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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.26 Rio de Jeneiro jun. 2012

 

Artigos

A violência do/no corpo excessivo dos transtornos alimentares

 

The violence of / in the eating disorders' body

 

 

Dirce de Sá Freire*; Bárbara Costa C. Andrada**

Círculo Psicananlítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A crescente proliferação dos transtornos alimentares é indicativa de um modo de subjetivação muito típico da contemporaneidade. Tais manifestações podem ser compreendidas como efeito de uma violência subjetiva que imprime marcas de um excesso contra o qual o sujeito não encontra recursos simbólicos suficientes para atravessá-las, deixando o registro dessas dificuldades nos corpos anoréxicos, bulímicos ou obesos. Os transtornos alimentares serão analisados enquanto uma possível "relação de descontinuidade" na formação da subjetividade, revelando um equilíbrio tênue entre excesso e limite.

Palavras-chaves: Transtornos alimentares, obesidade, anorexia nervosa, bulimia nervosa, "psicanálise do sensível".


Abstract

The increasing proliferation of eating disorders is indicative of a very typical way of contemporary subjectivity. Such manifestations can be understood as an effect of subjective violence that imprints marks of an excess against which the subject cannot find enough symbolic resources to get through them, leaving the record of these difficulties in anorexic, bulimic or obese bodies. Eating disorders will be examined as a possible "relationship of discontinuity" in the formation of subjectivity, revealing a feeble balance between excess and limit.

Key-words: Eating disorders, obesity, anorexia nervosa, bulimia nervosa, "psychoanalysis of the sensible".


 

 

A dificuldade de simbolização

 

Uma das marcas características da contemporaneidade, no que diz respeito aos processos de subjetivação atuais, é a sua consequência em termos de corporificação do mal-estar psíquico, que surge sob a forma de novas modalidades de sofrimento ou, como denomina Julia Kristeva, as novas doenças da alma. O tipo "clássico" de padecimento neurótico vem perdendo terreno para a proliferativa categoria dos "novos sintomas" - incluídos aí os transtornos alimentares - que emergem como patologias do ato. Nestes casos, o mal-estar aparece na forma de uma marca muda impressa no corpo, testemunha de um precário investimento libidinal nos primórdios da vida psíquica. O corpo funciona como uma expressão da dificuldade daquele que sofre de algum transtorno alimentar em chegar à palavra, evidenciando sua dificuldade de simbolização.

Nestas novas modalidades de sofrimento, algo da ordem simbólica não se organiza plenamente nesses indivíduos; o processo de subjetivação, que faz o percurso da carne à palavra, do corpo ao sentido, transformando sensações viscerais, estímulos proprioceptivos, dor, prazer, traço mnésico em um conjunto de afetos e significados que chamamos de "sujeito", se constrói de modo insólito, resultando em uma forma de subjetividade distinta daquela do "neurótico típico". Não se trata de uma incapacidade de simbolização, mas de uma dificuldade de tradução entre concreto e simbólico. O atravessamento do sujeito pela linguagem não se dá de forma completa, não possibilitando que o desejo se instaure, deixando-o aprisionado no gozo.

Tanto a neurose como a psicose podem servir de "base" estrutural sobre a qual o transtorno alimentar irá se instalar. A ocorrência de um transtorno alimentar em um sujeito de estrutura neurótica, cuja organização se dá em torno do recalcamento, demonstra que esse processo não se cumpriu devidamente, já que o recalque originário seria a intervenção intrapsíquica que assegura a simbolização do real pela linguagem, através da passagem pela castração. Como os transtornos alimentares são da ordem das patologias narcísicas, com o agravante de terem como locus privilegiado de manifestação o corpo, esse "intrapsíquico" não assume, de fato, a função anteriormente ocupada pelo corpo, ficando então como um "peri-psíquico". Nestes casos, o processo de simbolização ocorre de maneira insuficiente e deixa "descoberto" um foco corporal que permanece não representado pelo sujeito. A fragilidade da simbolização é denunciada pelo comparecimento corporal dos sintomas envolvidos nos transtornos alimentares - índice de que a cas tração se deu de maneira parcial. No caso da ocorrência de transtorno alimentar "aderido" a uma estrutura de base psicótica, a dificuldade na simbolização é maior que em uma estrutura neurótica, já que sua organização psíquica se dá a partir da foraclusão, que se traduz, na rejeição da metáfora paterna e, consequentemente, na não entrada no simbólico. Esse processo aponta na direção de uma grande dificuldade com o limite, campo fértil para instalação dos transtornos alimentares. Nestes casos, os sintomas apresentados são muito mais gritantes: o pensamento se organiza de modo delirante e a vivência corporal pode ser marcada por alucinações. A dificuldade de simbolização não deve ser compreendida fora da capacidade de cada uma das três estruturas (psicose, perversão e neurose). Também é preciso considerar os níveis de desenvolvimento psicomotor, cognitivo e social do sujeito, inserido em seu contexto cultural.1

Como uma característica geral da dinâmica psíquica presente nos transtornos alimentares, há o atrelamento do funcionamento psíquico às marcas necessariamente corporais que passam a operar como continente, num esboço de limite que se mostra sempre precário e que não permite ao sujeito fazer frente ao excesso. A continência do psiquismo, fortemente dependente do corpo, cria uma relação de insuficiência entre limite e excesso representada, por exemplo, pelo funcionamento compulsivo ou pelo "motor" do gozo mortífero. Os sintomas corporais falam pelo sujeito, espelhando sua necessidade, por vezes, de se utilizar dos desconfortos corporais para se sentir vivo. A dor física - ou outro excesso de sensação somática, como a fome ou a voracidade - lhe possibilita um reconhecimento enquanto pessoa. Não podemos esquecer que suas angústias lhe concedem um lugar no mundo que, de outra forma, ele, muitas vezes, não saberia ocupar. Para se sentir vivo ele "come demais" ou "não-come demais". Por não possuir os elementos necessários para plena constituição do ego corporal, não consegue desenvolver um ego psíquico suficientemente forte para aceitar os limites que a boa saúde exige. Desse jeito, lança mão da dor como forma de mostrar ao outro (que pode já não ser, necessariamente, a mãe…) ou a si próprio (porque não aprendeu com a mãe e/ou cuidador a detectar suas necessidades) que está vivo. Dessa forma, será pelo excesso que seu corpo fala e se faz visível, numa "atuação" somática de um mecanismo compensatório para a ausência de representação tributária da dificuldade de simbolizar. O corpo fala (come, engorda, vomita, purga e jejua) quando não encontra outra forma de expressão pela linguagem!

Assim sendo, expressar pela via do corpo, marcar no soma aquilo que psiquicamente não se foi capaz de construir, é a forma encontrada por portadores de transtornos alimentares de comparecer enquanto sujeitos. Trata-se de um modo de subjetivação quase direto, com uma precariedade simbólica originária, e que por isso, só permite contar a própria história e atravessar os conflitos sob a forma de marcas no corpo. Estas marcas são todas carregadas de um excesso que o corpo não consegue significar e, por esta razão, podem até aparecer sob a forma de dor, muitas vezes autoinfligida, quando o sujeito precisa da marca ou da dor física para se assegurar de sua existência. Em função de seus frágeis recursos simbólicos, sua fala torna-se insuficiente, e o corpo funciona como metáfora para o sujeito emergir. Se o sujeito não fala o corpo fala pelo sujeito.

 

Ego corporal e subjetivação

Na origem do psiquismo encontra-se o corpo, como afirmou Freud em 1923. Portanto, quando ele aparece nos novos sintomas como estandarte do sofrimento psíquico, numa tentativa de dar conta daquilo que ficou "des-simbolizado", é preciso que se "olhe sensilvelmente" para a história do corpo e para o modo como o psiquismo dele emergiu no processo de subjetivação, como preconiza a Psicanálise do Sensível proposta por Ivanise Fontes.2

A direção apontada por Freud em sua afirmação de que "o ego é antes de tudo um ego corporal", derivado de sensações da superfície do corpo e sendo uma projeção mental deste, nos mostra a importância da pele, nossa superfície, fronteira corpórea, maior órgão anatômico (e porque não dizer, proto-psíquico) que marca o dentro/fora, o eu/não-eu, enfim, o limite. Por ter essa função tão fundamental no processo de subjetivação, é importante considerar a pele, como nos mostra Didier Anzieu, não somente como invólucro, barreira física do corpo, mas também como pele psíquica - eu-pele -, como estrutura que servirá de arcabouço/continência para o limite do eu.

O mundo do bebê é um mundo de sensações - e são as experiências dessas sensações corpóreas que formarão a substância psíquica, conforme aponta Geneviève Haag. A construção do ego corporal se faz por essa aliança, delimitada pelas sensações, entre ambiente (mãe) e corpo (vir-a-ser bebê). O ego corporal é a base sobre a qual o processo de subjetivação vai acontecer, resultando no nascimento de um "ego psíquico" (índice de um psiquismo que dá conta do registro simbólico).

As referências e mapeamento para a construção do ego corporal dependem das sensações de contato entre duas superfícies: de um lado, o psiquismo e o corpo da mãe, do outro, o corpo do bebê. São sensações vivenciadas pela criança tactilmente e em caráter fusional: toques carinhosos, o olhar que dá retorno, a voz afetuosa, a sensação de continuidade e o calor do colo, enfim, tudo que "toca" e tem função de dobra sensorial com o corpo do bebê, marcando ao mesmo tempo um "espaço" (continente) e um ritmo (ir/vir, dentro/fora), que serão fundamentais para a etapa seguinte (desfusional) ocorrer de modo não catastrófico.

Um investimento insuficiente nesta primeira etapa do desenvolvimento não oferece as garantias necessárias do "ir e vir" da relação mãe-bebê, assim como não assegura qualidade de presença na ausência do objeto amado. A insuficiência de investimento pode não estabelecer a fusionalidade inicial de modo consistente e gerar uma distância física provocadora da percepção precoce de separação, causando no bebê uma tendência à adesividade, numa tentativa do ego corporal fazer frente a essa descontinuidade. Neste caso, restam à criança apenas as sensações emanadas de seu próprio corpo. Para aquele que não foi devidamente investido libidinalmente, as sensações de cheio, vazio, ou de dor de suas próprias vísceras tomarão à frente na tentativa de constituir o ego corporal de modo forçado e sobre bases precárias e desprovidas de referências exteriores. Isso se reflete numa dificuldade futura de experienciar o limite e de fazer frente ao excesso. Desprovido de holding e preso em uma vivência fusional com uma "mãe morta"3, que desinveste o corpo da criança, o bebê é deixado em um grande vazio que está na origem da alternância através do excesso entre transbordamento e esvaziamento interno, tão frequente nos transtornos alimentares.

Estar à vontade na própria pele requer um estado onde os limites do corpo e do psiquismo concordem; porém, nos transtornos alimentares, dificilmente se dá tal situação. Cada um dos três tipos principais de transtornos alimentares em uma constelação própria de manifestações sintomáticas que espelham modos diferentes de simbolização insuficiente. Em comum, trazem no corpo marcas "substitutas" de uma simbolização mais plena:

1) Na anorexia nervosa, a precariedade na subjetivação deflagra um mecanismo de recusa que tem como consequência um retorno da pele aos ossos. O corpo anoréxico é marcado por um emagrecimento infinito, sem limites. Emagrecendo- se até o esqueleto, a anoréxica junta o eu-pele às estruturas mais profundas e permanentes do corpo, àquilo que de mais concreto há no sujeito. O controle da fome e da forma é o recurso encontrado na anorexia para fazer barreira a um excesso do outro. A dificuldade de simbolização faz com que a ação defensiva se desenrole somaticamente, fazendo o corpo recuar cada vez mais para dentro de si. A consistência subjetiva é buscada em um esvaziamento da carne. O que fica para sempre são os ossos, já que uma vez exumado o corpo, resta o esqueleto. Tal manobra "descarnante" é, na anorexia, a marca afirmativa da existência. A anoréxica sofre de um excesso intrusivo de "carne", pois seu corpo é vivido como um "corpo para dois", onde mãe e menina se fundem e se repelem dentro de uma mesma "pele psíquica", que impede a subjetivação de configurar uma mulher. Esse excesso lhe incha a autoimagem e dele ela precisa se livrar: emagrecer, recusar alimento e afeto para desvencilhar- se desse "corpo-mãe-mulher" onde ela não se reconhece.

2) Na obesidade, a pele/limite é ultrapassada por um excesso de carne-corpo, resultante de uma tentativa de capturar o olhar do outro (comer para ser visto) e aplacar uma falta, que marca o corpo na forma de uma "pseudo fome". A equivalência afeto-alimento está marcada diretamente no corpo cuja "fome" e o comer se conjugam com afetos precariamente simbolizados que não encontram saciedade, criando um ciclo que se retro-alimenta. Este excesso vivido no corpo não é contido pelo "eu-pele" que possui contornos frágeis e estabelece limites frouxos, como evidenciam alguns casos, cuja autoimagem é vivida como precária ou desconsiderada, podendo perder a ideia do próprio tamanho.

3) Enquanto isso, a bulímica, que transita no universo da vergonha, também recebe sua marca de excesso, uma vez que o binge e os métodos compensatórios são marcadores desse descontrole, de um corpo onde o sujeito não se sente "bem em sua pele". O excesso, marca da compulsão, é o retrato dos limites vacilantes do corpo na bulimia. O "engorda/emagrece" da bulimia, e também da obesidade, mostra o aprisionamento do corpo bulímico num funcionamento "sanfona": um ritmo de alternância marca através do corpo o que o psiquismo não deu conta de inscrever. Assim, o corpo "se-enche-e-se- -esvazia", numa mostra física da busca pela fronteira/limite corporal. Comendo até se empanturrar, num enchimento completo, a bulimia torna-se uma tentativa de tocar essa "pele psíquica", para, depois, vomitar tudo e esvaziar-se completamente, tentando trazer as "bordas do corpo" (eu-pele, pele psíquica) até seu ponto mais irredutível: os ossos - "vomitar para ficar magrinha".

 

Lipofobia e excesso

A lipofobia é uma marca da cultura no corpo. Como afirma Maria Helena Fernandes, ela é um traço característico da cultura ocidental contemporânea, e não tanto da ordem da psicopatologia. Como um traço cultural, ela atravessa corpos e palavras, se escamoteando em "inocentes" prescrições de regras de bem viver, por vezes legitimada por um discurso normalizador que se ampara na patologização de corpos diferentes, aliada a uma exigência de performance de ideais de beleza cada vez mais afastados das possibilidades da corporeidade humana. A lipofobia é fruto de uma cultura somática narcísica, onde o corpo assume um papel central na subjetividade. Consequentemente, a forma corporal adquire um status de elevado valor social, na medida em que nosso contexto cultural cada vez mais produz normas imediatistas e hedonistas que exigem do sujeito um comparecimento somático massivo sob a forma de uma performance estética fortemente idealizada. Presente na cultura ocidental contemporânea sob a forma de um espectro - expressa em níveis variáveis de opressão subjetiva, que vai de uma singela insatisfação com a própria silhueta, passando por práticas discriminatórias, até atos de violência - a lipofobia assume formas individuais e coletivas, e, no caso específico dos transtornos alimentares, funciona como um estímulo cultural ou um perpetuador e não como fator etiológico. É mister que não há corpo (e, consequentemente, imagem corporal) fora da cultura. O corpo carrega em sua apresentação a marca de uma época. Em nosso tempo, trata-se de um corpo para aparecer e não para ser vivido.4 Perce-be-se, aí, o viés sociocultural da emergência de "novos sintomas" como os transtornos alimentares. Nosso tempo reduz o valor do Eu à pura aparência, onde o "prazer" é instantâneo, descartável e efêmero.

Nos transtornos alimentares, enquanto fenômeno psicopatológico da contemporaneidade, a lipofobia emerge como um "orientador", um norte em torno do qual se organizam as mais variadas manifestações: sintomas, discursos, crenças e comportamentos, que têm como traço comum a tentativa de se desvencilhar de tudo que é excessivo: a carne ("flesh", taxada de "banha"; a gordura que dá curvas e contornos ao corpo e marca na anatomia o que é carnal e sexual perde seu estatuto erótico e se encontra reduzida a puro dejeto, algo que deve ser descartado), o peso (o "peso das responsabilidades da vida", embutido na ideia de crescer, de assumir um lugar "adulto", de ocupar um espaço e tornar-se visível aos olhos do outro) e o calor do corpo (afeto, aconchego e acolhimento a si e ao outro).

Apesar de estar marcadamente presente no discurso da contemporaneidade, o meio de expressão privilegiado da lipofobia é o corpo: ela surge como marca corporal nos ossos aparentes da anoréxica, no pensamento mágico subjacente aos vômitos e purgações "reparadores" da bulimia e na vergonha do peso – ou peso da vergonha – do estigma do obeso.

Cada um dos diferentes transtornos apresenta particularidades inerentes à maneira como esses indivíduos foram constituídos. Há que se olhar para a história individual de cada um, e para os respectivos processos de subjetivação. Em comum a todos a compulsão, a dificuldade com os limites e a marca do excesso.

Seria, então, o sujeito contemporâneo um sujeito compulsivo? Considerando que a compulsão refere-se a atos aos quais não se sustenta um sujeito capaz de por eles se responsabilizar ou de comparecer simbolicamente, não podemos dizer que esse indivíduo é um sujeito, pois a compulsão é da ordem da falta de controle, como algo que se passa para além do sujeito desejante. Essa figura da contemporaneidade seria, então, um sujeito de outra ordem, cujo corpo comparece em seu lugar. O corpo como modalidade de comparecimento e o gozo como guia de funcionamento nos transtornos alimentares movem uma dinâmica onde a representação é corporal (não chegando a se desdobrar psiquicamente). Tal dinâmica torna afeto e alimento equivalentes, pois estes compartilham da mesma "marca" no ego corporal, que não foi nem cindida nem transcrita para o ego psíquico. Quando se parte do ato é porque não há subjetivação da lei (o que é proibido é inexoravelmente proibido, o que é permitido é uma fatalidade inexorável). É sobre estas bases que se estabelece a lógica do "tudo ou nada" (característica do funcionamento psíquico dos transtornos alimentares).

 

Conclusão

Os transtornos alimentares não são meramente desvios de conduta alimentar; eles mostram o quanto comer e ser são inseparáveis. A recusa da relação com o alimento e via de consequência com o vínculo afetivo com o outro (anorexia nervosa), a relação ambivalente com o alimento e com afeto (bulimia nervosa) ou a incapacidade de separar o alimento, afeto e existência (obesidade), são todas modalidades de existir, ou seja, estão para além das relações entre normal e patológico, sendo formas comprometidas de comparecimento subjetivo. O transtorno alimentar surge como uma marca no corpo, expressando aquilo que não pode ser dito. Corroborando esta máxima, encontramos a frase da poeta Ana Cristina César, "a angústia é a fala entupida". Obesidade, anorexia e bulimia aparecem como formas de angústia, onde a fala não encontra sua possibilidade de expressão.

A contemporaneidade imprime um ritmo cheio que não oferece espaço para o acolhimento e a sustentação da falta - a lógica "tudo ou nada" não permite que haja hiância. Este funcionamento imediatista de satisfação e de tamponamento de uma realidade que causa desconforto faz emergir objetos eleitos que funcionam como anestésicos: o fármaco, as drogas, e, no caso dos transtornos alimentares, a comida ou a total ausência dela. Trata-se de uma lógica do concreto: não falta ao sujeito significante que o defina, mas sim a comida que o preencha, a fome que lhe dê um corpo, a droga que lhe dê o gozo, o neurotransmissor que lhe dê sanidade.

Afirmar que é em função de uma dificuldade de simbolização que o corpo se torna o meio privilegiado de comparecimento subjetivo, não é equiparar essa dificuldade a déficit cognitivo ou dificuldade em articular o pensamento. Sabe-se que muitos portadores de transtornos alimentares são bem articulados, com boa fluência verbal e literária, e boa capacidade intelectual. A dificuldade no processo simbólico desses sujeitos não está na forma como se expressam, como também nem tanto no conteúdo, já que muitos chegam a escrever muito profundamente até sobre sua própria dor. A dificuldade na simbolização aparece em sua incapacidade de se posicionar a partir de um ponto desejante: na estruturação psíquica desses sujeitos, o local da falta não se inscreveu como fundante do registro simbólico, ficando apenas marcado no corpo. A "passagem" do somático ao psíquico não aconteceu de modo "suficientemente bom", deixando margens para que esse mal-estar se manifeste corporalmente.

 

 

Referências

 

ANZIEU, Didier. O eu-pele. 2. ed. São Paulo: Editora Casa do Psicólogo, 2000.         [ Links ]

DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009.         [ Links ]

FERNANDES, Maria Helena. Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005.         [ Links ]

______. Transtornos Alimentares: anorexia e bulimia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.         [ Links ]

FONTES, Ivanise. A ternura táctil. 2006. (texto copiado).         [ Links ]

______. A construção do ego corporal. 2007. (texto copiado).         [ Links ]

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FREUD, Sigmund. (1923). O ego e o id. Rio de Janeiro: Imago, 1998. (Edições Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 19).         [ Links ]

GREEN, Andre. A mãe morta. In:______. Narcisismo de vida narcisismo de morte. São Paulo: Editora Escuta, 1998.         [ Links ]

HAAG, Genenieve. La mère et le bébé dans le deux moitiés du corps. Neuropsychiatrie de l'enfance, v. 33, n. 2-3, p. 107-114, 1985.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:

Dirce de Sá Freire
e-mail: dircedesafreire@globo.com

Bárbara Costa C. Andrada
e-mail: barbarafcosta@hotmail.com

Tramitação: Recebido em 02/03/2012
Aprovado em 30/03/2012

 

 

* Psicanalista, membro efetivo/CPRJ, coordenadora e docente do curso Transtornos Alimentares/ CCE-PUC-Rio, doutora em Psicologia Clínica/PUC-Rio, Mestre em História/Université Paris VII/Jusieu-França.
** Psicóloga clínica, acupunturista, associada ao fórum/CPRJ, mestranda em Saúde Coletiva/ IMS-UERJ.
1 Na psicose, a via de manifestação é imaginária (alucinação, delírio), na perversão, essa via é simbólica, apesar de marcada pela negação (o fetiche recobre imaginariamente o simbólico) e na neurose, a manifestação se dá no simbólico (na forma de ritual obsessivo, sonho, figuras de linguagem, conversão histérica).
2 Ivanise Fontes trabalha com conceitos teóricos que fundamentam o que ela denomina de "Psicanálise do Sensível" e pode ser definido como uma tentativa de resgatar a sensorialidade, tanto na prática quanto na concepção teórica. Esta autora traz o corpo e a sensorialidade para o campo do sentido e dos processos psíquicos, atualizando e renovando o alcance da Psicanálise.,
3 Cf. André Green – Narcisismo de vida, narcisismo de morte, 1980.
4 O exemplo da importância desta contextualização é encontrada no fato de no Brasil Colônia nos depararmos com alguns documentos que atestam o lugar do corpo vis a vis dos costumes, como mostram os "manuais do bom casamento", onde se ensinava às mulheres a escolher um marido ideal, que na prática representava um par com os mesmos títulos de aristocracia, as mesmas riquezas e a mesma etnia. Isso faz com que uma mulher não dependesse de sua imagem ou de qualquer atributo físico, que era sinônimo de perigo para a época. Uma mulher feia significava que o casamento ia bem e tinha tudo para dar certo (Mary Del Priore – História do Amor no Brasil, 2009).