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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro dez. 2012

 

Artigos

Elasticidade e limite na clínica da drogadicção: por um pensamento clínico complexo1

 

Elasticity and limit in the clinic of drugs addiction: in search of a complex clinical thought

 

 

Bianca Bergamo Savietto*; Luís Claudio Figueiredo**

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Neste artigo apresentamos alguns fragmentos dos atendimentos de um caso de drogadicção, em articulação com contribuições teórico-clínicas relativas ao trabalho psicanalítico com pacientes limites. Com base na obra de Wilfred Bion da clínica psicanalítica a partir de três vértices – o da clínica do confronto, o da clínica da ausência e o da clínica da continência – analisamos o material apresentado, consideramos a possibilidade de integração dos três modelos na constituição de um pensamento clínico complexo.

Palavras-chaves: Clínica psicanalítica, drogadicção, confronto, ausência, continência.


Abstract

In this paper we present some fragments of the treatment of a drugs addiction case, linked to theoretical and clinical contributions on psychoanalytic work with borderline patients. In the light of Wilfred Bion's work on psychoanalytic clinic seen from three sides – the clinic of confrontation, the clinic of absence and the clinic of continence –, we contemplate the possibility of integrating the three models in the constitution of a complex clinical thought.

Key-words: Psychoanalytic clinic, addiction to drugs, confrontation, absence, continence.


 

 

Introdução

A grande incidência dos sofrimentos não neuróticos, em nossos atendimentos, configura-se atualmente como um dos principais desafios ao pensamento e à atividade psicanalíticos. Na base desses sofrimentos situam-se aspectos metapsicológicos, como a prevalência da pulsão de morte no psiquismo, a presença do desligamento e das forças de descarga no funcionamento mental, identificações superegoicas tirânicas, essencialmente ligadas a elementos insatisfatórios e excessivamente excitantes dos objetos primários, e resistências constituídas pela aliança do superego primitivo e mortífero com as forças pulsionais indomadas do id. É possível, portanto, afirmar que tais sofrimentos envolvem "uma destrutividade que ataca o processo psicanalítico ao invés de se apoiar sobre ele" (GREEN, 2006, p. 75, tradução nossa), pondo em xeque, deste modo, o método clássico. Sublinhamos, ainda, que todos os que propuseram desenvolvimentos na teoria e modificações no enquadre e/ou nas técnicas – Ferenczi, Klein, pós-freudianos, como Bion, Winnicott, Kohut, Lacan, entre outros – foram levados a isso, principal e justamente, para atender pacientes que estavam excluídos do "atendimento padrão".

Sobre o processo analítico e suas variedades, cremos que em certos quadros psicopatológicos (cada vez mais frequentes em nossos consultórios), os espaços e tempos laterais do enquadre "costumam tornar-se mais importantes para o analista, que sonha, preocupa-se, inquieta-se e, eventualmente, pensa, escreve e teoriza sobre tais atendimentos em seus momentos de folga" (FIGUEIREDO, 2009a, p. 103). A pesquisa de pós-doutorado, à qual este artigo está vinculado, ilustra a importância alcançada por tais imediações do enquadre – espaços e tempos laterais –, no que se refere aos encontros da autora com alguns casos de drogadicção. Na companhia do outro autor do presente texto (supervisor de tal pesquisa de pós-doutorado), a analista vem pensando, escrevendo e teorizando sobre aspectos inerentes a tais atendimentos, atravessados pela presença de sofrimentos que envolvem o tipo de destrutividade assinalado.

A seguir, lançaremos mão de fragmentos clínicos dos atendimentos de "Juliana"2, a fim de ilustrar as manifestações de um corpo mortiferamente aberto, patologicamente dependente e "intoxicado" no campo intersubjetivo da situação analisante. Invadido pela toxicidade e pela dependência ligadas aos desencontros com os maus objetos primordiais, esse corpo não pode ser sentido como simultaneamente pertencente ao próprio sujeito e vinculado ao outro, e sim como dominado pelo outro. Abordaremos de que maneira vem sendo possível acolher a paciente e sua "intoxicação", e manejar a peculiar dinâmica em que uma dependência patológica ao objeto interno é transferida para uma dependência, também patológica à droga. Os fragmentos dos atendimentos serão articulados a contribuições teórico-clínicas. Ademais, analisaremos tal material com base na obra de Wilfred Bion, à luz da concepção da clínica psicanalítica a partir de três vértices: o da clínica da continência, o da clínica do confronto e o da clínica da ausência (FIGUEIREDO, 2012).

 

Fragmentos clínicos

Juliana traz durante meses e meses de tratamento um caderno com suas pautas pré-estabelecidas, discorrendo de modo contínuo e bem articulado sobre os tópicos pré-selecionados. As intervenções da analista são, no geral, consideradas "desvios" que a afastam do que ela "tem" que falar, do que "precisa" falar, segundo seu roteiro. É possível sustentar que as pautas da paciente, sua fala desenfreada, configuram-se como defesas contra o que a situação analisante "comporta de trânsito entre o adormecer um pouco e ser acordado um pouco, recolher-se no mais íntimo e profundo do psiquismo e compartilhar esta experiência com o analista" (FIGUEIREDO, 2011, p. 144). Trata-se daquilo que Juliana "tem" que falar, daquilo que "precisa" falar para evitar "deixar-se cair fora de si"; para evitar os "desvios" impulsionados pela analista, os quais, afastando-a do script, encaminham-na para o contato com a dimensão emocional e pulsional da vivência, diante do qual a linguagem cala.

Juliana, paralelamente ao seu fluente, eficaz e ensaiado discurso, estabelece outro modo de comunicação: senta-se e levanta-se repetidamente; folheia seu caderno; gesticula sem parar (quando a analista "atrapalha o fluxo do raciocínio", ela faz um gesto de quem está levantando uma placa e diz "placa para me lembrar de voltar ao assunto", mantendo a mão levantada até conseguir retomar o fio de sua meada, do qual evita ao máximo fugir); fuma alguns cigarros, toma comprimidos que contêm anfetamina, bebe enorme quantidade de água, geralmente alegando estar de ressaca, e até mesmo ainda alcoolizada.

Seu abusivo consumo de (variadas) substâncias tóxicas não comparece verbalmente como questão, mas insiste em se apresentar numa comunicação "mimo-gesto-postural" (ROUSSILLON, 2005). Esta se desenvolve paralelamente ao nível verbal e é entendida como uma comunicação das experiências subjetivas arcaicas, anteriores à primazia da linguagem verbal.

A paciente, então, endereça uma série de mensagens à analista, levando-a a se indagar sobre a necessidade que a jovem parece ter de lançar mão do recurso a diferentes substâncias tóxicas nos encontros da dupla; a necessidade de elaboração de um corpo que resista, em tais encontros, à ameaça de uma abertura mortal, à possível ligação entre essa ameaça e uma mortífera abertura, já vivenciada nas experiências subjetivas arcaicas, mantida sob a forma de abuso narcísico (SAVIETTO, 2011; SAVIETTO, 2012) –, diante do qual a subjetividade de Juliana se acharia alienada, "submetida" a demandas hiperenigmáticas e intoxicantes.

Cabe esclarecer que essas indagações e hipóteses da analista se apoiam no que Juliana consegue enunciar a propósito dos vínculos com sua figura parental materna e com as outras pessoas que povoam seu mundo psíquico. Neste sentido, a paciente chega ao tratamento atormentada pelas demandas das pessoas que compõem seu universo de trabalho, experimentadas como ininterruptas e impossíveis de ser atendidas, mas, ao mesmo tempo, impossíveis de não o ser, ao menos em tentativa: "não consigo me colocar, impor limites, estou sempre me submetendo". Juliana também atribui grande parte do sofrimento que a traz à análise ao "peso" que sua mãe representa, e que ela não consegue deixar de carregar. A mãe mora no apartamento da filha, alimentando- se, vestindo-se, divertindo-se, etc, com o dinheiro desta, e não contribuindo com o pagamento de nenhuma conta. "Dependente" e "incapaz" são as qualidades que resumem a forma como a paciente percebe sua mãe. "Trabalho, trabalho e não usufruo o que ganho, nada é para mim; mas não consigo mandar ela se virar, não consigo me libertar", é a formulação que ilustra a forma como ela se percebe, em sacrifício de si própria, aprisionada à mãe. Retomando a situação analisante: num primeiro (e nada breve) momento dos atendimentos, constrói-se/instaura-se um dispositivo bastante elástico, para além do face a face, capaz de acolher as mensagens que a paciente endereça, a questão que apresenta na intensa comunicação mimo-gesto-postural. A construção/instauração desse dispositivo apoia-se tanto nas indagações e hipóteses expostas acima, quanto em sua articulação com:

1) O entendimento do recurso compulsivo à droga como escudo, defesa, tentativa de dominação da excitação não ligada. Compreendemos o uso da droga como medida de proteção subjetiva contra as angústias de aniquilação, intrusão ou separação, quando geradas por severas insuficiências ambientais, antes em termos de envoltório psíquico do que propriamente dedefesa, já que a noção de envelope psíquico transmite a ideia de uma ação psíquica necessária (SOUZA, 2002).

2) Uma noção de "elasticidade da técnica" que engloba a "situação analisante como um todo e em sua generalidade (suas regras, seus limites e seus enquadramentos)" (FIGUEIREDO, 2011, p. 140).

3) A concepção de que uma "desconfiança básica" entra em cena quando as funções fundamentais de estimulação e/ou contenção deixam de ser satisfatoriamente cumpridas nos encontros com os objetos primários (Figueiredo; CINTRA, 2004; FIGUEIREDO, 2009b).

4) A compreensão da necessidade de um especial cuidado quanto à espera da instalação da transferência, quando está em jogo o ataque às possibilidades de confiar (FIGUEIREDO, 2009b).

Segundo Freud (1905/1976), o tratamento psicanalítico requer do paciente "um sacrifício em si": a saber, a "sinceridade perfeita". Evidentemente, trata- -se de um "sacrifício" a princípio impensável para os pacientes cujas possibilidades de confiar se encontram em xeque. Com Juliana, é preciso tempo para que o "sacrifício" de uma progressiva sinceridade possa enfim emergir na situação analisante, tempo sem cobrança. Requer-se calma da parte da analista, e árduo esforço da dupla, investidos na construção de uma confiança que permite à analista propor, e à paciente concordar, que abra mão dos cigarros, dos comprimidos e do álcool no espaço que compartilham. A analista se oferece e pode ser reconhecida como objeto com função de contenção – como bom objeto –, mediação da excitação não ligada. É importante observar que a analista só pode ser reconhecida como bom objeto, como objeto confiável, após sobreviver, sem retraimento nem retaliação, a uma maciça redução de sua figura ao estatuto de "objeto-não objeto", objeto negado em sua alteridade, e sob constante tentativa de controle.

Na esteira desse (vagaroso) movimento, Juliana passa a deitar-se (ainda que de frente para a analista) e abdica do caderno com as pautas pré-estabelecidas, deixando-se pouco a pouco encaminhar para o contato com as dimensões emocional e pulsional da vivência. As mentiras e omissões do primeiro momento do tratamento, que continuam sendo sustentadas fora dele, são percebidas por ela própria neste segundo momento, como "uma vida falsa", construída como "defesa" contra algo que traz agora como seu "medo de sentir". A este "medo de sentir" ela também associa, nesta altura, seu abuso de álcool – "Se eu tô triste, eu bebo; mas se eu tô feliz, eu também bebo. Este negócio de sentir não é pra mim não!".

Contudo, acompanhando, apoiada na confiança edificada, os rumos (e não mais "desvios") impulsionados pela analista, Juliana se permite "sentir". Chora compulsivamente, se expressa aos gritos, sua face é tomada pelo rubor; em suas palavras, "surta". A jovem constrói rica analogia sobre a forma como experimenta os primeiros contatos com os sentimentos na situação analisante: "É assim quando sinto forte aqui, como entrar no mar com placa de 'perigo': de repente, os sentimentos pegam uma correnteza e não tem como saber onde isso vai dar. Eu surto!". Como ondas revoltas, o material situado além ou aquém do plano representacional, da capacidade de dominação, transborda o aparelho psíquico da paciente e invade o espaço psicanalítico, sob o testemunho atento da analista.

Nas circunstâncias em que "sente muito forte", em que "surta", Juliana costuma tentar convencer a analista de que realmente precisa dos tranquilizantes com que se medica (geralmente à noite, para dormir). Além disso, tenta convencê- la de que precisa "de remédios psiquiátricos", e solicita que a analista indique um psiquiatra. A analista, por sua vez, interpreta essas solicitações como um pedido de anestesiamento, regido pela mesma lógica notada pela própria jovem no que se refere ao seu abuso de álcool. Com sua implicação, a analista disponibiliza a função de contenção aos estados de turbulência e aposta nessa função. Juliana aposta de volta.

A analista, neste segundo momento, chama a paciente à vida, reclama sua presença viva e interativa, "interpelando", "intimando" (FIGUEIREDO, 2009c) a dimensão emocional e pulsional de sua vivência; mas, ao mesmo tempo, oferecendo continência a esta dimensão. Oferece-se como filtro, com função de para-excitação, à toxicidade intrínseca a aspectos das experiências subjetivas arcaicas de Juliana, os quais, além ou aquém do trabalho do tempo e da simbolização dos traços, não cessam de marcar ruidosamente seu psiquismo.

À luz do que elabora Winnicott, supomos que "a experiência original de agonia primitiva não consegue entrar no tempo passado" (WINNICOTT, 1963/1992, p. 91, tradução nossa), a não ser que a função auxiliar de suporte egoico, insatisfatoriamente cumprida pelos objetos primordiais de Juliana, venha a ser desempenhada pela analista no aqui e agora da situação analisante. Não seria o "medo de sentir" de Juliana, o medo de entregar-se aos "sentimentos" e "surtar", e perder-se de si mesma, o próprio "medo do colapso" winnicottiano? Acrescentamos, com o autor, que esse medo só comparece no tratamento após "considerável progresso" (p. 88).

Ademais, a experiência original de agonia primitiva só pode ser experimentada como tal no aqui e agora da situação analisante, quando a dependência se torna elemento fundamental da transferência. Juliana só pode experimentar "entrar no mar com correnteza", enfrentar a "placa de 'perigo'", de mãos dadas com a analista. Ou seja, na dependência de que esta exerça uma função auxiliar de suporte egoico, de que filtre a toxicidade que a aliena e mortifica.

É nesse contexto, no qual a regressão à dependência está em cena como elemento fundamental da transferência, que Juliana estabelece uma nova relação, com o companheiro atual. Os efeitos dessa relação configuram-se agora como temática central, lado a lado com a necessidade crescente de se desprender do "peso" que sua mãe representa. Ela repete em diversas sessões: "Não adianta, isso não tem solução, eu não consigo virar as costas para ela, não posso abandoná-la. O que vai ser dela se eu fizer isso?". "O que vai ser de você?", a analista interroga. Juliana sempre responde com formulações em torno de uma culpa impensável, o que nos remete à tirania de um superego primitivo e mortífero, assim como a sua aliança com as forças pulsionais indomadas do id; remete-nos, portanto, à destrutividade inerente aos sofrimentos não neuróticos, a qual se configura como resistência e ataque ao processo psicanalítico. Os versos de Fernando Pessoa ecoam na mente da analista: "Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo" (PESSOA, 1928/1995).

Mas parece que Juliana já pode ser (algo)... Na contramão de dois relacionamentos antecedentes, estabelecidos no decorrer do tratamento, um colorido afetivo amoroso caracteriza este novo vínculo (com o companheiro atual). Esse colorido é introduzido pela paciente na situação analisante como "coisas que nunca sentiu antes" e que "não consegue compreender". "É como se ficasse tudo cristalizado, em suspenso, até eu vir na análise. Só entendo o que estou fazendo, vivendo, sentindo, quando venho aqui. Eu precisava era de uma analista de bolso pra carregar comigo!".

É possível perceber o estabelecimento de uma transferência lateral na origem do novo vínculo caracterizado por colorido afetivo amoroso. São as qualidades da relação inédita com a analista que permitem a Juliana sentir "coisas que nunca sentiu antes". Transferência repartida, a dimensão sexualizada é experimentada no vínculo com o novo companheiro, enquanto a dimensão amorosa com seus componentes de sublimação e elaboração é experimentada no vínculo com a analista. Calcados na transferência, os sentimentos se bipartiram, de modo que Juliana não é capaz de, sozinha, dar sentido ao que sente: "fica tudo cristalizado, em suspenso", até ela "vir na análise".

As funções básicas de contenção, mediação, ligação, ainda não estão efetivamente interiorizadas. Ela "precisa de uma analista de bolso", o que denota que ainda está por advir uma eficaz introjeção da figura da analista (das funções básicas que esta desempenha na situação analisante). De todo modo, em oposição ao período "de mais loucura e uso de drogas" ("muito ecstasy, ácido e álcool para acelerar, e muita maconha para rebater"), de um namoro terminado alguns anos antes de a análise começar – o qual comparece no discurso da paciente atrelado a intensa, apesar de vaga, vivência emocional –, ela parece, pela primeira vez, "fazer, viver, sentir" a relação, o encontro com o parceiro atual sem recorrer ao abuso de substâncias tóxicas. "É a vida mais real que já levei até agora", avalia.

No entanto, sublinhamos: depende do espaço psicanalítico para tolerar o que experimenta, para se desintoxicar – "este espaço é o meu balão de oxigênio". Esse espaço também permite à Juliana, finalmente e de forma progressiva, elaborar sua experiência emocional. Nele, descreve as "coisas que nunca sentiu antes" por meio de imagens e metáforas, demandando da analista e, simultaneamente, propiciando a esta – a partir daquilo que a própria analista consegue apreender na contratransferência – um reconhecimento, uma nomeação e uma restituição (à Juliana) dessas "coisas". "É como se eu fosse míope e, aqui, colocasse os meus óculos".

Como todo recurso exterior ao próprio sujeito, o "balão de oxigênio" e os "óculos" fornecem não mais que um "fôlego" / uma "visão" temporários. A analista sente, a cada sessão, os impasses dessa dependência, além do desafio a sua capacidade de reserva, os quais estão em jogo na tarefa de manter viva e operante uma situação analisante que sustenta e dá pequenas doses de lastro ao "fazer, viver, sentir" da paciente.

Em certa ocasião, por exemplo, na qual a analista suspende as atividades de seu consultório durante uma semana, Juliana não comparece à primeira sessão da semana seguinte. Envia, no entanto, o seguinte email para a analista, pouquíssimo tempo antes do início de tal sessão: "Podemos remarcar a nossa sessão de hoje? Motivo? Estou bêbada. Não aguentei e bebi. Por conta dos motivos que me levaram a beber tão cedo, preciso falar que espero enormemente que a consulta não seja cobrada". Quando Juliana escreve "Por conta dos motivos que me levaram a beber tão cedo", consideramos que ela não está consciente de que, na sequência, no que concerne à análise da transferência, tal motivo parece claro para a analista: "preciso falar que espero enormemente que a consulta não seja cobrada"; se a analista suspendeu seus atendimentos e Juliana "não aguentou e bebeu" (se o "fôlego" esgotou / "os óculos" embaçaram), é a analista quem tem que pagar!

A tarefa de manter viva e operante esta situação analisante, tal como a descrevemos acima, para não ser concebida como verdadeira missão impossível, exige a admissão de limites do processo psicanalítico. Exige ainda o exercício de limites nas funções de cuidado e na implicação, visando evitar experiências de engolfamento totalitário e claustrofóbico, estados de alienação e experiências de traumatismo crônico, nas quais o outro reclamante e interpelador sobrepuja o sujeito (FIGUEIREDO, 2009c).

Julgamos ser possível supor que a cautela quanto a tais excessos e exageros deve ser redobrada quando o aprisionamento a uma captura narcísica – na qual o sujeito é narcisicamente abusado em função de demandas alheias – aliena e mortifica a subjetividade. Nesses casos, o dever de preencher o narcisismo alheio precisa ser abrandado. Só assim, uma abertura ressuscitadora, oposta à abertura mortífera para um outro alienante e intoxicante, pode vir a surgir, possibilitando que o sujeito venha-a-ser (algo), que "todos os sonhos do mundo" que ele tem em si, "à parte não poder querer ser nada", venham à tona, impulsionando-o a caminhar, livre, e a desbravar novos horizontes, os seus horizontes (SAVIETTO, 2010; SAVIETTO, 2011).

À luz da concepção da clínica psicanalítica a partir de três vértices (continência, confronto e ausência), analisaremos a seguir o que foi desenvolvido até aqui, tendo sempre em vista que a possibilidade de articulação dos três modelos é "o que mais devemos ao pensamento de Wilfred Bion" (FIGUEIREDO, 2012, p. 15).

 

Os três vértices da clínica integrados em um pensamento clínico complexo

Confronto

Quando o sujeito não tolera a ausência dos bons objetos, ou suas falhas, convertendo-os em maus objetos tóxicos e venenosos que precisam ser evacuados com urgência, estamos diante daquilo que Bion chama de "intolerância à frustração", na qual está em jogo um movimento expulsivo que impede o pensamento – compreendido como elaboração da experiência emocional. O modo de funcionamento mental, em que a intolerância à frustração vigora, configura- se como resistência às transformações psíquicas e como promotor de infinitas repetições. A manutenção dessa resistência entrincheirada nos processos primários pode levar o sujeito a passar da recusa da dor psíquica pela via evacuatória a "um equilíbrio narcísico e resistencial quase intransponível de 'ódio à realidade', ódio a tudo que é 'outro de si mesmo' e coloca um limite à sua fantasia de onipotência" (FIGUEIREDO, 2012, p. 11, grifo nosso).

Essas ideias nos parecem ecoar o que André Green desenvolve acerca do narcisismo de morte, como "busca ativa não da unidade, mas do nada, isto é, de uma redução das tensões ao nível zero, que é a aproximação da morte psíquica" (GREEN, 1988, p. 23). Ao refletir sobre o Zero do nada, Green admite só ser possível falar de uma "tendência" à redução da excitação ao nível zero, da aspiração à morte psíquica no nível do conceito; e acrescenta que o problema se complexifica pelo "fato de que este ponto zero se relaciona com a imortalidade" (GREEN, 1988, p. 26. Grifos nossos).

Quanto à drogadicção, Catherine Chabert (2006) aponta o relevo que a dimensão narcísica assume: na "euforia farmacogênica" uma dimensão narcísica de caráter onipotente, invulnerável e imortal seria buscada pelo eu. Sobre esta dimensão narcísica de caráter onipotente – imaginariamente imortal, porém mortífero –, Sylvie Le Poulichet assevera que por meio da droga o toxicômano encontra "uma forma de sono hipnótico correlativo de um 'recuo narcísico' ou de um 'retraimento dos investimentos do mundo exterior'" (LE POULICHET, 1991, p. 257, tradução nossa). Uma "formação narcísica" é, então, engendrada, uma forma de "homeostase" organizada, como medida de proteção contra um excesso de excitação, com qualidade de arrombamento. Só quando a "prótese química" perde seu efeito é que o sujeito desperta desse "sono hipnótico", ou "errância sonâmbula", tomado novamente pela dor e pelo imperativo de tratá-la.

Voltemos ao que foi dito a propósito da manutenção de uma resistência encastelada nos processos primários – aliança do superego primitivo com as forças pulsionais do id indomadas –, que pode levar o sujeito a um equilíbrio narcísico e resistencial quase intransponível, de 'ódio à realidade'. Do ódio à realidade, como estado de entrincheiramento da onipotência, quando ameaçado pela falta do objeto, por suas falhas ou meras diferenças, passa-se aos ataques aos elos de ligação, aos ataques ao próprio aparelho de pensar, bem como ao do analista. Neste extremo, estamos no terreno das cisões, da fragmentação do mundo das representações e afetos, do encapsulamento narcisista radical. Estamos no terreno da prevalência da pulsão de morte, no qual o desligamento – ou a desobjetalização (GREEN, 1989) – opera, opondo-se às possibilidades de ligação. Estamos, portanto, no campo do significativo fracasso da realização unitária do narcisismo de vida (operada por Eros). Neste terreno, em que o desligamento opera, a vida se acha reduzida a uma função resistencial: o sujeito pode estar tão encapsulado narcisicamente, ao ponto de ficar "'fora de órbita', fora do mundo, fora de contato consigo e com os outros, sem sofrer e sem, realmente, viver" (FIGUEIREDO, 2012, p. 12).

Para fazer frente a essas defesas e chamar o sujeito de volta à vida, desta vez para uma vida de relações com objetos mais capazes e confiáveis que aqueles das experiências iniciais, é preciso, no âmbito clínico, lançar mão de uma estratégia de confronto com as resistências, mesmo que com moderação, nuance, dosagem. Esta noção de confronto se faz notar no modelo clínico do começo ao fim dos trabalhos de Freud, atrelada ao tema das resistências. Neste modelo da Clínica do Confronto, trata-se de exercitar interpretações interpelantes e desalojadoras, pertinentes à identificação e perlaboração das resistências. A posição do analista não é a de quem propõe uma compreensão (ou hipótese compreensiva), e sim a de quem introduz a diferença, a questão, estabelece a dúvida. As interpretações configuram-se, portanto, como "interpretações propriamente analíticas no sentido de que desfazem certezas, convicções inteiriças acima de qualquer suspeita, versões solidificadas, todas com o estatuto de crenças inconscientes com funções resistenciais" (FIGUEIREDO, 2012, p. 12-13). A Clínica do Confronto se caracteriza, então, essencialmente, pela imposição de limites (às manifestações da fantasia de onipotência infantil, ao mundo pulsional indomado e aos excessos das injunções superegoicas mais primitivas), que atuarão impondo uma demanda de trabalho psíquico, de crescimento e, logo, de transformação do aparelho para pensar do paciente.

No caso de Juliana, é possível afirmar, nesta altura, que uma estratégia de confronto foi fundamentalmente necessária (mesmo com moderação, nuance, dosagem), diante dos seguintes elementos, intrinsecamente ligados:

1) A necessidade da paciente de excluir a analista por meio do recurso a variadas substâncias tóxicas (cigarros, comprimidos de anfetamina e álcool, como já descrevemos). E ainda: por meio da preparação de scripts, daquilo que "precisa" falar; isto é, por meio da resistência ao sonho, ao brincar, ao recolhimento ao mais íntimo e profundo do psiquismo – e ao compartilhamento dessas experiências com a analista.

2) O radical encapsulamento narcisista da paciente e o estado de entrincheiramento da onipotência. A fim de não se esvair no nada (de não anular sua subjetividade na alienação que tem lugar no abuso narcísico perpetuado), Juliana procura proteger-se no registro do absoluto. Porém, quanto mais o eu tenta se afirmar dentro de um fechamento narcísico, mais ele se faz, paradoxalmente, desaparecer. Ou seja, na tentativa de autoengendrar esse "corpo fechado" e se refugiar no registro do tudo, Juliana aliena-se novamente, permanecendo no registro do nada, inerente à destituição da posição de sujeito, à dependência patológica e desumanizante.

3) O "poder 'antissimbolização'" (PEDINELLI; ROUAN, 2000) e o efeito analgésico inerentes ao comportamento adictivo.

Tais elementos, em articulação, evidenciam a ação dos processos de desobjetalização na situação analisante. Escrevemos sobre a maciça redução da figura da analista ao estatuto de "objeto-não objeto", objeto negado em sua alteridade e sob constante tentativa de controle. Acrescentemos agora: objeto ameaçador do estado de entrincheiramento da onipotência por sua falta, falha e meras diferenças. Green diz justamente que o objeto, por meio da ação dos processos de desobjetalização, "se torna um objeto qualquer, ou nenhum objeto" (GREEN, 2003, p. 86). Quando o desligamento opera contra as possibilidades de ligação, cria-se "uma crosta mineralizada em torno do sujeito, erigida contra a vida" (FIGUEIREDO, 2012, p. 12).

Diante de uma Juliana 'fora de órbita', fora do mundo, fora de contato consigo e com os outros – além de sem sofrer, sem sentir; lembramos as palavras da paciente: "Se eu tô triste, eu bebo; mas se eu tô feliz, eu também bebo. Este negócio de sentir não é pra mim não!" –pensamos que é possível sustentar que algum confronto se configurou como condição essencial da instauração do processo analítico. Vemos esse "algum confronto" nas interpretações e manejos discretamente persistentes (apesar de as intervenções da analista serem geralmente consideradas "desvios" que apenas "atrapalham o fluxo do raciocínio") que convidam a paciente a despertar de seu "sono hipnótico", de seu estado de anestesiamento; que a conduzem, pouco a pouco, ao contato com a dimensão emocional e pulsional da vivência; que possibilitam, adentrado o segundo momento do tratamento, que a analista intime a paciente a enfrentar a "placa de 'perigo'" e a "entrar no mar com correnteza", que a chamam de volta à vida de relações.

Roussillon traça uma distinção entre "transferência por deslocamento" (transfert par déplacement) e "transferência por inversão" (transfert par retournement). Apesar de serem movimentos antagonistas, incompatíveis entre si, esses dois tipos de transferência estão simultaneamente ativos no duplo vínculo que se constrói no processo denominado transferência paradoxal. Na "transferência por inversão", em vez de ser posto no lugar de algum personagem da história libidinal do sujeito, é o lugar do próprio sujeito que o analista ocupa. "O analisando faz o analista viver aquilo que ele não pôde viver e simbolizar de sua experiência própria, ele faz o analista sentir aquilo que ele não pôde sentir nele mesmo, ele faz o analista ver aquilo que ele não pôde ver de si (...)" (ROUSSILLON, 1999, p. 108, tradução nossa).

À transferência paradoxal corresponde uma contratransferência também paradoxal, uma vez que os afetos clivados e repudiados pelo analisando retornam no vivido contratransferencial. É o analista, então, que agora experimenta e deve ser capaz de suportar o sentimento de impasse, de situação sem saída, que estava na origem do retraimento e da clivagem histórica do sujeito.

Em consonância com o que desenvolvemos anteriormente, Roussillon afirma (inspirado nas ideias de Winnicott) que, em tal contexto, o analista deve ser capaz de sobreviver psiquicamente, o que significa não retrair-se nos planos afetivo ou intelectual, nem exercer a retaliação afetiva. É preciso ainda que o analista mantenha a criatividade em seu funcionamento psíquico.

Na desafiadora manutenção da criatividade no funcionamento psíquico da analista, na persistência de suas interpretações e manejos – apesar dos ataques ao aparelho de pensar da dupla –, estamos focalizando uma dimensão de confronto fundamental à instauração do processo analítico. Frente aos maciços ataques aos elos de ligação, à batalha num terreno dominado pela (pulsão de) morte, a analista não se rende. Ela sobrevive, e chama a paciente de volta à vida, lançando mão de uma estratégia de confronto. Firme, determinante, porém discreta, pois consideramos, apoiados nas observações clínicas de Bion, que as transformações projetivas de O, e sobretudo, as transformações em alucinose prevalecem no primeiro momento dos atendimentos de Juliana, exigindo a integração e dominância de outro modelo clínico: o da Ausência.

 

Ausência

As transformações de O em movimentos rígidos são as reedições próprias aos fenômenos da transferência neurótica, tal como foram abordadas por Freud. Já nas transformações projetivas de O, afetos e representações "esparramam- se" sobre figuras não delimitadas, assim como sobre planos e dimensões diversos. Em tais transformações, as transferências não são as neuróticas: evidenciam outro modo de funcionamento mental, característico das relações psicóticas (mesmo quando o paciente não é psicótico), em que fragmentações e dissociações estão em cena.

Vimos que ao movimento de "transferência por inversão", ativo no processo de transferência paradoxal, corresponde um movimento contratransferencial também paradoxal, no qual o analista experimenta e deve ser capaz de suportar o sentimento de impasse, de situação sem saída. Quanto às transformações projetivas de O, notamos uma sintonia a respeito da contratransferência e daquilo que o analista deve ser capaz de tolerar: em sua contratransferência, o analista tende a sentir-se demasiadamente confuso, atacado, perdido e até mesmo devastado em sua capacidade de pensar; diante das transformações projetivas de O, o analista deve ser capaz de suportar a incerteza, o mistério e a dúvida – de manter-se no que Bion denominou negative capability.

É fato que abrir mão da compreensão prévia, da memória e do desejo é sempre fundamental para a escuta. Porém, em relação às transformações projetivas de O, o desencaminhamento sentido pelo analista pode levá-lo a se aliviar da angústia por meio do 'refúgio no conhecimento', a fim de evitar "experimentar em toda a sua radicalidade a ignorância e, a partir daí, ir deixando que se configure, sempre parcialmente, algum padrão reconhecível" (FIGUEIREDO, 2012, p. 19). Aliás, frente às transformações projetivas de O, não se trata apenas de dar tempo ao tempo para a emergência e reconhecimento de algum padrão: é preciso dar tempo ao tempo para que a própria situação evolua.

No que se refere às transformações em alucinose, faremos alusão à noção de intolerância à frustração, já contemplada, para avançar que tais transformações envolvem uma negação ainda mais radical da frustração, um movimento ainda mais onipotente, em que algo é criado no lugar do nada e do caos deixado pelo objeto falho e faltante. Aqui, o sujeito preenche o vazio de modo onipotente, com afetos, representações e sensorialidade, criando o objeto onde ele não está, superando imaginariamente a sua dependência e se entrincheirando nessa autossuficiência.

Neste ponto, cabe afirmar que a conduta adictiva promove a descarga da excitação não ligada (em detrimento de sua simbolização) e, simultaneamente, o encontro com sensações por meio das quais o sujeito pode sentir sua própria existência – sensações que, ademais, ele julga controlar, devido à ancoragem delas numa atividade fisiológica e/ou numa substância exógena. Além disso, quanto à especificidade da drogadicção, se a evacuação da excitação é buscada por meio do compulsivo abuso de substâncias tóxicas, é importante notar que a tendência à redução das tensões ao nível zero é freada por meio da utilização destas mesmas substâncias, a fim de que o ser inteiro do sujeito não seja aspirado na radicalidade de uma descarga regida pela lógica do absoluto. Para defender- se de uma radical estraneidade e, ao mesmo tempo, proteger-se dessa descarga da excitação aniquiladora, o sujeito toxicômano procura abrigo enfurnando- se em si mesmo.

No sentido do que estamos qualificando como um enfurnamento em si mesmo, Chabert (2006) utiliza a expressão repli autarcique, para falar do movimento que está em jogo na toxicomania (autarcie quer dizer autarcia em português, palavra que significa o estado de um país possuidor de economia fechada, autossuficiente). Pierre Fédida (1991), por sua vez, elabora que certos quadros psicopatológicos – entre eles, a toxicomania – abarcam de maneira imediata a intuição do autismo, justamente por envolverem movimentos auto, isto é, movimentos de retração e de isolamento que assinalam o fracasso do outro no autos do autoerotismo: um autoerotismo sem Eros. Nesse recuo sobre si, característico da drogadicção, a realidade é desinvestida em benefício da ação da droga sobre a percepção; ademais, qualquer relação com a alteridade tende a ser excluída, sendo privilegiada a relação consigo mesmo. Trata-se, porém, de uma relação consigo mesmo falaciosa, uma vez que, devido ao intermédio de uma substância tóxica, se dá com um si mesmo alterado. Trata-se de "uma alteração sem alteridade" (LE POULICHET, 2006, p. 172, tradução nossa).

Por abranger com tamanha relevância e evidência os aspectos da onipotência (da crença ilusória em uma plenitude narcísica) e da alienação, assim como uma dimensão essencial de sensorialidade, julgamos ser possível sustentar que, na drogadicção – compreendida sob a ótica dos elementos que vimos analisando e ilustrando com base nos fragmentos clínicos dos atendimentos de Juliana –, as transformações da experiência de O em alucinose predominam. E quando prevalecem, a experiência emocional de origem, O – vazio infinito e sem forma, essencialmente incognoscível, mas também, potencialidade de forma – é negada por meio da transformação imaginária do nada em algo. Frente à prevalência das transformações em alucinose, a possibilidade de o analista manter-se na negative capability (em que O pode ser primeiramente admitida pelo próprio analista) é exatamente o que permite ao paciente percorrer o caminho da renúncia e do desapego a algo que supostamente dá sentido, preenche.

A uma dimensão de confronto discreta, mas determinante, operante no primeiro momento do tratamento de Juliana – dimensão que concorre significativamente para a entrada no segundo momento e neste se acirra –, consideramos que se integra, então, a dominância do modelo clínico da ausência. Em algum tempo, para configurar-se como aquele em que a analista desponta como bom objeto, como objeto confiável, deslocando-se da posição de objeto ameaçador do estado de entrincheiramento da onipotência, por sua falta, falha e meras diferenças, é preciso dar tempo ao tempo... Não para a emergência e reconhecimento de algum padrão, lembremos, e sim para que, ancorada nesta mescla de algum confronto com a força do modelo clínico da ausência, a própria situação evolua. Isto é, para que a transformação da experiência emocional de origem, O, marcada pela severa inaptidão dos maus objetos primordiais da jovem, possa encontrar lugar, engendrando a instalação de uma atmosfera de confiança mútua entre a paciente e a analista.

Transformar-se exige "uma experiência emocional profunda, drástica, catastrófica: a ampliação da capacidade de sofrer – sentir e dar sentido à experiência, sem previamente sabermos no que isso vai dar" (FIGUEIREDO, 2012, p. 22). E, como desenvolvemos antes, é exatamente apoiada na confiança edificada – construída no decorrer do que descrevemos como um "tempo sem cobrança", sendo possível também articular agora esta não cobrança à tolerância da incerteza, do mistério e da dúvida, e portanto, à negative capability –, que Juliana se permite acompanhar os rumos (e não mais "desvios") impulsionados pela analista; se permite "sentir" e "entrar no mar com placa de 'perigo'", no qual, "de repente, os sentimentos pegam uma correnteza e não tem como saber onde isso vai dar".

 

Continência

Se algum confronto se mistura à dominância do modelo clínico da ausência no primeiro momento dos atendimentos de Juliana, abrindo espaço para a instauração do processo analítico (já que a via oferecida pela análise não pode prescindir de um contato com o sofrimento), adiantamos acima que, adentrado o segundo momento do tratamento, a estratégia de confronto se acirra. Simultaneamente a esse acirramento, à "intimação" da dimensão emocional e pulsional da vivência da paciente, a analista oferece, no entanto, continência a tal dimensão. Ela se oferece como filtro à toxicidade que aliena e mortifica a jovem, e exerce função auxiliar de suporte egoico. Cabe sublinhar, apoiados nas elaborações de Green, que os (bons) objetos primários têm como função essencial tanto despertar e revelar a pulsão quanto, precisa e paradoxalmente, contê-la e transformá-la.

Cabe também destacar que o uso da continência não esteve ausente no primeiro momento dos atendimentos de Juliana. É possível notá-lo naquilo que trouxemos como o acolhimento, por parte da analista, das mensagens que a paciente endereça e da questão que ela apresenta na intensa comunicação mimo-gesto-postural, estabelecida paralelamente ao seu fluente, eficaz e ensaiado discurso. Tais experiências são comunicadas pela jovem, também por meio de identificações projetivas maciças.

É a Bion que devemos o entendimento da identificação projetiva, antes de se configurar como defesa patológica própria a pacientes psicóticos e casos limites, como uma modalidade primitiva – mas normal e necessária – de comunicação nas relações iniciais mãe-infante, uma comunicação não verbal e pré-verbal. É Bion, ainda, que confere ao processo da identificação projetiva uma dimensão intersubjetiva central, ao considerar que o que se passa com o objeto primário e o seu modo de funcionar tornam-se absolutamente decisivos para os destinos do indivíduo que o usa como alvo de suas identificações projetivas. Na situação analisante, o analista deve ser capaz de exercer as funções maternantes de acolhimento, sustentação, elaboração, interpretação e devolução, no devido tempo, das experiências projetadas pelo paciente.

O que estamos apontando como presença da continência no primeiro momento dos atendimentos de Juliana é justamente a capacidade da analista de acolher e sustentar as experiências comunicadas, tanto mimo-gesto-posturalmente, quanto por meio das projeções. Neste momento inicial e duradouro, a analista acolhe e sustenta essas experiências, lançando mão da construção/ instauração de um dispositivo bastante elástico (para além do face a face, como já vimos), sem ceder à tentação de se 'refugiar no conhecimento'. Quer dizer, experimentando e suportando intensa perturbação, além de considerável incerteza, mistério e dúvida, o que nos remete novamente à negative capability e à questão da dominância do modelo clínico da ausência em tal momento. A 'continência ativa' (os processos metabólicos da mente, como a rêverie, implicando a elaboração, interpretação e devolução dos elementos projetados) aguarda o devido tempo – a evolução da situação – para protagonizar a cena.

É importante fazer uma ressalva antes de prosseguirmos. Estamos indicando o acirramento da estratégia de confronto e o protagonismo do modelo clínico da Continência como característicos do segundo momento do tratamento de Juliana. Apesar disso, acreditamos que alguma ausência precisa estar sempre operando para modular os excessos da clínica da continência e da clínica do confronto.

Voltando à ideia do modelo clínico da continência como dominante no segundo tempo dos atendimentos de Juliana, apreciemos a noção de 'continência ativa', pela qual os elementos b são transformados em elementos a. Antes que o sujeito seja capaz (assim como quando se mostra relativamente incapaz) de exercer a função a fundamental à transformação metabólica de suas experiências emocionais mais primitivas, é a mente do objeto maternante que a exerce.

Sobre o momento em questão do tratamento da paciente, dissemos que é em seu contexto – no qual a regressão à dependência é elemento fundamental da transferência – que ela estabelece o vínculo com o companheiro atual. Articulamos a possibilidade de Juliana sentir "coisas que nunca sentiu antes" às qualidades da relação inédita com a analista, apontando o estabelecimento de uma transferência lateral na origem desse novo vínculo. Dissemos, então, que calcados na transferência, os sentimentos de Juliana se bipartiram, de modo que ela não é capaz de, sozinha, dar sentido ao que sente, precisando da analista para "entender o que faz, vive e sente" na relação com o companheiro. Afirmamos, também, que o fato de ela "precisar de uma analista de bolso" denota que ainda está por advir uma eficaz introjeção da figura da analista (das funções básicas que esta desempenha na situação analisante).

A paciente "precisa é de uma analista de bolso para carregar consigo" porque ainda não é capaz de exercer, por si só, a função a necessária aos processamentos de suas experiências emocionais. Evidentemente, a cristalização, a suspensão, o não entendimento do que faz, vive e sente produz angústia e terror. Numa ocasião, por exemplo, em que aguarda o resultado de um teste de gravidez, profundamente angustiada , Juliana telefona para a analista. Esforçando- se para apreender o que a paciente diz em meio aos soluços, a analista percebe que seu pavor não está ligado aos desdobramentos da possibilidade de ter um filho, e sim à sua incapacidade de processar os impulsos, afetos e sensações que tal possibilidade provoca

De todo modo, como também já dissemos, em oposição ao período "de mais loucura e uso de drogas" de sua vida, período do namoro terminado alguns anos antes de a análise começar (e que comparece no discurso da Juliana atrelado a uma forte, conquanto vaga, vivência emocional) ela parece, pela primeira vez, "fazer, viver, sentir" a relação, o encontro com o parceiro atual sem recorrer ao abuso de substâncias tóxicas. E avalia ser "a vida mais real" que já levou até então.

O despertar de seu "sono hipnótico", o chamado à vida de relações com a analista repercute agora no estabelecimento de um vínculo "real" com o companheiro atual. Vínculo não atravessado pelo anestesiamento, pela necessidade de não ativar (ou de ativar ao mínimo) a carga pulsional e emocional para impedir a ameaça de impasses gerados pela reativação do traumatismo – Roussillon (2006) designa esta medida adotada pelo psiquismo diante de experiências traumáticas, como "'neutralização' energética", medida que implica uma restrição drástica das condições de vida.

Porém, como ressaltamos ao descrever o segundo tempo dos atendimentos, Juliana depende do espaço psicanalítico (seu "balão de oxigênio") para tolerar o que experimenta, para se desintoxicar. Neste espaço, ela descreve as "coisas que nunca sentiu antes" por meio de imagens e metáforas, demandando da analista e, simultaneamente, propiciando a esta – a partir do que a própria analista consegue apreender na contratransferência – um reconhecimento, uma nomeação e uma restituição (à Juliana) dessas "coisas".

Esse compartilhamento do sentido possível de uma experiência emocional constitui exatamente a base sobre a qual se constrói o modelo de uma clínica da continência, a qual comporta a sustentação e contenção, o acolhimento, a elaboração, a simbolização, a compreensão, o reconhecimento e o espelhamento. Após todo esse trabalho psíquico do analista, ocorre a 'devolução' do projetado, completando-se o processo quando o material é introjetado pelo paciente. O processo se completa quando, introjetado todo o material antes "não compreendido" pela paciente e agora metabolizado e devolvido pela analista, Juliana afirma "ter colocado os óculos".

Gostaríamos ainda de chamar a atenção para o seguinte impasse que, dentre outros, pode ser produzido por um 'excesso de continência' (ou por uma clínica da pura continência): a manutenção de uma transferência positiva idealizada, não analisável, na qual o sujeito é mantido numa situação de infantilidade e dependência crônica a um Outro supostamente onipotente. Tal impasse remete ao que elaboramos anteriormente sobre o exercício de limites nas funções de cuidado e na implicação.

Supusemos que a cautela quanto aos excessos nas funções de cuidado e aos exageros na implicação deve ser redobrada quando o aprisionamento a uma captura narcísica aliena e mortifica a subjetividade. Sustentamos que, nesses casos, o dever de preencher o narcisismo alheio precisa ser abrandado, para que uma abertura ressuscitadora, oposta à abertura mortífera para um outro alienante e intoxicante, possa vir a surgir, permitindo que o sujeito venha- a-ser (algo), que "todos os sonhos do mundo" que ele tem em si, "à parte não poder querer ser nada", venham à tona, impulsionando-o a caminhar, livre, e a desbravar novos horizontes, os seus horizontes.

Essa abertura ressuscitadora à diferença, libertadora, não encontra lugar, evidentemente, na autossuficiência defensivamente onipotente. Mas tampouco encontra lugar numa relação de dependência absoluta. No que concerne ao caso de Juliana, cremos que essa abertura diferente só pode despontar numa relação de interdependência entre uma paciente com "maior capacidade respiratória", "menos míope", e uma analista que, além de não ser onipotente, de ser reconhecida em suas falhas, "não cabe no bolso", pois é um outro (ainda assim confiável).

Que fique claro: é ao processo de compartilhamento do sentido possível de uma experiência emocional que nos referimos, quando dissemos que o processo se completa ao Juliana afirmar "ter colocado os óculos". O processo psicanalítico caminha... Rumo ao desprendimento, à separação, à constituição de um aparelho próprio para pensar, e não no sentido do estabelecimento e da manutenção de uma relação parasitária e simbiótica que funcionaria como prótese com valor de suplência às carências da constituição narcísica da paciente. Afinal, caminhando nesse sentido, o processo (psicanalítico, neste caso?) nada mais do que manteria Juliana na mesma situação de infantilidade, desamparo, alienação e de dependência patológica e desumanizante a um objeto tão supostamente onipotente quanto a droga.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Bianca Bergamo Savietto
e-mail: biancasavietto@yahoo.com

Luís Claudio Figueiredo
e-mail: lclaudio@netpoint.com.br

Tramitação: Recebido em 18/08/2012
Aprovado em 17/08/2012

 

 

* Psicóloga com especialização em Saúde Mental (ENSP–FIOCRUZ), mestre (bolsista CAPES) em Teoria Psicanalítica/UFRJ, doutora (bolsista CAPES) em Teoria Psicanalítica/UFRJ, com período "sanduíche" na Université Paris 7 – Denis Diderot, pós-doutoranda/Departamento de Psicologia Experimental da Universidade de São Paulo (bolsista FAPESP).

** Psicanalista, prof./USP e PUC-SP, autor de artigos publicados em revistas nacionais e estrangeiras e de diversos livros, entre os quais, Ética e técnica em Psicanálise, Psicanálise: elementos para a clínica contemporânea, Melanie Klein: estilo e pensamento, As diversas faces do cuidar, Bion em nove lições e Balint em sete lições.

1 Este artigo é fruto de um trabalho apresentado e discutido na reunião científica A psicanálise e a clínica contemporânea – elasticidade e limite na clínica contemporânea: as relações entre psicanálise e psicoterapia, que teve lugar no IPUSP em maio de 2012, com apoio da USP e da FAPESP. Nossos agradecimentos a Octavio Souza, que organizou conosco a citada reunião científica e participou da apresentação e discussão do trabalho que deu origem ao presente artigo.

2 Jovem adulta de quase trinta anos, em análise há mais de cinco anos, que não tem certeza de quem é seu pai e cuja mãe é "um filho grande". Seu percurso é marcado por drogas ilícitas, álcool, abuso de anfetaminas e consumo de tranquilizantes.