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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro dez. 2012

 

Conferência

A dor e o existir: Fernando Pessoa*

 

Pain of existing: the forever lost object

 

 

Neyza Prochet**

Círculo Psicananlítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 

Para o homem, a arte é o recurso que possibilita dar forma, tempo e lugar àquilo que, de outro modo, lhe seria inacessível. É a capacidade criativa que conecta o indivíduo a seu núcleo central, à fonte de onde se originou, um dia, o que mais tarde chamamos de EU. Sabemos que um Eu nunca é totalmente formado, nunca será totalmente organizado, nem nunca será totalmente revelado. A espantosa complexidade da experiência humana reside em suas sombras e profundidades, nos recantos e nos precipícios, no esconderijo, refúgio ou santuário de tantos outros Eus, mais ou menos delineados, que coexistem no psiquismo de uma pessoa.

Bachelard nos disse que "os seres escondidos e fugidios se esquecem de fugir quando o poeta os chama pelo verdadeiro nome", e Winnicott nos lembra da alegria de se esconder e da tragédia de não ser procurado. Há dentro de nós, então, uma permanente ambivalência: parte anseia ser descoberta e outra teme que esta descoberta signifique invasão, submissão ou aniquilamento. Por isso, muitas vezes fingimos ser falsa a dor que de fato se sente. O poeta é aquele que se empresta ao mundo e ao outro para ser, ao mesmo tempo, aquele que busca a própria busca e o encontro do quê resultou daquela busca. Ele nos mostra a impossibilidade de sermos uma coisa só, única, total, estável e permanente. O poeta busca aquilo que nos escapa mas que, sem sua procura, viver seria uma experiência limitada e tragicamente pobre. O poeta tem olhos nos olhos, na pele, nos ouvidos e na barriga. Tem ouvidos que se fossem localizados materialmente, surgiriam em pontos espantosos da anatomia humana; graças a esta extraordinária peculiaridade, ele é aquele que é capaz de invocar o elusivo do psiquismo humano. A poesia busca materializar nossas relações essenciais com o mundo e sua origem é o indizível, o irrepresentável.

Dentre diversos poetas da língua portuguesa, considero Fernando Pessoa como o maior especialista em sombras e seres fugidios. Pessoa nos fala sobre o que não conseguimos nomear ou compreender e, no entanto, sem obrigar-se a obter respostas para estas questões, que sabe irrespondíveis.

Tal como Drummond, Fernando Pessoa era gauche na vida, mas diferente de nosso Drummond, parece nunca ter estabelecido laços com o mundo. Não vejo nele a consciência voltada para o social, a vinculação com o humano, a identificação com o próximo, percebidos em Drummond; e, muito menos, esperança no homem e na vida, como é possível encontrar em poemas como O Elefante e A Flor e a Náusea.

Em Pessoa, a marca é o estranhamento de ser, a inquietação que surge da certeza da impossibilidade de exprimir-se integralmente, da impossibilidade da poesia em aplacar-lhe os demônios. "Quem me dera que a poesia fosse mais que a escrever"1, diz ele, dois anos antes de morrer.

Pessoa é único, personalíssimo. Escreve para expressar sua forma singular de formular as questões de vida e morte da existência humana; cheio de angústia, acompanhado de uma dolorosa consciência de si, da incompletude da experiência poética que falhará, inarredavelmente, em traduzir a incongruência complexa da dimensão humana. E é justamente por tudo isso, um poeta que conseguiu como poucos ser universal e atemporal.

Não: devagar. Devagar, porque não sei Onde quero ir. Há entre mim e os meus passos Uma divergência instintiva. Há entre quem sou e estou Uma diferença de verbo Que corresponde à realidade. Devagar... Sim, devagar... (Álvaro de Campos, In Poemas)

Na tentativa de alcançar o inalcançável cria seus heterônimos:

Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, exceto quando me for dado o Prêmio Nobel. E, contudo – penso-o com tristeza – pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida.

A marca é a insatisfação da alma humana, sua precariedade e limitação, a dor de pensar, a fome de se ultrapassar, a tristeza, a incapacidade em se construir como definitivo. Haverá sempre um além, que a palavra falhou em alcançar ao buscar traduzir a vivência em experiência e esta em narratividade. Diante do desejo do absoluto e da impossibilidade de realização, a alma adormece "num mar de sargaço" e tédio.

Pessoa usa o sonho, o saudosismo de uma infância idealizada e de um tempo passado perfeito e perdido. O homem do presente é falho, limitado e mortal, cujo futuro não sinaliza esperança em um devir. Lembro-me de um adolescente que me disse o seguinte certa vez: "Sabe, pensar dói". A poesia de Fernando Pessoa parece dizer: Viver dói. Existir dói. Pensar dói. A vida dói.

Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.

Em sua obra, os seguintes temas são recorrentes2: Autoconsciência, tédio e náusea, o desencontro, inquietações existenciais, a dor de pensar, melancolia e angústia, a soberania do intelecto sobre o sensório, fragmentação do eu e perda da identidade.

Não sei quantas almas tenho Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem acabei. De tanto ser, só tenho alma. Quem tem alma não tem calma. Quem vê é só o que vê, Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo, Torno-me eles e não eu.3

Seu estado melancólico é fonte, meio e destino de sua experiência criativa. Avassalado pela dor, ele vai de encontro a seus demônios e fantasmas e transmuta sofrimento em transcendência. Ao se recusar a cultivar sua individualidade, Pessoa se entrega como campo de batalha de seus múltiplos, devassa o entre mundos e vai para o além do eu.

O que um psicanalista diria sobre Pessoa? O que dizer que de alguém que me parece o paradoxo encarnado? A sua dor, o seu sofrer, é de onde se origina sua transcendência e sua imortalidade. Daquilo que lhe parecia sempre aquém de seus desejos, de sua experiência de si, Fernando Pessoa vai além. No que diz respeito a termos psicopatológicos, apóio-me no que ele diz de si mesmo:

Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenômenos – felizmente para mim e para os outros – mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher – na mulher os fenômenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas – cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem – e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...

Como Winnicott, acredito que a questão fundamental de um ser humano é ser a si mesmo. Tudo o que impossibilitar a constituição ou a manutenção de um senso de continuidade de existência de um indivíduo conduz ao colapso e à vivência de "angústias impensáveis". Este sentido de existência não é criado

apenas pelo indivíduo, de forma isolada, mas pela contínua interação dele com seu entorno: quanto mais jovem, maior é a dependência e a influência do ambiente nos processos de amadurecimento, que não ocorrem de forma automática ou pré-determinada. Amadurecer é um processo contínuo, ativo e interdependente, e não se trata de algo que, uma vez conquistado, prescinda de investimento.

Quando Winnicott4 (1968) diz que "meu ofício é ser a mim mesmo", está implícito o compromisso e o trabalho de uma vida inteira a serviço da criação, recriação e integração entre aquilo que é vivido e aquilo que é sentido. O risco extremo para um vivente, em termos de saúde psíquica, é a dissolução, a perda do sentimento de ser uma pessoa. Ser a si mesmo é uma condição que precisa ser mantida, mesmo diante da inexorabilidade de não sermos sempre os mesmos. Falando de outro modo, mesmo que haja um estranhamento em relação ao si mesmo ou ao mundo, este estranhamento não pode ser tomado como a sinalização da morte do Eu. O Eu precisa de uma qualidade de integridade que permita ao indivíduo ser capaz de sustentar uma idéia de inteireza de si apesar da diversidade e da multiplicidade de vivências, perspectivas ou acontecimentos externos.

Como estamos falando de estar no mundo e de modos de ver o mundo, parece- me útil recorrer a uma analogia com os fenômenos perceptuais da visão.

Vejamos a questão da conquista da noção de profundidade: Esta é habilitada pela superposição e integração das imagens percebidas por cada olho. Quando ocorre a visão monocular há uma perda perceptual significativa – há a redução da percepção de profundidade, a perda de identificar sombreados, de relativizar tamanhos e da paralaxe, que Houaiss define como mudança ou deslocamento aparente de um objeto em decorrência da mudança do ponto de observação. Toda esta riqueza perceptual só é aprendida e apreendida através da superposição de dois olhares que estão em pontos distintos.

Ora, não podemos pensar que o olhar, sob o ponto de vista do psiquismo, também adquire profundidade, discriminação, textura e relatividade, quando há a superposição e a integração de dois olhares – o do bebê e o da mãe? Mais, que uma situação que impeça o amadurecimento deste processo vai comprometer de forma profunda o modo como um indivíduo vê o mundo?

Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um." (Fernando Pessoa)

Cesarino5 (2008) enfatiza que, para Winnicott, o meio externo, no início da vida, só é externo sob a ótica daquele que observa. O ambiente, sob o ponto de vista do vivente, é "subjetivo, ou seja, nem externo e nem interno, o que significa dizer que ele participa intrinsecamente da constituição do si - mesmo e que este é o único modo de acesso que se dispõe no inicio da vida, ao sentido de realidade." (p. 118) A autora complementa que, apenas bem mais adiante, outros sentidos de realidade serão construídos a partir do que foi organizado no período inicial, quando a discriminação entre interno e externo passa a ser realizada, embora nunca de forma permanente e completa. O que é crucial é que, para que o indivíduo possa se sentir real num mundo que lhe pareça real, sua realidade precisará ser uma criação pessoal, não uma imposição externa.

Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, caráter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar (PESSOA6, 1935).

Abram7 (2000) comenta:

Por apercepção entende-se ver a si próprio ao ser visto pela mãe. A "percepção" tem sua origem a partir da apercepção, e refere-se à capacidade de ver o conjunto dos objetos, o que é também a capacidade de estabelecer uma diferenciação entre eu e não-eu. Se a percepção surgir prematuramente por meio da incapacidade da mãe de oferecer uma resposta ao rosto do bebê, ele encontrará maneiras para que tal aconteça, mas em detrimento de seu sentimento de "self" (p. 159).

A realidade, para ser real, precisa resultar do que foi possível viver ao longo do amadurecimento num processo adaptativo mútuo entre o individuo e seu ambiente. Quando a tônica de uma experiência de vida é a irrealidade e a impossibilidade de uma experiência afirmativa no mundo, esta pessoa não se sente capaz de acreditar em experiências positivas na vida e duvida da possibilidade de reivindicar sua marca pessoal no mundo. O que é sentido pode ser classificado como depressivo ou melancólico, mas o que está por trás dessas nosologias? Um ser humano que percebe suas relações com o mundo impregnadas de dor, raiva, insuficiência e ausência.8

Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a criança triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata.

Quando há o rompimento da rede de sustentação psíquica, em uma pessoa, cria-se uma espécie de buraco negro, de sorvedouro psíquico identificatório. Tal como nos buracos negros da Física, são áreas de enorme quantidade de energia libidinal que criam um vórtex, por onde escoam as significações identitárias (PROCHET, 2004)9. Estas precisam ser contidas através do reforço e da definição precisa de outros traços que possuam força suficiente para conter este vazamento de sentido e identidade.

Em Fernando Pessoa, sua dor o impeliu a uma hiper consciência, gradualmente emsombrecendo suas relações com o mundo, impelindo-o para a introspecção, esvanecendo possibilidades alternativas de contato. É a escrita que, embora insuficiente, opera o milagre de criar vínculos não com o outro, mas com a arte.

Se algo ocorreu que impediu a integração, ficará um vazio no lugar daquilo que deveria ter acontecido. O que acontece ao Eu, antes dele se constituir, não terá registro do acontecido e nada poderá ocupar este espaço - um buraco causado pela não construção de vinculações e por onde escapam as vivências, já que irrepresentáveis.

Quem me dispôs para o que não pudesse?/Quem me fadou para o que não conheço/Na teia do real que ninguém tece?/Quem me arrancou ao sonho que me odiava/E me deu só a vida em que me esqueço/Onde a minha saudade a cor se trava (Fernando PESSOA, Cancioneiro)?

Pontalis10 afirma que "aquilo que escapa a qualquer possibilidade de memorização está no vazio do ser" e descreve "o paradoxo dessa agonia primitiva que só pôde existir como negação, na falta de um lugar psíquico onde repousar" (CHAMOND11, 2010).

"Não posso estar em parte alguma. A minha Pátria é onde não estou", queixa-se Alberto de Campos ("OPIÁRIO", 1914).

Andrade12 considera que, por inexistir no concreto, esta pátria ausente toma as mais variadas formas, assinalando sempre uma perda, o que finda ou é desfeito. Como num jogo de espelhos, a personalidade do poeta se auto reflete em tantas superfícies, perdendo-se a percepção da imagem original. O que é real e o que é especular? O que foi vivido e o que foi imaginado?

A busca de si mesmo,em si, resulta em fracasso. Gauche, deslocado e fora no mundo. Estar no mundo é uma experiência impossível para quem se vê impossibilitado de habitar dentro de si. Por não saber-se existindo, nada tem valor de realidade ou permanência.

O mistério da vida dói-nos e apavora-nos de muitos modos. (…) Mas este horror que hoje me anula é menos nobre e mais roedor. É uma vontade de não querer ter pensamentos, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e alma."É o sentimento súbito de se estar enclausurado numa cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo" (FERNANDO PESSOA – Bernardo Soares, Livro de Desassossego)?

Bernardo Soares queixa-se do "caminho entre fantasmas inimigos que a minha imaginação doente imaginou e localizou em pessoas reais.". "Dói-me tudo por não ser nada", lê-se num poema.13 A dor vem do descompasso, do hiato entre aquele que pensa e o que é pensado, entre a vida imaginativa e a experiência real14.

Um elemento muito comum nos poemas de Pessoa é o estar doente. Pessoa sente dor, queixa-se dela em diversos poemas, de dores no corpo, na cabeça, mas a dor maior vem de pensar e do existir como ser pensante. Adoecer é quando dói o ser. Penso que esta é a doença falada, as doenças da alma. Em Fernando Pessoa, é a dor de ser que predomina sobre todas as outras, supostas ou reais.

A loucura é outro tema recorrente. Declarar-se louco é poder dar um sentido inteligível ao sofrimento incognoscível. Álvaro de Campos é o mais queixoso e doente dos heterônimos.

Louco, sim, louco porque quis grandeza Qual a sorte a não dá. Não coube em mim minha certeza; Por isso onde o areal está Ficou o meu ser que houve, não o que há. Minha loucura, outros que me a tomem Com o que nela ia. Sem a loucura que é o homem Mais que besta sadia, Cadáver adiado que procria? Ora até que enfim..., perfeitamente... Cá está ela! Tenho a loucura exactamente na cabeça15.

Será a loucura querer mais do que o pouco?16 Fito-me frente a frente E conheço quem sou. Estou louco, é evidente, Mas que louco é que estou?

É por ser mais poeta Que gente que sou louco? Ou é por ter completa A noção de ser pouco?

Não sei, mas sinto morto O ser vivo que tenho. Nasci como um aborto, Salvo a hora e o tamanho.

Cansa ser, sentir dói, pensar destrói.17 A dor de existir e de estar sempre dolorosamente consciente de sua própria consciência o leva a escrever em um de seus últimos poemas, datado de 19 de novembro de 1935, dias antes de morrer de cirrose hepática, em 28 de novembro.

Há doenças piores que as doenças, Há dores que não doem, nem na alma Mas que são dolorosas mais que as outras. Há angústias sonhadas mais reais Que as que a vida nos traz, há sensações Sentidas só com imaginá-las Que são mais nossas do que a própria vida.

Há tanta cousa que, sem existir, Existe, existe demoradamente, E demoradamente é nossa e nós... Por sobre o verde turvo do amplo rio Os circunflexos brancos das gaivotas... Por sobre a alma o adejar inútil Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo. Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.

Tudo o que li não me satisfez. Semana passada, fui tomar um café turco. Na borra, vi a silhueta esguia, o nariz afilado, a boca fina. Parecia quase sorrir de minha busca.

Comprei uma passagem. Fui a Lisboa.

A rua Garret serpenteia ladeira acima, até a praça Luis de Camões. Perto dela, o largo do Chiado e o café A Brasileira. Inúmeras mesinhas do lado de fora, uma delas permanentemente ocupada pelo homem. A garçonete, solícita, serve-me o café e tira minha foto ao lado dele. Desde a louça até o interior do café, a tabacaria ao lado, tudo convida ao sonho, ao mergulho no passado. Havia passado pela Bertrand, comprado alguns de seus livros, e os colocado sobre a mesa, numa homenagem explícita. Estava certa de que ele viria ao meu encontro. Iria lhe perguntar muitos porquês, tentando entendê-los, entender a mim e o que vim buscar.

De nada serviram os preparos. Talvez faltasse um doce, talvez os augúrios não fossem favoráveis, talvez se lhe dissesse de meu interesse por assuntos do além, talvez. O homem não veio. Deixou, em seu lugar, uma estátua em bronze que não se comoveu com minha ansiedade. Percorri as ruas de Lisboa, refiz muitos de seus passos, bati em sua porta. Não o encontrei. Encontrei partes de mim, memórias de um passado que não tive, e a certeza de que não estava em Lisboa o quê tinha vindo buscar.

Voltei para casa e ainda busco. Não sei se um dia vou achar o que me foi pedido. Atrapalho-me com as palavras e as imagens. Nada me satisfaz, alma mais inquieta do que nunca. O que escrevo não é o que desejo, o que desejo não é o que desejo e o que não desejo não é tão indesejável assim, e o que não escrevo e não descrevo, ah, isso sim, é o que eu quero dizer.

O que Fernando Pessoa me desperta? O que eu sinto, é tanto o que eu sinto, e mesmo se falasse um tanto desse tanto, ainda assim não ia ser muito.

O que é muito é meu desassossego.

Rio, 01 de setenbro de 2012.

 

 

Endereço para correspondência:
Neyza Prochet
e-mail: neprochet@gmail.com

 

 

*Nota do Editor. Esta conferência fez parte da mesa-redonda A Psicanálise falando da Arte e da Dor, realizada no CPRJ em 01/09
**Psicóloga, psicanalista, membro efetivo/CPRJ, doutora em Psicologia Clínica/USP, supervisora de Saúde Mental do CAPSi Maurício de Sousa (RJ)
1 ANDRADE, Sonia Maria Viegas. A experiência do Absoluto em Fernando Pessoa. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:nOPxGjOXsjkJ:www.letras.ufmg.br/ cesp/ textos/(1979)experiencia.pdf+&hl=en. Acesso em: 26 ago. 12
2http://www.sitedoescritor.com.br/sitedoescritor_escritores_fpessoa_texto006.html.
3http://www.poesiaspoemaseversos.com.br/fernando-pessoa-poemas/
4 WINNICOTT, D. W. (1968). Sum: eu sou. In:______. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989
5 CESARINO, Marília M. Contribuições da psicanálise winnicottiana ao campo da atenção pública em saúde mental: manejo e uso ampliado do setting na clinica das psicoses em instituições. São Paulo: PUC, 2008. Originalmente apresentada como dissertação de mestrado, Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, 2008
6 Carta a Adolfo casais Monteiro http://www.pessoa.art.br/?p=18.
7 ABRAM, Jan. A linguagem de Winnicott. Rio de Janeiro: Revinter, 2000
8 Quem me roubou a minha dor antiga/E só a vida me deixou por dor?/Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,/Me deixou só no fogo e no torpor? Quem fez a fantasia minha amiga/Negando o fruto e emurchecendo a flor?Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga/A seu infiel e irreal sabor... Quem me dispôs para o que não pudesse?/Quem me fadou para o que não conheço/Na teia do real que ninguém tece?/Quem me arrancou ao sonho que me odiava/E me deu só a vida em que me esqueço/Onde a minha saudade a cor se trava? (Fernando Pessoa, Cancioneiro)
9 PROCHET, Neyza. Corpos perfeitos e imagens imperfeita. Cadernos de Psicanálise- SPCRJ, Rio Janeiro, v. 20, n. 23, p. 157-175, 2004
10 PONTALIS, J-B. In:______. WINNICOTT, D.W. O brincar e a realidade. Imago: Rio de Janeiro, 1975. (Prefácio)
11 CHAMOND, Jeanine. Continuidade do ser e agonia primitiva: o bebê winnicottiano e a psicose. Winnicott e-prints, São Paulo, v. 5, n. 1, 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1679-432X2010000100005&lng=pt&nrm=iso
12 ANDRADE, Sonia M. V. A experiência do absoluto em Fernando Pessoa. Disponível em: http:// webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:nOPxGjOXsjkJ:www.letras.ufmg.br/cesp/ textos/(1979)experiencia.pdf+&hl=en
13 SOUSA SANTOS, Maria Irene. A doença do poeta. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra. 23, set. 1987. Disponível em: http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&frm=1&s ource=web&cd=5&ved=0CEYQFjAE&url=http%3A%2F%2Fwww.ces.uc.pt%2Frccs%2Fincl udes%2Fdownload.php%3Fid%3D338&ei=das-UP38G4_88QS-rIGIAg&usg=AFQjCNHV0 3_6dYWeHs23OOgvSivtEuqM_A&sig2=juuuC8thArjLPYY1QazTrQ
14 ENTRE mim e o que em mim/É o quem eu me suponho/Corre um rio sem fim. Disponível em: http://pensador.uol.com.br/frase/MjUxMTE0/
15 http://multipessoa.net/labirinto/alvaro-de-campos/18
16 Poesias Inéditas (1930-1935). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1955 (imp. 1990). - 39. Em: http://multipessoa.net/labirinto/fernando-pessoa/28
17 1-1-1921 Poesias Inéditas (1919-1930). Fernando Pessoa. (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). http://arquivopessoa.net/ textos/3852