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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro dez. 2012

 

Artigos

Psicanálise e Universidade: considerações a partir de uma experiência de prática em clínica na universidade

 

Psychoanalysis and University: considerations based on experience of clinical practice in the university

 

 

Carlos Henrique Kessler*; Etiene Silveira Ortmann**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Discute-se uma experiência de iniciação de prática clínica partindo de um episódio jurídico-administrativo que interroga aos alunos sobre o que buscam em uma clínica-escola universitária referenciada na psicanálise. Ancorando-se sobretudo no legado de Freud sobre a universidade e Lacan sobre os discursos, conclui-se que mesmo que a busca pela universidade ocorra como um pedido de saber, o terapeuta pode se reposicionar e produzir enquanto sujeito na mesma.

Palavras-chaves: Psicanálise, universidade, prática clínica, clínica-escola.


Abstract

This article issues a clinical practice initiation experience when a legal and administrative episode took place and led the students to question themselves about their expectations of an university psychology clinic. Based mainly on both Freud and Lacan's legacies, the former about the "University" and the latter one about the "Discourses", it can be concluded that even if the therapist demand for the university occurs on a sort of knowledge need, they can put themselves in another position, that is, as subjects in the institution.

Key-words: Psychoanalysis, university, clinical practice, psychological university clinic.


 

 

Introdução1

O interesse em pensar a clínica psicanalítica na universidade surgiu de interrogações que partem de experiências vivenciadas em uma clínica-escola de uma universidade, aqui nomeada como Clínica. A referida instituição reúne diferentes práticas e campos do saber como atendimento individual (tendo como referência a psicanálise), fonoaudiológico, psicopedagógico e de família (pautado pela teoria sistêmica). Além de oferecer estágio a alunos da graduação, também se oferece um curso de especialização em "Atendimento Clínico" com quatro ênfases: Psicanálise, Terapia Sistêmica de Casal e Família, Fonoaudiologia e Psicopedagogia. Tal curso, estruturado como uma pós-graduação tem duração de dois anos e é ofertado para interessados pela prática clínica. Nesse período, os pós-graduandos participam de disciplinas que trabalham temas pertinentes à prática clínica, atendem a pacientes que buscam a instituição, supervisionam esta prática e integram reuniões institucionais nas quais são discutidos assuntos importantes para o seu funcionamento. Ao fim, àqueles que cumprirem as exigências do curso, incluída a elaboração de uma Monografia final, é conferido o título de "Especialista em Atendimento Clínico", na ênfase elegida.

Embora abrigue essa diversidade de práticas e campos do saber, a instituição é conhecida e reconhecida por sua proposta de trabalho pautado na escuta psicanalítica. Isso pode ser observado pelo lugar que a Clínica convoca àquele que nela ingressa ocupar, como quando solicita ao aluno que saia de uma posição de estudante para se situar em uma posição de terapeuta, pelo valor dado à supervisão, pelo convite aos terapeutas para que falem da sua prática, seja em espaços de apresentação de material clínico ou em reuniões de discussão em equipe, e também pelo ensino da psicanálise nas aulas teóricas, bem como a utilização do referencial psicanalítico nas discussões clínicas e supervisões. De qualquer modo, a Clínica é uma instituição acadêmica e, como tal, está sujeita a ser predominantemente atravessada pelo saber universitário, o que faz surgir questões que buscaremos discutir.

Muitos autores têm assinalado, ao longo do tempo, os impasses que existem quando se propõe a transmissão da psicanálise em uma universidade. E tais indagações se tornaram alvo de nosso interesse a partir de um acontecimento específico que colocou em risco a possibilidade de continuidade dos cursos de pós-graduação, fato ocorrido quando do ingresso de um de nós como discente na especialização com ênfase em Psicanálise.

Na ocasião, a turma que então iniciava foi surpreendida pela decisão do Ministério Público em suspender os cursos de pós-graduação da universidade a qual pertence a Clínica, que eram pagos pelos alunos. Tal decisão se pautava no fato de, na medida em que a referida universidade é pública, não poderia cobrar pela pós-graduação. A instituição recorreu da decisão e, além disso, considerou que o comprometimento de cada terapeuta com a instituição e com o trabalho clínico não deveria estar condicionado ao recebimento do título de especialista. Assim, posicionou-se frente aos alunos pela continuidade do curso que, embora tivesse as mesmas exigências, tornar-se-ia um Curso de Extensão e dessa forma não conferiria o título de especialista àqueles que optassem por nele permanecer.

A turma de alunos tentou, então, negociar com a direção da época, solicitando a diminuição tanto da carga horária quanto do investimento financeiro que deveria ser pago à instituição. À este pedido aquela direção respondeu não. Esse acontecimento levou os referidos alunos a se interrogarem acerca daquilo que ali buscavam. Embora muitos se declarassem interessados pelo trabalho clínico sustentado a partir da Psicanálise, alguns se questionaram sobre sua permanência, uma que vez não receberiam o referido título. Houve quem tenha abandonado o curso devido a essa razão. Muito embora algum tempo depois esta situação tenha sido transposta através da revogação da decisão judicial, aqueles que aí prosseguiram foram profundamente afetados pelo acontecimento, o que gerou reflexões acerca do comprometimento do terapeuta tanto para com a instituição na qual se acham inseridos quanto para com sua própria formação.

Este episódio levou-nos a interrogação e consequente exame de outras contribuições, especialmente brasileiras, que debatem acerca de se é possível que algo da formação do analista aconteça quando se pratica psicanálise em uma clínica-escola universitária. E, mais amplamente, a refletir sobre o tema Psicanálise e Universidade, debate que inicia com Freud.

 

Algumas contribuições de Freud sobre psicanálise e universidade

Comecemos por destacar, em Freud, três textos que, em nosso entender, são os que mais contribuem para estas questões.

Em 1919 Freud já era questionado se a psicanálise deveria ser ensinada no meio acadêmico. Em seu texto Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, ao mesmo tempo em que nos mostra que a psicanálise seja adequada para o ensino da psicologia na universidade, também deixa claro que o meio acadêmico não dá conta, por si só, de formar psicanalistas. Considera, portanto, que o aluno universitário jamais "aprenderia a psicanálise propriamente dita" uma vez que a formação teórica ocorre em sociedades ou instituições psicanalíticas e a experiência prática se dá a partir da análise pessoal e da possibilidade de levar a cabo os tratamentos, sendo supervisionado e orientado por psicanalistas reconhecidos (FREUD, 1919/ 1987, p. 189). Explicita, dessa forma, a formulação do consagrado tripé da formação analítica: o estudo teórico, a prática e a supervisão. Assim, é a psicanálise, que, por sua vez, pode prescindir completamente da universidade para existir.

Praticamente nessa mesma época, em Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1918/1919) Freud reconhece o interesse e a importância de almejar estender o alcance da psicanálise, formando mais analistas e atendendo a mais pessoas através de Institutos de Psicanálise, mesmo que em alguns momentos se necessite combinar a influência analítica com a educativa. Os psicanalistas seriam, em algumas ocasiões, obrigados a assumir uma posição de mestre e mentor, devendo ter o cuidado para que o paciente não seja educado de modo a assemelhar-se com seu analista. Se na situação analítica convencional tais desafios se colocam, quem dirá nas ocasiões em que a prática da psicanálise ocorre em instituições, nas quais os atendimentos a pacientes se dão em maior escala. É possível nessas circunstâncias, nos dirá Freud, que à psicanálise pura sejam adicionadas outras técnicas, desde que não se percam de vista os princípios da psicanálise estrita.

Já quando escreve A questão da análise leiga, Freud (1926/ 1987) demarca a diferença entre a prática médica e a prática do psicanalista, pois embora ambos, médicos e psicanalistas, utilizem em alguma medida a palavra como instrumento de trabalho, o seu efeito vai depender do lugar desde onde cada um se coloca quando escuta e quando fala. Tal diferença se refere, portanto, à forma com que cada um se posiciona em relação ao paciente e ao estatuto dado à palavra. Esta indicação leva-nos a recorrer à proposição de Lacan (1992), em seu seminário "o avesso da psicanálise", sobre os quatro discursos, que aborda a referida diferença. Como veremos, esta é igualmente a escolha de diversos outros autores que se propuseram a refletir sobre as questões que aqui nos ocupam.

 

Lacan e os quatro discursos

É impossível abarcar, no limite de um artigo, a totalidade da construção teórica feita por Lacan no referido Seminário. De todo modo, para prosseguirmos com a discussão Psicanálise e Universidade, vamos começar por trazer alguns elementos para situar o leitor que, porventura, não esteja familiarizado com a teorização lacaniana acerca dos discursos.

Em O avesso da psicanálise, Lacan estabelece os assim chamados matemas dos quatro discursos – o do mestre, da histérica, do universitário e do analista –, que nos trazem importantes contribuições para o tema a que se propõe este artigo. Lacan (1992) propõe dar seguimento àquilo que havia iniciado no seminário anterior: distinguir as estruturas que subsistem em certas relações fundamentais, as quais constituem o sujeito e condicionam seu modo de apresentação.

Eis os quatro elementos que Lacan propõe para compor a forma fundamental: o significante representante do sujeito S¹, os demais significantes já constituídos que integram a rede do saber (S²), o sujeito dividido $ e o objeto perdido a. Assim, quando o significante S¹ intervém no campo já constituído dos outros significantes (S²) aparece $, o sujeito dividido, e deste trajeto algo ainda resta como perda: o objeto a.

Os elementos acima citados podem se posicionar em quatro lugares diferentes na estrutura do discurso. O lugar à esquerda e acima pertence ao agente do discurso, ao elemento dominante que permite identificar qual seja o discurso ali em questão. Abaixo deste está a verdade do discurso, sempre encoberta. À direita e também acima temos a posição do outro e, também, a posição do trabalho. E, finalmente, abaixo deste está a perda e, também, a forma de nomear aquilo que ser produz.

agente trabalho/outro

verdade perda/produção

Lacan propõe que quatros discursos vão se constituir a partir de sucessivos quartos de giros, nos quais sempre a ordem entre os elementos será respeitada. Assim, temos o discurso do mestre, que vai ser o primeiro discurso a ser mencionado. Nele os elementos estão dispostos conforme a imagem a seguir:

S¹ S²

$ a

Discurso do mestre

A partir do discurso do mestre, os demais discursos serão formados por sucessivos quartos de giros, como vemos a baixo:

$ S¹

a S²

Discurso da histérica

a $

S² S¹

Discurso do analista

S² a

S¹ $

Discurso do universitário

Portanto, a relação do sujeito ($) com o Outro (S¹- S²) poderia ser resumida nestas quatro posições distintas, sendo que o discurso do analista é o que pretende operar sobre as outras formas de alienação subjetiva.

Cabe desde já salientar que a busca por um saber que pretenda se constituir como totalidade fechada é combatida por Lacan ao longo de todo Seminário XVII. Essa busca se apoiaria em uma esperança imaginária de satisfação plena e, assim, o 'tudo-saber', característico do discurso universitário, tornaria mais difícil fazer aparecer o que cabe à verdade (KESSLER, 2009).

Como já indicamos, muitas das discussões contemporâneas sobre os alcances e limites da inserção da psicanálise na universidade se alimentam das contribuições de Lacan. É o que veremos a seguir.

 

Psicanálise e universidade: uma discussão contemporânea

Particularmente no Brasil, diversos psicanalistas têm se ocupado da reflexão a respeito da presença da psicanálise na universidade. Lo Bianco (2006a), por exemplo, questiona acerca do destino dado à psicanálise quando a ela se tem acesso por meio da universidade. Diz ser possível que esta entrada se dê a partir do encontro com o enigma que é próprio da psicanálise, mas o meio de recuperar este saber seria, então, pela via do saber universitário. Questiona também se não haveria um intuito de fazer com que o saber que estava sob a barra passar para o lugar de agente do trabalho. Ou seja, ao invés de se apropriar da psicanálise pela via do discurso do analista, fazê-lo pela via do discurso universitário. Acrescenta (LO BIANCO, 2006b) que a tarefa a ser desempenhada pela universidade, ao se propor ensinar a psicanálise, seria a de tornar público o conhecimento psicanalítico, já que seria este o lugar para se desempenhar tal tarefa de forma fiel, precisa e escrupulosa.

Barros (2006) também problematiza a questão da transmissão da psicanálise no meio acadêmico. No que concerne especialmente aos cursos de graduação, a autora indaga se seria possível transmitir a técnica analítica àqueles que não são familiarizados com a escuta do próprio inconsciente, já que, como nos lembra a autora, a maioria dos alunos não passou por um processo de análise. Aponta que uma análise pessoal não pode ser cobrada como obrigatória para o estágio clínico nos cursos de graduação ou pós-graduação, pois além de não se constituir uma exigência do MEC, uma vez imposta perderia o seu sentido e nela não estaria implicado o desejo do paciente. No entanto, constata que muitos alunos poderão buscá-la a partir dos efeitos que a prática clínica terá sobre eles.

Já Fontenele (2006) conclui que a presença dos psicanalistas na universidade é hoje uma realidade, assim como também o é a inclusão da psicanálise nos currículos universitários. Contudo, esse ensino esbarraria em uma série de dificuldades, como as incompatibilidades teóricas e metodológicas entre a psicologia e a psicanálise, bem como as diferenças de estratégias necessárias à transmissão desses dois saberes acerca do psiquismo. Em todo caso alerta que a inclusão da psicanálise nos cursos universitários poderia alimentar a crença de alguns de que eles seriam uma referência no ensino da psicanálise.

Embora Sternick (2006) concorde com Lo Bianco, Barros e Fontenele quando diz que a universidade não é um lugar adequado para formar analistas, por outro lado, aposta que algo da transmissão da psicanálise poderia ocorrer na universidade, especialmente em função das atividades clínicas obrigatórias a conclusão do curso de graduação e outras atividades de formação dos alunos. Sternick acredita que, nessa circunstância, se para alguns alunos poderia haver ensino, para outros, haveria transmissão, na medida em que ocorra ou não transferência para com a psicanálise. Assim, se um aluno se sentir capturado pela teoria, ele pode se interessar pela psicanálise e buscar saber mais de sua transmissão.

Da mesma forma, Fernandes (2006) acredita que a questão da transmissão no âmbito universitário possa se dar pela via da clínica, quando o aluno volta a procurar o professor com um pedido de supervisão, o que se torna um desafio tanto para o professor quanto para o aluno candidato a psicanalista. A transmissão da psicanálise, para Rosa (2001), se dará se o estudante universitário não a tomar como mais uma lição de casa e, mais do que isso, se conseguir incluir suas questões e pensá-las a partir da psicanálise.

Kessler (2009), ao elaborar sua prática de supervisor, sustenta, na direção apontada por Sternick, Fernandes e Rosa, que algum efeito pontual de transmissão da psicanálise, verificado a posteriori, possa se constituir já a partir da experiência na universidade. Faz uma aposta de que o supervisor, ao ser confrontado com o impossível envolvido na presença do discurso do analista na universidade, poderá vir a produzir, com seu ato, uma inflexão no discurso universitário, no qual o estudante esteve até então predominantemente imerso, para marcar a possibilidade de um início na trajetória do supervisionando na direção da formação psicanalítica.

Já Souza (2001) vai além, ao afirmar que a universidade forma analistas. Isso, segundo o autor, deve-se ao fato de que muitos dos que procuram os cursos de pós-graduação como mestrado e doutorado complementam sua formação buscando, à parte, análise pessoal e supervisões mais ou menos sistematizadas. Para Souza, a academia tem se mostrado um refúgio para os desencantados com as instituições psicanalistas, embora reconheça que o modelo acadêmico deveria ser transformado e reinventado para oferecer uma boa formação ao analista.

 

Algumas considerações

Tendo em vista o que foi exposto até aqui, vamos agora buscar extrair algumas consequências. A proposta de trabalho a partir da psicanálise em uma Clínica-Escola universitária produz efeitos e faz surgir dilemas, tanto para o corpo docente quanto para o corpo discente. Tal constatação refere-se ao fato de que, uma vez que o discurso universitário permeie a instituição universitária, o saber (S²) estaria no lugar de agente, no comando do discurso, conforme colocamos anteriormente. Embora entendamos, assim como Lo Bianco, que a busca pela universidade possa ser motivada pelo anseio de se apropriar da psicanálise pela via do discurso universitário, concordamos com o colocado em Sternick, Fernandes, Rosa e Kessler, de que algo da transmissão possa ocorrer em uma universidade.

Perguntamo-nos, entretanto, como seria possível que um episódio jurídico- administrativo, objeto de nossa presente análise, tenha efeitos de formação? No contexto ora em exame, podemos pensar que quando se escolhe esta Clínica como lugar de passagem no percurso da formação, entra-se para um território onde, como costuma acontecer na universidade, em princípio, o agente do trabalho pode ser o saber. Aí, segundo avaliamos, percebe-se um choque com o trabalho proposto pela Clínica que toma como referência de fundo à Psicanálise e o discurso do analista, no qual o agente de trabalho é a falta, o desejo, tendo como perspectiva o trabalho de um sujeito dividido, levando a produção de seus significantes mestres (S¹), que o representem para a cadeia de significantes (S²). E o saber, neste discurso, aparece colocado no lugar da verdade, o que implica deparar-se com a impossibilidade do aprendizado todo. Nossa hipótese é que esse encontro do Discurso Universitário (uma vez que esperado por aquele que busca a universidade) com o Discurso do Analista (enquanto horizonte do trabalho na Clínica) pode provocar uma diferença no percurso de formação do terapeuta.

Dessa forma é que nos parece plausível considerar que no caso, hora em exame, aqueles alunos que permaneceram buscando sua formação nesta Clínica, mesmo diante da hipótese de que não receberiam o título de especialista, foram afetados no sentido de serem convocados a se implicar como sujeitos desejantes em sua própria formação abandonando, com isso, uma posição estudantil passiva de espera e de queixa. Assim que, ao pedido da turma para negociar o valor e também diminuir a carga horária e o número de pacientes que cada terapeuta atenderia, a instituição respondeu 'não'. Essa reposta negativa exigiu um posicionamento: permanece quem está disposto a se implicar junto com o seu tempo e dinheiro para receber ganhos de outra ordem. Bem sabemos que quando se trata da psicanálise o tempo e o dinheiro não são questões sem importância, mas, ao contrário, dizem de um investimento libidinal.

Portanto, trata-se, nesse corte, de uma convocação a uma implicação, não há mais como continuar na posição passiva de espera e de queixa. É aí que nos pareceria que o giro teria se dado pela via do Discurso do Mestre, agenciado por um imperativo, uma convocação para um posicionamento: para aproveitar os espaços institucionais, criar espaços de estudos, demandar supervisão. É outra postura em relação à formação, apesar de ainda encontrar-se em um ambiente acadêmico. E, embora um dos autores, que viveu essa situação, já estivesse inserido na referida Clínica desde a sua época de estágio acadêmico, foi apenas a partir do aludido acontecimento que o referido giro se deu, produzindo uma diferença no percurso de formação da autora. Portanto, em uma via diferente daquela encontrada por Castro (2006), segundo o qual a passagem do Discurso Universitário para o Discurso do Analista ocorreria através da histerização do discurso, ou seja, através da passagem pelo Discurso Histérico, interrogamos aqui se, nesse episódio específico, a referida passagem teria acontecido através do Discurso do Mestre. Em particular, chamou nossa atenção que, frente ao episódio, a Direção da época não se furtou de ocupar a posição de suposto-saber, tomando decisões administrativas que tiveram efeitos que propiciaram um movimento na formação desta autora. Isto vai ao encontro do proposto em Kessler (2009) a respeito da necessidade de haver, em uma clínica escola, alguém que encarne o suposto-saber, que seja suposto como portador do saber a respeito de como fazer um trabalho clínico, forma de sustentar o trabalho dos clínicos iniciantes.

Assim, partindo da cena que motivou este trabalho, é possível que, ao pedido da Histérica dirigida ao Universitário, a Direção tendo respondido "não", levou ao atravessamento pelo Discurso do Mestre, o que possibilitou pensar aqui, só depois, a partir da experiência, questões referentes à formação do analista.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Carlos Henrique Kessler
e-mail: kessler@portoweb.com.br

Etiene Silveira Ortmann
e-mail: etiene.ortmann@gmail.com

Tramitação: Recebido em 23/04/2012
Aprovado em 20/05/2012

 

 

* Psicanalista/APPOA, líder do Grupo de Pesquisa "A Psicanálise e a Clínica na Universidade", prof. Departamento de Psicanálise e Psicopatologia/UFRGS, diretor da Clínica de Atendimento Psicológico do IP-UFRGS, doutor em Teoria Psicanalítica/UFRJ.

** Psicóloga, psicanalista em formação, especialista em Atendimento Clínico/ênfase em Psicanálise/ UFRGS, participante do Grupo de Pesquisa "A Psicanálise e a Clínica na Universidade", participante do Curso de Extensão da Clínica de Atendimento Psicológico/UFRGS.

1 Este trabalho foi realizado no grupo de pesquisa A Psicanálise e a Clínica na Universidade e elaborado a partir da monografia de conclusão de curso de pós-graduação em Atendimento Clínico da autora, com orientação do autor. A referida monografia, por sua vez, inspirou trabalhos apresentados na XV Jornada do Curso de Especialização (Porto Alegre-RS, março de 2011) e no VI Congresso Nacional de Psicanálise (Fortaleza-CE, maio de 2011), os quais se constituíram como base para a elaboração deste artigo.