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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.34 no.27 Rio de Jeneiro Dec. 2012

 

Artigos

Iguais

 

Equals

 

 

Urias Arantes*

Gymnase Jean Sturm

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Trata-se de refletir sobre o parentesco entre a experiência psicanalitica e a experiência democrática a partir da noção de igualdade. Ambas as experiências têm em comum a confrontaçao com uma espécie de indeterminaçao que transforma os conflitos em questões sem respostas definitivas, e sempre provisórias. Essa 'igualdade' é analisada mais em detalhe na relação entre o analista e o analisando, assim como na situação de formação do analista.

Palavras-chaves: Psicanálise, democracia, igualdade, experiência analítica, experiência democrática, formação do analista.


Abstract

This paper is a reflection on the kinship between the psychoanalytic experience and the democratic one utilizing the notion of equality as a point of departure. Both experiences share the confrontation with some sort of indetermination that turn conflitcs into questions without definite answers, and these are invariably temporary. The author analyzes « equality » in greater detail in the relationship between the psychoanalist and the analisand, and in the context of the.

Key-words: Psychoanalysis, democracy, equality, analytical experience, democratic experience, psychoanalist's training.


 

 

1.

Quando o investigador policial Nyberg informou ao comissário Kurt Wallander que a caixa plástica encontrada no automóvel do advogado Gustaf Torstensson – vítima de um homicídio maquiado em acidente de trânsito – servia para transportar órgãos e que o comércio de órgãos era muito comum nos países ricos, mesmo na Suécia, inclusive sob a forma macabra de encomenda feita a redes de assassinos na América do Sul e na Ásia, Wallander teve dificuldades para levar em conta essa ideia. Porque tais procedimentos supõem varios médicos e, como todo mundo, Wallander acredita que os médicos têm uma moral superior. Nyberg respondeu então que essa crença "é a razão pela qual esse tipo de tráfico pode continuar impunemente" (MANKELL (1994) 2006, p. 279).

Mais tarde, Kurt Wallander, depressivo delegado de polícia, com uma vida afetiva caótica desde o divórcio e a tentativa de suicídio de sua filha de 15 anos, teria a prova dos perigos que ameaçam moral, social e politicamente o paraíso socialdemocrata sueco, ao ouvir a confissão do rico e poderoso – mas isto não é um pleonasmo? – Alfred Harderberg: "Comprenda bem que se trata de uma atividade inteiramente marginal. Mas minha profissão, comissário, consiste em comprar e revender. Apareço num palco que é o do mercado. Nao deixo de lado nenhuma possibilidade, nem mesmo a mais insignificante" (MANKELL (1994) 2006, p. 405). O que Harderberg está afirmando é que no palco do mercado tudo se equivale, que não há hierarquia de valores, pois tudo se mede com o critério de uma lei única e exclusiva: a lei do lucro. A pergunta é: que compreensão do mundo e das questões humanas pode se sustentar, conservar um mínimo de coerência diante da descoberta de que tais ações podem existir e, mais ainda, que elas justificam a existência de seus autores? "Como resistir ao que é incompreensível?" A resposta do comissário é plena de angústia: "Não sei. Mas é preciso resistir" (MANKELL (1994) 2006, p. 420).

É possível ter alguma dificuldade para distinguir a igualdade engendrada no palco do mercado – a metáfora teatral merece reflexão! – da igualdade como um dos fundamentos da democracia. Mais ainda à medida que é possível perguntar se, historicamente, não foi a segunda que tornou possível a primeira; ou se a igualdade democrática e a globalização capitalista de bens e de pessoas não são duas faces da mesma moeda, do mesmo processo. E, antes mesmo de considerar o capitalismo na sua versão chinesa, incluindo sua ambição colonizadora na África, pode-se meditar sobre os perigos que cercam o progresso da democracia. "O que é preciso temer (…)", assinala Tocqueville, "não é tanto a manifestação da imoralidade dos grandes, mas que a imoralidade conduza à grandeza". Se nós somos iguais, aquele que se distingue pode ser visto não como alguém que venceu graças aos seus méritos, mas graças a seus vícios. "Opera-se assim uma espécie de mistura odiosa entre as ideias de baixeza e de poder, de indignidade e de sucesso, de utilidade e de desonra" (TOCQUEVILLE (1840) 1961, p. 230)1.

Outro aspecto do diálogo entre Nyberg e Wallander convoca de novo a igualdade: a afirmação segundo a qual a homogeneização engendrada pela comercialização de bens e de pessoas comportaria, segundo a crença geral, uma exceção: os médicos, guiados por uma moral superior, não poderiam, de modo algum, aparecer no palco do mercado. Em outros termos, o médico não é como todo mundo, não é nosso igual. Por outro lado, universo da ficção de Mankell, o policial – em todo caso, a maioria dos policiais, suecos ou não – também constitui uma exceção. Mas, na polícia, há exceções à exceção, enquanto que no mundo médico reina sempre uma moral superior, é o que afirma a crença geral, com os efeitos denunciados por Nyberg: uma cegueira culpada e cúmplice. Levando-se em conta seu lugar, sua função ou seu saber, ou os três ao mesmo tempo, o médico não teria nem mesmo a tentação de cometer atos prejudiciais à comunidade. Nao é necessário prová-lo, sua superioridade parece garantida de antemão.

A ideia implícita, aqui, é a de que há duas categorias de homens: os que podem ser morais ou imorais, seu lugar, função ou saber dando-lhes oportunidade de pender para um lado ou para outro. Para Mankell, esse parece ser o caso do homem político, mas também o dos policiais, embora a polícia pareça mais ameaçada pelo progresso das técnicas modernas de eficácia e pela sua incapacidade para responder aos novos desafios de uma sociedade em mutação. E há aqueles dos quais não se pode nem mesmo desconfiar de imoralidade: cidadãos acima de qualquer suspeita, os médicos em particular. Porque eles são, por sua função, saber e lugar, destinados ao bem do próximo. Emerge assim a questão do papel e da importância da crença na constituição e conservação da igualdade democrática, bem como da "natureza" dessa igualdade e de suas relações com as instituições. Iguais? O que é que isso quer, pode ou deve significar?

 

2.

A igualdade garantida de antemão encontra-se, segundo Lacan, igualmente no médico, ao qual ele acrescenta o homem religioso e o homem de lei. A ideia é evocada em um relatório em que Lacan não esconde sua admiração em relação aos progressos da psiquiatria inglesa durante a Segunda Guerra. Falando da psiquiatria "autêntica" como uma ciência e uma "arte humana", Lacan lembra que a oposição dos "alienistas" aos progressos da psiquiatria informada pela psicanálise existe tanto na Inglaterra como na França. E a oposição deve ser atribuída a um noli me tangere das três profissões citadas: "trata-se com efeito de três profissões que garantem a um homem que ele se encontra, em relação a seu interlocutor, numa posição de superioridade garantida de antemão" (LACAN (1947), 2001, p.115).

Essa observação de Lacan é um dos pontos destacados por Adam Phillips para sugerir que há no texto lacaniano uma espécie de fio condutor mais ou menos elaborado a respeito da igualdade, ou melhor, das relações ou afinidades que podem existir entre a psicanálise e a democracia (PHILLIPS, 2002)2. O interesse dessa questão não é teórico, não se trata tampouco do que se denomina habitualmente psicanálise em extensão – uma expressão que deveria ser novamente interrogada, caso seja considerada como simples aplicação ou ilustração dos "conceitos" analíticos e não como seu questionamento. O interesse do problema pode também ser histórico, se considerarmos que o passado é a matéria que permite compreender o presente e libertar o futuro. Tanto mais que a igualdade, como o que, de modo geral, se denomina direitos humanos – noções que a democracia não poderia excluir como prática ou como sistema de valores –, não parece fazer parte do vocabulário usual do psicanalista. No entanto, não é a história que nos interessa aqui, em particular, mas a procura de um fio condutor que nos permita retornar ao passado da psicanálise, sobretudo quando ela se institucionalisa.3 Porque o modo como Lacan, no relatório citado, apresenta sobretudo o trabalho de Bion e de Rickman, é colocada a igualdade como a finalidade do enfoque psicanalítico que a terapia de grupo deve permitir-se realizar; como se a igualdade contivesse algo de terrível, contra o qual nos organizamos para evitar ou para fugir.

A questão que emerge, então, é a de saber se a psicanálise não teria que lidar com o problema da cura do desejo patológico de gozar de uma superioridade garantida de antemão, questão central nos textos e seminários de Lacan (BION; RICKMAN, 1943)4.

 

3.

Quem é que, entre homens iguais em direitos, ousa declarar seus semelhantes indignos de exercê-los, para privá-los deles em proveito próprio? (...) que poder terrível sobre a humanidade vocês se arrogam! (ROBSPIERRE (1791) 1974, p. 72).

Consideremos a democracia como um processo, ou melhor, como uma experiência. Embora as coisas não possam ser inteiramente dissociadas, isso implica dar menos atenção às regras de funcionamento do sistema político ou aos fundamentos de um sistema de valores. O que, sem dúvida alguma, a democracia também é. Mas, enquanto experiência, a democracia se manifesta como experiência de um conflito ao qual nenhum dos adversários pode impor uma solução definitiva. Não se quer dizer, evidentemente, que os adversários não tentem dizer a última palavra, criando a ilusão de que controlam os problemas colocados pela vida-em-comum. Mas o fato é que fracassam, e a democracia como experiência – uma lição que o homem político deveria levar em conta no seu discurso – pode ser tomada como a experiência de um fracasso permanente. Em outros termos, o consenso é sempre provisório, pois será sempre contestado. Em outro nível, pode-se lembrar que uma experiência democrática é a da ausência da verdade ou do fundamento da vida-em-comum. E se ninguém pode enunciá-los, é simplesmente porque eles não existem ou, então, porque é a sua ausência que constitui a verdade da democracia.

O conflito irresolúvel aparece dessa forma como caminho da invenção e da exploração do sentido da experiência democrática. Qualquer tentativa para abafar o conflito, para impedir sua manifestação ou seu desenvolvimento – qualquer tentativa para entravar sua força de (re)invenção –, é marca de uma posição autoritária e antidemocrática. Há aqui algo de paradoxal, pois é como se a experiência democrática não pudesse existir, senão onde ela é ameaçada. O primeiro e o mais fundamental dos conflitos democráticos é aquele contra as forças autoritárias ou antidemocráticas. Claro, ele não é o único.

Ora, o conflito democrático tem como condição necessária – mas talvez não suficiente – a igualdade de pretensões ou a igualdade de condições, como pensava Tocqueville. Porque onde as distinções sociais sãos fundadas sobre os privilégios, o conflito é abafado. O que é um privilégio, senão uma superioridade garantida de antemão? Pode-se assim afirmar que quem – seja médico, homem religioso ou homem de lei, como dizia Lacan, mas por que excluir o psicanalista? – acredita num tal privilégio sofre de uma espécie de fobia da igualdade.

Paralelamente, não falta sentido à afirmação de que o conflito é a própria condição da vida do sujeito e de que o pedido de ajuda endereçado ao psicanalista é a manifestação de um desejo democrático de (re)abertura do conflito. Porque sua ausência – a solução autoritária o teria reprimido – é acompanhada de sofrimento, e mesmo de perigo de morte. Phillips sugere que há um real interesse clínico em considerar o superego como a instância que impede o conflito, que ocupa uma posição autoritária, e não como aquele que o provoca. O superego se atribui um "terrível poder" sobre as diferentes e conflituosas versões do sujeito. A experiência analítica e a experiência democrática encontram algo de comum na procura de uma igualdade e na recusa da função autoritária, condições fundamentais do conflito. Lacan já indicava como "fulgurante" a observação de Brickman: "se se pode dizer que o neurótico é egocêntrico e tem horror a todo esforço para cooperar, talvez seja porque raramente se encontra num meio onde todos os membros estão na mesma condição que ele, no que diz respeito às relações com o semelhante" (LACAN (1947) 2001, p. 41). O neurótico tem uma estrutura hierárquica e autoritária que proíbe a manifestação e o desenvolvimento do conflito: ele sofre de desigualdade.

Mas então, o que dizer da psicanálise? Será que a experiência analítica tem por finalidade nos tornar democratas? Ou mais democratas? Se seu resultado é a emergência de um desejo de falar e de escutar os outros e a si mesmo, um desejo de desacordo, de pluralidade, de igualdade, de recusa de toda superioridade garantida de antemão, a psicanálise e a democracia são, podem ou devem ser experiências afins? Poder-se-ia mesmo examinar alguns dados históricos sob esse ponto de vista, como, por exemplo, o fato de que o destino da psicanálise na cultura se ligou ao destino da democracia americana. Mas é preciso reconhecer que a democracia não apaga a diferença de riquezas, de talentos ou de beleza5. De que tipo de igualdade falamos, então, na experiência analítica? Será que existe uma espécie de igualdade entre o analista e o analisando? Uma sessão de análise é uma experiência de igualdade? Em que sentido? Nos termos de Phillips: na experiência analítica, que implica analista e analisando, "what are they equal to, and what might they be equal for?"

 

4.

A palavra-chave para bem compreender a resposta elaborada por Adam Phillips diante dessas perguntas, uma palavra que lhe permite novamente sugerir uma afinidade profunda entre a experiência analítica e a experiência democrática, é a palavra associação. Ele lembra que se trata de um dos raros empregos do vocábulo liberdade no léxico psicanalítico – mas num lugar fundamental: associação livre. A associação é livre quando os encadeamentos repetitivos dão lugar a um encademento inédito cujos efeitos são imprevisíveis, pois se trata de uma irrupção do desejo inconsciente. É um momento crucial na experiência analítica, na medida em que é aí que se manifesta aquilo que justamente impede a associação livre das palavras. Neste sentido, a transferência, sugere Phillips, consiste em atribuir ao analista a tarefa de restabelecer a ordem, pois ele seria o único a saber qual é a boa ordem. A transferência seria uma armadilha na qual o analisando quer capturar o analista e, ao mesmo tempo, o que permite ao analista funcionar como analista. A associaçao livre é, de certa maneira, o retorno da armadilha contra o analisando, pois ela está a serviço da liberdade da (from) censura e dos encadementos autoritários, e da liberdade para (for) a emergência do desejo inconsciente. Ainda neste sentido, associar é sinônimo de busca de novos conflitos, de descoberta de outros encadeamentos que possam aspirar à legitimidade e à existência. Mas como a experiência analítica pode então desenvolver "a taste for democracy"? Porque a democracia é também a experiência de novas associações – trata-se, na verdade, de um dos direitos fundamentais – entre os cidadãos no lugar ou ao lado das associações dos privilegiados ou dos superiores garantidos de antemão.

O desenvolvimento humano implica desigualdades, a começar por aquelas entre pais e filhos. O que transforma as desigualdades ou as diferenças em hierarquias congeladas, sugere Phillips, é a idealização e não a admiração. A idealização é uma das figuras da reificação autoritária, isto é, da proibição de circulação e de conflito. O ideal do ego e o ego ideal, duas operações possíveis da libido do ego e da libido de objeto – com suas relações com o narcisismo – se diferenciam da sublimação, que é a operação da libido de objeto que consiste em dirigir a pulsão para outro fim que não a satisfação sexual. Compreendida nesse sentido, a idealização é um mecanismo de defesa que protege evitando o conflito. A admiração – um termo que parece não fazer parte do vocabulário do analista – pode ser pensada como uma figura do reconhecimento e até como uma forma de prazer das diferenças, das distâncias, sem apagar a igualdade: uma experiência de "pluralismo agonístico" (expressão que Phillips toma emprestado de Chantal Mouffe), eminentemente democrática.

A questão que se coloca para o analista torna-se, assim, a questão do sentido de uma igualdade pensável e experimentável à luz das diferenças. Pois a psicanálise insiste sobre as desigualdades, mesmo se devêssemos falar aqui sobretudo de diferenças: todo mundo tem um inconsciente, mas não há dois inconscientes iguais. Uma psicanálise democrática é possível? Em que sentido pode existir certo tipo de igualdade entre o analista e o analisando, uma experiência partilhada de igualdade na experiência analítica?

A porta aberta por Phillips tem alcance clínico: seguindo Winnicot, ele propõe que a experiência analítica é a experiência de uma nova forma de associação; nova para o analista e nova para o analisando. E a palavra-chave aqui é reciprocidade. Isto implica que o analista se permite ser "conhecido" pelo analisando, que os dois procurem novas formas de se conhecer – "experiencing each other" –, de modo que desapareça a ideia, a falsa crença na superioridade de um ou de outro. O analista começa numa posição de escuta que não engendra nenhuma superioridade em relação àquele que fala, justamente porque não há nada em relação a que ser superior. Não é uma posição de domínio porque não há nada a dominar. Daí a ideia em contraponto à regra fundamental da associação livre como "talking cure": a escuta livre. Pode-se resumir assim: "One could think of psychoanalysis as an enquiry into the quality of listening: into the senses in which we can be equal to what to hear. And into what we might do when we are not" (PHILLIPS 2002, p. 31).

Reciprocidade quer dizer que ha uma relação entre dois termos que se exerce de maneira equivalente à do primeiro sobre o segundo e do segundo sobre o primeiro. Trata-se, então, de uma equivalência dos efeitos e não de uma equivalência, digamos, de substância. Não é nem mesmo uma igualdade de posição. Aqui, a igualdade não é entre o analista e o analisando enquanto tais, mas dos efeitos de um sobre o outro diante do inconsciente, face a seus efeitos. Pode-se dizer o mesmo da igualdade democrática: somos iguais devant la loi, não entre nós. A igualdade na experiência democrática e na experiência psicanalítica exige e só tem sentido face a um terceiro termo que não apaga as diferenças entre o dois; somente anula qualquer pretensão hierárquica. Ora, o analisando se instala inicialmente numa relação que põe o analista como superior, commo sujet supposé savoir, nos termos de Lacan. A igualdade não é um ideal, mas a experiência que a análise simplesmente torna possível enquanto experiência onde se fala e se escuta na medida em que o analista não responde à demanda do analisando.

 

5.

You can teach poetry, but you cannot teach someone to be a poet. The same is true of psychoanalysis (PHILLIPS, 2000 b p. XVII).

De maneira visivelmente provocadora, Adam Phillips termina a revisão da tradução inglesa da biografia de Lacan, de E. Roudinesco, sugerindo que sua leitura pode nos inspirar quatro lições para o futuro. A primeira é que os "heróis psicanalíticos" entretêm sempre uma relação sadomasoquista com seus discípulos e críticos. A segunda é que, se se tem o desejo de influenciar de maneira útil os futuros psicanalistas, o melhor é cessar a criação de novas teorias e se contentar unicamente com a produção de frases interessantes. Terceira lição: seria melhor nunca ensinar a própria obra, mas somente os trabalhos dos outros, considerados realmente interessantes (não há autoridade privilegiada!). E, por fim, jamais se envolver com instituições psicanalíticas, mas procurar e encontrar interlocutores com os quais a discussão seja um prazer. Como faz a maior parte das pessoas. "Quando não houver mais estudantes, tampouco haverá mestres" (PHILIPS, 2000, p. 111). O que a biografia de Lacan nos ensina, conclui Phillips, é que o nome do jogo nao é prestígio, mas experiência, e que a experiência analítica – experiência clínica, mas também experiência de formação dos analistas – não é um meio, mas um fim.

É o ponto que desejo abordar aqui, retomando o conjunto das questões implicadas na formação dos analistas. Provavelmente, na totalidade das profissões, a formação e a prática são intimamente ligadas. A psicanálise nao é uma exceção. Trata-se mesmo, talvez, de uma profissão na qual as relações entre formação teórica e prática clínica são mais íntimas do que, por exemplo, nas profissões médicas em geral. É assim que se impôs desde Freud a exigência da análise pessoal como condição necessária – mas será suficiente? – para alguém tornar-se analista. O que interessa a Philllips, no ensaio do qual retomei algumas questões, é a prática clínica, mas nada parece impedir – ao contrário, o convite é claro – uma retomada da questão da formação dos analistas: quais são as relações, caso existam, possam ou devam existir, entre a experiência da formação analítica e a experiência democrática?

Na história da psicanálise, a formação dos analistas foi rapidamente atribuída às instituições analíticas. Uma instituição com o poder – reconhecido ou não pelo Estado – de formar, de reconhecer e/ou de autorizar alguém como psicanalista pode, facilmente, se tornar suspeita de alimentar a ilusão de uma superioridade garantida de antemão no que diz respeito à teoria, à trajetória de formação e à prática dos analistas membros. A multiplicidade de instituições tornou-se menos a marca de uma diversidade onde as diferenças são pelo menos respeitadas, do que uma situação de guerra de todos contra todos, em que demissões ou exclusões predominam como resposta aos conflitos internos da instituição. Paralelamente, os "mestres" procuram formar discípulos à sua imagem e semelhança, com a cumplicidade desses discípulos, é claro, os quais, com frequência, não pedem nada mais do que se identificar com o grande homem. E eles o fazem começando por copiar o modo de vestir, os tiques de linguagem, o olhar de quem flutua acima do comum dos mortais etc. Os tempos de paz, que acontecem igualmente, são caracterizados mais pela indiferença geral, isto é, pela atitude que consiste em negar às outras instituições o direito à existência, privando-as de reconhecimento e, portanto, de conflito.

Ainda que tais considerações possam pecar por falta de sutileza, parece possível afirmar que, no seu conjunto, as instituições analíticas se caracterizam pela dificuldade, e até pela impossibilidade, de se organizarem de maneira a não só não impedir, mas também a preservar e mesmo a facilitar o conflito, interno e externo: uma neurose provavelmente comum a todas as formas de associação entre homens. E apesar do que pensam os analistas em geral, eles são homens como os outros quando se reunem. Por outro lado, e com frequência, o discurso dominante no interior de uma instituiçao psicanalítica serve-se da velha estratégia, sempre eficaz, do inimigo comum, estratégia que consolida o grupo e impede a manifestação de divergências internas que, certamente, apareceriam como concessões ao inimigo. Daí a tendência a uma cristalização mais ou menos rígida ao redor da figura do mestre – presente ou ausente; mas, se ausente, seu poder ganha uma aura religiosa – frequentemente, do mestre fundador. Reconheçamos que as ciências chamadas duras, as ciências da natureza, funcionam conforme regras bem diferentes daquelas que regem as ciências ditas moles, ciências da intersubjetividade – as instituições analíticas em particular.

A interrogação sobre as possibilidades democráticas de uma instituição analítica, que torna possível a experiência de igualdade, não implica apenas uma dimensão pedagógica, mesmo quando há transmissão. Mas como ignorar que a transmissão psicanalítica não pode se confundir com a posse de um saber e/ou com a aprendizagem de uma técnica? Porque o psicanalista – e é aí que a analogia com o poeta tem todo sentido – não é um homem do know how, a menos que assuma uma posição autoritária. A técnica e o domínio do jogo conceitual são as armas do psicanalista incapaz de escuta e de palavra, a não ser no espaço abafado de uma superioridade garantida de antemão. O problema, aqui, não é o de estabelecer uma didática, de encontrar o meio mais eficaz de transmitir um saber já fundado. O analista em formação não tem um mestre pela simples (e difícil) razão que não há nada para ser dominado. Mas em que sentido, então, a experiência de se formar na prática de analista – para quem já fez a experiência da análise pessoal – é, pode ou deve ser uma experiência democrática? Em que sentido, para lembrar a expressão de Phillips, há, pode ou deve haver, para aqueles implicados na formação dos analistas como formadores e como formandos, uma experiência de reciprocidade?

Quando se interroga sobre as Variantes de la cure-type (Lacan [1953]1966). – concluindo, aliás, que ela não poderia existir se reduzimos a cura à aplicação de um conjunto de preceitos técnicos –, Lacan aborda igualmente a questão da formação dos analistas. E o faz com a preocupação da igualdade entre o formador e o formando, uma igualdade que não exclui a diferença. Esse aspecto é pouco elaborado no texto. A formação dos analistas está intimamente ligada à função que o psicanalista exerce na experiência analítica, isto é, na experiência da intersubjetividade operada pela palavra, tendo como lei fundamental a dialética do reconhecimento. Reconhecimento implica igualdade (Lacan chega a falar de identidade) e diferença. A formação dos psicanalistas é, assim, uma formação para tornar esta experiência possível na sua radical singularidade como experiência de linguagem. Daí a afirmação de Lacan: esse "saber" é pré-aristotélico, isto é, tem suas raízes na dialética platônica. Por consequência, não se trata de formar analistas oferecendo-lhes o domínio de uma técnica ou um saber dos conceitos: "qualquer que seja a dose de saber assim transmitida, ela não tem nenhum valor formador para o analista" (LACAN [1953]1966, p. 357).

A questão da formação dos analistas, enquanto desenvolvendo-se no âmbito da questão sobre o que falar quer dizer, sugere que o analista exerce uma função que é comum a todos os homens, falar e escutar: aí está a igualdade, diante da ou na linguagem. Mas o analista faz disso um uso que não está ao alcance de todos: ele sustenta a palavra. E sustentar a palavra, explica Lacan, não é saber o que ela tem a dizer, pois o analista o ignora, e esse não-saber torna possível ao analisando o acesso a um igual não-saber. É como se o analisando tivesse tornado opaca a palavra verdadeira, a palavra que submete analista e analisando à mesma lei da "paixão de ser". E o analista, sustentando a palavra em todas as manifestações onde o analisando não a escuta, abre o acesso a essa igualdade que é o reconhecimento de si mesmo no outro. Uma outra maneira de falar da reciprocidade, tão cara a Phillips.

O formador de analistas só pode formar no esquecimento das miragens narcísicas do ego do analista e na revelação concomitante de sua ignorância: esquecimento e revelação que formador e formando partilham na experiência da formação. "A formação do candidato (analista) não pode se fazer sem a ação do mestre ou dos mestres que o formam nesse não-saber; sem o que ele não será nada mais do que um robô de analista" (LACAN [1953]1966, p. 357). E o formador, um robô de formador!

Nao sei se alguma instituição poderia se organizar de maneira que as diferenças não se reifiquem em hierarquia e, em consequência, engendrem uma figura da legitimação garantida de antemão. Mas, se isso é possivel, o caminho se encontra provavelmente na expressão desejo de analista, que se pode traduzir como desejo de escutar e de falar, bem como de levar em conta o que pode impedir os efeitos desse desejo. Neste sentido, formador e formando estão na mesma posição de não-saber e de imprevisibilidade. E essa posição comum, partilhada e partilhável, é a condiçao sine qua non da livre expressão do desejo, da invenção de novas conjunções que o desejo propõe quando não cede à tentação sempre presente – uma outra dimensão do conflito – de refazer o que já foi feito, de repetir um caminho já traçado. Como se não houvesse nenhuma outra possibilidade. O paradoxo da instituição democrática torna-se assim inevitável: ele implica a experiência de regras de funcionamento que não existem para dizer como fazer, nem o que é preciso fazer, mas, sobretudo, para inaugurar um espaço de invenção. Como se fossem sintomas do que está oculto. Tentando dizê-lo de outra maneira: as regras como consenso provisório. Uma instituição onde o que prima é o desejo instituinte sobre o desejo instituído. Assim como o conflito, que é o seu motor. Uma instituição democrática é de alguma maneira uma instituição à beira do caos – ou do inconsciente que não se deixa institucionalizar. É aí que a igualdade e a reciprocidade conflituais que ela sustenta poderiam ser experimentadas.

Mas uma instituição e os mestres do não-saber existem? Podem existir? Se existem, não lhes caberia a função paradoxal de reinterrogar a "ciência analítica" no desafio da formação de cada candidato? As regras da formação (como as da técnica) não deveriam ser tomadas como aquisições provisórias, sintomas de nossa ignorância? Que instituição, com o peso inevitável do instituído, ousaria aspirar ao que Lacan não hesita em chamar de douta ignorância?

 

Referências

LACAN, J. La psychiatrie anglaise et la guerre. (1947). In: ______. Autres écrits. Paris : Seuil, 2001.         [ Links ]

______. Variantes de la cure-type. (1953). In: Ecrits. Paris: Seuil, 1966.         [ Links ]

MANKELL, H. L'homme qui souriait. (1994). Paris: Seuil, 2006. (Tradução francesa de A. Gibson).         [ Links ]

______. La cinquième femme. (1996). Paris : Seuil, 2006. (Tradução francesa de A. Gibson).         [ Links ]

PHILLIPS, A. Superiorities. In:______. Equals. New York : Basic Books, 2002.         [ Links ]

______. The manicuring of Jacques Lacan. In:______. Promises, promises: essays on literature and psychoanalysis. London: Faber & Faber, 2000.         [ Links ]

ROBESPIERRE, M. M. I. Sur la nécessite de révoquer le décret sur le marc d'argent. In: Textes choisis, I. Ed. de J. Poperen. Paris : Ed. Sociales, 1974. (Discurso pronunciado nas sociedades populares e publicado pelo Club des Cordeliers).         [ Links ]

TOCQUEVILLE, A. De la démocratie en Amérique, I. (1840). Ed. de J.-P. Mayer. Gallimard, 1961.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Urias Arantes
e-mail: urias.arantes@gmail.com

Tramitação: Recebido em 27/07/2012
Aprovado em 25/09/2012

 

 

* Psicanalista, prof. de Filosofia no Gymnase Jean Sturm, Strasbourg, membro da FEDEPSY (Fédération Européenne de Psychanalyse).

1 A primeira parte da frase serve como epígrafe ao romance policial de Mankell, a segunda termina o parágrafo de onde a citação foi retirada. A lembrança de Tocqueville por parte de Mankell – escritor best-seller que praticamente inaugurou o sucesso mundial do romance policial nórdico – é um convite a ler seus romances à luz do verdadeiro traumatismo político – sueco, europeu e, sob certos aspectos, mundial, pelo menos para a esquerda não-comunista – provocado pelo assassinato de Olof Palme em fevereiro de 1986. Numa tradição literária, aberta por M. Sjöwall e P. Wahlöö, de questionamento do modelo socialdemocrata sueco, mas de uma maneira mais elaborada e fina, Mankell medita sobre o que mudou, porque houve mudança e qual é o seu sentido. Em La cinquième femme (MANKELL (1996) 2006, pp. 311ss), Kurt Wallander explica que, antes, "a Suécia era ainda um país onde as pessoas cerziam suas meias. Eu mesmo aprendi a fazer isto na escola. E depois, de repente, tudo acabou. Começamos a jogar no lixo nossas meias esburacadas (….) No fim, tornou-se uma espécie de moral (….) isso transformou nossa visão do bem e do mal (….) sobretudo a dos jovens (que) se sentem supérfluos ou totalmente excluídos no seu próprio país (….) (Eles) vão reagir com uma violência mais forte (….) eles não guardam nenhuma lembrança de uma época em que cerzíamos nossas meias. Uma época em que não se jogava nada fora, nem as meias, nem as pessoas."

2 O que segue é, em grande parte, uma retomada (e uma reflexão sobre) do belo ensaio de Phillips, Superiorities (PHILLIPS, 2002 a).

3 Les trolls (s')éclatent (Egaux II), ensaio ainda inédito.

4 O texto de Bion e Rickman, de 1943, relata e resume a experiência em um hospital psiquiátrico militar que recebia pacientes com problemas de comportamento e incapazes de funcionar em suas unidades. O objetivo dos dois psiquiatras é o de reconduzir esses homens ao teatro da guerra e definir, como alvo da terapia, o "good group spirit" Entre as conclusões, Lacan dá importância particular às capacidades que o grupo pode desenvolver para enfrentar a chegada e a partida de membros, para aceitar que cada membro circule livremente no interior do grupo e seja valorizado por sua contribuição ao grupo, mas, sobretudo, que a terapia de grupo lhe permita compreender que "é necessário ter a capacidade de enfrentar a contestação no interior do grupo e dispor de meios para assumir a dissensão" – objetivo que Lacan reformula em termos de "cristalização (….) de uma auto-crítica." Isto supõe que o grupo reaprenda a se servir de maneira produtiva da diferença que se manifesta justamente graças a um acordo comum sobre as regras. A igualdade não impede a emergência dos melhores e do prestígio, mas sem a produção de uma hierarquia autoritária. E Lacan conclui que "as grandes seleções sociais" que esses avanços tornam possíveis de serem pensadas inscrevem-se na "mais alta tradição moral"; "todas foram presididas por uma relação de simpatia pelas pessoas, a qual se manifesta igualmente na segregação dos dullards, onde não aparece nenhuma perda do respeito devido a todos os homens."

5 Pode-se encontrar aqui a porta de entrada para um conflito fundamental de qualquer sociedade democrática moderna no que diz respeito à igualdade: igualdade de direitos e/ou igualdade de fato, socioeconômica. A questão pode ser ilustrada pela leitura das duas declarações dos direitos humanos, a de 1789 e a de 1948. Um aspecto sobre o qual elas divergem (ou não, segundo as interpretações) aparece na declaração de 1948 sobre os direitos chamados sociais (trabalho, educação, saúde, família etc), ao lado dos direitos políticos (liberdade, igualdade, participação na formulação da lei, liberdade de pensamento e de expressão etc.). A menos que se situe sob um ponto de vista distinto, com H. Arendt e C. Lefort para reconhecer na declaração o direito democrático fundamental: o direito de declarar, o direito a ter direitos.