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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.23 no.3 Ribeirão Preto set. 2015

http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.3-06 

ARTIGOS

 

Adoção tardia: produção de sentidos acerca da paternagem e filiação em uma família homoafetiva

 

Late adoption: production of senses on fatherhood and affiliation in a homosexual family

 

Adopción tardía: producción de sentidos sobre la paternidad y filiación en una família homoafectiva

 

 

Fabiana de Souza e Silva DantasI; Sandra Patrícia Ataíde FerreiraII

ICentro Universitário Maurício de Nassau, Recife, PE, Brasil
IIPrograma de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva e Departamento de Psicologia e Orientação Educacional da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivou-se investigar a produção de sentidos entre pais e filhos adotivos sobre a paternagem e filiação. Participou desta pesquisa uma família homoafetiva, constituída de dois pais e dois filhos, adotados tardiamente, com idades de 6 e 7 anos. Foram realizadas entrevistas videografadas e a análise baseou-se na busca dos núcleos de significação propostos por Aguiar e Ozella (2006). Os resultados indicam que, o sentido construído sobre ser pai se relaciona com a renúncia de si mesmo, em benefício do interesse da criança, e com o compromisso de falar a verdade para os filhos. Também significa assumir o papel e o posicionamento de pai dentro de casa, mas sempre que necessário, assumir o papel de mãe, sendo estes papeis percebidos como complementares e importantes para resguardar o desenvolvimento físico e afetivo dos filhos. O sentido de filiação produzido pelas crianças adotadas pelo casal homoafetivo é de que ser adotivo significa ser escolhido e amado.

Palavras-chave: Adoção tardia, família homoafetiva, produção de sentido, paternagem, filiação.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the production of senses between parents and adopted children about fatherhood and affiliation. A homosexual family composed of two fathers and two children who were late adopted at the ages of 6 and 7 years, took part in the study. Interviews were recorded and the analysis was based on the search of the meaning cores proposed by Aguiar and Ozella (2006). The results indicate that the meaning to be a father is related with the self-renunciation in favor of the child's interests, and the commitment to speak the truth to the children. It also means assuming the role and position of a father in the household, but whenever necessary, they assume the mother's place. These roles are perceived as complementary and important in the keeping of the child's physical and emotional development. The affiliation sense produced by the adopted child for this homosexual couple is one of being chosen and loved.

Keywords: Late adoption, homosexual family, production of senses, fatherhood, affiliation, sense.


RESUMEN

Se tiene por objetivo investigar la producción de sentidos entre padres e hijos adoptivos sobre la paternidad y filiación. Partiparon de esta investigación una família homoafetiva, que se constituye de dos padres y dos hijos, adoptados tardiamente, com edades de 6 a 7 años. Fueron realizadas entrevistas videografadas y la análisis se há baseado en la búsqueda de los núcleos de significación propuestos por Aguiar y Ozella (2006). Los resultados indican que el sentido construído sobre ser padre se relaciona com la renúncia a sí mismo, beneficiando los intereses de los niños y com el compromiso de decir la verdad a los hijos. También significa asumir el papel y la posición de padre dentro de la casa, pero siempre que se haga necesario, asumir el papel de madre, estos papeles percibidos como complementários e importantes para resguardar el desarrollo físico y afectivo de los hijos. El sentido de filiación producido por los niños adoptados por la pareja homoafetiva es que ser adoptivo significa ser escojido y amado.

Palabras clave: Adopción tardia, família homoafetiva, producción de sentido, paternidad, filiación.


 

 

Este estudo se propõe a investigar os sentidos produzidos entre pais e filhos adotivos sobre paternagem e filiação em uma configuração de família homoafetiva a partir das práticas discursivas dos participantes envolvidos, tendo em vista que os múltiplos sentidos são produzidos e negociados nas interações socais.

No que diz respeito ao conceito de paternagem, este é definido como um conjunto de práticas (ações e discursos) desenvolvidas pelos pais diante das solicitações da criança, como, por exemplo, conduzi-la à escola ou para a cama na hora de dormir (Prado & Vieira, 2003). Já o conceito de filiação, refere-se ao reconhecimento que os pais fazem acerca do lugar que a criança ocupa em suas continuidades históricas e de sua alocação na ordem das gerações (Kaës, 2000). Nesta pesquisa, sugere-se uma ampliação deste conceito na medida em que se propõe a realizar uma análise relacional dos sentidos produzidos entre pais e filhos, sendo assim, o reconhecimento que os filhos fazem acerca do lugar que eles próprios ocupam na família também foi investigado.

Para que uma criança estranha passe a ser reconhecida como filho(a), os pais precisam vivenciar o processo de perfilhação. Entende-se por perfilhação o reconhecimento voluntário da paternidade e/ou maternidade, seja ela biológica ou adotiva. Uma das construções fundamentais para que o processo de adoção seja construído, são as relações de parentalidade. Nesse sentido, criar uma criança é diferente de adotá-la, pois a adoção requer que os adotantes tornem uma criança estranha em filho e vice-versa (Levinzon, 2004).

Para Passos (2003), a família é uma unidade social e psíquica de modo que os estudos que tratam do tema devem enfocar os aspectos da grupalidade e das individualidades presentes. Isto significa que não se pode considerar que a família seja apenas micro parcerias do grupo familiar, pois os sentidos são engendrados mediante a articulação permanente entre a grupalidade, as interações entre os membros e as individualidades.

Ainda segundo Passos (2005), as relações de afeto da família homoparental não se fundamentam na ordem da família patriarcal (que impõe a hegemonia de papéis e lugares fixos), mas propõe uma maior flexibilidade na constituição das posições e funções dos membros do grupo. Assim, a circulação de afeto entre pais e filho não exige mais os contornos de antes (família patriarcal); e a triangulação familiar composta por dois homens e um filho(a) ou duas mulheres e uma filha(o) abre um espaço no qual se torna possível a não-diferenciação sexual nas relações conjugais e parentais.

Os sentidos produzidos entre pais e filhos dialogam mutuamente, uma vez que se considera que no processo de adoção, os pais não são os únicos a adotar. A criança ou o adolescente também os adotam. Tomando-se, então, o processo de adoção tardia em uma família homoparental, neste artigo, que é parte da pesquisa de mestrado realizado pela primeira autora, discute-se a produção de sentido acerca do que é ser pai e filho na referida configuração familiar.

Torna-se importante pontuar, ainda, as diferenças de natureza teórica entre o "significado" e o "sentido" das palavras. O "sentido" é polissêmico, ou seja, o sentido original de uma expressão ou palavra adquire constantemente um novo sentido a partir das relações humanas. Ele traz consigo a ideia de movimento e multiplicidade de usos, provocando discussões quando se situa o lugar da linguagem na construção do sujeito. O sentido de linguagem adotado, neste estudo, constitui-se por um conjunto de habilidades que exercemos a partir da utilização de sons e marcas, articuladas e com sentido (Meira & Pinheiro, 2007). Assim, defende-se que a linguagem tem papel preponderante nas relações interpessoais comunicativas e na produção de significados e sentidos compartilhados que tornam possível a nomeação e interpretação de objetos e situações do mundo real.

O sentido de uma palavra se aproxima mais do plano subjetivo, sendo mais amplo que o significado. A categoria sentido vincula-se a necessidades que mesmo ainda não sendo realizadas, mobilizam o sujeito produzindo formas de colocá-lo na atividade, destacando sua singularidade historicamente construída.

Por outro lado, os significados das palavras referem-se aos conteúdos fixos, estáveis, "dicionarizados" e compartilhados que são apropriados pelos sujeitos (Aguiar & Ozella, 2006). Toda atividade humana é significada na medida em que "a palavra desprovida de significado não é palavra, é um som vazio" (Vygotsky, 2001, p. 398). Os significados são produções históricas e sociais que permitem a comunicação ou socialização das experiências humanas.

O significado da palavra é ainda uma generalização ou formação de conceito, sendo assim, é um fenômeno do pensamento quando este se relaciona com a palavra e nela se materializa e vice-versa: o significado é um fenômeno do discurso quando este último está vinculado ao pensamento. Neste sentido, o significado da palavra é visto como unidade do pensamento discursivo que, uma vez estabelecido, sofre modificações e se desenvolve (Vygotsky, 2001).

Cabe ainda destacar que esta pesquisa se interessa em investigar como são construídos os sentidos sobre paternagem e filiação entre pais e filhos adotados tardiamente e que compõem uma família homoafetiva. Sobre o processo de produção de significados e sentidos acerca da maternagem, paternagem e filiação adotiva tardia, este será discutido na próxima seção.

 

O Processo de Adoção Tardia

O termo "adoção tardia" é usado quando a criança adotada possui idade igual ou superior a dois anos. Estas crianças, na maioria dos casos, foram abandonadas ou entregues para a adoção pelos pais que devido às circunstâncias psicossocias não conseguem desempenhar as práticas de maternagem e/ou paternagem.

A adoção é entendida como sendo um "processo" na medida em que contempla toda dinâmica familiar através das relações de maternagem, paternagem e filiação (que envolve outros membros da família como avós, tios, irmãos entre outros); bem como se insere em sistemas sociais maiores, como, por exemplo, o Estado e a sociedade em geral, que juntos produzem e negociam sentidos sobre a adoção. Os sentidos e significados acerca da maternagem, paternagem e filiação adotiva tardia são construídos através dos discursos e práticas sociais de uma determinada época.

No estudo de caso realizado por Costa e Rossetti-Ferreira (2007), que teve como objetivo analisar os múltiplos sentidos sobre ser mãe e ser pai produzidos e negociados a partir de práticas discursivas; as autoras focaram o olhar sobre a produção discursiva de um casal que realizou a adoção tardia de duas meninas com idades de 4 e 5 anos. Neste contexto, ser mãe é definido como sendo prazeroso e complicado porque as filhas testam a aceitação dos pais o tempo todo. O sentido de que a maternidade é complicada surge em função das duas crianças adotadas já serem capaz de argumentar, negociar, aceitar ou discordar da mãe, havendo também a história passada de vivência em outra família e abrigo. Além disso, ser mãe se relaciona a uma situação de renúncia de si mesma, de padecimento e de ausência de tempo.

A maternidade não só modificou a rotina da mãe, mas também o seu posicionamento e status no casamento, uma vez que ela optou por permanecer em casa cuidando das filhas e abrindo mão da sua independência. Assim, a maternidade é sentida ainda como uma perda de independência e privacidade. Aqui o processo de maternidade é intenso, pois exige reposicionamentos da mulher frente ao marido e às filhas.

Em relação aos múltiplos sentidos de paternidades analisados na pesquisa de Costa e Rossetti-Ferreira (2007) e produzidos pelo pai adotivo participante, volta-se para a construção de três sentidos. Primeiro, ser pai é ser questionado em sua autoridade pelo fato das crianças adotadas serem maiores, capazes de assumirem posicionamentos próprios. Deste modo, o pai considera que cabe a ele impor limites e ser respeitado. Em segundo lugar, ser pai significa estabelecer um compromisso baseado no oferecimento de afeto, carinho e limites aos filhos para que eles tenham um bom caráter no futuro. E por último, ser pai tem um sentido gratificante porque significa a constituição de uma família que se formou na medida em que as filhas adotadas abandonaram velhos hábitos, aceitando os seus limites e o reconheceram como pai.

Em outro estudo de caso, que teve como objetivo investigar significações de paternidade no processo de adoção de um bebê, Andrade, Costa, e Rossetti-Ferreira (2006) verificaram que a mãe biológica do filho(a) adotado é vista como sendo uma heroína por não ter abortado e ter dado a oportunidade aos pais adotivos de se tornarem pais. No entanto, em outros momentos, ela é vista como uma figura ameaçadora que pode reaparecer e levar de volta o filho adotado.

É interessante observar que mesmo com todas as garantias legais, os pais frequentemente relacionam a figura da mãe biológica como sendo uma espécie de fantasma. Eles desconhecem a história de vida dos pais biológicos dos seus filhos, não buscam esse conhecimento e negam esse passado, embora achem importante para a criança conhecer sua história. (Andrade et al., 2006, p. 246)

Existe não só a dificuldade dos pais adotivos em revelar a história de adoção para o filho (no caso de adoção de bebês), como também de falar sobre o passado da criança, considerando que a criança já saiba da sua história de origem no momento da adoção.

Quanto à adoção por homossexuais, Figueirêdo (2008) realizou uma pesquisa de opinião pública sobre este tema nas cidades de Campo Grande (MS), Belo Horizonte (MG) e Recife (PE). Participaram deste estudo grupos heterogêneo: juiz/desembargador, promotor/procurador de justiça, psicólogo/assistente social, advogados, professores universitários, donas-de-casa e outros. A partir das técnicas de estatística descritiva e testes comparativos entre as cidades, obteve que 65,8% dos participantes de Campo Grande consideram que um pedido de adoção não pode ser indeferido em razão da opção sexual, enquanto para os participantes domiciliados em Belo Horizonte a estimativa correspondente foi de 64,3%. Já em Recife, apenas 52% são a favor de que a adoção possa ser deferida em função da orientação sexual. A partir disso, concluiu-se que ainda existem preconceitos fortes contra a adoção praticada por homossexuais. Entretanto, há uma tendência de que a sociedade brasileira se torne menos conservadora em virtude da influência dos meios de comunicação e da globalização, os quais vêm provocando uma mudança social no sentido de que cada vez mais seja valorizada a afetividade entre casais homossexuais e a criança a ser adotada, em detrimento dos superiores interesses desta última (Figueirêdo, 2008).

Vygotsky (2001) concebe que o ser humano é capaz de reinventar novas formas de adaptação, uma vez que os sentidos produzidos se atualizam no tempo e no espaço. Para apreender a dinâmica dos processos das adoções tardias, considera-se que os vínculos construídos a partir das relações sociais passam a ter uma importância maior do que as questões de consanguinidade; à medida que possibilitam que os sentidos sejam produzidos de forma dinâmica.

A prática homo afetiva de uma pessoa não se relaciona com sua capacidade ou não em desenvolver funções de paternagem ou maternagem. No entanto, no que se refere a estas famílias, não se pode negar o fato da sociedade, em geral, não aceitar facilmente a homossexualidade, sendo esta marcada por preconceitos e muitos "não ditos". Portanto, as famílias homoafetivas têm enfrentado a violência verbal ou/e física de pessoas homofóbicas e desigualdade de direitos perante a lei. Neste sentido, as práticas homoafetivas dos adotantes influenciam, mas não determinam o (in)deferimento do pedido, uma vez que se busca priorizar o interesse da criança em detrimento dos interesses dos adultos, ainda que estes sejam vistos como legítimos (Figueirêdo, 2008; Uziel, 2007). Percebe-se, assim, que os significados e sentidos das palavras mãe, pai e filho estão sendo revisados pela sociedade civil diante: (a) da formação de novos arranjos familiares (monoparental, biparental, homoafetiva, recomposta, entre outras); (b) do fortalecimento de movimentos GLBTT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros) que se torna objeto de debates intensos no campo das ciências humanas e jurídicas acerca das concepções de família, reprodução, afeto e sexualidade no Brasil.

Dentre as novas conquistas sócio-históricas relacionadas com a prática da adoção no século XXI, destaca-se em especial o direito à parentalidade homoafetiva, uma vez que juízes, psicólogos e assistentes sociais têm se mostrado bastantes abertos a este tipo de adoção, desde que exista no espaço doméstico, da criança adotada, a convivência com figuras femininas e masculinas. Nos discretos casos de adoção ocorridos por homossexuais, no Brasil, os filhos precisam ter outras fontes de referência como a escola, a televisão e a interação com outras pessoas representativas.

No que se refere a este tipo de adoção, em outubro de 2008, o juiz Élio Braz emitiu sentença favorável a um casal homossexual, que reside na cidade de Natal (RN) e convive há treze anos, para a adoção de duas irmãs (3 e 5 anos) que moravam em um abrigo no Recife (PE). Segundo Élio Braz, em entrevista ao jornal Diário de Pernambuco (Teixeira, 2008, p. C4):

A legislação brasileira não proíbe a adoção de crianças e adolescentes por homossexuais. O que acontece é que durante a votação do projeto de Lei 6.222/2008, na Câmera Federal, os deputados retiraram o artigo que autorizava a adoção por pessoa do mesmo sexo. No entanto ficou a lacuna. Na minha sentença sou claro: a existência da lacuna não impede o direito.

Quando um casal homossexual deseja adotar, vai buscar posicionar a criança no lugar de filho. Essa posição não se configura na presença do gênero em si, se os pais são homem ou mulher. Essas funções são simbólicas e podem se configurar em casais do mesmo sexo também.

A cidade de Olinda (situada em Pernambuco) também é uma das poucas a punir os crimes de homofobia ocorridos geralmente em espaços públicos, existindo um engajamento social por parte dos movimentos GLBTT que lutam para demonstrar afeto em público e pela legalização do(a) parceiro(a). Aos poucos, vem acontecendo no cenário nacional, um maior reconhecimento de direitos homoafetivos, sobretudo no sistema jurídico, em nome do "direito à igualdade na diferença" (Uziel, 2007).

Diante deste cenário de profundas transformações sociais em que a prática da adoção se inscreve na atualidade, a adoção tardia ainda é vista com muitos preconceitos, pois as crianças mais velhas são consideradas mais difíceis de serem educadas. Elas irão requerer dos pais adotivos maior compreensão e disponibilidade ao filho para possibilitar o processo adaptativo e a construção do amor parental.

 

Procedimentos e Ferramentas para Acesso aos Sentidos e Significados

As crianças participantes da pesquisa tinham idades de seis e sete anos, uma vez que se considera que neste período a criança possui domínio verbal da linguagem, sendo capaz de expressar significados e sentidos construídos nas relações sociais. Além disso, elas tinham conhecimento de sua história de origem, ou seja, sabiam que eram adotadas. Neste contexto, a história vivida foi recontada pelos pais e filhos adotivos de modo que os vários significados e sentidos acerca da paternagem e filiação pudessem ser apreendidos.

A realização da coleta dos dados desta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Deste modo, a família envolvida participou do estudo mediante a leitura sobre as considerações éticas implicadas e assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, atendendo aos requisitos éticos de pesquisa com seres humanos.

No que se refere aos procedimentos de pesquisa, inicialmente, os pais convidados foram orientados a realizarem a leitura do livro "Bebê do Coração" (Laufer, 2002) para os filhos, em seguida, foi sugerido que eles (pais e filhos) conversassem sobre o texto lido. A família participante foi informada de que esta conversa seria videografada e que a pesquisadora faria intervenções durante os discursos construídos com a intenção de clarificar os sentidos enunciados. Seguindo a leitura da história, foi sugerido ainda que os pais, junto com seus filhos, contassem a história da adoção vivenciada por eles. Neste momento, a pesquisadora também fez intervenções a partir de uma entrevista não estruturada ou aberta com a finalidade de ampliar e contextualizar os discursos produzidos, observando possíveis reformulações, contradições e contemplando o papel ativo dos entrevistados/ entrevistador.

Este procedimento de pesquisa foi realizado em um único encontro, no entanto, os pais e os filhos participantes foram posteriormente consultados para esclarecer as dúvidas que surgiram no decorrer da análise dos discursos produzidos.

Quanto à narrativa recomendada para leitura, o livro "Bebê do Coração" (Laufer, 2002), esta foi escolhida por mencionar o momento inicial da adoção, ou seja, desde o período que um casal começa a desejar um filho até o momento em que este é inserido na família, como também, pelo fato de fazer referência aos pais biológicos, já que outras literaturas infantis que abordam a adoção não os trazem como parte integrante da história. Esta narrativa foi escrita por pais adotivos e possui como limitação o fato de não retratar os conflitos sofridos por pais e filhos adotados com a sociedade e a família (Vieira, 2004).

No próximo tópico, os dispositivos de análise do discurso serão abordados tendo como base a abordagem sócio-histórica que oferece caminhos a percorrer em direção aos pré-indicadores, indicadores e núcleos de significação.

 

Dispositivo de Análise do Discurso: Uma Perspectiva Sócio-Histórica

Os procedimentos e instrumentos utilizados para a análise do discurso na abordagem sociohistórica não são exclusivos desta, mas essenciais para atingir os objetivos numa proposta de pesquisa qualitativa (Aguiar & Ozella, 2006).

Para realizar a análise do material coletado, foi utilizada a perspectiva dos Núcleos de Significação proposta por Aguiar e Ozella (2006). Para tal, três etapas foram percorridas: os pré-indicadores, os indicadores e os núcleos de significação. As duas primeiras etapas correspondem ao momento de pré-análise ou fase empírica do conteúdo do discurso, e a terceira etapa está relacionada à exploração do material e análise dos resultados.

Os pré-indicadores são elementos do discurso que aparecem com maior frequência por motivos diversos (carga emocional ou importância oferecida, ambivalências ou contradições, insinuações não concretizadas, entre outros). Em geral, os pré-indicadores do discurso são apresentados em grande quantidade, oferecendo um quadro amplo de possibilidades para se chegar aos núcleos de significação.

Os indicadores correspondem ao tema a que o discurso irá se voltar, como, por exemplo, abandono, família, casal homossexual, preconceito etc. Podendo ter significados diversos dependendo dos contextos em que são criados, neste caso, estamos falando dos seus conteúdos temáticos. Juntos, os indicadores e seus conteúdos temáticos conferem algum significado ao discurso e passaram por um processo de aglutinação, ou seja, foram combinados de acordo com a similaridade, a complementaridade ou a contraposição. O processo de aglutinação, descrito por Vygotsky (1998), refere-se ao fato de as palavras se combinarem (aglutinarem-se) de forma a expressar ideias complexas, havendo influxo de sentido, ou seja, os sentidos das palavras fluem uns dentro dos outros.

A articulação entre os indicadores é fundamental para que sejam identificados os conteúdos e suas mútuas articulações que organizará os núcleos de significação. Um segundo aspecto para a construção de núcleos de significação é a sua nomeação que será extraída da própria fala do entrevistado, em que uma frase curta foi produzida refletindo numa articulação resultante da elaboração dos núcleos. A terceira e última característica, evidencia que os núcleos foram organizados em número reduzido para que não ocorresse uma diluição ou retorno aos indicadores (etapa anterior).

A análise apresentada a seguir tomou as falas dos sujeitos e, posteriormente, foram destacados os significados e sentidos construídos. Ressalta-se ainda que os nomes dos sujeitos participantes desta pesquisa são fictícios com a intenção de preservar suas identidades.

 

Família Homoafetiva: A Prática Adotiva como Busca de um Amor Incondicional

A família participante deste trabalho compõe-se por um casal homossexual masculino (Marcelo, 29 anos, secretário escolar e Marcos, 30 anos, professor), pertencente à classe média e à religião católica, que adotaram dois irmãos com idades de seis e sete anos (João e Juliano). A família reside na cidade de Goiânia (GO) e a entrevista foi realizada no ano de 2008, em sua própria residência. Na época em que este estudo foi realizado o casal mantinha um relacionamento estável a dois anos.

Estes pais conviviam há aproximadamente um ano com as crianças, estando próximos a conquistar a adoção plena de ambas. João e Juliano são acompanhados por psicólogos e assistentes sociais do Juizado da Criança e do Adolescente de Goiânia (GO) e apresentam-se bem adaptados ao contexto familiar em que vivem. Cabe ressaltar que esta composição familiar rompe com o sentido sociohistoricamente construído de que apenas as mulheres têm condições de cuidar dos filhos, abrindo espaços para novas construções de sentido.

Na busca dos núcleos de significação produzidos pela família homoafetiva, no que se refere às duas primeiras etapas de análise, foi possível constatar pré-indicadores do discurso, a saber: Resgate da história de origem dos filhos, a presença do pai biológico, a vida das crianças no abrigo, o perfil da criança sonhada, o encontro com a criança real, aprendendo a ser pai e filho, falando a verdade para os filhos, a família não deve satisfação para a sociedade, ensinando os filhos a não ser preconceituosos com homossexuais, conjugalidade homossexual, aceitação da família extensa e filhos na escola. Estes temas foram encontrados mediante os pré-indicadores do discurso, sendo posteriormente aglutinados de acordo com os conteúdos semelhantes, complementares e contraditórios para se chegar aos núcleos de significação.

Quanto aos indicadores semelhantes, destacaram-se: resgate da história de origem dos filhos, a presença do pai biológico, a vida das crianças no abrigo. No que se refere aos indicadores cujos conteúdos são complementares podemos citar: o perfil da criança sonhada, o encontro com a criança real, aprendendo a ser pai e filho, conjugalidade homossexual, falando a verdade para os filhos, ensinando os filhos a não ser preconceituosos com homossexuais, aceitação da família extensa e filhos na escola.

E por último, os indicadores contraditórios voltaram-se para o fato dos pais afirmarem que não devem satisfação para a sociedade, mas ao mesmo tempo manifestarem a preocupação em não construir discursos que estimulem práticas homossexuais dos filhos para que a sociedade não os julguem como responsáveis, no futuro.

A partir dos procedimentos adotados, foram encontrados seis núcleos de significação construídos pela família homoafetiva: Hoje eu me sinto pai a partir de tudo que eu já vivi; A Mariana sempre vai ser a sua mãe. A diferença é que nós somos os pais do coração; Fomos adotados, fomos escolhidos; Ser pai adotivo é está pronto para amar uma criança incondicionalmente; A orientação sexual não forma caráter. A gente tem dignidade, respeito, responsabilidade; Eles têm dois pais e sempre que for preciso os dois pais farão o papel de mãe. Estes núcleos de significação serão explicitados a seguir:

"Hoje Eu me Sinto Pai a Partir de Tudo que Eu Já Vivi"

Foi observado que não é possível construir um sentido de pai sem viver o impacto promovido pela chegada dos filhos. A construção acerca deste sentido ocorre através de ações e práticas discursivas produzidas no dia-a-dia. Deste modo, a significação está implicada na formação de pensamentos e ideias que não se compõem independentemente das relações entre as pessoas, ou seja, a produção de sentidos relacionados ao ser pai não resulta da ação de uma única pessoa, mas da (inter)ação entre elas (Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva, & Carvalho, 2004).

De acordo com Marcos e Marcelo, ser pai significa renunciar a si mesmo em benefício do interesse das crianças. Este é o alto preço que os pais precisam pagar para constituir uma relação de pais e filhos. Além disso, o sentido de pai produzido não é estático na medida em que um dos pais enuncia que nos primeiros dois meses de convivência com as crianças o exercício de paternagem é percebido como sendo mais difícil e que a cada dia surge um novo aprendizado que amplia este sentido.

Entrevistadora - "O que foi mais difícil para vocês durante o período de adaptação com Juliano e João?"

Marcos - Pra mim o mais difícil foi a ideia de "pai". A gente tem uma teoria e a teoria é um pouco diferente da prática, de que tudo vai ser tudo bem. De repente, eu que tinha um sono tranquilo à noite, comecei a quebrar o sono porque tem alguém que precisa ser embrulhado ou ta com dor de ouvido.

Marcelo - Eu perdi muito, no início, a perda da minha individualidade. Não existia mais o "Eu". Tudo que a gente tem e faz é em benefício deles. Não existe isso de dizer "Vamos fazer uma viagem com os amigos". Nós só vamos a lugares que os caibam. Mas isso foi no início, nos dois primeiros meses. Hoje eu me sinto pai a partir de tudo que eu já vivi. Cada dia é um novo aprendizado. É fácil? Não. Não é porque a gente sabe que não existe pai cansado, mau-humorado e pai doente.

Pelas falas de Marcos e Marcelo percebe-se o relato de mudanças ocorridas com a chegada das crianças, havendo uma reconfiguração das Redes de Significações (cada sentido é orientado na relação com os outros, formando um sistema dinâmico e histórico) e a alteração de papéis assumidos acontecem a partir da interação com os filhos, os quais têm prioridade em relação aos pais (Rossetti-Ferreira et al., 2004).

Apesar de existir a renúncia de si mesmo, para Marcelo não há nada mais prazeroso e gratificante do que a convivência com os filhos:

Marcelo - Mas não há nada mais gratificante, não tem nada que pague. O beijo deles é o beijo mais gostoso que a gente tem [lágrimas e risos]. O abraço deles é um abraço de obrigado por a gente ter feito alguma coisa por eles. Eles não te cobram nada, eles sabem que o que têm é o que a gente pode dar pra eles. Eles manifestam o tempo inteiro que nos amam, nos abraçam e isso cativa mesmo.

Para Marcelo, os filhos não fazem nenhuma cobrança material porque é como se existisse a ideia de que "o melhor que os pais podiam ter feito por eles, já foi feito", que é a adoção, um lar seguro. Neste contexto, a cobrança feita pelos filhos é de afeto, disponibilidade de tempo e energia.

"A Mariana Sempre vai Ser a Sua Mãe, a Diferença é que Nós Somos os Pais do Coração"

O sentido relacionado com a paternagem, pensado a partir dos núcleos de significação, volta-se para a importância dos pais conversarem com os filhos sobre os seus genitores sem desprezá-los e desvalorizá-los. Segundo Marcelo e Marcos, este tipo de conversa deve ser iniciada pelos filhos, os quais podem falar sempre que quiserem sobre o assunto. Cabe aos pais, ao cumprir a paternagem, ter o cuidado para que o resgate deste passado não seja algo extremamente penoso para que seus filhos não sofram ainda mais do que já sofreram antes de serem adotados. Deste modo, uma das atribuições dos pais adotivos corresponde a não tentar apagar as lembranças e as origens dos filhos (Passos, 2005).

Marcos - Às vezes, os meninos escutam uma música e dizem: "Ah, o pai José [genitor] gosta desta música". E ontem Juliano falou: "A minha mãe era a Mariana". E aí nós falamos: "A Mariana sempre vai ser a sua mãe. A diferença é que nós somos os pais do coração". Então, a gente conversa muito com eles no dia-a-dia para que um dia eles não falem que nós não deixamos eles falarem sobre o assunto. Agora a gente também tem o cuidado para não ficar machucando muito a lembrança deles.

Segundo Passos (2005), a criança precisa conhecer sua verdadeira história de origem, em quaisquer circunstâncias, pois ela deve ser reconhecida por ela mesma para que ocorra o seu surgimento como sujeito do desejo, sujeito da palavra e sujeito do grupo.

É importante que a criança experiencie uma comunicação sincera e aberta com seus pais, pois isto demonstra o quanto ela é aceita como parte integrante da família, sendo essencial para a construção de sua identidade de forma mais sólida. Ao conversar sobre a adoção com os filhos de maneira sincera e simples, os pais ensinam uma lição importante: que sua história de origem não é algo que tenha de se transformar num "problema". A facilidade com que a criança aceita sua história vincula-se ao grau de aceitação dos seus pais (Levinzon, 2004).

Voltando-se para o momento de leitura durante a entrevista, a presença do genitor de Juliano e Julio também é destacada no seguinte enunciado, descrito abaixo:

Marcos - "Outra questão do pai foi o problema do alcoolismo. Tanto é que agora no mês de Janeiro nós fomos ao Juizado pegar a guarda provisória e o pai José estava alcoolizado".

Entrevistadora - "Juliano e João vocês se lembram do pai José?"

Juliano - A gente foi no Juizado, aí eu vi ele lá na sala. Aí ele falou assim: "Esse daí é meu filho! Não foi pai [olha para Marcos sorrindo]?"

Marcos - "Foi!"

O fato de o genitor ter enunciado, diante de Juliano e das pessoas presentes no Juizado, "Esse daí é meu filho" (cuja significação é "este foi eu quem fiz, tem meu sangue. Este me pertence, faz parte de mim") favorece para que Juliano mantenha viva uma imagem positiva em relação ao pai biológico. Assim, o responsável pela concepção biológica de Juliano e João tem uma função simbólica que não fica ausente do processo de subjetivação das crianças (Andrade et al., 2006; Passos, 2005).

A atribuição de sentidos relacionados aos genitores permitirá aos pais adotivos construírem seus lugares e funções diante do filho, o que auxilia nos momentos em que as relações de afeto são ameaçadas, instituindo-se uma nova ordem simbólica na família (Passos, 2005). Uma das situações que fez Juliano se sentir inseguro na sua condição de filho adotivo foi o fato de genitor ter revelado que tentaria retomar a guarda dos filhos.

Marcos - Eu vi o pai José [genitor de Juliano] pontuando que estava correndo atrás para buscar os meninos de volta. Isso deu certo susto, uma vez que voltar poderia implicar também em levar os meninos para o abrigo. Agora nesta noite, ele não dormiu direito, ele acordava à noite, ficava gritando e corria pro meu quarto. Eu acho que ele ficou com medo da situação, medo de retornar.

Diante disto, Juliano demonstra não querer retornar ao convívio com o genitor, pois já perfilhou Marcelo e Marcos como sendo seus pais. Observa-se, assim, que Juliano ao mesmo tempo em que se sente feliz (pelo reconhecimento paterno por parte do genitor), sente-se ameaçado pela possibilidade de voltar a ter a vida que tinha antes da adoção.

Os pais adotivos encontram-se seguros quanto ao lugar que ocupam na família e quanto à obtenção da guarda plena dos filhos em função do pai biológico não dispor de condições econômicas nem psicológicas (por fazer uso abusivo de álcool) para cuidar das crianças, o que favorece a construção de um ambiente familiar seguro e estável. Acrescenta-se ainda o fato de Juliano e João estarem bem adaptados ao novo contexto de relações promovido pelo processo de adoção.

Em relação à falta de condições econômicas do genitor, segundo o art. 23 do Estatuto da Criança e do Adolescente: "A falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder". Por outro lado, o alcoolismo do genitor e o fato de Juliano e João estarem bem adaptados ao novo contexto de relações possibilita a seguridade da guarda para os pais adotivos, baseando-se no Estatuto da Criança e do Adolescente, Art. 19 (Lei nº 8.069, 2005): "Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e excepcionalmente em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambientes livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes".

O juiz que acompanha o processo de adoção de Juliano e João, em alguns dos encontros com as famílias biológicas e adotivas, percebeu que o pai biológico das crianças estava alcoolizado, o que indica que provavelmente perderá o direito ao pátrio poder, justificando, assim, a confiança dos pais adotivos em relação à obtenção da adoção plena.

"Fomos Adotados, Fomos Escolhidos"

O sentido de filiação adotiva produzido pelas crianças entrevistadas possui como significação ser escolhido e amado pelos pais, destacando-se ainda (conforme foi retratado acima) os sentimentos de ambiguidade em relação ao pai biológico, ou seja, ao mesmo tempo em que desejam sua aproximação, temem que ele os retire do convívio com os pais adotivos.

Marcos - "Vocês são nossos filhos biológicos ou do coração?"

Juliano e João [falam ao mesmo tempo] - "Do coração!"

Marcos - "Por quê?"

Juliano - "Porque fomos adotados, fomos escolhidos".

Olhando para essas paternidades e filiação de forma relacional, percebe-se que há a negociação entre pais e filhos no que se refere à adoção afetiva entre eles. Isto pode ser percebido no fato de Juliano (filho mais velho) ter dito aos pais que quando os adotassem legalmente, ele e João (filho mais novo) iriam chamá-los de pai. Marcos e Marcelo afirmam que no começo os filhos ora os chamavam de pai ora de padrinho, e aos poucos a palavra "pai" foi se tornando permanente no discurso das crianças. Além disso, para Marcos o esforço de Juliano em chamá-lo de pai é significado como sendo uma tentativa de constituir a ideia de uma família, diminuindo as chances dele ser devolvido ao abrigo, uma vez que, como diz Élio Braz (Teixeira, 2008), os sujeitos são posicionados discursivamente como pais e como filhos.

"Ser Pai Adotivo é estar Pronto para Amar uma Criança Incondicionalmente"

Verificou-se que o casal envolvido na pesquisa revela a prática da adoção como capaz de oportunizar experiência de um amor incondicional. Eles constroem o sentido de pai como um ser capaz de amar uma criança independente de sua cultura, herança genética ou comportamento social. Cabe ressaltar que esta composição familiar rompe com o sentido sociohistoricamente construído de que apenas as mães são capazes de amar incondicionamente os seus filhos, abrindo espaços para novas construções de sentido em que os homens também são capazes de sentir tamanho sentimento.

Entrevistadora - "Se vocês fossem criar um conceito de pai adotivo, qual seria este conceito?"

Marcos - Olha, eu acho que é um conceito que eu já venho falando há um bom tempo. Eu acho que a primeira coisa, independente de ser hetero ou homo, pai solteiro ou mãe solteira, é que tem que ser visto é que do lado de lá tem um ser humano. Quando nós adotamos, nós queríamos alguém para amar incondicionalmente. A criança adotada precisa de carinho, afeto, respeito porque sofrida ela já foi.

A adoção não pode ser vista como um papel social ou como uma qualidade. Ser pai adotivo é está pronto para amar uma criança incondicionalmente independentemente da forma que ela é, da cultura, dos problemas que ela vai trazer de carga genética, de comportamento.

A partir deste discurso pode-se ter uma ideia do lugar simbólico que as crianças são chamadas a ocupar na família (Passos, 2005; Teixeira, 2008). O lugar de sujeito ativo que pode seguir caminhos próprios, pois sempre terá a garantia do amor dos pais. Estes pais não escolheram um momento específico para revelar a condição homoafetiva, acreditam que a verdade pode ser dita aos poucos, de acordo com as perguntas que são feitas pelos filhos, bem como, levando em consideração a idade e capacidade de compreensão destes.

"A Orientação Sexual não Forma Caráter. A Gente tem Dignidade, Respeito, Responsabilidade"

No que se refere ao conteúdo de contraposição encontrado nos enunciados desta família, observou-se que Marcos, ao falar sobre o preconceito social sofrido pela condição homossexual, apresenta um discurso contraditório. No início do seu discurso ele relata que não deve satisfação para a sociedade em razão de sua família ser homoparental. No entanto, em um momento posterior, afirma tentar não interferir nas práticas sexuais futuras dos filhos para não dar margem ao julgamento social.

Marcos - Essa questão do preconceito humm. Eu sou uma pessoa que não sou muito de dever satisfação para a sociedade, então, as pessoas que estão próximas a nós são as pessoas que estão próximas da gente. Até mesmo porque a orientação sexual de ninguém não forma caráter. A gente tem dignidade, respeito, responsabilidade. Quando a gente tá assistindo televisão com a nossa família há toda uma brincadeira. A gente fala, mostra, diz que a mulher é bonita. E quando acontece o contrário, quando um homem aparece a gente nem fala que o homem é bonito, é isso ou aquilo para não existir a fala de que a gente interferiu numa decisão deles. Os meninos brincam, têm namoradinhas na escola e a gente brinca com eles.

Encontra-se na fala de Marcos uma referência às normas sociais. Estas normas são mensagens comunicativas que se decompõem e recompõem constantemente. Mesmo assim, alguns significados são relativamente estáveis. Estando tais normas estabelecidas, os membros do grupo podem transformá-las em seus próprios padrões internos de avaliação que vêm a regular o próprio sistema psicológico da pessoa (Valsiner, 2012). O fato do casal elogiar às mulheres bonitas e não elogiar os homens na frente dos filhos pode estar relacionado com a norma social corrente "são atitudes esperadas para o comportamento do homem que elogiem às mulheres". Neste contexto, o elogio aos homens pode ser significado como um desvio à norma corrente.

Apesar de Marcos se esforçar para demonstrar que não dá importância ao que a sociedade pensa sobre a prática adotiva por homossexuais, suas próprias palavras refletem a incorporação de palavras alheias e de normas sociais coconstruídas dentro de um grupo, as quais estabelecem padrões sobre como viver e como avaliar como os outros vivem suas próprias vidas. O sentido de paternagem, no que se refere aos pais entrevistados, é revestido por um compromisso e um cuidado especial dos pais em relação aos filhos, pois existe o receio de um confronto futuro com discursos que enunciem que estes pais, devido a práticas sexuais adotadas, são os responsáveis pela "opção sexual" futura dos filhos (Passos, 2005). Os pais conversam bastante entre si sobre as decisões tomadas por eles, bem como, buscam orientações de profissionais para que cada passo seja dado com segurança.

O indicador do discurso cujo tema é "preconceito social" possui conteúdos de similaridade e complementaridade aglutinados, uma vez que Marcelo e Marcos fazem uma distinção entre o julgamento da sociedade em geral e o julgamento de sua família extensa em relação à prática adotiva. No que se refere à família extensa do casal entrevistado, não houve rejeição por parte dos familiares acerca da adoção, mas Marcelo e Marcos afirmam que havia o receio da família não aceitar os filhos deles pelo fato de já serem maiores (adoção tardia). De acordo com este casal, o discurso da família extensa voltava-se para o fato deles terem pouco tempo de vida conjugal e gostarem de viagens e festas.

Marcos - É as pessoas também falavam isso: - "Vocês têm pouco tempo de relacionamento! Tem certeza que vai adotar com a pessoa certa?" A gente sempre fala isso: "Hoje a gente ta bem, nós não vamos pensar se daqui a dez anos a gente vai ta junto ou não porque se a gente for ficar pensando nisso a gente também não vai tomar iniciativa nenhuma. Então a gente vive o hoje. Entre casais heterossexuais também acontece isso!" Hoje você pode tá bem e de repente surge um problema, então, a nossa intenção é as duas crianças. No início, eu pensei que podia ter um pouco de resistência por parte da família porque são crianças maiores, mas a família toda se reuniu para conhecê-los, numa expectativa enorme.

No que se refere ao apoio dos avós adotivos em relação à prática da adoção, observa-se que eles possuem uma importância significativa para a relação familiar porque inscrevem as crianças adotadas na cadeia das gerações (Hamad, 2002). De modo geral, os avôs constituem a referência do passado imediato das crianças enquanto os pais representam o presente, esta noção de família situada dentro de uma temporalidade contribui para o enriquecimento da identidade da criança na medida em que demonstra a existência de uma raiz à qual ela pertence ou se afilia (Hamad, 2002).

Segundo Marcos, a relação de conjugalidade não oferece a garantia ou certeza de um amor que sobrevive ao tempo e aos acontecimentos inesperados. Apenas a relação entre pais e filhos possui um caráter de amor incondicional e durabilidade, deste modo, os filhos adotivos representam uma possibilidade de transmissão contínua e mútua de afetos. Este constitui o sentido de filiação adotiva para os pais entrevistados.

O modo como os homens vivem, sentem e percebem a relação conjugal, constitui um elemento fundamental para a compreensão das práticas relacionadas com a paternidade, incluindo-se aí o desejo por filhos e o modo como este desejo se insere nos projetos de vida (Passos, 2005). Uma forma de garantir à filiação adotiva o caráter vitalício é através da formalização jurídica (Teixeira, 2008). Marcos diz que a adoção afetiva foi feita paralelamente à legal porque eles não tinham certeza se as crianças iriam ficar com eles, então, diante da dúvida havia uma preocupação em não perfilhar as crianças rapidamente.

Em relação à significação da prática homossexual, para o casal entrevistado, ela não é um segredo, mas ao mesmo tempo não é algo que deve ser dito para todas as pessoas:

Marcos - Eu também não sou de levantar a bandeira. As pessoas da escola que eu acho que precisam saber eu converso naturalmente. Eu nunca cheguei pra ninguém pra dizer: - "Olha vou te contar um segredo"porque pra mim não é segredo.

A família não perde de vista o fato de que convive com uma multiplicidade de pessoas produtoras de sentidos não favoráveis à configuração familiar homoparental de modo que "não falar livremente" sobre a condição homossexual constitui uma maneira de se proteger contra situações preconceituosas (Passos, 2005). É neste contexto que a significação da homoparentalidade se situa para estes pais.

A partir da experiência de parentalidade de Marcos e Marcelo, verifica-se que a paternagem também está implicada na prática de produzir respostas (sentidos) para as dúvidas dos filhos, as quais se relacionam com a intimidade do casal. Os pais entrevistados não demonstraram dificuldade para responder a este tipo de questionamento, mas nenhuma família é tão revolucionária quanta a família homoparental, pois esta rompe com o princípio fundamental para a constituição familiar: a diferenciação sexual (Passos, 2005).

Marcos - Um dia a gente tava falando de namorada e aí eles me perguntaram se eu tinha namorada. Aí eu falei quem é que dorme com o papai, quem é que mora com o papai. Outro dia Juliano me perguntou novamente: - "O que pai Marcelo é seu?" E aí a gente explicou tudo com naturalidade novamente. Eu falei assim: - "Olha a vovó e o vovô são um casal que moram juntos, só que a vovó é mulher e o vovô é homem. Mas aqui em casa vocês vão ter dois homens: o papai Marcos e o papai Marcelo. A gente tem o mesmo estilo de vida deles só que não é um homem e uma mulher, são dois homens". Então, desta maneira a gente vai sanando a fala deles. Tanto é que eles conseguem falar que têm dois pais que buscaram eles no abrigo.

Para Carvalho (2008), as informações que os pais adotivos transmitem para os filhos devem se basear em dados reais, respeitando a idade e a possibilidade de entendimento de cada criança, pois um acúmulo de informações pode produzir ainda mais confusão.

Outro sentido da paternagem encontrado que se articula com o colocado acima, dando a ideia de cadeia de sentidos, refere-se à paternagem como compromisso com a verdade. A busca e o exercício de falar a verdade são praticados pelos pais, os quais se preocupam também em ensinar aos filhos a prática de ações e discursos permeados de sinceridade, ensinando-os a aceitar as diferenças entre práticas sexuais e/ou de conjugalidade existentes.

Este é um valor bastante valorizado nesta família, uma vez que os significados atribuídos culturalmente aos casais homoafetivos são que eles não têm moral e caráter, sendo péssimos exemplos para os filhos (Passos, 2005). Por isso, Marcelo e Marcos procuram orientar os filhos a falar sempre a verdade, não dando espaços para práticas preconceituosas.

"Eles têm Dois Pais e Sempre que for Preciso os Dois Pais Farão o Papel de Mãe"

No que se refere às reações dos colegas de sala de aula de Juliano e João, ao saberem que estes são criados por pais homossexuais, até o momento não houve discursos e ações discriminatórias no contexto escolar. No entanto, a professora de Juliano e João demonstra uma preocupação especial com eles em comemorações anuais, como, por exemplo, nos dia das mães.

Marcelo - No colégio dos meninos, agora no mês de maio, no dia das mães, a professora nos chamou e perguntou como nós iríamos lidar com a situação. Aí eu falei: - "Da mesma forma que a gente lida dentro de casa - naturalmente". Os meninos sabem que eles não têm mãe, mas eles têm dois pais e sempre que for preciso os dois pais farão o papel de mãe.

A paternagem, para estes pais adotivos, é assumir o papel e o posicionamento de pai dentro de casa, mas sempre que necessário eles assumem o papel de mãe, sendo este um dos sentidos produzidos por eles. A partir daí, observa-se que os papéis de pai e mãe são percebidos como sendo complementares, flexíveis e importantes para resguardar o desenvolvimento físico e afetivo dos filhos. Como ressalta Passos (2005, p. 36), a família contemporânea impõe "maior flexibilidade na constituição de posições e funções dos membros do grupo" familiar, rompendo com o modelo tradicional de família em que há hegemonia e fixação prévia dos papéis, tal como significam Marcos e Marcelo ao produzir discurso sobre a partenagem.

Neste estudo de caso, observou-se ainda que as crianças foram se apropriando gradativamente de seus espaços físicos e afetivos, passando a ocupar o lugar de filho. Destaca-se o caráter gradual da vinculação entre os membros da família, o que nos permite pensar que o tempo de vinculação, entre pais e filhos adotivos, não é apenas burocrático e cronológico, mas específico de cada sujeito, pois se fundamenta nas relações produzidas entre as pessoas envolvidas.

 

Considerações Finais

A paternagem (dentre outros sentidos destacados neste artigo) implica em ensinar aos filhos a amarem e aceitarem os pais, independentemente destes serem homossexuais ou não. Por outro lado, os filhos começam a desenvolver o sentido de filiação indagando aos pais sobre as diferenças existentes entre a família deles e as outras famílias. À medida que estas indagações são respondidas pelos pais adotivos são produzidos novos sentidos que prepararão os filhos para enfrentarem o estranhamento social causado pela família homoafetiva.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Sandra Patrícia Ataíde Ferreira
Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educação
Av. da Arquitetura, s/n, 1º andar, sala 126, Cidade Universitária
Recife, PE, Brasil 50740-550
Fone/Fax: (81) 2126-8323
E-mail: fabianapsi@yahoo.com.br e tandaa@terra.com.br

Recebido: 03/05/2013
1ª revisão:16/07/2014
Aceite final: 21/07/2014

 

 

Agradecimentos: Agradeço a professora Sandra Patrícia Ataíde Ferreira pelos incentivos, momentos de discussões, apoio e disponibilidade oferecidos. E ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão de bolsa de auxilio pesquisa, que possibilitou o regime de dedicação exclusiva ao Mestrado.

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