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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.35 no.28 Rio de Jeneiro  2013

 

Artigos

De que são feitos os sonhos?

 

Of what dreams are made?

 

 

Neyza Prochet*

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Desde a Antiguidade até Freud, o sonho surge como um enigma que exige ser decifrado. Para muitos autores do pensamento psicanalítico pós-freudiano em especial, Masud Khan e D. W. Winnicott, o valor psíquico do sonho vai mais além da perspectiva interpretativa. Sonhar é uma ação constitutiva, subjetivante e cujo valor como experiência independe da decifração do conteúdo do sonho. Comentários sobre A tempestade e Sonho de uma noite de verão de Shakespeare, o filme A origem dos guardiões e um caso clínico ilustram a discussão.

Palavras-chaves: Psicanálise com crianças, sonho, sonhar, Masud Khan, D.W. Winnicott.


Abstract

Since Ancient Times until Freud, dreams emerge as an enigma that demands to be deciphered. Post-Freudian authors, in particular Masud Khan and D. W. Winnicott, the psychic value of dreaming activity is beyond the interpretative perspective. Dreaming is a constitutive action, that creates subjectivity and whose value as experience is independent of deciphering the contents of the dream. The discussion is illustrated by comments about Shakespeare´s The tempest and Midsummer's night dream, Rise of the guardians movie and a clinical casework.

Key-words: Child psychoanalysis, dream, dreaming, Masud Khan, D.W. Winnicott.


 

 

O sonho encheu a noite Extravasou pro meu dia Encheu minha vida E é dele que eu vou viver Porque sonho não morre. (Adélia Prado)1

Um pouco de história antes dos sonhos

O que são os sonhos? De onde vêm?

Desde o início dos tempos, os sonhos acompanham a Humanidade num lugar de altíssimo privilégio. Nos primórdios, eram uma mensagem vinda do sobrenatural – os deuses ou os mortos – um meio pelo qual o além humano era comunicado aos viventes, não necessariamente ao sonhador. Este era mensageiro, porta voz de uma mensagem codificada, um enigma que, se desvendado, seria capaz de alterar o curso dos acontecimentos. Se originada do divino ou do maléfico, a interpretação variava de acordo com os interesses e com os interessados.

No século XIX, o Positivismo se encarrega de combater o caráter divinatório dos sonhos e o vincula ao corpo do sonhador como um fenômeno pessoal, de cunho orgânico, onde o sonho transmite não mais mensagens sobrenaturais, mas é criado a partir das impressões corporais do adormecido, transformadas, tais como a temperatura ambiente, os ruídos escutados, os humores e processos corporais em andamento.

Mais adiante, ainda neste século, o crescimento da política de confinamento dos doentes mentais permitiu uma escuta médica mais próxima do discurso delirante dos pacientes internados nos asilos e manicômios, favorecendo o estabelecimento de analogias entre as narrativas delirantes e as narrativas oníricas. O sonho, já de posse de um corpo, desloca-se também para o espírito, não mais de um terceiro, mas um sonho que pertença, de corpo e alma, ao sonhador. (RIPA, 2000)

No entanto, o apossamento inicial do homem de seus sonhos se dá pela aproximação com o delírio e o sonhar passa a sugerir uma oposição à razão, cuja perda traz embutida uma ameaça de adoecimento, a loucura. Em contrapartida ao primado da razão, os artistas do final do século XIX, como Gautier, Balzac, Baudelaire buscaram o estado onírico através do uso de drogas, com o intuito de ampliar sua capacidade criativa. O sonho continua com o registro de mero mensageiro entre dois, não mais entre o natural e o sobrenatural, mas entre o real e o irreal, a razão e o onírico, instâncias sempre separadas por leis distintas e antagônicas. É justamente por aquilo que escapa às instâncias demarcadas, que Freud se interessa em investigar. Ampliando e recriando as perspectivas anteriores vê, no sonho, o fundamento da teoria psicanalítica: "a interpretação do sonho como a via régia para o inconsciente" (FREUD, 1910). Freud descobre a semelhança entre as leis que regem a formação dos sonhos e as leis do discurso e, como Khan (1977) assinala, procura recriar "uma ambiência física e psíquica do setting analítico que corresponda de modo significativo, àquele estado intrapsíquico presente na pessoa que sonha" (p. 42).

Para Green (1977), a psicanálise clássica foi pavimentada pelo modelo do sonho, não só porque Freud baseou sua autoanálise a partir dos próprios sonhos, mas também porque o paciente freudiano padrão tinha, como questão central, conflitos correlacionados às questões edípicas, calcadas na repressão e na frustração dos desejos. A ampliação do movimento psicanalítico fez com que outros tipos de pacientes procurassem o tratamento, alterando o eixo das questões apresentadas, deslocando a discussão do escopo das experiências de satisfação dos desejos para o não atendimento de necessidades psíquicas essenciais que constituiriam o fundamento da organização edípica.

O viés interpretativo passa a ser uma das possibilidades de abordagem ao fenômeno dos sonhos, não mais o recurso principal e o modo de funcionamento do espaço onírico é igualmente reconhecido no espaço analítico. Ambos são espaços de possibilidades onde os acontecimentos ocorrem em superposições e intercessões, com intertextualidade, e através de múltiplas formas de expressão, tais como imagens e impressões corpóreas. Ao se dispor a escutar o material da sessão como se ouvisse um sonho, o analista amplia sua disponibilidade em compartilhar a experiência onírica, abrindo mão da exclusividade da função interpretativa.

Alguns aspectos que me parecem extremamente ricos, clinicamente:

a. A capacidade de sonhar

b. A experiência de sonhar e a conquista de um espaço de sonho

c. A capacidade de rememorar o sonho

d. A experiência de contar e compartilhar o sonho e os efeitos que esta experiência traz.

 

Sobre a matéria dos sonhos

Uma das frases mais famosas da literatura acerca de sonho é: - "Somos feitos da matéria dos sonhos", uma frase de Shakespeare, escrita em 1611 para sua última peça – A tempestade.

Próspero, duque de Milão, é banido de seu reino por seu irmão e por seus opositores, que o atraiçoam e o colocam num barco sem remos ou rumo. Próspero e a filha pequena, Miranda, conseguem aportar em uma ilha isolada e totalmente inabitada, exceção feita aos inúmeros espíritos que povoam a ilha; e é com eles, que Próspero passa a conviver, daí em diante. Lá encontra Ariel, um espírito bom e conciliador, e também Caliban, rebelde, brutal, voraz, ligado apenas a seus próprios instintos descontrolados. Próspero, então, se dedica, por muitos anos, a aprender a controlar e manter sob suas ordens os espíritos da ilha.

Anos depois, com novas riquezas e já um poderoso mago, Próspero vê a oportunidade de vingar-se e conjura um naufrágio que traz à ilha seu passado, na figura de Antônio, o irmão traidor; Gonzalo, homem que o ajudara às escondidas e lhe dera provisões e objetos que lhe permitiram sobreviver na ilha; e Ferdinando, filho do rei de Nápoles, que apoiou o golpe do irmão, Miranda encontra os náufragos e, desconhecendo o passado destes e sem contato anterior com outros seres humanos, apaixona-se por Ferdinando, e ele por ela. Próspero, tocado pela experiência amorosa da filha e pelo encontro com o amigo fiel, perdoa seus inimigos. Abdica da magia e do exílio na ilha, liberta de seu domínio os espíritos que nela habitam e retorna ao convívio dos homens.

A tempestade é uma história de dor e reconstrução, uma alegoria acerca da capacidade humana de elaboração e superação.

Criai ânimo, senhor; nossos festejos terminaram. Como vos preveni, eram espíritos todos esses atores; dissiparam-se no ar, sim, no ar impalpável. E tal como o grosseiro substrato desta vista, as torres que se elevam para as nuvens, os palácios altivos, as igrejas majestosas, o próprio globo imenso, com tudo o que contém, hão de sumir-se, como se deu com essa visão tênue, sem deixarem vestígio. Somos feitos da matéria dos sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono (Ato IV, cena I).

Se nós somos feitos da matéria dos sonhos e somos nós aqueles que sonham estes sonhos, tão importante quanto o que eles nos dizem é saber de que parte de nós eles são feitos.

A peça de Shakespeare trata de nossa vida, de como ela é feita de matérias distintas, de raízes profundas que nos ligam ao mundo real e da imensa dor quando estes laços são rompidos. Fala de como é fundamental, para uma vida que valha à pena, que não estejamos permanentemente isolados em ilhas, ou cercados de barreiras intransponíveis ou fossos profundos, mas como este recolhimento é essencial para que novos laços possam ser forjados. O sonho emerge das ausências e perdas e é nele que o duque mergulha para um novo aprendizado, um processo que se manterá até sentir-se capaz para dele emergir.

 

Algumas ideias

Poucos meses depois da morte súbita de minha mãe, sonhei com ela, que caminhava na calçada oposta à minha em uma rua muito larga. Tentei chamá- -la, sem sucesso e ela parecia nada ouvir. Na sequência do sonho, eu a reencontro, mais próxima, mas do outro lado de uma parede, metade de tijolo, metade de vidro, que dividia o espaço onde estávamos impedindo nosso contato. De repente, ao lado dela, surge minha melhor amiga, falecida poucos anos antes. Ela me sorri e coloca-se ao lado de minha mãe. E no instante preciso em que as vejo juntas, acordo, sobressaltada, chorando e dizendo em voz alta: Minha mãe morreu. Ao vê-la ao lado daquela que há tempos havia-se ido, é que me dei conta, de fato, de que ela havia falecido.

Bollas (1998) considera que:

A pessoa que sonha elabora um núcleo de muitas concepções oníricas (sentimentos, lembranças, observações diurnas, teorias, necessidades somáticas) em imagens condensadas, que formam um complexo de idéias que trabalham simbolicamente para ligar os vários fatores contribuintes dentro de uma estrutura que pode, agora, gerar novos significados (p. 72-73).

Khan (1977) diferencia dois tipos de sonhos – os sonhos "bons" e os sonhos "maus" (não são pesadelos), dependendo do efeito que o sonho produziria nos processos de elaboração. O sonho "bom" atende a dois quesitos essenciais: a) que durante o sonhar ocorra a incorporação de um aspecto inconsciente junto ao ego, sem que nenhuma instância necessite enrijecer ou cindir-se; b) que fique ao alcance do ego para que a experiência psíquica esteja disponível no despertar.

O autor faz uma analogia entre as funções do analista e do sonhar - nenhum deles tem como encargo satisfazer os desejos inconscientes do paciente, mas ambos buscam criar um espaço de acolhimento, delimitado e capaz de sustentar os movimentos regressivos, e facilitando interação dos diferentes aspectos do self. Por ocorrer num domínio próprio, onde os conceitos de internalidade ou externalidade não se aplicam, os sonhos introduzem uma realidade que, de outro modo, não seria tolerável. O sonho apresenta a vivência de forma diferente, numa organização diferente, num "tipo diferente de experiência de realidade" (GREEN, 2003, p. 3).

Winnicott (1994a) trata o sonho como um espaço onde uma situação psiquicamente penosa e intolerável de ser vivenciada, fora do controle onipotente, pode acontecer, pois o sonho oferece um campo de tolerabilidade ampliada. O sonho, então, é a expressão da cisão e o sonhar, a busca da integração (p. 316-322). A perspectiva de Khan (1977ª) segue na mesma direção da considerada por Winnicott. Khan estabelece as diferenças entre o texto do sonho, o significado do sonho sonhado, também ressaltando a relevância da experiência do sonhar, que seria como uma atualização do self, uma experiência que possibilitaria a entrada de novos elementos na trama psíquica. Fazendo uma analogia com o mundo digital, o sonho seria o correspondente à função atualizar, ou seja, aquela função que integra novos elementos ao já existente, transformando toda a configuração anterior.

O texto do sonho não é a totalidade do sonho. As imagens de um sonho permitem uma liberdade maior do que as que permitimos às palavras, exceção feita aos poetas, a quem recorremos com tanta frequência. Como sonhar é predominantemente imagético, há um preço a ser pago quando a subjetividade das imagens oníricas é transposta na subjetividade do discurso. Traduttore traditore, o preço é a perda do que cada recurso singularmente é capaz de evocar.

O excesso de verbalização pode engessar e empobrecer a experiência do sonho, se o analista responder com um excesso de palavras para aquilo que o paciente vive em outra instância. O desafio técnico se expressa em realizar uma comunicação que permita um espaço compartilhado de trocas, sem intrusão e sem um saber elitizado do analista, que pressupõe que seu saber "sabe mais" sobre o paciente do que ele mesmo sabe de si.

Para Lins (2007, p. 173), há uma "relação de oposição e de complementaridade entre a experiência do sonho (dream-experience) e seu texto (dream- -text, o sonho rememorado). Ela considera que a experiência de sonhar não é um processo simbólico, mas derivada dos processos primários, não sendo assim compatível ao universo da linguagem. A experiência e sua lembrança são processos complementares que dão forma e constituição ao registro psíquico do que foi sonhado.

Convoco Shakespeare, mais uma vez, em Sonho de uma noite de verão - peça que acontece entre mundos, num bosque fantástico, onde sono e vigília se alternam e magia e realidade se encontram numa só dimensão.

Hérmia, filha de Egeu, recusa-se a seguir a lei ateniense que dá ao pai o direito de escolher seu marido. Foge com seu amado Lisandro para um bosque nos arredores de Atenas após contar a Helena, sua amiga, sobre a fuga. Hérmia tenciona que Helena se anime a conquistar Demétrio, o homem que seu pai havia escolhido para ela e por quem Helena é apaixonada. Demétrio, ao ser informado por Helena da fuga, resolve sair em busca do casal fugitivo e Helena o segue. Oberon, rei dos elfos e Titânia, rainha das fadas são casados e habitam este mesmo bosque. Naquela noite, eles discutem e entram em conflito e Oberon, para punir a esposa, obtém um sumo mágico de uma planta que faz com que a pessoa se apaixone pela primeira que enxergar e manda que Puck, um elfo travesso, pingue o tal sumo nos olhos da esposa. No entanto, uma imensa confusão de identidades acontece e os casais se confundem numa sucessão de desencontros, agravada pela pelos efeitos da planta e pela presença de um grupo de artesãos de Atenas também presentes no bosque, ensaiando uma peça para um casamento. Ao final, o imbróglio é desfeito, os casais encontrados ou reencontrados.

Ao fim da peça, um dos personagens enuncia:

Deus do céu! Foram-se todos, e me deixaram a dormir. Tive uma visão extraordinária. Tive um sonho, que não há entendimento humano capaz de dizer que sonho foi. Não passará de um grande asno quem quiser explicar esse sonho. Parece-me que eu era... Não há quem seja capaz de dizer o que eu era. Parece- me que eu era... e parece-me que eu tinha... Só um bufão maltrapilho seria capaz de tentar explicar o que me pareceu que eu era. Não há olho de homem que tenha visto, nem orelha de homem que tenha ouvido, nem mãos de homem que tenham gostado, nem língua que haja concebido, nem coração que haja relatado o que foi o meu sonho. Vou pedir a Peter Quince que escreva uma balada a respeito desse sonho, que receberá o título de "O sonho de Bottom", por ser um sonho embotado, e a cantarei no fim da peça, diante do duque (Ato IV cena 1).

O deflagrador da ação é a recusa dos amantes em acatar uma lei arbitrária que pretenda submeter uma relação amorosa aos desejos de um terceiro ao par. Os dois amantes recusam-se a acatar a ordem e fogem para um lugar, para onde convergem sucessivamente, todos os demais personagens, o bosque. Lá coexistem, sem distinção, humanos e espíritos, e é no entre mundos que os personagens encontram espaço e tempo necessários para construir e elaborar suas identidades pessoais e suas relações amorosas. Lá é o lugar onde as vicissitudes dos conflitos interpessoais são elaboradas. É lá que a confusão de identidades provocada pela paixão pode ser desfeita e a discriminação é restaurada.

É para este ponto que a maioria dos trabalhos contemporâneos converge, quer busquemos Pontalis, Green, Khan, Winnicott, Adams. Para o lugar onde o sonho acontece – o lugar do entre. O sonho deixa de ser uma mensagem de algo em separado, passa representar um encontro. O sonhar é a ação humana que cria este lugar onde o encontro pode acontecer. É uma experiência de inclusão que tem seu valor na experiência em si, nos significados que esta experiência permite alcançar e também naquilo que lhe escapa, pois a ausência da experiência é outra experiência.

Não há uma uniformidade nas construções, muito menos no uso a ser dado a elas. Winnicott, por exemplo, diferencia três variedades de fenômenos discriminando-os em sonho, vida imaginativa e devaneio ou fantasiar. O devaneio ou o delírio, de modo distinto, colocam a realidade à parte da vida imaginativa, conduzindo o material onírico a um congelamento de modo, de tempo e de lugar, onipotentemente isolados no espaço intrapsíquico. Estes diferentes estados psíquicos não são contínuos ou excludentes e uma pessoa pode flutuar de um estado para o outro e de volta ao primeiro, dependendo de seu grau momentâneo de dissociação.

As diferenças seguem dois eixos fundamentais relativos ao a posteriori de cada um destes fenômenos. O primeiro eixo diz respeito ao caráter integrativo da experiência onírica que não acompanha o devaneio e o delírio ou aquilo Khan chama de sonho mau. O sonho é um estado que "constitui uma investigação imaginativa do mundo e do lugar onde sonho e vida são a mesma coisa" (WINNICOTT, 1975, p. 46). O segundo eixo trata da presença de um projeto de ação, uma inscrição de futuro presente no sonho. O sonho "bom" e a imaginação estimulam a possibilidade de ação, impulsionando o sujeito para a vida, para que o sonhado se converta em gesto, relacionando-se com os objetos reais.

Pontalis (2005, p. 34) assinala que "enquanto não se avaliou a função que o sonho cumpre no processo do tratamento, enquanto o lugar que ele ocupa na tópica subjetiva permanece indeterminado, qualquer interpretação da mensagem do sonho é, na melhor das hipóteses, sem efeito." Para ele é fundamental que "os sonhos continuem a ser sonhos, que guardem sua margem de exílio, que não se deixem aprisionar em sufocantes malhas explicativas".

Winnicott nos fala de outro tipo de sonhar, que ele localiza no lado onírico da vigília, sem, no entanto, possuir o traço de isolamento e cisão do fantasiar e que ele chama de "seu clube". Tal como um clube, é uma comunidade da qual temos gradualmente acesso e conhecimento, sem, no entanto, possuir o tipo de pertencimento que sentimos em casa. Seria um sonhar onde os processos conscientes teriam um lugar mais relevante. "Aqui não existiria 'as excitações e ansiedades de vulto' que pertencem ao sonhar verdadeiro" (p. 158). É o tipo de sonhar que acontece com o romancista ao viver as experiências de seus personagens. Um sonhar que não deve ser analisado para que ele não tome lugar de outro sonhar mais profundo.

E o que falar quando o sonhar não é possível?

Se o sonho é o resultado de um processo de integração, de conexão entre núcleos, de outra forma incomunicados, o não sonhar denuncia a extensão e rigidez dos fenômenos dissociativos que encapsulam os aspectos daquela vida psíquica. Khan (1977a) procura compreender a impossibilidade do sonhar num artigo que, paradoxalmente, traz um paciente que produz muitos sonhos, relatados na sessão, mas o material produzido neste tipo de sonho que pode até apresentar uma profusão de imagens e situações, não resulta em nenhum uso criativo deste.

Khan (1977a) estabelece, então, uma diferença entre o sonhar, como capacidade orgânica e inata, do estabelecimento de um espaço onírico dentro da realidade interna pessoal. O espaço-sonho não é uma capacidade do indivíduo. É uma conquista adquirida ao longo dos processos de maturação e onde o sonho sonhado passa a ser, de fato, uma experiência pessoal. Quando esta conquista não acontece, o indivíduo tende a atuar seus sonhos na vida de relação, sem poder, no entanto, sentir-se enriquecido ou real com eles. O sonho "bom" não é passível de acontecer (p. 378-379).

 

O mistério do sono perdido

M. tem oito anos e é uma criança saudável, inteligente, vivaz, afetiva que vai muito bem na escola e nas relações interpessoais, mas que não dorme em seu quarto, a sós. M. foi um bebê prematuro e esteve, por várias semanas, numa unidade intensiva neonatal. Os pais me contam sobre este período tão duro e não é difícil visualizar um ambiente, mais do que inóspito, hostil, repleto de ruídos, de procedimentos invasivos, pleno de tensão e angústia.

Como tantas crianças de sua idade, M. deseja, agora, poder dormir na casa de amigos, viajar sem os pais e as limitações crescentes em seu cotidiano impostas pela impossibilidade em estar só consigo, incomodam cada vez mais. Luz acesa, bonecos mascotes, promessas e tratos, nada disso têm efeito mais do que momentâneo. Ao adormecer precisa ter sempre um adulto a seu lado, pai ou mãe, que se revezam exaustos, entre o seu quarto e o do casal.

M. estabeleceu comigo uma transferência positiva e imediata, sendo uma criança colaboradora, alegre e articulada. Não consegue me contar sobre como se sente ao deitar-se, exceto sobre não conseguir adormecer. Diz-me que não se lembra direito dos sonhos e não recorda um exemplo de um sonho bom ou pesadelo que tenha tido, exceto um relato de véspera, sobre um resíduo diurno sobre comer ou não chocolate na Páscoa. Na terceira sessão, proponho mais encontros, devolvendo-lhe o que havia observado nos encontros anteriores. Assinalo que ali poderia haver uma tarefa de detetives – descobrir o que acontecia com o sono de M. que parecia se perder, caso não houvesse alguém tomando conta.

M., com entusiasmo, fecha o acordo: - Vamos descobrir o mistério do sono perdido!

Digo-lhe que, como nas histórias de detetives, quando olhamos para o que aconteceu, obteremos algumas pistas. Eu tinha a impressão de que o medo maior não era de algum perigo de fora fosse super perigoso, mas de que talvez se imaginasse muito frágil. Talvez M. e os pais, ainda se lembrassem do tempo em que ela era bebezinho, no hospital. Naquela época, havia a necessidade de se tomar conta de sua saúde. Talvez todos ainda ficassem com medo, como ficaram naquele tempo.

M. me diz: - Isso me lembra um filme que eu vi quando o Medo quase acabou com tudo. Ele fazia com que todo mundo tivesse medo. Ela me conta que o Medo tentou matar os guardiões – Papai Noel, Coelho da Páscoa, a Fada dos Dentes e Sandman e de como a Lua escolheu o Jack Frost para ajudar a salvar os guardiões, pois o Medo estava acabando com eles. Conta-me que Jack Frost não sabia quem ele era e que ele foi descobrindo coisas do seu passado.

A história contada por M. causou-me um grande impacto, em especial pelo personagem de Sandman, o guardião do sonho e o personagem, juntamente com Jack Frost, no qual a criança mais se deteve.

Após a sessão, procuro a sinopse do filme que se chama A origem dos guardiões2.

As crianças do mundo inteiro são protegidas por um seleto grupo de guardiões: o Papai Noel, a Fada do Dente, o Coelho da Páscoa e Sandman, que garantem a inocência e as lendas infantis. Mas um espírito maligno, o Breu, um ser das sombras que fomenta e se alimenta do medo das crianças decide desafiar e aniquilar os guardiões. Breu é o que em nossa cultura chamaríamos de Bicho Papão, um ser sobrenatural que se esconde embaixo das camas e transforma sonhos em pesadelos e é por causa dele que as crianças têm medo do escuro. Breu monta um plano onde ele vai fazer desaparecer os guardiões, um a um, até não restar mais nada, a não ser o medo.

Para combater o enorme perigo, a Lua designa um ajudante para os guardiões - Jack Frost - menino sobrenatural, solitário, rebelde, sem memória de seu passado e invisível. Jack não se sente reconhecido, identificado, como o são os outros personagens, o que o deixa confuso e ressentido. Jack precisa combater Breu, mas também precisa saber quem é e seu lugar no mundo.

Papai Noel e o Coelho da Páscoa são apresentados como personagens de aspecto mais moderno e adulto, numa versão pós-moderna dos mitos, onde Papai Noel é cheio de tatuagens e o Coelho é um atleta. Os personagens menos aparentados com estereótipos humanos são a Fada dos Dentes e Sandman. A Fada dos Dentes recolhe os dentes que as crianças colocam debaixo do travesseiro e os guarda em seu palácio, caso precisemos delas um dia. Ela é, assim, a guardiã das memórias infantis.

Sandman é o criador dos sonhos bons e é mudo. Ele atende por outros nomes como Morpheus ou o nosso João Pestana e só se comunica através de imagens que cria com areia sobre sua cabeça. Sandy, ou Sandman é o guardião dos sonhos.

M. me conta sobre a estratégia do grupo para conter Breu.

Os guardiões criam forças da crença infantil neles e as crianças se fortalecem com a força que deles emana. Este pacto lhes permite suportar o não sabido e o mistério. Jack e os guardiões optam por combater Breu com sua própria arma, despertando nele o que ele despertava no outro. O medo é vencido quando passa a temer a força dos guardiões.

O Sandman do filme é originado do mesmo personagem de Hoffman, no qual se baseia o texto clássico freudiano, O estranho. (FREUD, 1919). No entanto, o "homem da areia", na cultura alemã, é o bicho papão, não o guardião. Ele é uma entidade sobrenatural que tem uma função disciplinar, repressora. Ele é invocado pelas mães ante a ameaça de desobediência das crianças na hora de dormir. O Homem de Areia é um perigo para estes, os recalcitrantes, que se pegos, tem areia jogada em seus olhos e, em casos mais extremos, tem os olhos arrancados!

A hora de dormir promove a estranheza, pela diminuição dos contornos entre a realidade material e a realidade psíquica. Freud (1919) considera que a estranheza deriva da incerteza, do não sabido, que desorganiza aquilo que era nítido (p. 277-278). Confundem-se realidade e fantasia, medo e desejo, amor e ódio, risco ou segurança. O sonho infantil torna-se então uma possibilidade ameaçadoramente ambígua, podendo tanto ser um espaço ricamente povoado pela imaginação ativa da criança, como pode ser o lugar onde ver e saber são um risco aterrorizante.

Para M., dormir é um perigo e um risco e é preciso que os pais estejam ao seu lado, para velar que seu sono seja sem sonhos ameaçadores, paralisados os desejos de maior autonomia e independência.

Ao sonhar, qual sonho se apresenta? Sandman, o guardião, ou o Homem de Areia, que ameaça sua integridade de ser? Quando ela era um bebê, o que seu sono poderia significar? O sono dos que sonham ou o sono do qual nunca acordamos?

Heimlich é uma palavra alemã que significa familiar, agradável, mas também significa o que está oculto e fora de visão. Unheimlich é considerado apenas como o contrário do primeiro termo, o estranho. Nos pesadelos, entretanto, aquilo que fica exposto é que é estranho e indefinido, e o que é confortavelmente ignorado na vigília passa a ser ameaçadoramente visível no mundo onírico. O perigo se encontra quando o que nos é confortável desconhecer torna-se assustadoramente passível de ser encontrado. M. precisa de guardiões e pergunto-me se aquilo que é assustador não é o que foi vivenciado nos tempos de bebê: o medo de M. não sobreviver, recalcado no consciente, mas que se expressa não só nos temores da criança, mas também na complacência dos pais em atender a suas exigências. O medo, afeto que ocupa a vacância das experiências de continuidade não conquistadas ao longo dos muitos dias vividos numa unidade intensiva.

Imagino que a exigência da presença parental, junto ao sono, possa também significar um duplo alívio. Alívio por ter uma pessoa que a protege do perigo identificado como externo; e alívio porque a presença viva da figural parental é a evidência de que o mal interno também foi contido, o perigo ligado "à onipotência de pensamentos, à pronta realização de desejos, a maléficos poderes secretos e ao retorno dos mortos" (FREUD, 1919, p. 308).

Na última sessão, M. me diz que está pensando em fazer um diário dos sonhos, escrever sobre eles. Comento que o diário poderia ajudá-la a perceber quando as imagens são falas do Sandman e quando são falas do Medo, como quando me contou que como muitas vezes era difícil e confuso entender o que o Sandman dizia, no filme.

Freud (1919) assinala que "no domínio da ficção, muitas dentre as coisas que não são estranhas o seriam se acontecessem na vida real" (p. 311). Talvez M. busque, com seu diário, o caminho reverso – aos escrever seus sonhos, deseja retirar deles a estranheza e poder ocupar o espaço de sonho que foi perdido.

As sessões criaram um espaço de sonho, onde o relato do filme tornou-se o sonho de um sonho, como no sonho de verão shakespeariano. No espaço criado por nós, M. me diz que vai ousar sonhar e que descobriu a possibilidade de narrar seus sonhos. Vai sonhar, vai recordar e vai relatar seu sonho em seu diário. Ao recordar o sonho, anseia por transformar a vivência em experiência. Ao narrá-lo para outro, transforma a experiência em experiência compartilhada. Não está mais só. Caminha para poder construir, dentro de si, um terceiro, localizado dentro dela e que por isto, não corre o risco de ser perdido, nem de ser invasor e pode, assim, abrir mão de sua presença física.

Com seu diário dos sonhos, M. descobre uma alternativa para o não poder dormir, não poder estar só com seus sonhos. Ao narrá-los, pode criar pontes entre o sonhar, experimentar, o rememorar e o compartilhar. O sonho passará a ser, finalmente, guardião de seu sono.

 

Afinal, de que são feitos os sonhos?

De que são feitos os sonhos? Acredito que estes sejam feitos de tudo que faz parte do humano e da vida humana. São feitos de saberes e não saberes, de corporeidades e materialidades, do que há de mais privado e inominável em nós mesmos e também é feito de linguagem, memória e razão. Não somos homogêneos, nem totalmente coesos e o máximo que se pode aspirar é que algum tipo de comunicação aconteça e possa se sustentar entre as tantas partes que nos formam. O sonho é um destes tipos de comunicação, originado em um lugar que é criado a cada vez que o viver humano nos leva a um limite ou borda, seja ele o limite da realidade, seja ele na elusiva fronteira do inconsciente. A ausência do sonho fala disto, das impossibilidades criadas pela cisão e pelos mecanismos de clivagem, do alheamento de partes de si, das dissociações realizadas na tentativa de evitação do colapso ou do aniquilamento.

Sonhar é uma ação constitutiva, subjetivante que independe da decifração do que foi sonhado. "Não importa o que o sonho venha a ser; o que é significativo é que ele aconteceu – que pode ser sonhado- e, em seguida, como o sonho é usado" (PHILLIPS, 1996, p. 92).

Um sonho, para além de algo a ser decodificado, também inclui um enigma. Sonhos são comunicação, são lugar, são tempo privilegiado, não são nem totalmente internos ou externos e riem-se de nossa tentativa de colocar lógica neles. O que importa é o convite implícito no sonhar, o convite ao perguntar, a rebeldia salutar que recusa as formas e acolhe outras formas, por mais inquietantes e desconfortáveis que estas possam parecer, de início. O sonho, como o brincar, é um lugar de possibilidades, nunca sendo um fim em si, mas um convite a experimentar outros começos e onde decifrar um sonho é tão significativo como abster-se em fazê-lo.

 

 

Referências

BOLLAS, C. Sendo um personagem. Rio de Janeiro: Revinter, 1998.         [ Links ]

FREUD, S. (1910). Cinco lições sobre a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 11).         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
Neyza Prochet
e-mail: neprochet@gmail.com

Tramitação: Recebido em 30/03/2012
Aprovado em 16/04/2013

 

 

* Psicóloga, psicanalista, membro efetivo/Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, doutora em Psicologia Clínica/Universidade de São Paulo, supervisora úde Mental do CAPSi Maurício de Sousa (RJ)
1 Disponível em: < http://kdfrases.com/autor/ad%C3%A9lia-prado>. Acesso em: 08 mar. 2013.
2 A origem dos guardiões é um filme de animação estadunidense, produzido pela DreamWorks Animation, lançado em 21 de novembro de 2012 nos Estados Unidos e em 30 de novembro de 2012 no Brasil. Baseado no livro homônimo de William Joyce, possui personagens fictícias como Papai Noel, o Coelhinho da Páscoa, a Fada do Dente, Jack Frost, e Sandman. Disponível em: . Acesso em: mar. 2013.