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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.26 Rio de Jeneiro June 2012

 

Resenha

Limites da clínica. Clínica dos limites

 

Luciana Gageiro Coutinho

Universidade Federal Fluminese

Cardoso, M. R.; Garcia, C. A.(Orgs.). Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2011. 212 p.

 

 

A coletânea Limites da clínica. Clínica dos limites, organizada por Claudia Amorim Garcia e Marta Rezende Cardoso, reúne artigos elaborados a partir dos trabalhos apresentados no Simpósio Interinstitucional Limites da Clínica. Clínica dos Limites, realizado na Puc-Rio em junho de 2010, também sob a organização das autoras. Trata-se de um livro bastante interessante e atual, que é fruto de uma longa trajetória das duas organizadoras e também autoras, cujas pesquisas têm sido atravessadas pela investigação a respeito dos limites psíquicos. Claudia Garcia, que nos últimos anos tem se dedicado a pesquisar as incidências psíquicas dos novos contextos sociais e culturais próprios ao mundo contemporâneo, com suas repercussões clínicas. Marta Rezende, com suas pesquisas sobre a adolescência, a violência pulsional e o traumático. Como defendem as autoras, a questão dos limites é central para o pensamento psicanalítico hoje, seja no que diz respeito à discussão sobre a constituição dos limites entre o eu o outro, entre o soma e a psique, entre diferentes instâncias psíquicas etc., como também sobre os limites da clínica psicanalítica.

O livro tem como um de seus méritos o fato de agregar artigos de autores provenientes de diversas tradições teóricas dentro da psicanálise. O simples fato de que isso seja possível já nos faz constatar o quanto à noção de limite é cara à psicanálise, o que pode ser atribuído à centralidade do conceito de pulsão - situado por Freud no limite entre o somático e o psíquico - na teoria psicanalítica. Isto, de fato, é mencionado por diversos autores da coletânea. Além disso, vale notar que, no trabalho acerca dos limites, alguns dos autores buscam também as interfaces entre o campo da psicanálise e outras áreas do saber, tais como as neurociências e a filosofia.

Nesse sentido, o artigo escrito por Joel Birman, que abre a coletânea, mostra que uma leitura hegemônica da psicanálise aponta que esta, historicamente, buscou definir suas fronteiras em relação aos territórios da medicina, da psiquiatria e da psicologia, o que torna possível, defender hoje em dia que a psicanálise, antes de ser um território ou uma instituição, é um "movimento" que se inscreve sempre nos confins, nos limites. Com isso, é possível supor que a psicanálise ao mesmo tempo se superpõe e se diferencia destes diferentes territórios e campos, e assim, relança, em outras bases, as oposições entre o interno/externo e o dentro/fora. Isso também, segundo Birman, lhe daria uma potência para sempre delinear subversões e outras espacialidades para a experiência clínica. Em seu argumento, Birman assinala, ainda, o conceito de pulsão em Freud, considerado uma "exigência permanente de trabalho" que se impõe ao sujeito como imperativo incontornável, e que o conduz a se confrontar com seus limites, colocando o analista diante do impossível de sua prática. É assim que Birman encerra seu artigo, situando a psicanálise enquanto uma prática de subjetivação avessa a processos de normalização dos sujeitos, como certas terapêuticas tão em voga nos dias de hoje.

Em seguida temos alguns artigos que trabalham a questão dos limites nas origens da constituição do psiquismo, o que é discutido também através da questão relativa aos limites entre a psique e o soma. As relações entre o somático e o psíquico são pensadas por Maria Helena Fernandes através da presença do corpo na clínica contemporânea. A autora argumenta que, diante do imperativo constante de superação imediata de todo sofrimento que vigora na cultura, as marcas das dores da vida não podem mais encontrar uma inscrição psíquica, ficando destinadas a uma inscrição corporal. Desta forma, o corpo torna-se o lugar privilegiado de abrigo do sofrimento. Através de algumas vinhetas clínicas e de uma apreciação quanto ao estatuto do corpo na obra freudiana, Maria Helena constata que os acontecimentos da vida podem afetar simultaneamente os dois registros, o somático e o psíquico, sem que seja possível determinar que ordem de causalidade teve a primazia. Monah Winnograd, em seu artigo que interroga sobre a existência de limites entre a psique e o soma, dá continuidade a essa discussão. Partindo da observação de que o repertório conceitual freudiano é profundamente marcado pelo dualismo de substância cartesiano, chama a atenção, porém, para o domínio de um pós- -dualismo materialista que trata a psique como epifenômeno do corpo – reduzido ao cérebro - e ganha cada vez mais força no campo da ciência hoje. Em seguida, a autora retoma os pressupostos freudianos e destaca alguns conceitos que podem ser considerados como "conceitos- membrana", tais como pulsão, afeto e isso, inspirada na ideia freudiana da pulsão como um conceito-limite. Dedica-se então a defender a visão de que é possível pensar com Freud em uma dissolução dos limites entre psique e soma, o que implicaria trabalhar com a ideia de um contínuo entre essas esferas, sustentado sobre o fundo comum da atividade vital.

Há, na sequência, três artigos que tratam da questão dos limites da representação psíquica, com enfoques diferentes. Regina Herzog indaga, a partir da obra freudiana, em que medida o limite da representação barra a psicanálise como método de acesso aos fenômenos inconscientes ou, por outro lado, se ele opera mais como um instigador do próprio fazer analítico. Seu texto argumenta, então, em favor da segunda posição e propõe o uso de outra dimensão da representação, da ordem do sensível, a Darstellung, tal como Freud nomeia em "A Interpretação dos Sonhos" – que pode ser traduzida por figurabilidade – como possibilidade de outro modo de expressão do inconsciente a ser mais valorizado na clínica. Já Carlos Augusto Peixoto Junior centra seu artigo no tema dos limites da representação na experiência esquizóide e toca em um ponto semelhante ao abordado por Regina, considerando o aspecto predominantemente sensorial, mais primitivo, da personalidade esquizóide. Baseando- se em Winnicott, Fairbairn e Guntrip, entre outros autores, Carlos Augusto defende a ideia de que o "falso self " seria o equivalente winnicottiano do aspecto esquizóide da personalidade. Como apresenta o autor, se o "self verdadeiro" inicialmente ancora-se basicamente no viver sensório-motor do bebê amparado pela provisão materna suficientemente boa, o desenvolvimento de uma condição esquizóide seria devido a uma experiência de isolamento resultante de uma perda muito precoce da relação mental com essa mãe ambiente. E finalmente, o terceiro artigo que trata dos limites da representação psíquica, escrito por Marta Rezende Cardoso e Gabriela Maldonado, parte da questão dos pesadelos repetitivos e sua fixidez mortífera que faz exceção ao princípio do prazer nas neuroses traumáticas. As autoras defendem, em primeiro lugar, que o traumatismo psíquico remete, inegavelmente, a um encontro com a morte, naquilo que diz respeito à impossibilidade de representação do mesmo pelo psiquismo. Resta à cena traumática, então, o destino de ficar como que "incrustada" na mente, instalando no psiquismo a certeza de sua própria morte. Vem daí a literalidade expressa nesses pesadelos de repetição, marcados por um excesso de realidade que aponta para uma falência nas estratégias de representação por metáforas, bem como para uma tentativa de dominar o excesso traumático. Assim, os sonhos traumáticos são o corolário de um modo de funcionamento arcaico do psiquismo pela sua vinculação com o campo pulsional e sua exigência de trabalho feita ao psiquismo. Além disso, como concluem as autoras, a presença da dimensão da figurabilidade nesses sonhos, como um processo que está situado aquém da representabilidade, constitui uma ação preparatória para a realização de um trabalho que demonstra um esforço desesperado do ego no sentido de sua sobrevivência psíquica.

Numa vertente mais clínica, temos alguns artigos que abordam a questão dos limites da interpretação e tocam, cada um a seu modo, nas especificidades do uso desse instrumento clínico em diversos quadros psicopatológicos. Luis Augusto Celles e Claudia Amorim Garcia partem do pressuposto de que podemos estabelecer, desde o arcabouço freudiano, três paradigmas clínicos em psicanálise: a clínica do trauma, a clínica da representação e a clínica da pulsão. A clínica da representação, articulada ao método da interpretação e considerada como o modelo clássico, vem sendo bastante questionada desde meados do século passado, diante das mudanças fundamentais da clientela da psicanálise. Como observam os autores, o aumento da procura de atendimento por pacientes que apresentam estruturas clínicas não-neuróticas é paralelo à constatação dos diversos limites da interpretação. Por outro lado, segundo eles, podemos notar um retorno à clínica do trauma desde a Segunda Guerra Mundial, com algumas modificações em relação às experiências iniciais de Freud. A ideia da análise modificada, passando por Winnicott, Fairbairn e Bion, corresponde a uma clínica que se apoia, fundamentalmente, no retorno às condições traumáticas primitivas impostas pela inadequação do objeto do qual dependeu o sujeito em seus primórdios. Na clínica da representação, os autores situam os limites da interpretação em alguns fundamentos teóricos: a ideia de que a neurose não se cura já que o inconsciente não se desfaz, a transferência não é totalmente interpretável, o rochedo da castração não se dissolve, a pulsão faz uma exigência de trabalho constante ao psiquismo, etc. Para pensar a clínica da pulsão, os autores elegem o caso da jovem homossexual, pela centralidade do tema da pulsão e seus destinos na condução de uma análise. O caso ilustra os limites da interpretação para a modificação dos destinos pulsionais genitais da jovem, colocando a pulsão como baluarte da resistência em análise. Enfim, os autores concluem que o método da interpretação necessita de um questionamento até mesmo no tratamento da neurose e que o limite da análise imposto pela pulsão que não se deixa interpretar totalmente conduz à hipótese de um limite constitutivo do psiquismo, intransponível. O artigo de Suzana Faleiro Barroso e Ana Beatriz Freire é singular por discutir o estatuto da interpretação no trabalho psicanalítico com o autismo, destacando a questão do corpo como limite impossível e constituinte do sujeito em tratamento. Levando em conta as perturbações na formação da imagem especular e a não instituição do Outro como alteridade no autismo, as autoras mostram que a direção do tratamento nesses casos passa justamente pela constituição de uma imagem corporal, o que coincide com uma subtração do gozo mortificante atrelado ao Outro invasor. No entanto, como advertem Suzana e Ana Beatriz, isso só é possível se o analista operar do lugar de um Outro barrado e nunca do lugar de um Outro da demanda, que tem para a criança psicótica um valor de supereu avassalador e mortificante.

Um último conjunto de artigos questiona os limites do setting analítico. Tanto o artigo de Andréa Reis e Marcus André Vieira, que expõe o trabalho do projeto Diga Aí Maré, quanto o de Lulli Milman, que apresenta a prática desenvolvida na Casa da Árvore, propõem ampliar as fronteiras do setting analítico para além dos muros dos atendimentos privados e/ou individuais. É interessante ver como ambos apostam na possibilidade do exercício da psicanálise no coletivo, marcando em sua proposta a importância de promover uma rede/ lugar de sustentação subjetiva, que muitas vezes não pode ser encontrada pelos sujeitos em outras instâncias da sociedade. Como explicita Lulli Milman, a Casa da Árvore não é uma clínica onde se faz psicanálise, mas é um lugar que se faz pela psicanálise, já que nela há psicanalistas trabalhando e pensando seu trabalho.

O último artigo da coletânea, escrito por Luis Cláudio Figueiredo, também contribui para ampliar os limites da ação do psicanalista. Sua tese principal é a de que a instalação e a sustentação de uma "situação analisante", termo proposto por Donnet, é sempre a principal tarefa do analista, seja em seus atendimentos padrão, seja em suas variantes. Através dessa noção, Luis Claudio defende a ideia de que é preciso que o enquadre esteja bem definido, mas também que sempre haja certa flexibilidade para que, no devido tempo, a análise avance a partir da elaboração do material até então imobilizado no enquadre. De certa forma, essa é a proposta desenvolvida por Luis Cláudio, ao longo de todo o seu texto: a situação analisante é viva e dinâmica, pois é no manejo e na própria operatividade da mesma que reside o essencial da clínica psicanalítica. Assim, a situação analisante implica na instalação e na sustentação da fala nos limiares da linguagem, funcionando entre afeto e representação. Isso é, segundo o autor, mais importante ainda nos casos dos pacientes não neuróticos, com problemas no plano da capacidade de experienciar, de organizar vivências emocionais e/ou cognitivas no plano do sentido.

Ao final desse percurso sobre os artigos da coletânea Limites da Clínica. Clínica dos Limites é possível reafirmar o quanto o trabalho sobre o tema dos limites psíquicos é atual e enriquecedor. Trata-se de uma leitura que nos convida a ir além dos limites da ortodoxia psicanalítica, seja a dos guetos teóricos e institucionais, seja a das práticas limitadas ou imutáveis que muitas vezes aprisionam o saber e a clínica da psicanálise.