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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.23 no.4 Ribeirão Preto dez. 2015

http://dx.doi.org/10.9788/TP2015.4-18 

ARTIGOS

 

"Não tinha trabalho, mas tinha reciclagem": sentidos do trabalho de catadores de materiais recicláveis

 

"There was no job, but there was recycling": meanings of work of recyclables materials collectors

 

"No había trabajo, pero había reciclaje": sentidos del trabajo de colectores de materiales reciclables

 

 

Natalia Lopes BragaI; Deyseane Maria Araújo LimaII; Regina Heloisa MacielIII

IPrograma de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil
IICentro Universitário Estácio do Ceará, Fortaleza, CE, Brasil Faculdade Mauricio de Nassau, Fortaleza, CE, Brasil
IIIConselho de Ensino, Pesquisa e Extensão e Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza, Fortaleza, CE, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa retrata a luta de trabalhadores que, diante do desemprego, encontraram na catação de materiais recicláveis sua sobrevivência e de seus familiares. A pesquisa buscou compreender os sentidos atribuídos pelos catadores ao trabalho de catador de material reciclável. Para isso, foi realizada uma pesquisa de campo com abordagem qualitativa, utilizando a técnica das "histórias de vida" com a participação de dois catadores. As "histórias de vida" permitem a compreensão dinâmica das relações estabelecidas no passado e no presente, trazendo uma reflexão acerca das experiências pessoais. Para a análise dos dados foi usado o método de "análise de discursos". Os resultados desta pesquisa apontaram diversas dificuldades enfrentadas por estes trabalhadores no dia-a-dia, como as exaustivas horas de trabalho, a insegurança e a instabilidade frente à atividade. Além disso, destaca-se uma relação ambígua de satisfação e sofrimento com a catação, o que revela a existência de sentidos diversos, inclusive contraditórios, atribuídos ao trabalho de catador. É possível concluir que esta atividade manifesta-se como uma forma de resistência frente ao desemprego prolongado e que foi através da informalidade do trabalho que os catadores resgataram suas fontes de renda. Esta pesquisa buscou dar visibilidade aos catadores e apontou a necessidade de se propiciar melhores condições para o exercício da atividade.

Palavras-chave: Catadores de materiais recicláveis, trabalho, sentidos do trabalho.


ABSTRACT

This research portrays the struggle of workers, in face of unemployment, that found in collecting recyclable materials their survival and their families. The research sought to understand the meanings attributed by collectors to their work as recyclable material collector. For this, a field research with qualitative approach was performed, using the technique of "life stories" with the participation of two collectors. The "life stories" technique allows dynamic understanding of the relations established in the past and present, bringing a reflection about personal experiences. For data analysis was used the method of "discourse analysis". The results of this research identified many difficulties faced by these workers on a day-to-day, as the exhausting hours of work, insecurity and instability across the activity. Furthermore, could be observed that there is an ambiguous relationship of satisfaction and suffering with collecting, which reveals the existence of several meanings, including contradictory, assigned to the work of collectors. It's possible to conclude that this activity manifests itself as a form of resistance against prolonged unemployment, and was through the informality of the labor that the collectors rescued their sources of income. This research sought to give visibility to collectors and pointed to the need to provide better conditions for the exercise of the activity.

Keywords: Recyclable material collectors, work, meanings of the work.


RESUMEN

Esta investigación retrata la lucha de trabajadores que, frente al desempleo, encuentran en el acto de recoger materiales reciclables su supervivencia y la de su familia. La investigación buscó comprender los sentidos atribuidos por los colectores al trabajo de colector de material reciclable. Para eso, fue realizada una investigación de campo cualitativa, utilizando la técnica de las "historias de vida" con la participación de dos colectores. Las "historias de vida" permiten la comprensión dinámica de las relaciones establecidas en el pasado y en el presente, y traen una reflexión acerca de las experiencias personales. Para el análisis de los datos fue utilizado el método de "análisis de discursos". Los resultados de esta investigación apuntan a varias dificultades a las que se enfrentan estos trabajadores en el día a día, como las exhaustivas horas de trabajo, la inseguridad y la inestabilidad que conlleva la actividad. Además, se destaca una relación ambigua de satisfacción y sufrimiento con el acto de recoger desperdicios, lo que revela la existencia de sentidos diversos, incluso contradictorios, atribuidos al trabajo de colector. Es posible concluir que esta actividad se manifiesta como una manera de resistir frente al desempleo prolongado y fue, a través de la informalidad del trabajo, donde los colectores encontraron sus fuentes de renta. Esta investigación buscó dar visibilidad a los colectores y apuntó la necesidad de propiciar mejores condiciones para el ejercicio de la actividad.

Palabras clave: Colectores de materiales reciclables, trabajo, sentidos del trabajo.


 

 

As alterações ocorridas no mundo do trabalho trouxeram para a cena contemporânea um aumento nas taxas de desemprego, embora o fenômeno não se expresse da mesma forma em todos os contextos econômicos. Esta foi uma das consequências da expansão ilimitada de tecnologias e maquinários que acarretaram a diminuição do trabalho humano, substituído pelo das máquinas (Antunes, 2005). O processo gerou diminuição dos empregos na indústria, levando uma grande quantidade de trabalhadores para os serviços, exatamente como já previa Braverman (1987). No entanto, a precarização das relações de trabalho e de outros aspectos tais como as condições e organização do trabalho ocorreu tanto nos empregos que restaram na indústria quanto nos dos serviços.

O trabalho pode ser definido como uma atividade com objetivo (Braverman, 1987; Morin, 2001), muitas vezes associado a uma troca de natureza econômica. Quanto ao emprego, este seria um conjunto de atividades remuneradas em um sistema organizado economicamente. O emprego implica necessariamente a noção de salário, enquanto o trabalho não. O salário propiciado pelo emprego permite prover as necessidades básicas e fornece um sentimento de segurança (Morin, 2001).

Para Antunes (1995), o trabalho continua central na vida das pessoas e a atual conjuntura demonstra não o fim do trabalho mas a sua nova conformação. Trata-se de uma classe trabalhadora mais heterogênea, mais fragmentada, mais precarizada. Na contemporaneidade, o trabalho tornou-se ainda mais precarizado, por meio de formas de subemprego e desemprego, intensificando os níveis de exploração daqueles que trabalham (Antunes & Alves, 2004).

Tolfo e Piccinini (2007, p. 39) discutem especificamente as diferenças entre sentidos e significados do trabalho, pontuando que "um trabalho que tem sentido é importante, útil e legítimo para aquele que o realiza". Significado (a representação e o valor dado ao trabalho), orientação (a disposição guia para o trabalho) e coerência (a harmonia esperada ao realizar o trabalho) são os três componentes do sentido do trabalho. O trabalho permite aos sujeitos exercerem suas competências, resolverem problemas, atualizar seu potencial, aumentar sua autonomia e serem reconhecidos como importantes agentes sociais. O prazer e o sentimento de realização obtidos na execução de tarefas dão sentido ao trabalho (Morin, 2001). Para que os homens tenham uma vida permeada de sentido é importante que eles encontrem no mundo do trabalho um momento de realização. Uma vida sem sentido no mundo do trabalho é incompatível com uma vida dotada de sentido fora do trabalho (Antunes, 2000).

Sendo assim, a inserção plena no meio social está condicionada à inserção dos sujeitos no mercado de trabalho. Medeiros e Macedo (2007) afirmam que o trabalho ocupa um lugar central na vida do homem, pois além de ser uma fonte de sustento pessoal e familiar, também é uma forma de integração social que possibilita o relacionamento entre as pessoas e o sentimento de pertença a um grupo. O trabalho é um espaço de construção de sentido e de conquista da identidade no processo de historização do sujeito.

Por isso, o trabalho além de ser um meio de sustento, também gera reconhecimento e valorização social, confere ao homem uma imagem de honestidade e dignidade. É uma referência não só econômica, mas também psicológica, cultural e simbólica, fato que se comprova pelas reações daqueles que não têm trabalho e vivem o flagelo do desemprego (Antunes, 2005).

Paugam (2001) sugere o termo desqualificação social, caracterizado pelo movimento de expulsão gradativa para fora do mercado de trabalho de camadas cada vez mais numerosas da população, formando uma população excedente, que não encontra lugar no mercado formal de trabalho. O enfraquecimento e a ruptura dos vínculos sociais constituem uma dimensão essencial desse processo, enfraquecendo também as redes de apoio do sujeito.

A desqualificação social é um agravante que leva os sujeitos a situações precárias de vida, sendo também caracterizada como um processo de exclusão. Uma vez desqualificados e rejeitados do mercado formal de trabalho, os sujeitos tendem a terem todas as esferas de sua vida prejudicadas (moradia, alimentação, acesso à educação e saúde; Paugam, 2001), o que, a longo, prazo agrava intensamente sua situação de excluído e dificulta seu retorno ao mercado formal de trabalho.

Deste modo, muitas pessoas distanciaram-se das formas tradicionais de remuneração e, diante da necessidade, buscaram formas alternativas de sustento. Neste contexto, a rua das grandes cidades virou espaço não só de moradia, como também um novo espaço de trabalho para muitos desempregados (Bosi, 2008).

Tendo em vista o desemprego e a difícil inserção no mercado formal de trabalho, os catadores ao catarem e separarem materiais recicláveis encontraram uma forma de sobrevivência, garantindo renda para o seu sustento. Uma vez que é característica dessa atividade a ausência de exigências de aptidões para seu ingresso, muitos excluídos descobriram aí uma maneira de inclusão social. Esta seria uma inclusão ilusória, pois a sociedade inclui para manter a exclusão, ou seja, ela inclui o indivíduo de forma a manter a ordem de sua condição social desigual (Sawaia, 2001). O trabalhador é incluído na sociedade, mas não obtém com os demais sujeitos sociais uma relação de equidade e nem possui seus direitos e suas necessidades assistidas.

Segundo Medeiros e Macedo (2007), o catador de materiais recicláveis é incluído socialmente por ter um trabalho, mas é excluído da sociedade pelo tipo de atividade que realiza, sendo esta precária, realizada em condições inadequadas, sem reconhecimento social e com ausência total de garantias trabalhistas.

Porto, Junca, Gonçalves e Filhote (2004, p. 1509) pontuam que "meio de sobrevivência, possibilidade de conquistar uma independência, forma de distração e de fazer amigos, modo de se sentir útil, único jeito de conseguir as coisas honestamente", foram algumas das respostas dadas por trabalhadores da reciclagem ao serem perguntados pelo sentido do trabalho em suas vidas. O desempenho de funções pouco valorizadas culturalmente estigmatiza o homem (Maciel, 2004), o próprio nome de "catador" já é gerador de estigmas (Feitosa, 2011).

A informalidade da ocupação dos catadores os deixa em condições bastante vulneráveis, sem reconhecimento da sociedade e não usufruindo de direitos trabalhistas e previdenciários. Segundo Cavalcante e Franco (2007), isto corrobora a afirmação destes trabalhadores de que esta é uma atividade dura e humilhante, permanecendo ali somente por não terem outra opção de trabalho que condiga com sua realidade social e econômica.

O crescente número de catadores de materiais recicláveis facilmente observados dia e noite pelas ruas da cidade de Fortaleza, chama a atenção pela precariedade do trabalho e pelas mínimas condições de segurança e salubridade.

Considerando o trabalho uma forma de inserção social e diante da problemática levantada, o objetivo deste estudo foi conhecer os sentidos atribuídos ao trabalho de catador de materiais recicláveis, na percepção dos próprios catadores.

 

Método

Para a realização deste trabalho, foi realizada uma pesquisa de campo, de caráter qualitativo. A pesquisa qualitativa foi escolhida, na medida em que se buscou pesquisar os sentidos dos catadores de materiais recicláveis frente à atividade que realizam.

Os sujeitos da pesquisa foram dois catadores de materiais recicláveis que trabalham nas ruas de Fortaleza, escolhidos sem distinção de idade ou sexo, sendo os participantes um homem de 49 anos, seu João1, e uma mulher de 57 anos, Dona Luiza. A pesquisa de campo realizou-se no local de trabalho dos catadores, ou seja a rua.

Para a coleta de dados, foi utilizado o método histórias de vida, que, como o nome descreve,

busca a visão da pessoa acerca das suas experiências subjetivas de certas situações. Estas situações estão inseridas em algum período de tempo de interesse ou se referem a algum evento ou série de eventos que possam ter tido algum efeito sobre o respondente. (Moreira, 2002, p. 55)

Para o pesquisador, fica a possibilidade de compreender as experiências que constituem não somente uma história, mas o cruzamento das várias histórias. No decorrer das narrativas, além de penetrar nas histórias de vida e compreender a dinâmica das relações estabelecidas no passado e no presente.

A análise de dados utilizou o método da análise de discurso, que é uma análise da fala dentro de um contexto, ajudando a compreender como as pessoas pensam e agem no mundo concreto. Na visão de Caregnato e Mutti (2006, p. 680) "tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em diversas formas de produção, que podem ser verbais e não verbais", não tem a intenção de dizer o que é certo ou errado, pois não faz julgamentos.

Obedecendo aos padrões éticos, esta pesquisa foi executada somente após sua devida aprovação pelo Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. Antes do início da coleta de dados, os catadores convidados a participar deste estudo foram contatados e esclarecidos sobre os objetivos e condições de realização do trabalho e, uma vez tendo aceitado participar, assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Os Entrevistados

Dona Luiza tem cinquenta e sete anos de idade, natural de Fortaleza, foi adotada e nun-ca conheceu sua mãe biológica, cursou o Ensino Médio, fez curso de datilografia, trabalhou no Hospital Psiquiatra de Messejana, foi gerente de boate e há trezes anos trabalha recolhendo materiais recicláveis. Começou este trabalho por sugestão de seus filhos, "eles ficaram me chamando, me chamando, aí eu fui, eu tenho que ir porque eu não arranjei trabalho, não vou deixar meus filhos fazer coisa errada" (Dona Luiza).

Seu João é natural de Barreira, cidade do interior do Ceará, veio para Fortaleza na busca do sonho de uma vida melhor. Tem quarenta e nove anos de idade e disse nunca ter estudado. Quando, em 1999, não conseguiu mais trabalho no setor da construção civil e viu-se desempregado, começou a trabalhar como catador. Segundo ele,

antes eu trabalhava na construção, aí foi que eu desempreguei e não arrumei mais trabalho, aí pronto... trabalhei muito nesses prédios... era um serviço que uma hora dessas [9h da noite] eu já tava em casa há muito tempo, mas não arrumei mais nada, o que que eu podia fazer ne... roubar nada de ninguém eu não ia ne, aí eu peguei e me meti nesse serviço aí. (Seu João)

Ele mora com a mulher e um filho no Bairro Santa Maria, é com o dinheiro arrecadado na ca-tação que sustenta sua família.

Perto de completar cinquenta anos de idade, seu João preocupa-se muito com seu futuro, pois reconhece que já está um pouco velho e mostra-se temoroso por afirmar que os trabalhadores da reciclagem não têm direito a nada.

Dona Luiza e seu João têm suas histórias marcadas por dificuldades, reconhecem que seus corpos já não suportam mais o fardo de carregar a carroça com o material reciclável e sonham em ter direito a uma aposentadoria. Além disso, têm em comum o fato do trabalho como catador não ter sido bem uma escolha, mas sim a única alternativa de conseguir renda para sustentar a família. Isto corrobora a afirmação de Antunes (2005), de que pessoas com 40 anos ou mais, quando desempregados, dificilmente conseguirão um novo emprego. Ambos tiveram outras ocupações, mas quando viram-se desempregados e sem conseguir outro trabalho, a reciclagem foi a opção encontrada para sobreviver. Deste modo, buscou-se compreender que sentidos o trabalho como catador de material reciclável tem para estes sujeitos.

 

Os Sentidos Atribuídos ao Trabalho de Catador

"Não tinha trabalho, mas tinha reciclagem" (Dona Luiza).

A catação de materiais recicláveis é, segundo os relatos dos pesquisados, uma atividade bastante exaustiva, que exige intenso esforço físico e disposição. Como agravante há o sol forte e a fome que acompanham os catadores durante muitas jornadas.

Dona Luiza começou o trabalho como catadora por sugestão de seus filhos. No começo não gostou da ideia, mas como não conseguia oportunidades em outros empregos, a necessidade falou mais alto. Estava desempregada, tinha sete filhos para criar e não recebia nenhuma ajuda, por isso acabou iniciando este trabalho. Segundo suas palavras,

não consegui arrumar emprego. Aí o que foi que aconteceu, os meninos: "mãe, bora catar latinha!", "catar latinha? Eu não!". Aí eles começaram a dar uma voltinha por ali, aí eles chegavam com uma sacolinha com um bocado de latinha, com garrafinha de refrigerante, aí a gente ia lá na reciclagem e dava um real, dois real, na época, era, olha treze anos atrás, esse dinheiro dava pra fazer o almoço, eu fazia o almoço, a merenda e no outro dia a mesma coisa. (Dona Luiza)

É possível perceber a resistência de Dona Luiza para iniciar o trabalho como catadora. Porém, frente à insistência de seus filhos e a ausência de outros meios de renda, a catação inseriu-se aos poucos em sua vida como fonte de sustento para sua família. Deste modo, o trabalho como catadora aparece para Dona Luiza como a única solução encontrada diante do desemprego prolongado. Ao serem considerados desqualificados para o mercado de trabalho formal, muitas pessoas acabam por tornarem-se aptas à catação, uma vez que a estruturação da indústria da reciclagem necessita de trabalhadores expropriados do mercado formal, cuja mão-de-obra é mais barata. Deste modo, o mesmo processo histórico que os afasta do mercado, os "qualifica" para a catação de recicláveis (Bosi, 2008).

Segundo Sousa e Mendes (2006), embora muitos catadores não percebam o reconhecimento da catação como profissão, fazem questão de defendê-la, utilizando expressões como "trabalho digno". Dona Luiza diz "tenho muito orgulho do meu trabalho, vou feliz da vida", isto demonstra um sentido positivo de seu trabalho, pois para que um trabalho tenha sentido é importante que ele tenha valor aos olhos de quem o realiza (Morin, 2001). Apesar disso, ela reconhece que este é um trabalho pesado e se diz muito cansada. Há um ano, segundo suas palavras "vai fazer um ano que eu ando doente, eu tive um esgotamento físico muito forte, quase que eu morria, fiquei bem magrinha". Ela diz:

agora eu vivo cansada, porque eu não páro, quando eu chego em casa eu tomo banho, troco de roupa, aí eu vou... se tu for lá em casa agora tu fica com juízo perturbado ... Aí eu fico estressada, perturbada do meu juízo. Ai Meu Deus, tô tão cansada dessa vida, cansada dessa vida, por causa que eu tô sozinha agora, de primeiro um me ajudava em uma coisa, outra ajudava noutra, eu tenho que dar nos couros. Eu com 57 anos com um bicho de papelão bem pesado aqui, com medo de cair... é horrível, não queira imaginar o sufoco que tá lá, um bocado de coisa! (Dona Luiza)

Os altos e baixos são intensos em sua fala, demonstrando sentidos variados relacionados ao seu trabalho. Muitas vezes sua rotina e sua realidade provocam-lhe afetos tristes, mas constantemente ela procura superá-los e para isso faz uso da negação. Cavalcante e Franco (2007) também detectaram, em sua pesquisa com catadores de materiais recicláveis em Fortaleza, a utilização de estratégias defensivas frente ao seu trabalho. As estratégias mais comuns foram a minimização, negação, dissimulação e compensação dos danos que já sofreram.

Sobre seu trabalho, Dona Luiza afirma que "pior seria se eu tivesse parada ou se tivesse fazendo alguma coisa errada". A atividade de catador faz do excluído um trabalhador inserido no mundo do trabalho e isto o diferencia de um favelado ou vadio (Medeiros & Macedo, 2007), pois "a catação, por mais penosa que seja, parece permitir a esses indivíduos se assumirem como trabalhadores, mesmo reconhecendo os estereótipos negativos que lhes são atribuídos" (Matos, Maia, & Maciel, 2012, p. 244).

Apesar de se dizer feliz com seu trabalho, Dona Luiza reconhece que além das dificuldades físicas de realizá-lo, ele também tem outras desvantagens:

eu só ganho se eu vender meus lixo, se eu tiver muito lixo, eu ganho mais um pouquinho... pra mim ganhar trezentos reais eu tenho que andar muito, tenho que trabalhar muito, muito, muito, até umas onze horas da noite, tem dia que eu tô toda quebrada, tem dia que eu não consigo dormir de toda doída e sem remédios. (Dona Luiza)

Seu João também ressaltou as dificuldades do trabalho como catador e, assim como dona Luiza, apontou a questão de só ter dinheiro no dia que trabalha,

só tem a desvantagem que o cara não tem direito a nada né, a gente pega as coisas, vende as coisas com a carroça, mas não tem direito a nada não... se a pessoa sair, não tem direito a nada, nada, nada! Só o dinheiro que ganhar ... a ruindade é só isso aí mesmo, porque a pessoa não tem direito a nada, a gente é avulso, trabalha e é o que ganha... se a pessoa ganhar mil reais, é seu, agora se ganhar dois real, pronto, fica nesses dois real, se ganhar cinquenta, dez, vinte, fica naquele dinheiro ali, tá entendendo?! (Seu João)

"Férias, décimo terceiro, aposentadoria, remuneração quando doente" - estes são benefícios que eles desconhecem. Seu João reconhece isso em sua fala:

é bom, a gente trabalha, mas só é pesado né, a gente não tem direito a nada aí né, é avulso, não é carteira, não tem direito a nada... se ficar doente, não ganha nada... se não trabalhar não ganha, porque o cara do depósito não vai dar dinheiro né, as vezes ele ajuda dá alguma coisa, mas não pode dar pra todo mundo né... a gente vai lá," rapaz, hoje eu tô doente", aí ele dá uma ajudinha. É só na misericórdia de Deus mesmo, porque se a gente adoecer e não aguentar trabalhar, morre de fome. (Seu João)

É possível perceber na fala dos entrevistados o pesar pelas exaustivas condições de trabalho e a instabilidade de renda, que acarreta um sentimento de insegurança constante. Para Lima, Bomfim e Pascual (2009, p. 238), "deve-se ressaltar a questão do sofrimento presente nas injustiças sociais, na opressão, na exploração e no não reconhecimento dos seus direitos".

Para seu João seu trabalho "é muito pesado né, nós trabalha a noite, o dia todinho no meio do mundo, perigoso né... mas graças a Deus nunca aconteceu nada comigo não". Sua rotina de trabalho é bem pesada, trabalha às segundas, quartas e sextas-feiras, com uma jornada de mais de vinte e quatro horas, saindo de casa em um dia e só regressando no seguinte. Ele diz:

as vezes eu saio dez horas, as vezes nove horas da manhã e quando eu vou embora é onze horas da noite já. Aí seis horas [da manhã] eles chegam [no depósito] e a gente entrega as coisas. Aí eu não durmo não, pego minhas coisas aqui e vou embora, onze horas já é a hora que o carro [do lixo] já termina né, quando é onze e meia por aí o carro já tá terminando de recolher o lixo todinho aqui da Aldeota, quando ele tá terminando, as vezes eu nem pego tudo, aí eu saio mais o Dedé [outro catador]. Aí a gente fica lá no restaurante, por lá, até umas horas, até ir deixar as coisas no depósito. E depois vou pra casa, as vezes já é umas dez horas [da manhã]. (Seu João)

Segundo Sousa e Mendes (2006), a flexibilidade dos dias e horários de trabalho dos catadores gera um efeito perverso, fazendo com que muitas vezes se exponham a cargas de trabalho longas e extenuantes.

Para os dois participantes da pesquisa, o trabalho como catador foi a alternativa encontrada frente ao desemprego prolongado. Feitosa (2011) ressalta a não identificação com a atividade de catador ou até mesmo o não reconhecimento desta como profissão pelos próprios cata-dores. Segundo as palavras de dona Luiza "não tinha trabalho, mas tinha reciclagem". Esta fala demonstra um pouco do sentido atribuído à reciclagem, não reconhecendo-o como um trabalho como os outros, mas mais como um exercício que gera renda.

Os dois entrevistados demonstraram seu pesar pelo trabalho de catador não ser reconhecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) ao ponto de terem seus direitos trabalhistas garantidos. Apesar disso, desde 2002, o trabalho do catador de material reciclável é reconhecido pela Comissão Brasileira de Ocupações (CBO) e os catadores são definidos, segundo o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (2014), como pessoas que "catam, selecionam e vendem materiais recicláveis como papel, papelão e vidro, bem como materiais ferrosos e não ferrosos e outros materiais reaproveitáveis", o trabalho é de livre acesso, sem exigência de escolaridade ou formação profissional.

Apesar da inclusão dos catadores na CBO ser um avanço e uma conquista na luta por melhores condições de trabalho e reconhecimento, esta inclusão não representou de fato mudanças significativas para os catadores, pois as longas jornadas de trabalho, a ausência de direitos e a baixa remuneração permanecem, sobretudo para aqueles catadores desvinculados de cooperativas e associações, como é o caso de Dona Luiza e seu João.

Assim como apontado por Medeiros e Macedo (2007), nesta pesquisa também percebe-se que o trabalho de catador não apresenta um único sentido. São muitas as representações que este trabalho traz para os catadores, pois ao mesmo tempo que estes sujeitos conseguem inserirem-se no mundo do trabalho através da catação, são muitas vezes excluídos e estigmatizados pela sociedade pelo tipo de trabalho que exercem. Alem disso, existe uma relação ambígua de orgulho e humilhação, pois têm orgulho de estarem trabalhando honestamente e conseguindo renda para sustentar a família, mas há um sentimento de humilhação por coletar aquilo que é desprezado pela sociedade (o lixo) e por exercer uma atividade extenuante, permeada por inseguranças.

Para que o trabalho de catador seja valorizado e respeitado é fundamental que seja atrelado a ele significados positivos, sendo preciso o reconhecimento deste como um emprego digno e merecedor de direitos trabalhistas.

 

Considerações Finais

Diante do exposto, pode-se concluir que, para os entrevistados, a catação de materiais recicláveis apareceu como uma oportunidade de trabalho, manifestando uma forma de resistência frente ao desemprego prolongado e a necessária luta pela sobrevivência. Foi através da informalidade que esses sujeitos resgataram suas fontes de renda.

O trabalho com a catação apresentou diversos sentidos, muitas vezes ambíguos. Os discursos dos entrevistados ora ressaltavam as bonanças de ser catador, ora ressaltavam as dificuldades impostas pela atividade, alternando discursos de satisfação e sofrimento. No geral, porém, destacaram-se os sentidos negativos, referentes aos incômodos físicos, à instabilidade, às extenuantes horas de trabalho e, sobretudo, à ausência de direitos trabalhistas para os catadores.

Esta pesquisa sobre os sentidos do trabalho de catadores de materiais recicláveis de Fortaleza propiciou respostas às muitas perguntas colocadas no objetivo, mas também abriu um leque de dúvidas, questionamentos e indagações sobre as questões sociais desses sujeitos que estão inseridos em nossa vida urbana, mas que não usufruem de muitos direitos legais estabelecidos por nossa sociedade. Segundo Gonçalves (2005, p. 18), "nas ruas, os catadores de lixo constroem suas histórias, lutam contra a precariedade econômica e perambulam selecionando as sobras da sociedade consumista".

A realização desta pesquisa buscou dar visibilidade às angústias dos catadores, chamando atenção para as dificuldades impostas por essa atividade. Ressaltou o valor de seus trabalhos e as dificuldades de sua vida. Aponta-se a necessidade de propiciar a estes sujeitos melhores condições de trabalho, maior acesso a bens, garantia e exercício de seus direitos e voz. O caminho árduo dos catadores de materiais recicláveis segue e, infelizmente, como diz Vera Telles (2006) a pobreza provoca compaixão e não indignação frente às injustiças.

 

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Endereço para correspondência:
Natalia Lopes Braga
Rua Padre Valdevino, 2527, Apto. 102
Fortaleza, CE, Brasil 60135-041
E-mail: nataliabraga1@hotmail.com

Recebido: 22/05/2014
1ª revisão: 21/10/2014
Aceite final: 11/12/2014

 

 

1 Foram utilizados nomes fictícios para os entrevistados.

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