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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro dez. 2012

 

Artigos

A dor e a criação: Magdalena. Carmen. Frieda. Kahlo. Y Calderón

 

The pain and the creation: Magdalena. Carmen. Frieda. Kahlo. Y Calderón

 

 

Ana Maria Oliveira da Luz*

Círculo Psicananlítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O artigo se inspira na trágica vida e na bela invenção da vida e obra que Frida Kahlo compôs frente as suas vicissitudes. Apresenta, de forma interrogativa, a sequência de destrutividades firmadas na história desta mulher mexicana – acasos ou um sentido dado pelo superego? Ressalta, também, que não só Tanatos 'pincela' e fia a trajetória da 'aquarela' das pulsões da vida de Frida. Há outro lado do seu existir – Eros! É priorizada, então, no contexto do trabalho, a Arte como saída sublimatória; apresenta suas comoventes dores, em seus sofrimentos – físico e psíquico – e a sustentação a suas intempéries psíquicas.

Palavras-chaves: Tanatos, Eros, Sublimação, Superego.


Abstract

This paper is inspired by Frida Kahlo's tragic life and the fine invention of life and work that Kahlo developed in face of her own vicissitudes. It presents, via an interrogative form, the sequence of destructive behaviors that this Mexican woman engaged with throughout her life – were they accidental or do they carry a meaning that could be attributed to her superego? The article underscores that not only Thanatos ´paints` and spins a watercolor of the instincts of Frida's life. There is another face to her being – Eros! The article also highlights Art as an output, as it seems, for the sublimation of Kahlo's sorrow, poignant physical and mental pains, and the support for her psychological disturbances.

Key-words: Thanatos, Eros, sublimation, superego.


 

 

Não quero a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma verdade inventada. Clarice Lispector

Mulheres falando da dor! "Mulheres" no plural. E, para falar no plural, privilegio um feminino que, por excelência, porta uma pluralidade de afetos – como se sabe o feminino não é dado e sim algo construído por cada mulher. Aproximo-me, desafiadoramente, do contexto histórico desse feminino através da biografia e da obra de Frida Kahlo, bem como dos seus efeitos, produzidos na sua subjetividade e na qualidade dos seus laços com o mundo.

LA CASA AZUL/MUSEU FRIDA KAHLO

 

 

Entremos na Casa Azul, naquela que foi a sua casa, desde a infância até a morte. E que foi também, simbolicamente, sua morada psíquica. É instigante tocar as suas "obras de arte", ou seja, as paredes circundantes, que, tal qual uma moldura, realçam a sua dor e o seu existir. Não resisti. Resgatei a pluralidade desse feminino – as Magdalenas, as Carmens, as Fridas, as Kahlos, colocando todas em um caldeirão. Frida – artista, mulher, mexicana –, quando jovem desejava ser médica e mulher sem filhos. Seu próprio corpo e até mesmo o seu existir foram marcados por intensos revezes da vida: doenças corporais, acidentes, múltiplas cirurgias. De fato, foram profundos os seus sofrimentos, os quais a levaram a diversas tentativas de suicídio.

1907 – Nasce na casa dos seus pais, conhecida como "Casa Azul", em Coyoacán.

1922 – Casa-se com Diego Rivera, pintor mexicano. Frida foi o segundo casamento de Rivera, que veio a falecer em 1957. Nas palavras dela, ele foi o seu "segundo acidente, atropelando-a com seu turbilhão de cores". E continua: "Mas, por ele, troquei as minhas roupas masculinas [...]pelas anáguas de rendas, pelas saias longas" (KAHLO,1995).

1954 – Morre Frida.

1958 – "A Casa Azul" foi inaugurada como Museu Frida Kahlo.

É interessante notar que essa Casa não só foi o local do seu nascimento, mas também o escolhido para testemunhar o seu casamento e a sua morte.

Duas obras ilustram bem o que acabou de ser dito anterior, traduzem a sua motivação para buscar continuamente uma posição narcísica, idealizada – que se funde com a terra-mãe, terra-mexicana, terra-amizades, terra-fértil (ventre), terra-amor (Diego).

RAÍCES

 

 

AUTORRETRATO EN LA FRONTERA ENTRE EL ABRAZO DE AMOR DE EL UNIVERSO, LA TIERRA(MÈXICO), YO, DIEGO Y EL SEÑOR XÓLOTL

 

 

De modo tenaz, Frida tentou afirmar essa posição interna durante a maior parte da sua vida: as veias abertas, para a nutrição, entre ela e as terras-matrizes. Filha de Carl Wilhelm Kahlo e Matilde Gonzalez Y Calderón. Seu pai, alemão de raízes judaicas (húngaras), fotógrafo de profissão, tinha a pintura como hobby. Sua mãe, de ascendência indígena e espanhola, filha de um fotógrafo, motivo pelo qual incentivou seu marido a se dedicar à fotografia, a partir do acidente e do adoecimento de Frida teve diversas crises conversivas, que perduraram por toda sua vida. O casal teve quatro filhas: Frida foi a terceira.

EL SUEÑO (LA CAMA)

 

Antecipando algumas influências absorvidas por Frida no seu percurso de criação, coloco uma moldura na ação sensível de Matilde em direção à sua filha, por ocasião do acidente. Esta mulher, ao perceber Frida paralisada, engessada em cima de uma cama, pintando o gesso que lhe revestia, introduz um grande espelho suspenso no dossel da cama, visando otimizar os desenhos que a filha vinha desenvolvendo. Buscava, assim, realçar um "dom". Esse espelho, possivelmente, compeliu o florescimento de uma pintora; mas também poderia tê-la oprimido, relembrando-a, na constância do reflexo das imagens, as feridas narcísicas – a face da dor? Com o espelho e cavalete encomendados por sua mãe e de posse da caixa de pintura de seu pai, Frida inicia, com os pincéis, os contornos de cada obra. Aos poucos, Eros se revela e dá cores ao seu sofrimento.

Aos seis anos de idade, contrai poliomielite, que a deixa com uma lesão no pé direito. Esse fato dá ensejo a que a apelidem de "Frida-perna-de-pau", o que a faz optar por usar calças compridas e bengala. Sua criatividade, entretanto, já dá sinais quando, mais tarde, começa a usar saias longas, com insígnias mexicanas – suas marcas pessoais. Essas escolhas parecem ter o intuito de esconder, ou não dar a ver, a sua deficiência física. Quem sabe essa era uma das razões que a levaram a denominar-se "La gran ocultora"? Um mundo só seu. Secreto.

Diz Frida:

Criança, eu já era duas Fridas. Aos seis anos inventei uma amiga. Para nos encontrarmos, soprava na vidraça do meu quarto e, com um dedo, desenhava no bafo uma porta. Por essa porta, eu saía quase voando até uma leiteria onde havia uma tabuleta com a palavra 'pinzón'. Pelo 'o' de 'pinzón' eu deslizava até o centro da terra. Minha amiga sempre estava lá me esperando. Era silenciosa, gostava de dançar e ria muito. Enquanto ela dançava, eu lhe contava meus segredos. Com essa amizade mágica descobri a alegria. A dor, descobri pouco depois. Uma manhã acordei sentindo agulhas fisgando minha perna direita. Levantei-me e não conseguia andar. [...]Poliomielite, disse o médico. Meses na cama, um pé atrofiado, uma perna mais fina e mais curta do que a outra, botas ortopédicas. Quando a dor física entrou pela primeira vez em meu corpo, veio acompanhada de outra dor: 'Frida- perna-de-pau!' Assim gritavam os meninos[...](KAHLO,1995). Sequelas no seu narcisismo.

Em 1923, inicia a Faculdade de Medicina. Entre 1922 e 1925, assiste a aulas de desenho. E entre uma brincadeira e outra descobre o amor – Alejandro – "Alex". Em 1925, aprende a técnica de gravura e retoques em fotografias. E, nessa mesma época, tem a sua primeira experiência homossexual; experiência traumática, segundo Frida, por ter resultado em um escândalo, no momento em que seus pais tomaram conhecimento.

RETABLO

 

Ainda em 1925, no viço dos seus dezoito anos, sofre um grave acidente, quando o ônibus em que viajava choca-se com um bonde. Um pedaço de ferro de um dos veículos perfura as suas costas, rompendo a coluna vertebral em três lugares. Fraturas na clavícula, duas ou três costelas quebradas, um ferro atravessando a sua pélvis até sair pela vagina, causando uma grave hemorragia. Além disso, sua perna direita, fina e frágil, por conta da poliomielite, é fraturada em onze lugares e seu pé direito é deslocado.

RETABLO

 

Frida comenta sobre o acidente:

Frida era vermelho e dourado. É mentira que a gente se dá conta da dor no momento da tragédia [...]Minha primeira reação foi procurar o bilboquê colorido que havia comprado naquele dia e caiu do meu colo. Não percebi que um pedaço de 'corrimão' tinha trespassado meu corpo como a espada de um toureiro atravessa um touro. [...]Perdi minha virgindade neste acidente. [...]E meu corpo se partiu em várias Fridas. [...]Assombroso! No meio da tragédia, Alejandro, ao me procurar, se deparou com um quadro que nenhum pintor jamais sonhou. Frida-nua, toda ensanguentada e coberta de ouro. Alguém no ônibus levava um pacote de ouro em pó e esse se foi pelos ares [...]Diante daquela maravilha as pessoas exclamavam: a bailarina! Olhem! A bailarina (KAHLO, 1995)!

Frida ficou muitos meses entre a vida e a morte no hospital, teve de ser operarada em diversas partes e reconstruir por inteiro seu corpo, que estava todo perfurado. Tal acidente obrigou-a a usar oito coletes ortopédicos, de diversos tipos. Foi submetida a trinta e duas cirurgias, vinte e nove anos de dor consecutiva e, ao fim da vida, teve de amputar a perna direita. A posição horizontal, mais do que associada ao descanso ou ao amor, parece, no decorrer da sua vida, ter significado com frequência a presença do desamparo e da proximidade da morte.

Reparem nas gravuras a seguir.

MI NACIMIENTO

 

A própria representação do seu nascimento vem banhada em sangue.

NIÑA COM MASCARA DE MUERTE

 

A questão da morte e do desamparo sempre esteve presente. Essa máscara, em algum momento, chegou quase a "colar" em seu rosto.

 

SIN ESPERANZA - Mas não havia apenas a Frida inerte na cama.

 

FRIDA Y LA OPERACIÓN CESÁRE - A paralisia era quase geral.

 

 

LA CAMA VOLANDO - Impedia seus movimentos.

 

LO QUE EL AGUA ME DIO - Ainda assim, Frida podia ser a bailarina dos pincéis.

 

Devido à gravidade do acidente, seu útero ficou comprometido, impedindo- a de levar uma gravidez a termo. Embora a cada gravidez Frida ressaltasse o seu desejo de ser mãe, ao mesmo tempo questionava-se se ter um filho não a impediria de poder estar sempre ao lado de Diego Rivera, acompanhando-o em suas viagens. Fica uma questão.

Em 13 de julho de 1954, Frida Kahlo é encontrada morta. Causa mortis: embolia pulmonar. Há especulações em torno do seu atestado de óbito. A real causa pode ter sido uma overdose de remédios, dada a quantidade que ela tomava e também o último registro no seu diário: "Espero que minha partida seja feliz, e espero nunca mais regressar – Frida" (KAHLO,1995), que permite aventar-se a hipótese de suicídio. Interrogo a tragicidade. Essas pungentes feridas mortíferas seriam acasos, acidentes da vida, ou seriam oriundas de uma força estranha e mortífera, que a impulsionava à destruição?

Todavia, prefiro privilegiar o legado que essa pintora nos deixou, a sua arte. Esta pode sugerir um contraponto ao quadro de infortúnios e bisturis de seu corpo despedaçado: trata-se de uma constante reconstrução do seu mundo interno. Recomeço, então, o trabalho.

Frida, mulher, mexicana, esposa e amante de Diego Rivera, mulher de uma vitalidade intensa, plena de paixões, comunista, revolucionária, patriota declarada, ousada, transgressora, com livre trânsito no direcionamento da sua libido, artífice das cores, inovadora, criadora. Foi a primeira mulher no século XX a ter uma obra,"A Moldura" ("The Frame"), exposta no Museu do Louvre e que, mesmo nos seus últimos momentos de vida, impossibilitada pela doença e por ordens médicas de se levantar da cama, resolve comparecer a sua primeira exposição em sua terra natal, onde chega transportada por uma ambulância e acompanhada de um caminhão, que leva a sua cama.

THE FRAME

 

Ressalto que não só Tanatos colore a aquarela de pulsões que é a vida de Frida. Nas "Cartas apaixonadas" são entrevistas na alma dessa artista a esperança e a busca de intensas ligações amorosas, libidinais. Eros se faz presente, e, com ele, diversas tonalidades das suas emoções. A dor no seu existir era contínua, mas não era impeditiva de que Frida reconstruísse a sua fragmentação física através da sua pintura, confeccionando um diário pictórico. "Pintar completou a minha vida. Perdi três filhos e uma série de outras coisas que teriam preenchido minha vida pavorosa. Minha pintura tomou o lugar de tudo isso. Creio que trabalhar é o melhor" (ZAMORA, 2002). Desse modo, reafirma com sabedoria encarnada – e afinada com Freud –, que só o amor e o trabalho circulam a libido.

É fascinante o destino que Frida dá ao seu sofrimento. As marcas da morte e da dor não se encapsulam em um masoquismo secreto e passivo, condenando- a a uma posição de vítima, e até de anonimato. A pulsão de vida circula em suas veias e ao que tudo indica, pulsão essa mobilizada pela pulsão de morte, que quebrava as ligações estabelecidas e fazia com que ela criasse novas formas de lidar com tanto sofrimento. E, respaldada em algum talento paterno – fotografia, pintura –, Frida explode suas cores em inúmeras produções artísticas, imagens paradoxais, expressão de horror e beleza. Fica resgatado, então, aquele momento de sangue e de ouro ao qual nenhum pintor sonhou em dar expressão, só Frida. Nas palavras dela: "Magenta? Sangre? Pues! Quién sabe!" As cores do sangue, do ouro e do bilboquê são transformadas de um quantum da sua pulsão em atividades da arte, naquilo que Freud denomina de atividades superiores, sublimes. Pinturas que suturo em forma de associações.

LA COLUMNA ROTA

 

"Frida-demônio. Assim era a Frida-filha, segundo meu pai. Eu me pergunto se até mesmo um demônio mereceria este corpo partido, torturado desintegrado. Quem diria que as manchas vivem e ajudam a viver?"

Frida, com os pincéis, alastrou seu daimon com a sua genialidade e o seu poder, dando asas a eles. As manchas, internas e externas, de dor e de sangue, se transformaram em imagens, ganhando forma e sentido. Pergunto-me: de quantas defesas precisou essa petulante mulher para se proteger de tantas perfurações física e psíquica, sem se perder na loucura, na dessubjetivação e no desamparo sem volta? Em uma fantasia anteriormente relatada, Frida-criança atravessava o "o" de "Pinzón" para chegar ao desejo narcísico de ser único. Hoje, realiza essa viagem através da produção das suas cores. É belo e verdadeiro esse autorretrato – entre a aridez e a leveza. Com toda a desertificação que se tornou a sua vida, a vivência de sua crucificação – expressa tão bem pelas espessas e opacas lágrimas que rolam pela sua face e pelo seu olhar de dor e tristeza – contrasta com a leveza dos traços da sua saia e a altivez da sua postura, e daí fica sugerido um rastro de esperança. Reafirmo esse sentimento dando continuidade com a imagem seguinte:

ARBOL DE LA ESPERANZA, MANTENTE FIRME

 

"Árvore da esperança, mantém-te firme!". Neste auto-retrato, Frida realça a dualidade que está quase sempre presente nos seus quadros. Desnuda seu feminino de uma forma desapegada de qualquer pudor, revelando o seu corpo violentado pelos infortúnios da vida, com cicatrizes e em uma posição interna e afetiva depressiva. Mas Frida não é só isso – corpo e alma despedaçados. Também é firme. De onde vem essa firmeza da árvore? É instigante reparar a outra face da sua subjetividade – uma representação de si, sustentada pela coragem de uma postura do seu mundo interno, altivo. Observar que o aparelho está em suas mãos.

LAS DOS FRIDAS

 

"As duas Fridas – Vida e Morte – psíquicas". Quanto trabalho psíquico nos é exigido, em sua economia e dinâmica, para se manter o princípio do prazer que rege o psiquismo, evitando-se o desprazer, face à angústia de castração. E, para enfrentar a castração, só a castração. Pois é ela que nos oferece a possibilidade de saída para a sublimação – pulsão de vida. Nesta pintura, Frida escancara os dois extremos das tendências das pulsões: fusão/ilusão e desfusão/ desilusão. Ou se tem o objeto do desejo em mãos, tal qual Frida, que segura o retrato de Diego, ou o narcisismo se esvai em sangue. Na figura da direita, ela tem em mãos o retrato de Diego; e, na outra, tem uma tesoura onde aparece a artéria cortada.

EL VENADO HERIDO

 

Esta pintura é realizada após uma, dentre as tantas cirurgias realizadas por Frida, na qual ela estava otimista quanto ao resultado – a eliminação das suas dores. A cirurgia não foi bem sucedida e a depressão a afeta. Perigos de dentro. O veado está ferido, sim, flechado em seu corpo e ameaçado, sempre, pelos perigos externos. Mas, ainda assim, a cabeça está adornada com a imponência das defesas próprias e singulares do seu eu. Não parece uma bailarina? E reparem no fundo do quadro... Sempre havia em Frida uma esperança de reconstruir, costurar e se apropriar do seu lugar no mundo, independente da solidão vivenciada entre ela e a sua dor.

Buscava continuamente contatos e a manutenção das amizades, dos amores, da sexualidade, da família. Assim ia alicerçando alguma garantia que a impulsionasse para a vida, em contraste com a imagem deste quadro. Observem: ela não foi aleitada por sua mãe. Sem encontro de olhares e "sem emoção", como dizia Frida.

MI NANA Y YO

A sabedoria de Frida consiste nas tentativas de unificar o seu eu, nomeando o seu lugar e destacando a ocupação de um corpo na sua árvore familiar; e desse modo, acredito, evitando o mal-estar de um corpo solto, fragmentado no espaço. Ela parece ter sustentado um ego, apesar de tanta fragmentação no corpo. Ele parece ter se enlaçado a uma determinação simbólica

ABUELOS, MIS PADRES Y YO

 

RETRATO DE LA FAMÍLIA DE FRIDA

 

Procurei apresentar uma Frida multifacetada e traçar em palavras um quadro que condensa todas as facetas através das quais essa pintora incorpora, no seu próprio nome, as suas posições subjetivas. Frida já sabia disso, ao pintar este autorretrato em que se coloca no lugar de Carmen, a femme fatale de Bizet, portadora de uma beleza e de uma sedução intensas, adornada pela flora mexicana, e ao sublinhar seu padecimento, tal qual Magdalena, quando figura um colar de espinhos no seu colo. Entre estas duas mulheres, claro, está a Frida personificada na figura da paz. Pois Frida dizia: "Sou filha da paz. 'Paz', do alemão 'Friede'. Frieda, assim me batizaram. Frida, assim me batizei". As três mulheres deste quadro estão contidas no seu nome: Magdalena Carmen Frieda Kahlo Y Calderón.

AUTORRETRATO DEDICADO AL DR. ELOESSER

 

Se as trouxe no início do trabalho em um caldeirão, retiro-as agora, uma por uma, e alinhavo algumas considerações, com base no artigo de Jacqueline Lanouzière – "O peso do nome". A autora sublinha o peso da herança nominal, que atribui ao infante uma posição e função dependentes do imaginário de seus doadores, que se junta a outros traços de identificação e corrobora com a dinâmica do inconsciente, comprovando os laços da fantasia com os das gerações que os precederam. Podemos falar de uma trama que inscreve o sujeito, predeterminando o seu lugar na história e economia libidinais da família (LANOUZIÈREanouzière, 2000).

Maria Magdalena, na tradição cristã latina, é a prostituta que chora aos pés de Jesus. É a pecadora na cidade. E meretrix é o seu epíteto. As lendas reforçam a sua procura de privação, como forma de redenção. Maria Magdalena torna-se eremita. De meretrix, Magdalena atinge a aura de redentora. E Frida com a sua libido libertária; e Frida com o calvário do seu corpo.

Carmen de Bizet (respaldo-me em Birman) é aquela que pode dizer para o seu amante "se eu te amo, cuide-se" (BIRMAN, 1999). Isso quer dizer que ela de modo algum abre mão do seu desejo. Frida, libertária, tal qual Carmen, expõe seus excessos pulsionais de paixão, marca fundamental que emana do seu corpo e comparece em sua arte. Frida e Carmen: uma, real, a outra, personagem; mas as duas representantes de um feminino ruidoso – talvez esse ruído seja o mestre condutor do fascínio dos desnudamentos do seu corpo e do seu ser. Talvez por isso Frida se denomine "La Gran Ocultora". Quem sabe, também "La Gran Ocultora" através das imagens intensas da sua obra, quase que dizendo aos contempladores: "olhem para lá, e não para mim".

Carmen, femme fatale, apunhala os homens no seu coração. Frida, diferentemente de Carmen, não quer tourear com os homens. Frida faz uma fusão entre a sua sedução, quem sabe, de qualidade fetichizada, por um lado, mas atrai a morte por outro. Carmem 'apunhalava' os homens; Frida tentou, contra si, várias punhaladas.

"Kahler, Kahl(o)" é a nudez, o escancarar despudorado da sua alma e, também, a 'calvice', ou, melhor dizendo, as suas deficiências e insuficiências. Elo com a castração. E Frida é o caldeirão pacificado da sublimação da dor e das suas intempéries psíquicas através da linguagem da arte.

AUTORRETRATO EN UN PAISAJE CON EL SOL PONIÉNDOSE

"Crepúsculo de uma vida e de uma morte". A pintura de Kahlo confinada em sua cama, recuperando-se da amputação de sua perna direita, intitulei "Crepúsculo de uma vida e de uma morte". Este autorretrato mostra Kahlo sentada, com o rosto no centro de um grande girassol, sumindo, se apagando, se esvaindo. Quando essa obra estava quase concluída, foi destruída, pela razão de Frida dizer que a pintura foi exibida com uma energia e vitalidade que ela não possuía mais. Era tanta morte, tanta morte – sentida por Frida, internamente – que esta se tornou viva.

 

 

Referências

BIRMAN, Joel. Cartografias do feminino. São Paulo: Ed. 34,1999.         [ Links ]

Freud, Sigmund. Sobre o narcisismo uma introdução. (1914). In: A história do movimento psicanalítico: artigos sobre metapsicologia e outros trabalhos (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago, 1987.( Edição standard brasileira das obras psicológicas compeltas de Sigmund Freud, 14.         [ Links ])

______. As pulsões e seus destinos. (1915). In:______.______. Rio de Janeiro: Imago, 1987. p. 37-162 (ESB, 14).         [ Links ]

Frida Kahlo, Works, Paintings, Art, Pinturas, Obras ,Photos, Fotos... Disponível em:www.fridakahlo.com/paintingsyear01.         [ Links ] Frida Kahlo Fans: Gallery of Paintings by Year/Galería de Pinturas por Año . Acesso em: 29 jul. 2012.

GARCIA-ROSA, Luiz Alfredo. Acaso e repetição em psicanálise: uma introdução à teoria das pulsões. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.         [ Links ]

HERRERA, Hayden. Frida: a biografia. São Paulo: Globo, 2011.         [ Links ]

KAHLO, Frida. O diário de Frida Kahlo: um autorretrato íntimo. Rio de Janeiro: José Olympio, 1995.         [ Links ]

LANOUZIÈRE, Jacqueline. O peso do nome. Cadernos de Psicanálise-SPCRJ, Rio de Janeiro: SPCRJ, v. 16, n.19. p. 83 -106, 2000.         [ Links ]

RIVERA, Tania. Arte e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.         [ Links ]

ZAMORA, Martha (Comp.). As cartas apaixonadas de Frida Kahlo. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência:
Ana Maria de Oliveira Luz
e-mail: ana.luz.2006@globo.com

Tramitação: Recebido em 01/08/2012
Aprovado em 19/08/2012

 

 

* Psicanalista, membro efetivo/CPRJ, especialização em Psicologia Clínica/PUC-Rio, especialização em Saúde Mental/IPUB-RJ.