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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro Dec. 2012

 

Artigos

A diversão com a dor pela via do abjeto no cinema pop violento

 

Entertainment through pain by the way of the abject in violent pop movies

 

 

Marília Etienne Arreguy*

Círculo Psicananlítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Pretendo analisar a pregnância do ethos violento como sintoma cultural no cinema cult de ação violenta. A dor inerente ao mal-estar contemporâneo é expurgada numa espécie de sublimação passiva e masoquista do espectador; pela via do espetáculo abjeto. Trata-se da busca de esvaziamento da angústia através da exposição a um dejeto mórbido, provocando um ambíguo entretenimento atuado na projeção da agressividade e na alienação ao gozo imediato com a morte trágica, embora cause, ao mesmo tempo, asco e pavor atuados no necessário desvio do olhar.

Palavras-chaves: Objeto a, abjeto, dor, cinema pop violento, entretenimento, sublimação passiva.


Abstract

I intend to analyze the prevalence of violent ethos as a cultural symptom in violent cult movies. The spectator's pain, one that is inherent to our contemporary discomfort, is relieved in a kind of masochistic and passive sublimation, and the spectator manages such pain via the abject spectacle. The process refers to the spectator's attempt at overcoming angst through his exposure to a morbid detritus, one that ambiguously provokes an entertainment through the projection of aggression and alienation on the immediate pleasure proportioned by the sight of a tragic death while demanding necessary reactions of disgust and terror that will ultimately divert the spectator's gaze.

Key-words: Object a, abject, pain, violent pop movies, entertainment, passive sublimation.


 

 

O objeto a como abjeto gozo

Se a finalidade do drama, como se supõe desde os tempos de Aristóteles, consiste em despertar "terror e comiseração", em produzir uma "purgação dos afetos", pode-se descrever esse propósito de maneira bem mais detalhada dizendo que se trata de abrir fontes de prazer ou gozo em nossa vida afetiva (FREUD, 1905-6, p. 292).

Importante começar pela perplexidade diante do abjeto, do fator ignóbil, do execrável posto em ato e exposto como um gozo prêt-à-porter pela via da alienação ao Outro midiático em expressões de origem artística. A questão antiga, que se coloca, entretanto, é a dos limites da arte, canônica ou pop – na literatura, no cinema, na música e nas artes plásticas –, estabelecida pelos baluartes do belo e da forma ou, do contrário, informe, transfigurada, até mesmo ao ponto do infame, asqueroso, ao expor vísceras abertas simulando a estridência do sangue na evanescência da morte. A opção, aqui, será realçar a dimensão de diversão imposta pela indústria cultural, conforme apresentada por Adorno, com o objeto-causa de desejo, objeto a, em Lacan, enquanto resto, (a) bjeto, resto do gozo (LACAN, 1962-3; 1966; KAUFMANN, 1993); ambos os conceitos indicam um paradoxo na produção da subjetividade contemporânea, situado entre um esboço de transgressão impossível e o inescapável de uma alienação contundente. Ao relacionar esses conceitos, pretendo salientar uma fenomenologia da dilaceração do corpo e da carne, em que o sangue, o som, os pedaços e excrementos insólitos do sujeito surgem como resto de um gozo mórbido, sádico e excessivo (LACAN, 1959-60; 1963; 1966), que paradoxalmente angustia e mobiliza, por um excesso (aparentemente sublimatório) cuja repetição compulsiva (FREUD, 1920) é determinante de uma vida alienada.

Não é objeto desse artigo uma definição historicizada do conceito de "gozo" em psicanálise. Ressalta-se, no entanto, a fertilidade adquirida pelo conceito através da apropriação lacaniana das construções já feitas por Freud, em que poderíamos precisar diversos momentos na obra de ambos os autores (Lacan, 1932; 1933; 1938; 1949; 1962-3; 1963; 1972-3; Freud, 1905; 1915, 1920; 1924; 1931; 1933). É importante situar o leitor quanto a algumas das características marcantes do gozo, sobretudo em sua relação com a pulsão de morte, dada a centralidade desse conceito na argumentação proposta. Em linhas gerais, o gozo pode ser representado como: primeira experiência de satisfação do bebê (FREUD, 1895); função de órgão nas "fases" da libido (FREUD, 1905); exclusividade de acesso ao gozo fálico pelo pai tirânico (1913); finalidade/objetivo da pulsão (FREUD, 1915); compulsão à repetição pelo exercício superegoico da pulsão de morte (FREUD, 1920); focado contra o sujeito nas três formas de masoquismo (FREUD, 1924); o sentimento oceânico típico do arcaico da relação mãe-bebê, mas também, da experiência religiosa (FREUD, 1929); e, enfim, associado à feminilidade enquanto continente negro, aquilo que é inapreensível da sexualidade feminina (1931; 1933). Lacan, por sua vez, acentua o gozo como confrontação ao Absoluto, com a saída do sujeito do registro simbólico, um "para além" da estrutura, característico do encontro com o Outro primordial; ou seja, com uma mãe devoradora e intrusiva, por exemplo, anterior à constituição das barreiras do eu. Outra forma de gozo, narcísico de fato, pode ser suposta com o júbilo do enfans ao reconhecer sua imagem no espelho, na possível transição que a criança faz de uma alienação a um gozo real para a estruturação da realidade narcísica imaginária (LACAN, 1949). Em todo caso, pode ser tomado como ponto de partida, como no Seminário sobre A carta roubada (LACAN, 1966), em que há a concepção de que esse gozo não se restringe ao plano vital, mas só pode ser dado no humano através de um enlace com a linguagem.

Ora, a principal característica da pulsão, conforme definiu Freud em 1915, é sua condição limítrofe - "entre o psíquico e o somático". O gozo dela produzido é, portanto, um produto dessa relação dialética e inconsciente da assunção da sexualidade no limite entre corpo e cultura. Lacan também ressalta a função da pulsão de morte em sua imbricação com a linguagem, ao analisar a ética do desejo de Antígona, que corre para a morte para garantir uma condição de honra, a de poder enterrar seu irmão, portanto, acentuando, se é que se pode dizer, a associação entre o aspecto real do gozo a uma ética do desejo que desconstrói a ordem simbólica (LACAN, 1959-60), haja vista o fato de partir de um real do sujeito tomado pelo Outro. Nesse caso, haveria um gozo próprio ao estatuto do Outro, tesouro dos significantes, que, do ponto de vista da "estrutura" determina o sujeito por seus excessos e amarras advindas do significante; portanto, da linguagem. Evidentemente, não se poderia deixar de lado a menção à passagem ao ato representativa de um gozo delirante imediado e violento, como descreve Lacan em sua tese (1932), no caso das irmãs Papin (1933), ou ainda, nas descrições que faz da passagem ao ato no Seminário A angústia, ao se referir aos textos Dora e Uma jovem homossexual, de Freud (1905[1901]e 1920a, respectivamente). Sem querer esgotar a riqueza dessa noção na obra de Lacan, cabe ainda acentuar a dimensão derradeira, de outro gozo ou de gozo a mais, excessivo e ilimitado por excelência, característico da feminilidade em contraposição ao gozo fálico do pai tirânico, formulada por Lacan (1972-3), no Seminário Encore. Assim sendo, sem a pretensão de forjar aqui um rigor suficientemente desejável, esses são os principais aspectos que pretendo considerar para discernir a relação do gozo, na equação entre a angústia e o desejo na assunção do objeto a (LACAN, 1962-3), cuja imagem violenta no cinema contemporâneo é elevada à máxima potência. O detalhe de denominar o gozo como prêt-à-porter me veio como uma ironia pela relação com a moda, ícone da sociedade do consumo e do espetáculo (DEBORD, 1987 apud BIRMAN, 1998). Essa lógica, com a qual o cinema atual compactua, ou seja, a de volatizar, acentuar e comercializar o gozo através de uma violência imaginária, produz um gozo real mas, ao mesmo tempo, é signo da absoluta castração, à qual o sujeito fica submetido pelo fetiche da imagem, cuja carga simbólica entrelaçada ao real do gozo pela imagem abjeta implica no estar alienado aos significantes do consumo.

 

Abjeto + objeto pequeno a =(a)bjeto

É útil esclarecer que "abjeto" refere-se a tudo que é baixo, vil, ignóbil, desprezível, imundo, asqueroso, torpe, infame1. Utilizarei, então, o termo e suas derivações para produzir uma leitura do conceito lacaniano de objeto a, guiada por comentadores, em especial, pelo filósofo Slavoj Žižek. Com isso, posteriormente interpretarei fragmentos de cenas de filmes atuais que exploram a violência direta e crua contra o corpo humano, com o intuito de evocar uma dor mortal pela via do (a)bjeto. Para situar o texto, acompanhamos a psicanalista Denise Guedes (2010) que mapeia, em síntese, as etapas da construção do conceito de objeto a na obra de Jacques Lacan:

(…) a angústia como sua tradução subjetiva (1962-1963), o objeto causa de desejo (1962-1963), o objeto da pulsão (1964), o resto da divisão do sujeito (1964), o lugar a ser ocupado pelo analista (1959-1960), como mais-de-gozar (1968-1969) e a sua localização no centro dos três registros (1974-1975) (...) o que só faz confirmar a importância em tomá-lo como ponto de investigação.

O encontro com o objeto a, por definição, é da ordem do impossível, de forma que a sua produção no campo artístico apenas vela um vazio não assimilável, embora algumas cenas o representem com maior intensidade, como é o caso de certas figurações da dor pela violação do corpo humano. No sentido que vamos percorrer aqui, de procurar delinear a sombra do objeto a na arte, não tem nada a ver com o "bom e belo", embora também seja legítimo em outro contexto. Tomando por referencial a descrição do jogo do carretel, feita por Freud (1920) em Além do principio do prazer, entendo que a visada do "objeto a" através de um resto abjeto sempre apresenta algo de thanatos, que se expressa enquanto presentificação da pulsão de morte. Já em Lacan (1962-3), no Seminário 10, o "objeto pequeno a" é resultado da divisão do sujeito pela entrada na linguagem, que não é sem restos, comportando algo que resiste a qualquer simbolização, vista na perspectiva estruturalista como "significantização"2. Para Lacan (1962-3), o objeto a:

(...) é justamente o que resiste a qualquer assimilação à função do significante, e é por isso mesmo que simboliza o que, na esfera do significante, sempre se apresenta como perdido, o que se perde para a significantização. Ora, é justamente esse dejeto, essa queda, o que resiste à "significantização" que vem se mostrar constitutivo do fundamento do sujeito desejante (ibid., p. 193).

O objeto a é identificado, assim, como signo do irrecuperável, na medida em que se apresenta como um lugar vazio que antecede a primeira experiência de satisfação (FREUD, 1895), podendo ser pensado como precursor objeto perdido, por excelência, dado como a causa inconsciente do desejo. O (a)bjeto evoca também um resto intraduzível pelo processo de recalcamento (FREUD, 1897), que está fadado a retornar do plano recalcado, tendendo a impulsionar uma busca compulsiva da imagem de a. Essa busca é sempre frustada, na medida em que visa a tamponar uma falta constitutiva. Ora, o objeto a, ao mesmo tempo em que instaura o desejo, imediatamente se apresenta também como angustiante, dado que seu encontro, ainda que impossível, é da ordem de um gozo insuportável, pelo extravasamento das barreiras eu/outro. Contudo, se não é viável "encontrar" a, é possível vislumbrá-lo, olhá-lo de relance. Esse encontro de relance que antecipa o impossível, no entanto, é fadado ao fracasso, já que a realização plena é sempre adiada, exceto na morte, também presentificada na encenação artística da passagem ao ato no assassínio.

Para compreender a dimensão abjeta do objeto a, é necessário fazer referência a Freud em Três ensaios (1905). Nesse texto é inaugurada, com todas as letras, a noção de que a sexualidade infantil é perverso-polimorfa, pois a criança extrai diferentes formas de prazer erótico de partes "isoláveis" de seu corpo. Essas ditas "funções de órgão", terminologia bastante relacionada à influência darwinista na obra de Freud (1905 [vide LAPLANCHE & PONTALIS, 1967], estão relacionadas às pulsões parciais, que culminarão, posteriormente, no acesso privilegiado ao gozo fálico, a ser regulado pela Lei da castração com o interdito ao corpo da mãe (FREUD, 1924a, 1925). Um apego privilegiado ao (a)bjeto estaria relacionado, num sentido regressivo, às pulsões parciais estimuladas nas ditas fases oral e anal sádica, com a expressão da agressividade motora manifesta na mordida, nos tapas, na retenção, expulsão e manipulação da urina e das fezes. Por ventura, do ponto de vista dos sintomas culturais, essa exigência de sucesso e heroísmo imediatos, imposta pela mídia, pelo marketing e pela indústria cultural – uma exigência por "produtos da subjetividade" –, não nos deixaria a todos, de certo modo, "enfezados"?3 De alguma maneira, a percepção traumática dos dejetos corporais enquanto pedaços decaídos [de si e do corpo do outro]evocaria, simultaneamente, o vazio pela perda do objeto comum à troca libidinal entre o sujeito e o outro, gerando um nostálgico desejo de recuperação do objeto perdido (FREUD, 1895; 1905). A intensidade e qualidade dessas experiências e fantasias estariam ligadas à possibilidade de que as formas substitutivas de prazer do adulto possam vir a ser marcadas por condutas autodestrutivas, destrutivas e/ou violentas (Marcelli, 1991), sobretudo quando a criança sofre graves privações do ambiente (WINNICOTT, 1939; 1950; 1956).

O "objeto a", enquanto "aquilo que cai", (um resto abjeto), é evanescente; portanto, não tem lugar, posto que algo se perde no embate entre dois corpos. Pode ser representado pelas fantasias destrutivas infantis em relação aos dejetos corpóreos como o sangue e as fezes. Apoiando-se na narrativa estruturalista, Žižek (2008a) afirma que "(…) o matema do sujeito é $, um lugar no vazio da estrutura, um significante elidido, enquanto o objet a é, por definição, um objeto excessivo, um objeto que carece de seu lugar na estrutura (p. 136)". Žižek facilita a compreensão da torção operada no Real por uma forma enviesada de olhar, relacionada ao "não-lugar" do objeto a. Em suas palavras: "O que Lacan chama de objeto a é o agente desse encurvamento: o insondável X que faz com que, quando nos confrontamos com o objeto de nosso desejo, obtenhamos mais satisfação ao dançar em torno deste que nos dirigindo diretamente a ele (ŽIŽEK, 2010, p.97)". Ora, o encontro absoluto com o desejo implica algo mortal.

Retornando a Lacan (1962-3), esse resto do recalcamento, estaria "do lado do sujeito", apesar de haver uma tendência a projetá-lo no Outro. No seminário sobre A angústia, Lacan (1962-3) acentua a dimensão dialética de a:

Na medida em que ele é a sobra, por assim dizer, da operação subjetiva, reconhecemos estruturalmente nesse resto, por analogia de cálculo, o objeto perdido. É com isso que lidamos, por um lado, no desejo, por outro, na angústia. Lidamos com isso, na angústia, num momento logicamente anterior ao momento em que lidamos com isso no desejo (p. 179).

O autor afirma, ainda, que há algo irredutível à apreensão do objeto a, e "(...) essa irredutibilidade do a é da ordem da imagem (ibid.)", dado que o objeto a não é passível de ser reproduzido no espelho (LACAN, 1953-4), indicando um ponto de opacidade. Dessa condição inapreensível advém a angústia, que só pode ser revestida no nível da criação de um fantasma subjetivo. Parece ser isso que Lacan destaca quando postula que a dimensão terrificante da angústia suscitada pelo encontro com o vazio do "objeto-causa" está ligada à dimensão fantasmática daquilo que assombra o sujeito, justamente por se tratar de algo inconcebível, porém, contraditoriamente, desejado. Lacan (ibid.) indaga:

Qual é o momento da angústia? Será ele a possibilidade do gesto pelo qual Édipo arranca seus olhos, sacrifica-os, oferece-os como resgate pela cegueira em que se consumou seu destino? Será isso a angústia? Será ela a possibilidade que o homem tem de se mutilar? Não; trata-se propriamente do que me esforço por lhes apontar com essa imagem: é a visão impossível que os ameaça, a de seus próprios olhos no chão (p. 179).

A angústia, portanto, seria a visão impossível dos próprios olhos no chão, olhos arrancados pela visão de um gozo absoluto, ali presentificado pelo incesto de Édipo e Jocasta. A apresentação do objeto a no plano escópico dá a ver ao sujeito sua divisão subjetiva, ali onde já não é mais o sujeito que olha, mas que é olhado pela visão angustiante do Outro referida à invasão do inconsciente, corrompendo os limites da consciência, representada pelo olho que se vira para dentro, mas que, ao ver-se, é visto, invadido pelo Grande Outro. Lacan (1964) afirma, ao evocar a fenomenologia de Merleau-Ponty (1964):

(…) aí está o ponto essencial – a dependência do visível em relação àquilo que nos põe sob o olho do que vê. Ainda é dizer demais, pois esse olho é apenas a metáfora de algo que melhor chamarei o empuxo daquele que vê – algo de anterior ao seu olho. O que se trata de discernir, pelas vias que ele indica, é a preexistência de um olhar – eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte (p. 75-76).

Nas palavras de Žižek (2010):

O status desse objeto-causa de desejo é o de uma anamorfose. Uma parte da imagem que, olhada de frente, aparece como um borrão sem sentido, assume os contornos de um objeto conhecido quando mudamos de posição e olhamos a imagem de viés. A ideia de Lacan é ainda mais radical: o objeto-causa de desejo é algo que, visto de frente, não é coisa alguma, apenas um vazio: só adquire os contornos de alguma coisa quando visto de esguelha (p. 86).

E não seria esse olhar de esguelha, um olhar angustiante, o olhar típico do espectador dos filmes gore4? É essa relação dialética entre a angústia e o desejo, que pretendo salientar nesse ensaio, tendo por base a ilustração do abjeto como modo de captura presente, por exemplo, na violência cinematográfica contra o corpo vivo. A dor negada, sintoma coletivo atual, pode então ser atuada passivamente num contato inefável com a imagem abjeta imposta ao sujeito. O anseio pela visão – prévio à evitação do olhar - da morte explícita em corpos estraçalhados, realça um gozo masoquista (FREUD, 1919; 1924; Lacan, 1963), porém sublimado, posto que se debruça sobre um produto da arte (FREUD, 1908; 1929). Ou seja, o prazer em provocar a dor é projetado no outro – herói/anti-heroi – do cinema. O sujeito busca "diversão" na arte do cinema, mas também representa um afeto ambíguo, ao desviar (divergir) o olhar da cena clímax disruptiva e aterradora do destroçamento do corpo. Ao mesmo tempo, o olhar angustiante prende o sujeito à cena pelo viés de um gozo (LACAN, 1972-3) que se apresenta mais além do princípio do prazer (FREUD, 1920), e faz com que dela ele tenha de se defender, circundando a sombra de a que se depreende no gesto defensivo; um olhar de soslaio dirigido às intoleráveis imagens de exposição da carne sangrenta.

Lacan (1964), no seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, afirma que "(…) a resistência do sujeito que se torna, nesse momento [da angústia], repetição em ato." (p. 57). Nesse sentido, ao mesmo tempo em que o sujeito se "diverte", divergindo de seu modo corriqueiro de ser produtivo porém recalcado, ou seja, quando diverge de um modus operandi tributário da correção subjetiva da consciência e da função normativa do trabalho, atua um gozo infantil e escatológico – típico da pulsão anal-sádica (FREUD, 1905) – no consumo de imagens torpes. Nesse sentido, seu lazer é consumido pela lógica abjeta do próprio sistema, em que a arte é subsumida pela repetição mórbida exigida pelo capital, posto que solapa a singularidade do sujeito, formatando seu desejo, na medida em que o torna objeto de um mais gozar (LACAN, 1968 apud KAUFMANN, 1993). Em que medida um aspecto transgressivo competiria com a alienação típica dessa forma de reprodução da arte nas superproduções cinematográficas?

 

O abjeto na arte e sua cooptação pela indústria cultural

A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio (ADORNO, 1932, p. 30).

Talvez fosse mais pertinente falar de arte no cinema pop violento citando as lutas etéreas apresentadas na série de filmes lançados na entrada do terceiro milênio, com inspiração mais exclusiva nas artes marciais, como O Tigre e o Dragão (dir.: Ang Lee, 2000) e Hero (dir.: Zang Yimou, 2002). Nesses filmes, a realidade é totalmente volatizada numa virtualidade poética de atos e gestos, em que a luta de corpo a corpo é metaforizada em belíssimas danças aéreas. Entretanto, ao perseguir os problemas peculiares ao métier psicanalítico, sobretudo em suas interações com a arte, escolhi figurações polêmicas da violência no cinema, em que possivelmente boa parte dos leitores contestaria o estatuto artístico da obra. Ao optar pela via inversa, ou seja, da análise do abjeto como causa de angústia, permaneceria a indagação: como pensar o desejo pela visão do execrável, angustiante, do corpo aberto e dilacerado? Não seria óbvia a perplexidade diante da fruição artística do assassinato em série, frio, ignominioso com os corpos descartáveis, "fungíveis", da indústria cultural (ADORNO, 2011)? Não cairei na tolice de "patologizar" autores e espectadores com a resposta fácil da perversão generalizada na cultura, ou simplesmente, banalizar o problema, reduzindo- o ao mau-gosto. Penso, apenas, em relacionar certa dinâmica pulsional a uma condição político-cultural. O gozo escópico (FREUD, 1908a; LACAN, 1949), a princípio sadomasoquista, do espectador dos cult movies, se dá no quiasma (MERLEAU-PONTY, 1945/1999) da imagem com o olho que vê, podendo representar tanto uma posição política alienada quanto uma posição subjetiva perversa. Haveria, no entanto, alguma intersecção na aproximação entre "desejo, angústia e objeto (a)bjeto" como uma expressão crítica no cinema cult contemporâneo? Nesse sentido, o resto que sobra do traço artístico do autor na obra, enquanto um ímpeto crítico transgressivo, logo seu desejo de provocar transformação, ao suscitar angústia no outro será cooptado pela indústria cultural como elemento chave na função de alienação das massas.

questão do mal-estar na Arte não é nova. En passant, poderíamos citar as inúmeras representações da Tragédia Grega, com os desfechos trágicos de Édipo, Medeia, Antígona, etc. A expressão do abjeto na arte também aparece em representações renascentistas como, por exemplo, na iconografia de Rubens, com o impressionante quadro Saturno devorando seu filho, exposto no Museu do Prado, posteriormente reinterpretado por Goya. Essa imagem é assustadora, pois mostra o instante do ato canibal, da mordida em que o "pai tirânico" arranca com os dentes um pedaço do peito de um bebê, figurando o vermelho aflitivo da carne. Isso que evoca extrema angústia no sujeito invadido pela imagem intrusiva não seria da ordem do (a)bjeto, do golpe a posteriori de um resto do recalcado – para fazer alusão ao desprendimento do objeto pequeno a, causa de desejo e fonte de angústia, mas também resto do gozo (LACAN, 1962-3; 1964) –, quando o sujeito é exposto a esse despedaçamento na Arte?

Outra alusão necessária a uma breve contextualização do abjeto na arte seria o conceito de "corpo grotesco" – inspirado na literatura de Rabelais, com as sátiras Gargântua e Pantagruel – forjado por Mikhail Bakhtin para analisar o carnavalesco, o satírico, o corpo bizarro, sujo, fecal, fonte de pulsões e prazeres primários, prontos a celebrar o ridículo e dessacralizado da vida. Nesse sentido, o (a)bjeto na arte apresenta uma versão que serve ao propósito crítico, realçando a transgressão presente em aspectos sarcásticos e irônicos, na medida em que desqualificam a ideologia normativa predominante da época.

É importante situar, ainda, o pioneirismo crítico de Pier Paolo Pasolini em Salò (1975) e em O Decameron (1971), ao expor nas telas o abjeto excrementício do corpo, associado à total profanação do sagrado pela exposição da sexualidade mundana, fazendo forte oposição à igreja católica e a seu apoio às políticas totalitárias do século XX. Em paralelo à vertente subversiva de Pasolini, encontra-se a versão light, estranhamente mais sutil – porque retira em parte a torpeza do humano e a recoloca nos zumbis –, ilustrada pela monstruosidade nos thrillers de terror, em que o cineasta Georges Romero é expoente, com o clássico de terror The Dawn of Living Dead [O despertar dos mortos-vivos] (1978). Os mortos-vivos reaparecem das trevas e vão atacar as pessoas num shopping-center, de modo que sua obra fica conhecida como parte do movimento de contracultura, sobretudo, pela crítica à sociedade de consumo.

Não pretendo historicizar o tema do abjeto nas artes, mas apenas pensar em que medida essa "aura da angústia na arte", parafraseando Walter Benjamin (1935-6), encontra uma expressão privilegiada na pop art contemporânea. Afinal, essa tendência supostamente deturpada, a privilegiar os aspectos vis, imundos e torpes como o sangue jorrando, reaparece com vigor e é incorporada pela indústria cultural, especificamente no traçado de heróis e anti-herois das novelas de arte gráfica reaproveitadas no cinema hollywoodiano.

O fato é que o abjeto é vastamente explorado pela indústria cinematográfica, passando por toda ficção científica, desde os mais remotos Star Wars (dir.: George Lucas, 1977) e Blade Runner (dir.: Ridley Scott, 1982), passando pelo assustador Alien: o Oitavo Passageiro (dir.: Ridley Scott, 1979), até a super série Matrix (dir.: Irmãos Wachowski, 1999), com a presença de figuras bizarras emparelhadas a ciborgues e monstros high tech, compondo uma estética conhecida como cyberpunk (ŽIŽEK, 2006; GIL, 2011). Contudo, o que interessa circunscrever neste trabalho seria a monstruosidade inerente ao humano, ou ainda, a crueldade justiceira presente em filmes violentos, seja na encarnação do mal, indo do horripilante canibalismo d'O Silêncio dos Inocentes (dir.: Johnatan Demme, 1991) à violência fria dos filmes de Michael Haneke, como Funny Games (1997; 2007). Aparece, também, na atração do público por "heróis" instrumentalizados nos roteiros por uma atuação idêntica à mesma lógica cruel dos bandidos, ou seja, representada pelo engendramento de contrários, no espelho invertido do mau no bom, desbancando o herói moderno perfeito e realçando o novo herói dividido, um anti-heroi exponencialmente melhor adaptável às identificações ambivalentes dos espectadores.

Assim como a repetição da destrutividade, vista em explosões, acidentes, cenas de tortura, homicídios e assassinatos em série, da crueldade fria, da abertura e massacre da carne aparecem num cine enlatado juvenil, também poderíamos evocar um traço marcante, cujas origens nos quadrinhos remontam ao que, talvez, se possa chamar mais propriamente de pop art, como os desenhos de Frank Miller e Stan Lee, refigurados nos filmes de Quentin Tarantino, como Kill Bill (2003, 2004) e Sin City (2005). Essa violência caricatural também aparece de forma fantasística no clássico Blue Velvet de David Linch (1986), e de modo real, incontornável, no Clube da Luta de David Fincher (1999) ou em No Country for Old Men, ganhador do Oscar de melhor diretor, filme e roteiro adaptado (dir.: Irmãos Cohen, 2007). É fato que, além da maestria no perfilamento dos traços perverso-narcísicos dos personagens, em que há toda uma ideologia americanoide dos super-heróis identificados a super gangsters, poderíamos situar um viés sardônico e derrisório, por vezes, evocando as origens satíricas do grotesco na arte através das imagens bizarras salientadas por esses diretores.

Esse lance mortífero, evocatório de um resto da arte, pode ser situado no esvanecimento da identidade, com a ruptura do corpo. Conforme Adorno (1932/2002):

Essa citação relembra a teorização de Georges Bataille (1999), no livro Erotismo e transgressão, ao situar na experiência do erotismo dos corpos, mas também no sacrifício sagrado, a percepção da imanência do ser na relação de continuidade com o outro. Essa ruptura da identidade individual, pelo desvelamento da carne com a abertura corporal, solapa o eu, indicando o fim disso que Didier Anzieu (1988) definira como um invólucro primordial da constituição subjetiva: o eu-pele, base da individuação e garantia de certa continência pulsional.

No recurso ao abjeto figura, a condição imanente da morte como espectro da vida, salientando seu caráter fungível e a vulnerabilidade do corpo. Mas, afinal, como descrever do ponto de vista metapsicológico a projeção identificatória alienante que o ato de personagens sanguinários suscita em quem assiste aos massacres caóticos ("da serra elétrica"!)? Como se conflagra a influência da lógica destrutivo-tecnológica por toda uma geração de fãs quando, por vezes, é o sentido do ridículo e absolutamente inverossímil que interpela a apresentação de alguns filmes, como Kill Bill? Não estaria, justamente aí, a dimensão política esboçada no cine pop, na aparição do resto do corpo destroçado e na ode à fantasia escatológica, como uma espécie de denúncia e de ridicularização de uma posição subjetiva apegada à súmula de um gozo identificatório representado pela "dança do sujeito em torno do vazio do objeto" (ŽIŽEK, 2008a) (a)bjeto?

Segundo Vilaça (2006): "A abjeção, enquanto perda de sentido do humano, ronda este universo. Por um lado é nomeada, visando ao asseguramento e à cristalização da mesmice individual e coletiva; por outro, é agente produtor de transformação e permeabilidade (p.75-6)". Essa autora assinala a ambiguidade inerente ao contato com o abjeto na arte, ao afirmar que: "O monstruoso tomado como abjeção ameaça e atrai (ibid.)". Marca também a necessidade contemporânea de testar os limites da identidade humana, em que o contato com o monstruoso seria uma forma de exorcizar uma falta estrutural, inadmissível em tempos de plenitude do consumo. Os acontecimentos que afetam o corpo grotesco, conforme definido por Bakhtin (1996 apud VILAÇA, 2006), "se passam sempre nos limites de dois corpos, por assim dizer no seu ponto de interseção: um libera a sua morte, o outro o seu nascimento, estando fundidos (no caso extremo) numa imagem bicorporal (p. 281)". Ora, não é surpresa que os super-heróis e super-monstros não morram, são invencíveis em ambos os lados, do supremo bem ao abjeto mal, imiscuídos, simbióticos, representando a pulsão in contradictio, às vezes, num mesmo personagem5.

Para associar a questão do (a)bjeto na arte à sociedade de consumo é importante, ainda, retomar as palavras de Adorno sobre certo imperativo da diversão na indústria cultural:

(…) a quantidade de divertimento converte-se na qualidade da crueldade organizada. Os auto designados censores da indústria cinematográfica, ligados a esta por uma afinidade eletiva, velam para que a duração do delito prolongado seja um espetáculo divertido. (...) O prazer da violência contra o personagem transforma- se em violência contra o espectador, o divertimento converte-se em tensão. Ao olho cansado nada deve escapar do que os especialistas puseram como estimulante (…). (p. 33, grifo nosso).

Adorno (ibid.) mostra o engodo da suposta realização no cine entertainment: "Este o segredo da sublimação estética: representar a satisfação na sua própria negação. A indústria cultural não sublima, mas reprime e sufoca (p. 35)". Ele salienta a condição alienada do público:

A diversão é possível apenas enquanto se isola e se afasta a totalidade do processo social, enquanto renuncia absurdamente desde o início à pretensão inelutável de toda obra, mesmo da mais insignificante: a de, em sua limitação, refletir o todo. Divertir-se significa que não devemos pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra. Na base do divertimento planta-se a impotência (p. 41, grifo nosso).

Mas, dialeticamente, Adorno redime o espectador, ao relembrar a "dobra", ou melhor, o ponto de tangência entre arte e cultura de consumo: "O divertimento promove a resignação que nele procura se esquecer. A diversão, totalmente desenfreada, não seria apenas a antítese da arte, mas também o extremo que a toca (ibid., p. 38)". Haveria, portanto, um resto da aura da arte que sobra na exposição do corpo abjeto, imortalizado em algumas cenas fugidias que ressaltam as imagens de um gozo mórbido acessível e popularizado, que realiza o ódio inconsciente do sujeito contra o status quo, porém de um modo politicamente flácido. O recalque se camuflaria em sublimação masoquista passiva, configurando um sintoma social de negação da dor.

 

O gozo abjeto como sintoma cultural no cinema de ação heroica violenta

He drinks blood like lemonade Morcheeba (2012).

Se, por um lado, o abjeto no cinema violento pode ser considerado cult pelas tribos sucessoras da contracultura renascida nos movimentos heavy metal e punk, na música, mas também nos quadrinhos e no grafiti, todo o "resto" do imaginário popularizado – no aspecto de massificação dessas expressões artísticas – se oferece à interpretação como um sintoma social, que parece ser característico de certa "adolescência" da cultura (CALLIGARIS, 2000). Trata-se de uma posição coletiva em face às novas tecnologias e àquilo que oferecem de gozo de impacto imediato, atrativamente violento, simples e aparentemente livre de ônus. O filme violento de suspense e ação policial, com a mistura de elementos ninja, gore e de heroísmo fantástico inspirado nos Comics, produz uma imagética saturada de um mais gozar (LACAN, 1972-3), recorrente na figuração de um dado modelo de espetáculo medido por um "platô" comum, a saber: da fantasia de crueldade banalizada, aparentemente corriqueira, que toca o sujeito em seu desejo, pela imputação de um poder megalomaníaco projetado no espectador. Presenciar as cenas abjetas de rompimento do corpo permite um esvaziamento pulsional, ao impor um gozo pela via de uma angústia sinistra, de algum modo próxima à sensação de inquietante estranheza descrita por Freud (1919a), mas também vastamente presente na literatura universal: por exemplo, em Machado de Assis, no conto O espelho. O personagem principal do conto, Jacobina, "encontra" com seu duplo no espelho da família, quando o personagem pôde antever sua própria figuração na morte. Sua imagem se desfaz quando está sozinho, pois todos que o conheciam e vangloriavam, por ser um alferes da guarda nacional, haviam viajado. Ele precisa vestir a farda para voltar a "ser enxergado" no espelho. O estranhamento é dado, portanto, pelo esfacelamento subjetivo com a queda da marca identitária imposta pelo Outro. Não seria também a famosa tela de Edward Münch, O Grito, um dos maiores ícones dessa percepção antecipada da imagem fúnebre de si no Outro?

Por outro lado, os efeitos temerários do gozo banalizado no espetáculo mórbido estão ligados à constatação de que ação política jovem destina-se atualmente ao fracasso, porque toda agressividade é despendida na fuga para o entretenimento sublimatório. Nesse sentido, os jovens do consumo encarnam em si mesmos os mortos-vivos de que fala Žižek (2006, 2011). O morto-vivo filmado por Romero (op. cit.) e conceituado por Žižek (2006) é um zumbi alienado, cuja motivação íntima pode ser associada ao apego às imagens violentas do cinema atual e à aceitação sumária e conformista acerca da lógica capitalista perversa.

Nesse tipo de cinema, um heroísmo fantástico se acopla ao desejo recalcado de "dar a morte" (Mijolla, 2011), enfraquecendo o ímpeto transgressivo, na medida em que as cenas de pancadaria e carnificina justiceira realizam um trabalho de substituição superegoica do exercício crítico, fazendo justiça pelo sujeito. O homicídio pela honra é atuado sem que o espectador se inculpe. No entanto, a repetição da apresentação do corpo abjeto pode também ser lida como resistência ao sistema, na medida em que denuncia o ridículo da moral capitalista, que tem no lucro com a morte e no marketing abjeto a medida de seus fins. Sobraria algo do traço artístico e do ímpeto político transgressor nesses filmes, já que tudo é cooptado pela indústria cultural? Pretendo argumentar que, embora possa haver nas origens do cinema gore um avatar da rebeldia vanguardista, é justamente através da apresentação repetitiva de um "resto" abjeto que se instaura a marca traumática e alienante no espectador. Das figurações do abjeto sanguinário advém sua faceta sintomática alienatória, na medida em que o sujeito é colocado diante da confrontação com o impossível do objeto a, figurado como o curioso execrável a ser desvendado, compondo assim um enlace entre a dimensão intrusiva do perverso grande Outro representado pelo Capital com o desejo subjetivo ambivalente.

A construção social midiática do objeto de consumo idealizado, "apolíneo" (MACHADO, 1985), tem, portanto, como contraponto "dionisíaco" a popularização do gozo fálico (FREUD, 1913) com o assassinato obsceno, a ser "metabolizado" pela assistência. Amalgamada ao erotismo dos corpos cibernéticos, advém a crítica ao sistema capitalista, implícita ou latente, ilustrada por um imaginário transfigurado pelo avesso, salientando o insólito, o destrutivo, o asqueroso e o imundo, na medida em que irrompe como expressão do corte na carne, mostrando o sacrifício do corpo furado, baleado e trespassado em cenas repetitivas e contundentes de uma estética de guerrilha.

Se, de algum modo, a questão da presença de um elemento crítico na dilaceração dos corpos nos filmes gore pode ser mais objetivamente concebida, ou seja, pelo argumento da identificação com a figura fálica dos personagens dos super-heróis justiceiros, signo da onipotência narcísica, é justamente pelo contrário, pelo abjeto camuflado de seu ato, da pulsão de morte em ação em seu inner most self, que pensamos estabelecer uma leitura da função do objeto a conforme a teoria lacaniana, em sua dupla vertente de suscitar a angústia e sustentar o desejo.

Do ponto de vista metapsicológico, há a explicação freudiana pela via da dinâmica identificatória (FREUD, 1921; 1923), dada a internalização de um supereu sádico, que obrigaria o sujeito a assistir o sangue jorrar, ainda que só possa extrair disso um sofrimento (neurótico), assegurando a permanência diante da tela. Já na topologia lacaniana, o gozo que vem a se articular à dimensão de vazio explicitado na dióptrica que situa (ou ao menos tenta circundar...) o objeto a, em si, não é o bastante para designar a causa da angústia alienatória atual. Seria ainda necessário estabelecer um paralelo entre aquilo que era reprimido no cinema moderno (vide ŽIŽEK, 2006; 2008a) e o que é explicitado no cinema hipermoderno. Afinal, seguindo a trilha de Calligaris (1985; 1991), pode-se pensar num desdobramento do sintoma social neurótico para um sintoma social perverso, por trás da própria lógica em que a indústria cultural manipula o desejo pela função de imageamento do corpo desfigurado. A hipótese é que, antes, no cinema hollywoodiano regrado pela censura moderna, o objeto-causa devesse ser camuflado, escamoteado, velado, o que aumentaria objetivamente o desejo e reprimiria o gozo, num período historicamente contextualizado pela aderência à função forte da Lei. Agora, na virtualização completa da realidade, pela multiplicação imaginária das possíveis figurações simbióticas de heróis e de monstros, é a exposição direta, sem mediação, da vida desprendida da carne que deve prender o espectador, obrigando-o a gozar de suas pulsões mais baixas. Trata-se de um ponto de confluência do objeto a enquanto aquilo que cai – niederkommen lassen (FREUD, 1920a) – com a estética da passagem ao ato violento. Então, na atualidade, a encenação da violência abjeta se associa à exigência de gozo associada à angústia em suspense, substituindo o interesse pela política, na medida em que o ato de desejar em si mesmo passa a ser reprimido, pois tudo já vem pronto. O imaginário criativo, portanto, cede espaço a um Real, em que os mortos-vivos (ŽIŽEK, 2006; GIL, 2011) são pequenos espelhos (a)bjetos da ética flácida da plateia.

Segundo Vilaça (2006): "(...) dejetos são reaproveitados, o abjeto se multiplica na produção artística, sobretudo (p. 74)". O (a)bjeto no cinema violento atual representaria, assim, uma dupla faceta da diversão. Tratar-se-ia de um sintoma social atuado naquilo que há de comum ao espectador, pelo que apresenta da experiência subjetiva do objeto a expressa como "diversão", satisfação e gozo, mas também como angústia e repulsa, caracterizadas pelo gesto de fechar os olhos, virar o rosto, de "se proteger" do resto mortífero que "espirra" em sua face, diante de seus olhos. A cena subsequente a um dos massacres perpetrados pelo Motorista, um mocinho ultra violento, representado por Ryan Gosling, no filme Drive (dir.: Nicholas Winding, 2011), é icônica. O Motorista atira com uma mega arma em seu opositor criminoso, fazendo com que ele tenha de virar o rosto para defender-se do sangue que espirra em sua própria face. Esse gesto tende a se repetir no sujeito que assiste: vira o rosto e olha de viés para (não) ver o horror (e não ser visto). Vira-se não-todo para defender-se e não "levar" esse dejeto viscoso na cara. Defesa do olhar invasivo do Outro, como postula Lacan (1964), ao abordar a fenomenologia da percepção e a dialética do visível e do invisível em Merleau-Ponty. O (a)bjeto no cinema teria, assim, a possibilidade de evocar um sintoma social, ou ainda, um sintoma subjetivo amalgamado ao projeto bem-sucedido de alienação da indústria cultural.

 

Alguns fragmentos da abjeção nos cinema cult

A permissividade liberal é da ordem do videlicet: é permitido ver, mas o próprio fascínio pela obscenidade que temos permissão de observar nos impede de saber o que vemos (ŽIŽEK, 2011, p. 20).

Enfim, o que é que "pega" nesses filmes como sintoma social da alienação no gozo imagético com a morte pela exposição das vísceras? Sugerimos algumas imagens que podem ilustrar melhor o que venho chamando de (a)bjeto no cine cult violento atual. A crueldade vil é encenada nesses filmes, ora de modo infame, salientando a exposição de assassinatos gratuitos, ora de modo irônico, com ênfase no ridículo inverossímil em apropriações da arte em quadrinhos como, por exemplo, em Sin City e Kill Bill. Mesmo sem adentrar no enredo dessas historietas, remeto aos fragmentos imagéticos que supõem o abjeto enquanto resto, signo de gozo. Em uma das lutas, "A" mulher, a ninja O'Ren, decepa várias cabeças e membros, fazendo o sangue jorrar de um modo bizarro, absolutamente inverossímil, o que faz cair o suspense e causa estranheza ao denunciar a piada do gozo capitalista. Em Sin City, Marv (Mickey Rourke) é um ogro mercenário que obtém a dádiva de uma noite de paixão com Goldie (Jaime King), um "A" loura enigmática, ao mesmo tempo sedutora e acolhedora, cuja morte na calada da noite não pôde sequer perceber. No dia seguinte, Marv sai numa busca frenética por vingança, trucidando seus inimigos. Mas, chega a ser "engraçado", quando ele pega um deles e esfrega sua cara no asfalto, dirigindo em alta velocidade. Talvez, a mais marcante dessas cenas do (a)bjeto seja aquela do corpo aberto, canibalizado e crucificado por Hannibal Lecter na jaula da qual foge do FBI, no filme O Silêncio dos Inocentes (dir.: Jonathan Demme, 1991), fazendo alusão a Ícaro ou mesmo ao Cristo. Ora, aquilo que representa "o mal" aparece como ridículo na continuação do filme Hannibal (dir.: Ridley Scott, 2001), banalizando seu potencial aterrador com a cena absurda do mesmo personagem comendo o cérebro de sua vítima, ainda viva. A cena canibalística reaparece em Sin City, quando Marv submete o vilão canibal Kevin (Elijah Wood) a assistir seu próprio lobo o devorando vivo. Mas, não há qualquer resolução do conflito, nem alívio para o justiceiro, pois Kevin, o personagem perverso, goza de sua própria dor, com um brilho colorido nos olhos contrastando com a opacidade da cena filmada, como se fosse desenho em quadrinhos, ilustrando uma estética que recorre ao jogo de luz e sombra, típico da pop arte contemporânea. Kevin não grita, nem sofre, tampouco exprime qualquer dor, apenas apresenta um brilho intenso (de prazer!) no olhar. Há uma estética de contraste entre certa realidade apresentada em preto e branco e o colorido do absoluto inefável do objeto a nos personagens que se dão à morte em Sin City: o vermelho da sexualidade mortal de Goldie, a secreção fétida do pedófilo Yellow Bastard, que gruda no corpo do Tenente Hartingan (Bruce Willys), quando ele destroça sua cabeça asquerosa com socos. O Motorista (Ryan Gosling) faz o mesmo ao massacrar com murros o crânio de um mafioso, sugerindo o esfacelamento dos ossos. Quando termina o homicídio, seu rosto está todo raiado de sangue. Em Kill Bill, o (a)bjeto aparece com o sangue jorrando até o teto, na cena em que Beatrix Kido decepa corpos com sua espada "katana". A série de cenas é infinita.

Essas imagens apresentam o instante da passagem ao ato destrutivo, salientando a anamorfose esboçada no gesto defensivo do espectador, ao desviar o olhar da cena repugnante. O sangue, como dejeto primordial da morte, evoca uma continuidade entre ficção e realidade, aproximando também autor, personagem e espectador. À dimensão do quiasma do olhar, soma-se um quiasma tátil, dada a obscenidade mórbida do Real encenado na abertura do corpo. A viscosidade do sangue grudada na face do herói simula uma continuidade entre o vivo e o morto. Mas, não seríamos nós mesmos, espectadores dos filmes cult, justamente isso: mortos-vivos da sociedade de consumo?

 

Conclusão

A análise da expressão do abjeto na estética noir da arte pop cinematográfica reatualiza uma versão crítica da cultura de consumo, outrora representada de modo subversivo na arte ou na contracultura. Apesar de diretores como Tarantino alertarem para o aspecto satírico presente no consumo da violência, a indústria cultural continua a fazer uso do impulso subjetivo mórbido, como forma de alienação a ser assimilada docilmente como sintoma cultural. Faz-se uso de um "mais gozar" sublimado, apoiado na vertente contemporânea de assimilação da exigência superegoica de gozo, para docilizar e controlar na íntegra qualquer ímpeto subversivo transgressor (FOUCALT, 1975). Nesse sentido, um resto da transgressão e da denúncia crítica na arte contemporânea se reduziria ao traço abjeto como forma de ridicularização e manipulação do gozo subjetivo.

 

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Endereço para correspondência:
Marília Etienne Arreguy
e-mail: mariliaetienne@uff.id.br

Tramitação: Recebido em 16/08/2012
Aprovado em 05/10/2012

 

 

* Psicóloga, psicanalista, associada ao Fórum/CPRJ, doutora em Saúde Coletiva/IMS-UERJ, profa. adjunta II/Faculdade de Educação/UFF.

1 Síntese somatória da busca em alguns dicionários de língua portuguesa (Houaiss, Priberam, Aurélio, etc).

2 Faço aqui meu especial agradecimento a Clarisse Boechat, psicanalista da Escola Brasileira de Psicanálise, por sua importante e impreterível ajuda na conceituação sobre objeto a. Aproveito também para agradecer a Cristina Monteiro, professora de psicologia da UFRJ, pelo convite para falar sobre o tema na I Jornada Internacional de Psicanálise e Arte – A arte e o mal-estar na contemporaneidade, ocorrida na UFRJ em junho de 2012.

3 Na fase anal, em especial, a criança lida com a pressão interna de suas necessidades fisiológicas, por excelência, como um objeto precioso, ou seja, como algo de seu que, ao mesmo tempo, retém e joga no mundo, podendo estabelecer uma relação de troca com a mãe, uma troca entre esse resto que oferece como "presente" e o apaziguamento da demanda do Outro. Essa relação pode ser sintomática, no entanto, na medida em que a mãe antecipa a exigência de controle dos esfíncteres e a criança, por essa demanda excessiva, responde a partir de um controle sadomasoquista de seu resto excrementício, como ocorre nos casos de enurese e encoprese (TEIXEIRA PINTO & REIS NETO, 2012). Outra característica de um "primeiro tempo" do abjeto no arcaico da constituição do psiquismo infantil estaria na visão traumática do sangue emanado do sexo nos lençóis dos pais, gerando as fantasias do coito violento (FREUD, 1908). Ainda em relação à emergência do abjeto na sexualidade infantil, há também as fantasias infantis dos meninos sobre todos possuírem pênis, ou mesmo, fantasias sobre a origem cloacal/fecal dos bebês (1905; 1908), relidos por Mijolla-Mellor (1999) como os mitos mágico-sexuais sobre a origem e o fim, ou seja, sobre a vida e a morte. Em geral, quando há um controle satisfatório dos esfincteres, o futuro adulto poderá estabelecer trocas satisfatórias com o outro, podendo abrir mão de seus "produtos" em favor do ambiente.

4 O pioneiro dessa estética foi o diretor Herschel Gordon Lewis, um empresário do marketing, ultra "bem sucedido", que financiava seus próprios filmes, os quais transitaram da categoria pornográfica até o porn-gore. Ele foi chamado o "pai do Gore" com o seu filme seminal Blood Feast (1963), considerado pela crítica como o primeiro do gênero. Lewis inaugurou a estética grotesca da exposição direta de cenas de assassinato conhecidas pelo horror provocado no público. Foi contundentemente criticado pelo mau-gosto relacionado ao real da violação do corpo nas telas; entretanto, sua criação passou a ser apropriada por diversos diretores ao redor do mundo, em inúmeras derivações que vão da pornografia escatológica até o ciberpunk; da hibridização com os quadrinhos até a encenação objetiva da passagem ao ato violento contendo cenas de estraçalhamento do corpo. Seus filmes nunca chegaram ao Brasil, embora o recurso ao gore seja cada vez mais usual em filmes de ação, tanto os piores enlatados, quanto aqueles de diretores considerados cool. Vide http://en.wikipedia.org/wiki/Herschell_Gordon_Lewis (acessado em 9/10/2012).

5 Ilustram esse modus operandi superproduções que ponderam sobre os aspectos vis da personalidade do personagem, relativizando o conflito de um herói-bandido conflituado com suas próprias idiossincrasias, como, por exemplo, no Cavaleiro dasTtrevas, quando Batman luta contra Superman (quadrinhos de Frank Miller - The dark knight returns) ou, na versão negra de Spiderman 3 (dir.: Sam Raimi, 2007), quando "picado" por um vírus alienígena que corrompe seu caráter, desarticulando seu falso self (Winnicott, 1949) bonzinho, e ativando sua face mortífera not politically correct, contra a qual o próprio super-herói tem que se debater. O homem-aranha vai perdendo sua humanidade, quanto mais agressivo se torna. É na trama ideológica do reconhecimento do amor de Mary Jane que ele retoma seu verdadeiro self "suficientemente bom" e castrado, com a resolução da trama em tintas melodramáticas. Essas versões dos quadrinhos no cinema atenuam a violência abjeta na medida em que propõem a identificação narcísica com o herói.