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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versión On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro dic. 2012

 

Artigos

Mitos e origens na psicanálise freudiana

 

Myths and origins in freudian psychoanalysis

 

 

Monah Winograd*; Larissa da Costa Mendes**

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Em diversos momentos de sua teoria, Freud recorreu aos mitos e às referências e metáforas mitológicas para abordar e explicar as origens, preenchendo lacunas teóricas que surgiam quando era levado a teorizar para além do que lhe parecia formalizável conceitualmente. Neste artigo, abordaremos a questão das origens e o recurso a alguns mitos a partir de três eixos: (1) o conceito de originário e a hipótese do recalcamento originário, (2) a hipótese filogenética e (3) o mito científico da horda primitiva.

Palavras-chaves: Freud, mito, origem, recalcamento primário, filogênese, horda primitiva.


Abstract

At various points of his theory, Freud turned to the myths and to mythological references and metaphors to address and explain the originary, filling theoretical gaps that appeared when he was obliged to think beyond what seemed conceptually formalizable. In this text, we discuss the question of the origins and the use of some myths from three axes: (1) the concept of originary and the hypothesis of primary repression, (2) the phylogenetic hypothesis and (3) the scientific myth of the primal horde.

Key-words: Freud, myth, origin, primary repression, phylogeny, primal horde.


 

 

Em psicanálise, não existe conceito específico nem concepção una de tempo, embora ele seja fundamental para abordar a problemática da constituição do sujeito. Daí a presença, dentre tantos modos heterogêneos de conceber o tempo, da idéia de um tempo mítico necessariamente ligada à questão das origens. Esta idéia se apresenta de maneiras diversas em muitos momentos da obra freudiana: por exemplo, através do conceito de recalque originário (inauguração da clivagem psíquica), do conceito de complexo de Édipo (ponto chave da organização libidinal), do mito original da horda primitiva (nascimento da cultura), da teoria das pulsões (definida por Freud como mitológica), da hipótese filogenética (tempo herdado e pré-individual) etc. Segundo Guillamin (2003), podemos mesmo encontrar em Freud duas epistemologias que se sucedem periodicamente e, aparentemente, se contradizem. Uma delas expressa uma abordagem segundo a qual o fora e o social seriam determinados pelo dentro e pelo indivíduo. De acordo com a outra abordagem, ao contrário, a interioridade do psiquismo individual seria explicada pelo recurso a um "arqueopsiquismo" mergulhado no corpo (a filogênese), ou seja, um mais-aquém ou uma anterioridade radical. O risco deste modo de pensar seria ter de fazer desta presença originária uma espécie de limite e de pano de fundo para uma experiência interna inacessível e incognoscível que só retornaria e chegaria à consciência no a posteriori de uma projeção retrógrada sobre o social. De modo que, na teoria freudiana, o recurso ao mitológico – como alegoria, como metáfora ou como uma anterioridade inacessível e não-localizável na história do sujeito – expressa uma tentativa de pensar o que estaria entre, ou melhor, o que conjugaria o pré- -psíquico (anterior à ou mais-aquém da interioridade psíquica individual) e o pós-psíquico (ulterior e exterior ao psiquismo individual).

Pastore (2012) lembra ser a palavra mito originária do termo grego mythos, derivado dos verbos mytheio — contar, narrar — e mytheo — contar, conversar. Na Grécia Antiga (do séc. VIII ao séc. VI a. C.), o sentido primordial de mythos era palavra ou discurso, configurados particularmente como narrativas das desventuras de deuses e heróis. Nesta época, logos e mythos não era opostos, pois diziam respeito a um relato sagrado transmitido oralmente através das gerações. A antinomia entre logos e mythos somente ocorreu com a filosofia helênica, no século IV a. C., a qual distinguiu o relato mítico da argumentação racional (PASTORE, 2012). Designando composições de diversos gêneros literários (épico, lírico e dramático), relatos históricos, lendas da tradição oral, assim como os tipos de relação que se estabelecem entre os elementos constitutivos dos relatos, o termo mito é múltiplo desde sua raiz grega.

Segundo Lalande (1999), o conceito de mito pode ser desdobrado em três definições: (1) narrativa lendária e fabulosa de origem popular e não refletida, pertencente à tradição cultural de um povo, que tende a explicar as características do que é dado no presente; (2) exposição de uma ideia ou de uma doutrina sob uma forma voluntariamente poética e narrativa, na qual a imaginação se mistura às verdades subjacentes, como um discurso alegórico que tem como objetivo disseminar uma doutrina através de uma representação simbólica e (3) imagem de um futuro fictício que exprime os sentimentos de uma coletividade e serve para desencadear a ação. De acordo com a primeira definição, os mitos são narrativas de acontecimentos ocorridos num tempo primordial que pretendem ilustrar as origens. Ou seja, os mitos contam como o homem se tornou o que ele é hoje e o que determinou sua organização, suas regras sociais e sua ética.

Se, como ensina Eliade (2000), o mito narra a origem do mundo, do homem, do animal, do fogo, da guerra, das coisas como elas são hoje, embora situados em um tempo irrecuperável e perdido para o sujeito, os mitos tornam o sujeito contemporâneo a este tempo fabuloso que, atualizado, incorpora-se à sua história: são mitos vivos e vividos, pois presentificam-se em histórias verdadeiras, vivas e em movimento (ELIADE, 2004). Ou seja, os mitos não são explicações destinadas a satisfazer curiosidades: são ingredientes vitais da civilização humana, pois, longe de serem fabulações vãs, teorias abstratas ou fantasias artísticas, são realidades vivas às quais se recorre incessantemente (MALINOWSKY, 1926).

Eis o paradoxo do mito, que o torna tão especial e tão caro a Freud: é uma narrativa construída para explicar uma realidade ao mesmo tempo em que a cria. Com efeito, para o pai da psicanálise, "o real pode ser mitologizado tanto quanto o mítico pode engendrar fortes efeitos de realidade" (HUYSSEN, 2000, p.16). Daí podermos afirmar que, na obra freudiana, a primeira definição de mito se mistura inextrincavelmente à segunda: em diversos momentos de sua teoria, Freud recorreu aos mitos de origem e às referências e metáforas mitológicas tanto para abordar e explicar as características do que ele observava no presente, quanto para preencher lacunas teóricas que surgiam quando ele não via claramente, isto é, quando tentava pensar para além do que parecia formalizável conceitualmente. Para Gondar (1995), o recurso ao mito apontaria para um limite na teoria que impediria a construção de um sistema totalizante.

Não é à toa que o conceito de pulsão – abstração metapsicológica que engendra importantes efeitos de realidade no sujeito – foi apresentado como entidade mítica: "A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia. As pulsões são entidades míticas, magníficas em sua imprecisão. Em nosso trabalho, não podemos desprezá-las, nem por um só momento, de vez que nunca estamos seguros de as estarmos vendo claramente" (FREUD, 1933b, p. 98). Em uma carta para Einstein, Freud escreveu:

Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo, atualmente, a respeito da sua física (FREUD, 1933a, p. 204)?

Com isso, Freud criticava a ideia de uma construção teórica totalizante e autoexplicativa e afirmava serem todas as ciências mitologias científicas, isto é, forjadas para dar conta de uma determinada questão.

Neste artigo abordaremos especificamente o recurso freudiano aos mitos na abordagem da problemática do originário, a partir de três eixos: (1) o conceito de originário e a hipótese do recalcamento originário; (2) a hipótese filogenética segundo a qual a história da espécie ecoaria e, em certa medida, se repetiria em cada indivíduo e (3) o mito científico da horda primitiva, do nascimento da cultura e de seus interditos.

 

O originário e o recalque originário

Relativamente à questão do originário em Freud e na esteira de Mezan (2010), destacamos os trabalhos de Stein (1987), Le Guen (1974 e 1991) e Laplanche (1992 e LAPLANCHE; PONTALIS, 1985). Se os dois primeiros desenvolvem pontos de vista diametralmente opostos, cada um a partir de conceitos próprios, o terceiro opera uma espécie de síntese dos dois, também a partir de conceitos próprios. Em todos, a discussão sobre os acontecimentos originários deverem ser considerados míticos ou não.

Stein (1987), ao discutir amplamente a questão do originário, articulou-a ao setting analítico, o concebendo como o espaço privilegiado de atualização do originário. Para este autor, por mais remotas e elaboradas que sejam, lembranças da infância jamais levarão o sujeito à descoberta de uma cena primitiva única, real, reveladora e detentora da verdade neurótica, porque não existiria um acontecimento real causador do sintoma: a fantasia seria a produtora de verdades sempre provisórias. Daí ela poder e dever ser constantemente atualizada, de modo poder expressar, na medida do possível, as origens dos sintomas. Assim, para Stein (1987), o originário seria sempre mítico por estar situado fora do tempo da história individual, sendo a situação analítica o lugar privilegiado de produção e de reprodução destas ficções singulares. Mais radicalmente, o originário e a situação analítica seriam equivalentes, pois o primeiro não existiria fora da segunda, definindo-se como uma construção que só pode se dar na presença do analista. Para o autor, qualquer narrativa construída sobre o indivíduo, incluindo a cena primária, seria sempre um "mito da constituição do sujeito" (STEIN, 1987, p. 83). Sobre as ideias de Stein (1987), Mezan (2010) escreveu:

Para Stein, a cena primitiva é a atualização mais próxima do fantasma inconsciente. Ela apresenta um caráter mítico pelo fato de que todos os seus representantes são transposições mais ou menos deformadas destes fantasmas; é caracterizada pela fascinação do sujeito, que nela se acha implicado na condição de testemunha. Resulta, enfim, de um movimento regrediente, cuja origem é a situação analítica; é pelo jogo combinado da regressão, da transferência e da interpretação que ela se estrutura, fruto de um trabalho de construção (MEZAN, 2010, p.106).

Já Le Guen (1991), ao contrário de Stein (1987), considera como reais os eventos da infância e acredita serem efetivamente determinantes para a organização psíquica, além de influenciarem radicalmente o percurso analítico. Contudo, para este autor, a história individual não é escrita somente linearmente de trás para frente, a partir de acontecimentos reais da infância: a história do sujeito se faz num movimento constante de continuidade e ruptura com a história da infância. Atualizado permanentemente, o passado é devir.

De modo aparentemente contraditório, Le Guen (1991) remete o originário a uma situação real, ainda que não precisamente datável. Para isso, o autor constrói um novo conceito – o de apoio/a posteriori –, composto pelas duas faces da mesma realidade fundamental. Importa esclarecer que o autor não contesta o uso específico do conceito de apoio em Freud, mas sugere ampliá-lo. Segundo Mezan (2010), a novidade deste conceito estaria na barra que ao mesmo tempo, une e separa o apoio do a posteriori, enfatizando uma relação dialética e contraditória entre estes dois termos. Para Le Guen (1991), o que caracteriza o apoio é que um antes indica e restringe o caminho para um depois, isto é, o posterior é delimitado pelo anterior. Daí a estruturação de determinadas defesas e não de outras, de determinados desejos e não de outros: o efeito do apoio seria limitar as possibilidades do desenvolvimento, determinando certos rumos e bloqueando outros. Neste sentido, o conceito de apoio não se limitaria ao apoio entre as pulsões ou da pulsão no instinto, mas se referiria a toda passagem de um nível ou estado para outro, desempenhando papel fundamental na construção do psiquismo.

Porém, por estar articulado à noção de a posteriori, designaria um processo duplo, isto é, um mesmo processo com dois momentos distintos: o passado determina o atual e o atual confere e remaneja o sentido deste passado. Um bom exemplo é o conceito central de Édipo Originário (LE GUEN, 1974), segundo o qual o complexo de Édipo seria a pedra angular dos destinos do desenvolvimento: o romance triangular edípico apoia a construção do sujeito, ou seja, é o pano de fundo que sustentará certa narrativa e delimitará o campo de possibilidades. Mais ainda, para Le Guen (1974), o conteúdo do originário seria predominantemente composto pelo conflito traumático edípico a ser revisitado no setting. De modo mais genérico, o autor (LE GUEN, 1991) ilustra suas ideias de seguinte modo: uma gota d'água sobre um plano inclinado pode seguir caminhos diversos, mas isso só pode acontecer se o plano estiver inclinado. O conceito de apoio ampliado funcionaria como esse plano inclinado, ou seja, de acordo com o modelo freudiano dos caminhos da sexualidade infantil (FREUD, 1905), o estágio anal se apoiaria sobre o estágio oral anterior etc. Dito de outro modo, o apoio permitiria uma evolução da escolha de objeto ao longo do desenvolvimento.

Mas, ao mesmo tempo, a complexidade da organização psíquica não pode ser explicada exclusivamente pelo apoio, pois ele sofre os efeitos das significações e ressignificações a posteriori. De tal modo que a (re)apropriação da história pelo sujeito seria marcada por um devir a posteriori, uma vez que, de maneira aparentemente contraditória, é sempre posteriormente que determinado acontecimento é significado e historicizado. Seja como for, percebe-se que este modelo é fundado na contradição e relaciona o originário a uma situação real (MEZAN, 2010).

Vê-se como Stein (1987) e Le Guen (1974 e 1991) divergem a respeito do papel atribuído à realidade material, relativamente às origens da constituição psíquica. De um lado, Stein (1987) recusa a realidade material, baseando-se na interpretação psicanalítica como fio condutor da reconstrução dos mitos históricos do indivíduo: o único originário "verdadeiro" seria a situação analítica. De outro, Le Guen (1974 e 1991) contesta a ideia de um originário exclusivamente mítico, pois, com efeito, ele se ancora na realidade biográfica de cada um, ainda que sua significação seja conferida e remanejada a posteriori (MEZAN, 2010).

Por sua vez, o terceiro autor, que destacamos, J. Laplanche (1992), define o originário como conjuntamente empírico e mítico, deslocando a questão e, com isso, ultrapassando a oposição entre Stein e Le Guen. Para Laplanche (1992), o originário não corresponderia ao conflito edípico, mas ao que ele chamou de sedução originária. Com inspiração ferencziana, Laplanche (1992) afirma que a sedução infantil decorre do confronto entre a criança e um mundo adulto que lhe propõe significantes sexuais enigmáticos e obscuros, para os quais ela ainda não dispões de recursos interpretativos e elaborativos. Este originário estaria presente no início da vida de modo universal e independentemente de qualquer contingência, pois a situação originária não se referiria a uma cena de sedução real por um adulto, mas a uma necessidade lógico-estrutural da teoria: todas as crianças encontram-se confrontadas com os significantes enigmáticos do mundo adulto desde seu nascimento. De modo que o originário seria, ao mesmo tempo, imanente e transcendente, referido a uma generalização teórica e podendo ser mobilizado e revivido na cena analítica, em um esforço de metabolização e tradução.

À diferença do que propõe Le Guen (1974), o complexo de Édipo ocuparia lugar secundário relativamente à sedução originária, princípio organizador da vida psíquica. Antes do Édipo propriamente dito, a criança encontra o adulto e, na posição de objeto, recebe significantes ainda sem recursos para decifrá- -los. Os processos de inscrição, simbolização e tradução destes significantes, bem como seus restos, corresponderia, na perspectiva laplancheana, ao recalque originário subdividido em dois momentos. O primeiro corresponderia à inscrição dos significantes enigmáticos inconscientes do adulto na criança, exigindo um trabalho de simbolização. O segundo momento corresponderia ao início da tentativa de tradução desses significantes obscuros. Tal processo em dois momentos – inscrição e tradução – deixaria restos recalcados, formando o núcleo do inconsciente (MAZAN, 2010). Ora, em estado de dicionário, o conceito de recalcamento originário designa um processo hipotético descrito como o primeiro momento da operação de recalque, tendo como efeito a formação de certo número de representações inconscientes ou do recalcado originário (LAPLANCHE; PONTALIS, 1982). Embora obscuro, este conceito está presente ao longo de toda a obra freudiana desde o estudo do caso Schreber (FREUD, 1911) e é peça fundamental da teoria do recalque: uma representação não pode ser recalcada se não sofrer, simultaneamente à ação da instância recalcadora, uma atração por parte de conteúdos já inconscientes.

Mas, se é assim, como explicar a existência deste marco-zero, destas formações inconscientes atratoras, anteriores a quaisquer outras que pudessem tê-las atraído? Vê-se, claramente, como é a questão das origens da constituição psíquica que está em jogo e como a função do recalque originário seria fornecer uma explicação lógico-temporal para o recalque propriamente dito através do recurso a um tempo arcaico, originário e mítico, anterior ao ingresso no simbólico e impossível de ser localizado cronologicamente na história de qualquer sujeito (GARCIA-ROZA, 1992).

Dividindo o recalcamento em duas fases e aproximando o recalcamento originário da fixação, Freud escreve:

Temos motivos suficientes para supor que existe um recalcamento originário, uma primeira fase de recalque, que consiste em negar a entrada no consciente ao representante psíquico (ideacional) da pulsão. Com isso, estabelece-se uma fixação; a partir de então, o representante em questão continua inalterado e a pulsão permanece ligada a ele. (...). A segunda fase do recalque, o recalque propriamente dito, afeta os derivados mentais do representante recalcado ou sucessões de pensamento que, originando-se em outra parte, tenham entrado em ligação associativa com ele. Por causa dessa associação, essas idéias sofrem o mesmo destino daquilo que foi originariamente recalcado. Na realidade, portanto, o recalque propriamente dito é uma pressão posterior (FREUD, 1915a, p.153).

Trocando em miúdos, os representantes-representação, aos quais foi negado o acesso à consciência, comporiam o recalcado original ou primário ao inaugurarem, através de sua inscrição, o sistema Inconsciente, funcionando como pólos de atração para o recalque secundário posterior. Mas, se o recalque originário está na origem das primeiras formações inconscientes, o seu mecanismo não pode ser explicado nem por uma ação do superego, nem por um investimento por parte do Inconsciente, nem por um desinvestimento do Pré- -consciente/Consciente, pois estes sistemas ainda não estão formados. Trata- -se, para Freud (1915b), do obscuro processo de contra-investimento como defesa contra um excesso de excitação proveniente do exterior, capaz de romper o pára-excitação provocando um traumatismo. Como destaca Guillaumin (2003), o traumatismo apresenta nitidamente o caráter mítico de um acontecimento originário insignificado, sobre o qual deve ser inventado um relato do passado, a posteriori, analógico à realidade. A verdade testemunhal (a autenticidade) deste relato seria, assim, um falso problema, pois estaria ligada, para sempre e paradoxalmente, ao seu caráter de metáfora de um significado altamente real, mas inesgotável pela representação. Isto de um ponto de vista tanto individual (o trabalho de simbolização e de elaboração de um sujeito em análise) quanto teórico: ao tentar explicar porque uma experiência – como, por exemplo, a cena primária – se tornaria excessivamente forte para um sujeito que ainda não disporia de um sistema simbólico que lhe conferisse significação, Freud recorreu à filogenia como sendo o informador arcaico dessas experiências originárias (GARCIA-ROZA, 1992).

 

A hipótese filogenética

Recurso teórico recorrente na teoria freudiana, a hipótese filogenética aparece sempre em torno da problematização sobre a constituição psíquica em geral, os mecanismos originários implícitos nesse processo, o estabelecimento de determinados padrões de funcionamento (particularmente os egóicos) e as formas de organização psíquica de que se tem notícia. "O quanto à disposição filogenética pode contribuir para a compreensão das neuroses, não podemos ainda estimar" (1915c, p.10), escreve Freud num rascunho datado de 1915, encontrado em 1983. Para ele, seria legítimo admitir que as neuroses testemunham a história do desenvolvimento psíquico do ser humano e que a história do desenvolvimento da libido recapitularia o desenvolvimento filogenético (FREUD, 1915c).

Embora, segundo alguns comentadores (por exemplo, SULLOWAY, 1979 e RITVO, 1990), Freud fosse um darwinista convicto, ele não se furtou a fazer uso de outras teorias evolutivas que lhe parecessem interessantes por motivos variados. Com efeito, Freud tomou conhecimento das ideias de Darwin através da leitura feita pelo zoólogo alemão Ernest Haeckel; este, ao traduzir Darwin, acrescentou à teoria da evolução a Lei Biogenética Fundamental ou Teoria da Recapitulação, segundo a qual a ontogênese recapitularia a filogênese, ou seja, o desenvolvimento individual recapitularia as fases do desenvolvimento da espécie (ROUDINESCO; PLON, 1998). Apesar da fragilidade teórica desta lei de Haeckel, decorrente da generalização exagerada realizada com base em evidências escassas e duvidosas, e dos ataques ferozes e variados que sofreu desde sua primeira publicação em 1866, ela foi uma das teorias que gozaram de grande prestígio, tendo exercido forte influência no final do século XIX (GOULD, 1981).

Freud não escapou desta influência, mas metabolizou-a de um modo bastante particular, organizando sua filogenética a partir de uma ideia central, expressa explicitamente em 1930, através de uma metáfora gráfica: imaginemos a Roma moderna com todas as suas construções perfeitamente preservadas desde os dias de Rômulo até hoje. Embora logicamente isto seja impossível, pois dois objetos materiais não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo tempo, nada impede que os processos psíquicos possam corresponder a esta visão de uma cidade verdadeiramente eterna (FREUD, 1930). Ou seja, no psiquismo, o passado, via de regra, persevera: a sucessão envolve a coexistência.

Ao afirmar que, no psiquismo, estágios precedentes estariam presentes no estágio atual, Freud propunha que a dimensão temporal relativamente ao psíquico precisava ser diversa da implícita na Teoria da Evolução. Para pensar a evolução biológica e o desenvolvimento dos corpos, o evolucionismo operava com o tempo linear cronológico: de antes para depois e do menos perfeito para o mais perfeito. Por sua vez, Freud considerava, simultaneamente, o tempo do agora, do instante em que o psíquico acontece, e o tempo mítico da origem. No primeiro, as formas passadas são presentes, explícita ou implicitamente, tanto filo quanto ontogeneticamente: no psiquismo, o tempo não é linear, é espiralado e pontual. Neste tempo, a evolução não se daria em direção à perfeição, mas, sim, no sentido de um desdobramento conforme o contexto e a história, no qual os momentos anteriores não se apagam completamente, pois deixam marcas que, eventualmente, podem permitir a sua (re)construção e que, sobretudo, determinam as formas que surgem no presente.

Destes estágios psíquicos anteriores, Freud acreditava ter encontrado fósseis, nas palavras de Pierre Fédida (1994). Em 1900, anunciou sua intenção:

O sonhar, em seu conjunto, é uma regressão à condição mais primitiva do sonhador, uma reanimação de sua infância, das moções pulsionais que então o governavam e dos modos de expressão de que dispunha. Por trás desta infância individual, se nos promete alcançar uma perspectiva sobre a infância filogenética, sobre o desenvolvimento do gênero humano, do qual o do indivíduo é, de fato, uma repetição abreviada, influenciada pelas circunstâncias contingentes de sua vida (FREUD, 1900, p. 542)

E, depois de citar Nietzsche ("no sonho 'segue em ação uma antiqüíssima relíquia do humano que agora já não pode ser alcançada por um caminho direto'" [1900, p. 542]), Freud prossegue:

[...] isso nos leva a esperar que mediante a análise dos sonhos obteremos o conhecimento da herança arcaica do homem, o que há de inato em sua alma. Parece que os sonhos e as neuroses conservaram, para nós, da Antigüidade da alma, mais do que poderíamos supor, de modo que a psicanálise pode reclamar para si um lugar de destaque entre as ciências que se esforçam em reconstruir as fases mais antigas e obscuras dos começos da humanidade (FREUD, 1900, p. 542)

Treze anos depois, o metapsicólogo levou esta convicção às últimas conseqüências e embarcou num projeto evolucionista-antropológico ambicioso: descrever o que os sonhos e as neuroses lhe faziam ver das origens do psiquismo humano, a saber, a passagem do estado de natureza para a civilização e, nessa passagem, as origens da regulação sexual mais comum entre os homens, o tabu do incesto. Aqui, mais do que no rascunho de 1915, sua ideia de uma filogênese psíquica na origem do psiquismo e de alguns de seus processos ganhou visibilidade, pois, mesmo hesitante, Freud construiu publicamente o mito psicanalítico da história da humanidade: a horda primitiva e o assassinato do Pai também primevo. Embora fosse apenas um mito, Freud gostava dele o suficiente para referir-se a ele muitas outras vezes, até o final de sua vida.

Gostava também de argumentar que o desenvolvimento libidinal geral dos indivíduos recapitula uma sequência de estágios da história da civilização. Vestido de antropólogo, comparava o narcisismo das crianças pequenas à crença primitiva na personificação e no poder dos pensamentos (animismo), o vínculo sexual com os pais (complexo edípico) ao desenvolvimento da religião monoteísta, e o domínio maduro do princípio de realidade à fase científica da civilização. Em O ego e o id, escreveu:

As experiências do ego parecem, a princípio, estarem perdidas para a herança; mas, quando se repetem com bastante freqüência e com intensidade suficiente em muitos indivíduos, em gerações sucessivas, transformam-se, por assim dizer, em experiências do id, cujas impressões são preservadas por herança. Dessa maneira, no id, que é capaz de ser herdado, acham-se abrigados resíduos das existências de incontáveis egos; e quando o ego forma o seu superego a partir do id, pode talvez estar apenas revivendo formas de antigos egos e ressuscitando-as (FREUD, 1923, p. 51).

Com essa ideia, Freud pressupunha uma preexistência lógica da cultura que se encontra aquém da história do sujeito e que, no entanto, faz parte dela e presentifica-se, através das gerações, da ordem simbólica, dos discursos que vigoram e do fio histórico tecido pela genética e pela cultura. Uma origem e um tempo mítico que é "extemporâneo ao sujeito, mas no qual ele deverá advir a fim de fundar a sua própria temporalidade" (GONDAR, 1995, p. 80). Este mito filogenético está presente também nas formulações sobre as proto-fantasias ou fantasias originárias: o patrimônio filogenético explicaria estas estruturas fantasísticas que funcionariam como organizadores da vida fantasística, não importando quais tenham sido as experiências pessoais de cada sujeito.

Segundo Laplanche & Pontalis (1982), o termo fantasia originária aparece na obra freudiana em 1915 por referência a formações psíquicas que podem ser encontradas de modo muito generalizado nos sujeitos, sem que se possa remetê-las a cenas realmente vividas individualmente. Por exemplo, a castração não teria sido realizada ou ameaçada de ser realizada por um pai individual, mas teria sido realmente praticada pelo pai em um tempo remoto mítico.

Acredito que essas fantasias primitivas, como prefiro denominá- las, e, sem dúvida, também algumas outras, constituem um acervo filogenético. Nelas, o indivíduo se contata, além de sua própria experiência, com a experiência primeva naqueles pontos nos quais sua própria experiência foi demasiado rudimentar. Parece-me bem possível que todas as coisas que nos são relatadas hoje em dia, na análise, como fantasia – sedução de crianças, surgimento da excitação sexual por observar o coito dos pais, ameaça de castração (ou, então, a própria castração) – foram, em determinada época, ocorrências reais dos tempos primitivos da família humana e que as crianças, em suas fantasias, simplesmente preenchem os claros da verdade individual com a verdade pré-histórica. Repetidamente tenho sido levado a suspeitar que a psicologia das neuroses tem acumuladas em si mais antiguidades da evolução humana do que qualquer outra fonte (FREUD, 1917, p. 373).

Ora, desde a inauguração do campo psicanalítico, o mundo das fantasias apresenta consistência própria, ou seja, uma organização e uma eficácia bem delineadas pelo próprio conceito de realidade psíquica. De modo que é notável o conhecimento pleno da fantasia como um domínio autônomo explorável, com consistência própria, não ter suspendido a questão freudiana sobre sua origem (LAPLANCHE; PONTALIS, 1985). No Homem dos lobos (FREUD, 1918), por exemplo, o metapsicólogo procurou obsessivamente estabelecer a realidade da cena de observação do coito dos pais. Mas, embora se mostrasse abalado pela tese junguiana, segundo a qual esta cena seria tão somente uma fantasia retroativamente construída, sustentou insistentemente que a percepção teria fornecido indícios à criança e introduziu o conceito de fantasia originária. Com isso, Freud revelava, ao mesmo tempo, seu desejo de encontrar o apoio do acontecimento real e de fundamentar a estrutura da fantasia em algo diverso deste acontecimento. Por isso, ao atentarmos para os temas encontrados nas fantasias originárias, perceberemos que todos são relativos às origens. Assim como os mitos coletivos, as fantasias originárias parecem pretender contribuir, com uma representação e uma espécie de solução, para o que a criança percebe como enigma principal, pois dramatizam, como momento de emergência e como origem de uma história, o que aparece para o sujeito como uma realidade à espera de explicação. Para Laplanche & Pontalis (1985), a cena originária figuraria a origem do sujeito, as fantasias de castração figurariam a origem da diferença sexual e as fantasias de sedução figurariam a origem da sexualidade.

 

Totem e tabu: o mito científico

Tradicionalmente lido como uma narrativa que pretendeu, senão explicar, ao menos ilustrar o tempo mítico das origens da cultura e das origens do sujeito, o "mito científico" (FREUD, 1921, p.146) freudiano, conhecido como Totem e tabu (FREUD, 1913), se organiza em torno da proibição do incesto – elemento nuclear da trama edípica. Para introduzir a ideia de uma passagem histórica da natureza para a cultura, da horda primitiva para a sociedade humana organizada por leis, Freud recorreu à célebre narrativa mítica que tem no Pai morto a metáfora da inscrição da lei que rege os homens e organiza a sociedade humana. Lei que opera tanto externa quanto internamente, pois, ao ser internalizada, a interdição do incesto regula também os comportamentos sociais. Para alguns comentadores (por exemplo, ROUDINESCO; PLON 1998), Totem e tabu seria mais um texto político do que uma obra antropológica, como se pretendeu. Nos quatro ensaios que o compõem, o mito filogenético ganhou ainda mais visibilidade, consolidando-se como uma versão psicanalítica da história da humanidade (WINOGRAD, 2007).

Afinado com a literatura evolucionista da época, o mito freudiano da horda primitiva e do assassinato do Pai está fortemente apoiado na Teoria da Recapitulação de Haeckel (1868), na tese da herança dos caracteres adquiridos popularizada por Lamarck (1809) e na descrição de uma horda selvagem feita por Darwin (1871). De modo extremamente resumido, o mito freudiano narra um estágio primitivo da humanidade, durante o qual o pai-chefe da horda primeva tomava para si todas as mulheres do clã. Rebelando-se contra o pai, os filhos teriam, não apenas destituído o dominador da horda selvagem, mas, num ato de violência coletiva, assassinado o pai e comido seu cadáver em uma orgia canibalesca. Após esta passagem ao ato, teriam sentido-se culpados, renegado sua ação violenta e instituído uma nova ordem social, estabelecendo como regras: a exogamia, o totemismo baseado na proibição do assassinato do substituto do pai (o totem) e a proibição do incesto. A possibilidade posterior de uma coletividade teria se sustentado, então, mediante acordos entre os sujeitos, segundo os quais cada macho renunciaria às fêmeas do clã, embora tivessem matado o pai para as possuírem. Contudo, segundo Freud (1913), este pacto civilizatório entre irmãos parricidas seria, na verdade, frágil: persistiria o desejo de ocupar o lugar interditado do pai assassinado. Quanto ao totem, com a morte do pai, o animal escolhido como símbolo sagrado do ancestral não podia ser molestado ou morto, a não ser em uma ocasião: de tempos em tempos, os homens se reuniriam para um banquete no qual o animal totêmico adorado fosse esquartejado e devorado coletivamente para que seu poder fosse repetidamente introjetado por todos, em um ritual simbólico do parricídio original.

Vê-se como o mito de Totem e tabu projetou, sobre a origem da civilização, um mal-estar sombrio: crime, castigo (culpa) e interdição – alicerces da ordem social. Ao mesmo tempo, os mecanismos de recalque e sublimação, herdeiros da tragédia filogenética, neutralizariam e aliviariam as forças pulsionais eróticas e destrutivas, convertendo-as para o bem do próprio sujeito e da coletividade, em um movimento de renúncia narcísica. Trocando em miúdos, o mito freudiano pretendeu ilustrar, na origem da civilização, como se estabeleceu esta constante tensão entre as exigências pulsionais individuais e as exigências coletivas e sociais que possibilitam o laço social. Nas palavras do próprio Freud,

A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder desta comunidade é estabelecido como 'direito', em oposição ao poder do indivíduo, condenado como 'força bruta'. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação (1930, p.101).

Mas, também é possível ler o complexo de Édipo a partir da história das origens da civilização ilustrada em Totem e tabu: o mito da horda primitiva explicaria a origem das tendências inconscientes homicidas e dos desejos incestuosos constitutivos do complexo de Édipo, rebatendo, uma vez mais, a história da espécie (da cultura) na história individual. A ideia de que os irmãos da horda teriam sido tomados pelo mesmo jogo de forças contraditórias em operação no complexo de Édipo, manifesto pelos pacientes neuróticos, encobriria uma conclusão ainda mais fundamental: os irmãos não teriam sido invadidos por sentimentos edipianos que teriam levado a ação mas, inversamente, o assassinato teria sido o fundador de tais sentimentos. O mito da horda explicaria, desta forma, o surgimento dos desejos edipianos, e não o contrário (Mezan, 1985). Assim, ao invés do crime corresponder aos desejos edipianos, estes seriam estruturados por ele. Ou seja, matar o pai e possuir a mãe seriam tendências que existiriam no inconsciente recalcadas, justamente a partir do crime cometido, e não o contrário. Para Mezan (1985), esta seria a originalidade freudiana: associar a emergência do complexo de Édipo e o surgimento da sociedade civilizada por meio do mesmo ato. No final deste livro, Freud (1913) sustenta que a eliminação do pai primevo pelos filhos deixou traços indeléveis na história da humanidade e, quanto menos estes traços forem relembrados, mais substitutos originariam. Os indivíduos modernos viveriam repetindo, coletiva e individualmente, os traços deixados pelo ato fundante da civilização.

Ora, se é assim, se a configuração edípica se pretende universal, traduzindo na história familiar as proibições fundadoras de todas as sociedades humanas e fazendo do recalque uma operação psíquica herdada através da história, podemos supor que as formas de neurose descritas por Freud (histerias e neurose obsessiva) teriam sobrevivido aos tempos e se efetivado como organizações psíquicas adaptativas que perseveraram filogeneticamente; independentemente das críticas variadas e pertinentes a respeito, esta foi a ideia expressa em A phylogenetic fantasy (traduzido para o português como Neuroses de transferência: uma síntese) (FREUD, 1915c). De qualquer modo, é certo que Totem e tabu reforçava a hipótese de que o desenvolvimento psíquico individual repetiria, em certa medida, o desenvolvimento psíquico da espécie. E isto, também relativamente ao surgimento do superego – principal herança do complexo de Édipo. A ocorrência histórica do superego não seria em absoluto casual, pois ele teria como função original salvaguardar e garantir a obediência às leis que possibilitavam a vida coletiva, entre outros, através da culpa, sentimento que teria sido "adquirido quando da morte do pai pelos irmãos reunidos em bando" (FREUD, 1913, p. 25). Por esses motivos, Totem e tabu pode ser definido como um mito de origem ou como "(...) um retrato bem conservado de um primitivo estágio de nosso próprio desenvolvimento" (FREUD, 1913, p. 21).

 

Palavras finais: tempo, mito e origem

Até o final de sua obra, Freud perseguiu seus mitos, como se vê em sua última publicação, Moisés e o monoteísmo (1939). Nele, o metapsicólogo retomou e condensou elementos fundamentais de escritos anteriores sobre cultura e religião: o mito fundador da cultura (mito da horda primeva) foi vestido de signos da tradição judaica e nossa civilização remetida aos mitos judaico- -cristãos. Essa obra foi classificada pelo próprio Freud (1939) como um romance histórico, ou seja, um novo mito que instauraria uma articulação entre o verdadeiro e o falso e entre a ciência e a arte. Segundo Pastore (2012), aqui, a lei moral encontraria seu acabamento final ao expressar a hipótese freudiana de que os deuses pagãos do mundo grego foram substituídos pelo pai da religião judaico-cristã. Destituído o paganismo grego submetido ao imperativo do destino, não se poderia mais culpar os deuses pelos infortúnios: o homem se tornou responsável pelo inconsciente do qual deve se apropriar (PASTORE, 2012).

Em 1955, Lévi-Strauss (1955) definiu o mito como um sistema temporal relativo concomitantemente ao passado, ao presente e ao futuro, pois diz respeito a acontecimentos que, apesar de serem supostos como tendo ocorrido em certo momento, compõem uma estrutura permanente. Para ele, o mito tem uma estrutura tanto sincrônica, quanto diacrônica que, apesar de sua permanência ao longo do tempo, traz a possibilidade de mudança. Mais ou menos na mesma época que o antropólogo, o semiólogo R. Barthes escreveu ser o mito uma fala:

Naturalmente, não é uma fala qualquer. São necessárias condições especiais para que a linguagem se transforme em mito; vê- -lo-emos em breve. Mas o que se deve estabelecer solidamente desde o início é que o mito é um sistema de comunicação, uma mensagem. Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma (BARTHES, 1957, p. 200)

Barthes (1957) prossegue afirmando poder se dizer que a característica fundamental do conceito que um mito expressa é a de ser apropriado. Os mitos não são narrativas de acontecimentos reais originários, mas construções que inventam começos e, assim, repaginam a posteriori a história segundo uma lógica temporal retroativa. História que não é de acontecimentos passados e remotos, de uma infância precoce e perdida, ou seja, de um mais-aquém da interioridade psíquica individual. O passado só existe na medida em que é historiado pelo presente: a história do sujeito é viva, constantemente (re)inventada e, nem por isso, menos verdadeira. Ao citar Goethe no capítulo IV de Totem e tabu, Freud sublinhou a tarefa que se impõe a todos: "Aquilo que herdaste de teus pais, conquista-o para fazê-lo teu" (Goethe, Fausto, Parte I, Cena I apud FREUD, 1913, p.160). Este é o imperativo dos mitos nunca abandonados por Freud até o final de sua obra.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Monah Winograd
e-mail: winograd@uol.com.br

Larissa da Costa Mendes
e-mail: larissacostamendes@gmail.com

Tramitação: Recebido em 23/08/2012
Aprovado em 25/09/2012

 

 

* Psicóloga, psicanalista, doutora em Teoria Psicanalítica/ UFRJ, profa. do Programa de Pós- -Graduação em Psicologia Clínica/ PUC-Rio.

** Psicóloga, mestre em Psicologia Clínica/PUC-Rio.