem grávidas etc.

Para que este novo método, o preservativo feminino, possa ser efetivamente promovido nos serviços de saúde é necessário que haja, portanto, a reorganização dos processos de trabalhos, especialmente nos especializados em HIV /AIDS. Além da sofisticação da atividade educativa inicial para a sua dispensação, é fundamental criar espaços onde as dificuldades de cada mulher possam ser compartilhadas e resolvidas pensando o casal como unidade, especialmente nos primeiros meses de uso. Ou seja, os serviços além do bom acolhimento inicial devem ter resolutividade6 diante da complexidade envolvida no uso deste insumo de prevenção.

Mesmo que o uso do preservativo feminino não tenha sido contínuo, conhecê-lo e saber onde está disponível ampliam as opções de dupla proteção, aumentando a chance das mulheres convivendo com Aids garantirem que seus direitos sexuais e reprodutivos sejam mais respeitados.

Espera-se que a camisinha feminina não fique restrita aos serviços especializados, atrelada ao Programa de Aids ou a determinados grupos de mulheres, como as profissionais do sexo. É fundamental que seja também disponibilizada nas unidades básicas de saúde e subsidiada para ser comercializada, beneficiando todas as mulheres com mais esse recurso técnico para a prevenção e o cuidado à sua saúde sexual.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Suzana Kalckmann
Rua Claudino Alves, 44, Apto. 34, Santana
São Paulo, SP, Brasil 02037-010
E-mail: suzanak@isaude.sp.gov.br

Recebido: 02/07/2012
1ª revisão: 25/01/2013
2ª revisão: 18/03/2013
3ª revisão: 22/04/2013
Aceite final: 22/04/2013

 

 

Este estudo resulta de pesquisa feita para a tese para obtenção do título de doutor em Ciência (Kalckmann, 2007) defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Coordenadoria de Controle de Doenças da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, Coordenadoria Controle de Doenças.
1 Agradecimentos: ao Instituto de Saúde e ao Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP, Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo que coordenaram a implantação do preservativo feminino no estado e aos serviços e às mulheres que participaram do processo.
2 "Beija Flor", estudo multicêntrico Brasil e Quênia, foi o primeiro realizado no Brasil, pelo Instituto de Saúde, MCCS (Mulher, Criança, Cidadania e Saúde), Associação Saúde da Família e Family Health International (Kalckmann, 1998).
3 O marketing social consiste no uso de princípios e técnicas de marketing, inclusive de subsidio para redução de preço, para persuadir determinados públicos-alvo, para que deliberadamente aceitem, rejeitem, alterem ou abandonem um comportamento para proveito de indivíduos, grupos ou da sociedade em geral.
4 Não houve registro consistente pelos serviços do estado sorológico do parceiro para as mulheres com sorológico positivo para o HIV.
5 Modelo de acrílico ou de plástico em 3 dimensões, com visão do corpo por dentro.
6 Informações e/ou procedimentos que forneçam respostas concretas e imediatas às questões/queixas trazidas pelas mulheres.