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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.35 no.28 Rio de Jeneiro  2013

 

Artigos

Tempo do sonho, tempo da rêverie e o terceiro-analítico

 

Dream time, rêverie time and the analytuc-third

 

 

Nelson Ernesto Coelho Junior*

Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Tomando por base o relato de uma sessão de psicanálise, discute-se a dimensão temporal em psicanálise, a análise de um sonho e o trabalho associativo entre, de um lado, o analista e de outro, o paciente. Discute-se, também, a importância dessa dimensão temporal para a experiência coconstruída do terceiro-analítico.

Palavras-chaves: Sonho, tempo, rêverie, terceiro-analítico.


Abstract

Based on the report of a psychoanalytic session, we discuss the temporal dimension in psychoanalysis, the analysis of a dream and the associative work between analyst, in one side and patient, in the other side. We also discuss the importance of this temporal dimension for the co- -constructed experience of the analytic-third.

Key-words: Dream, time, rêverie, analytic-third.


 

 

Sonhos ocupam a capacidade imaginativa de psicanalistas, o esforço teórico da psicanálise e as sessões de análise há mais de um século. Há bem menos tempo, alguns analistas, como o norte-americano Thomas Ogden, começaram a defender a ideia de que devemos colocar a análise dos sonhos no contexto de uma compreensão intersubjetiva do processo analítico. O que significa, portanto, pensar o sonho como uma construção conjunta do inconsciente de analista e paciente. Significa, também, pensar que as associações de um analista decorrentes do relato de um sonho do paciente passam a ser tão relevantes em uma análise quanto as próprias associações do paciente. Ou melhor, que a produção conjunta de associações é parte do terceiro-analítico, que é como Ogden define a criação comum de analista e paciente em um campo transferencial-contratransferencial.

Assim como os sonhos, a ideia de tempo é tema recorrente nas investigações e construções teóricas da psicanálise. Muito tem sido escrito sobre o que o tempo significa para a psicanálise, muito menos sobre o que significa a experiência de tempo vivido no setting psicanalítico. Entendo que a psicanálise é, sobretudo, uma experiência emocional, vivida no campo transferencial-contratransfencial. Nesse artigo pretendo explorar a experiência emocional do tempo, a partir do relato de um sonho em uma sessão recente com um paciente que está em seu terceiro ano de análise.

 

1

A sessão

– Na noite passada eu tive um sonho. Agora, eu não tenho certeza se foi realmente na noite passada. Bem, isso não importa. Eu estava em uma casa, na casa dos meus avós, na qual eu vivi quando tinha cinco ou seis anos de idade. Era uma casa pequena e eu me vi no jardim com minhas duas irmãs mais novas. Mas, o estranho é que eu estava como estou agora, com 29 anos de idade e minhas irmãs também estavam com a idade que têm agora. A casa não pertence mais à minha família e não me lembro de ter voltado a essa casa depois dos meus sete ou oito anos.

– Você reconhece algum sentimento ligado a essa cena? [Eu fiz esta pergunta e, ao mesmo tempo, tentei imaginar a casa do sonho. Por alguma razão, figurei a imagem de uma casa em que morei quando tinha cinco ou seis anos de idade. Assim, fui transportado para um lugar muito familiar e reconfortante de minha infância.]

– Algo como a nostalgia de uma época em que eu tinha a sensação de estar em uma casa que conhecia bem. A sensação de estar seguro e protegido. É estranho, mas depois de tantos anos não me lembro de ter vivido depois em uma casa em que tivesse esse tipo de sentimento de segurança e de proteção.

– Você estava pensando em comprar uma casa, não é? [Agora eu comecei a imaginar a minha própria casa, onde moro atualmente. Percebo que com essa intervenção corri o risco de interromper sua linha associativa e seu mergulho no passado. Algo conservador me tomou e pensei que estava usando meus próprios parâmetros para estabelecer o que a sua imagem e sua memória poderiam significar. Ou, mais ainda, eu estava colocando meus próprios desejos para sua vida em vez de apenas ouvi-lo. Penso que devo ter mais cuidado com o que digo. Devo manter só para mim a informação que é produzida em minha mente. Talvez eu devesse ouvir um pouco mais. Sim, isso é o que vou fazer.]

– Sim. Mas eu não tenho certeza se essa é uma boa ideia. Sabe, minha mãe está sempre me dizendo que eu deveria usar melhor o meu dinheiro, talvez comprar uma casa e me estabelecer. Eu ainda não tenho certeza se conquistei as coisas que quero e tenho medo de perder minha juventude antes de encontrar as coisas que são realmente importantes para mim. Eu sou bom no que faço, mas estou sempre olhando para frente para ver se o que faço é a melhor coisa que posso fazer. Meu pai parecia saber muito bem o que queria da vida. Para ele, o conhecimento e sua carreira acadêmica sempre ocuparam o primeiro lugar, ele nunca se importou com dinheiro e status. Lembro-me de perguntar ao meu pai, quando eu tinha uns dez anos, por que nós tínhamos um carro tão velho enquanto todos os pais dos meus amigos tinham carros novos e acima de tudo, carros caros e viviam em grandes casas, com piscina. Ele nunca me deu uma resposta direta. Mas eu senti que, com o seu silêncio, ele estava tentando me dizer alguma coisa sobre o modo como escolheu viver a sua vida e fazer as suas escolhas.

– Você nunca me contou de conversas desse tipo com seu pai. A meu ver, há algo importante nessa memória. Seu pai sempre tão tranquilo e seguro de suas escolhas e ao mesmo tempo dando um exemplo e estabelecendo valores de vida para você. Desde sua primeira sessão, notei que você questionou ou resistiu aos modelos, às referências principais de sua vida, que nunca estavam à altura de sua busca. Mas agora eu ouvi algo diferente.

– Sim, eu nunca pensei na posição e no exemplo de meu pai dessa maneira.

– Nosso tempo acabou. Até a próxima sessão.

O paciente saiu e eu fiquei sozinho com meus pensamentos. Fiquei feliz por ele se sentir seguro, depois de todos os anos que temos trabalhado juntos. Ele pôde se sentir seguro o suficiente para se lembrar de coisas que evitou por tantos anos. Mas, em termos da experiência do tempo, o que aconteceu nesta sessão?

 

2

O tempo cronológico e o tempo de sonhar

A duração de uma sessão psicanalítica é determinada em minutos (45 ou 50 minutos). Como se sabe, a regularidade da duração de uma sessão e a regularidade do número de sessões na semana são algumas das principais condições do setting analítico ou, mais precisamente, no presente caso, do enquadre analítico (condição externa, mas também uma condição simbólica) e permite que um tipo especial de liberdade psíquica se estabeleça. Uma liberdade em relação ao tempo e ao controle consciente, que ocorre no interior e em virtude da estrutura do setting psicanalítico e permite ao paciente viver uma experiência diferente de tempo, que gostaria aqui de chamar de "tempo de sonhar". O paciente está ciente do tempo cronológico, ele está consciente de vir ao consultório em uma hora exata do dia. Ele vem, por exemplo, duas vezes por semana, sempre às oito horas da manhã. Ele sabe que a sessão terá 45-50 minutos. Mas, quando se deita no divã, outra experiência de tempo começa. Passado, presente e futuro se unem em uma só e mesma construção e expressão de um complexo processo de experiências emocionais e representacionais. A tensão entre os níveis consciente e inconsciente da representação aparece (ou pode aparecer), em cada frase, em cada nova expressão. E, especialmente, quando um paciente conta um sonho, estará em contato com diferentes aspectos da experiência de tempo, em sua dupla face consciente e inconsciente. De um lado, a atemporalidade dos processos inconscientes; de outro, o registro temporal dos processos conscientes.

A referência aqui é a ideia freudiana clássica, de que "os processos do Sistema Ics são atemporais, isto é, não são ordenados temporalmente, não são alterados pela passagem do tempo, não têm relação nenhuma com o tempo. A referência ao tempo também se acha ligada ao trabalho do sistema Cs" (FREUD, 1915, p. 128).

Em um sonho, como o relatado acima, as coisas, pessoas e experiências que pertencem ao passado aparecem como pertencentes aos acontecimentos presentes, por exemplo. Em termos freudianos, esta é outra lógica, a lógica do inconsciente, caracterizado pela sua "ausência de contradição" (FREUD, 1915, p. 128).

Vale lembrar, que André Green (2000) propôs que os sonhos revelam a existência de um tempo fragmentado, ou seja, de um tempo que tem pouca relação com a sucessão ordenada, segundo a tripartição passado, presente, futuro. O tempo fragmentado, onírico, é para Green o tempo da análise. Mas podemos dar um passo adiante. Na sessão, o paciente começou a me contar um sonho que teve na noite anterior. No presente da sessão, ele me fala sobre algo do passado, mas em termos atuais. A imagem que é produzida no sonho (e reproduzida em palavras durante a sessão psicanalítica) diz respeito a uma experiência situada há ainda mais tempo, uma lembrança de sua infância. No mesmo contexto, aparece algo do futuro, representado pela ideia de sua mãe de que ele deveria gastar melhor o seu dinheiro, por meio da compra de uma casa. Emoções e ideias aparecem misturadas, as experiências do passado, do presente e do futuro estão unidas na construção de um tipo especial de temporalidade, um tempo de sonho, que evidentemente não se reduz à experiência dos relatos de sonho ou da lembrança de um sonho durante uma sessão de análise.

Algo semelhante ocorre com o processo mental do analista e com sua experiência de tempo. Mergulhado no campo transferencial-contransferencial e envolvido pelas expressões do paciente, o analista passa a viver um tempo próprio, que está em contato com o tempo do paciente, mas que não se confunde com este. É de certa forma o que pode ser descrito como o tempo da rêverie. Thomas Ogden define a rêverie do analista (conceito que se refere a formas de ensonhamento durante a sessão, como proposto por Bion), nos seguintes termos:

A conversação inconsciente que durante o sono nós experimentamos como um ato de sonhar, no setting analítico nós experimentamos como sendo uma rêverie. As rêveries do analista são sonhos acordados. A rêverie pode ter praticamente qualquer forma, mas geralmente, em minha experiência, apresenta-se obliquamente à consciência na mais discreta e cotidiana das formas: como 'ruminações', devaneios, fantasias sexuais, trechos de filmes, frases musicais ou trechos de poesia 'audíveis', sensações corporais, e assim por diante (OGDEN, 2001, p. 5).

Na sessão relatada acima, a minha rêverie começa com uma imagem da casa de minha infância. É algo que me aparece na forma de uma imagem, está relacionado com a minha história pessoal, mas também tem uma profunda ligação com o que está sendo experimentado pelo paciente. A imagem que me ocorre está ancorada em elementos da minha história de vida, em meu repertório de imagens, mas possivelmente me apareceu naquele específico momento da sessão para me informar sobre algumas das experiências emocionais e imagens inconscientes do paciente. A descrição do relato do sonho e das associações do paciente e minhas durante a sessão, bem como as mudanças no clima emocional da sessão, apoiada tanto por minhas rêveries quanto pelas falas do paciente e pelas minhas falas, revelam como o campo estava sendo configurado mutuamente pelo par analítico. Com isso, procuro mostrar também a minha preocupação em descrever uma dimensão da interpretação e das falas em geral do analista que vão além do seu conteúdo representacional, abrangendo elementos sensoriais que decodificam e comunicam estados afetivos, proximidade, intimidade e distanciamento entre analista e paciente. Esse nível de experiência, em uma análise, abre espaço para discutirmos a noção de "terceiro sujeito da análise", proposta por Thomas Ogden.

 

3

O tempo, as conversas na fronteira do sonho e o terceiro-analítico

Em um setting psicanalítico temos duas pessoas e, na maioria das situações, duas experiências distintas de tempo. Existe o tempo do analista e o tempo do paciente. Habitualmente, não há nada em comum entre estes dois tempos. Existe o tempo da associação livre do paciente e o tempo da atenção flutuante do analista. São experiências diferentes de tempo, mas há a necessidade de algum tipo de ponte ou entrelaçamento, caso contrário, não seria possível qualquer forma de comunicação. O setting psicanalítico é construído de forma a viabilizar uma conversa, mas sempre (ou quase sempre) trata-se de uma conversa assimétrica. O paciente faz a maior parte das falas e o analista escuta. Mas reconhece-se, atualmente, cada vez mais, que há um meio singular para o analista participar da conversa. Thomas Ogden descreve esse meio como sendo o de conversas na fronteira do sonho (conversations at the frontier of dreaming). Trata-se, simultaneamente, de uma conversa consciente e inconsciente, que se passa no interior da experiência psíquica de cada um dos participantes da análise e, também, entre os participantes. Referindo-se à fronteira concebida por Freud entre a pré-consciência e o inconsciente, Ogden sugere que "a fronteira é o 'lugar' em que ocorrem o sonhar e a rêverie; é onde nascem todo tipo de criatividade e o brincar; é onde germinam a engenhosidade e o charme antes de encontrarem o seu caminho (como que saídos de lugar algum) para as conversas..." (OGDEN, 2001, p. 7).

O setting psicanalítico, tal como definido nos dias de hoje é um campo transferencial-contratransferencial. Emoções de ambos os participantes formam um campo de experiência vivida bastante singular. É um campo que envolve as experiências conscientes e inconscientes de analista e paciente. Poderíamos acrescentar, tal como concebe Thomas Ogden (2001), que esse campo também envolve uma experiência co-criada, que é:

Conjuntamente, mas de forma assimétrica, construída pelo par analítico. Esta construção intersubjetiva inconsciente é o 'sujeito da análise'. Um terceiro sujeito com uma vida própria, gerada pelo par analítico e mantido em tensão dialética com a existência do paciente e do analista, como indivíduos separados (OGDEN, 2001, p. 11-12).

Assim, temos o tempo experimentado pelo paciente, o tempo vivido pelo analista e o tempo do terceiro sujeito analítico, co-criado por ambos. Na sessão descrita acima tento mostrar como isso funciona na mente do analista, que deve estar tanto em contato com a experiência de tempo do paciente como em contato com a sua própria experiência de tempo. Se ele é capaz de fazê-lo, algo do terceiro-analítico irá aparecer, como uma experiência transformadora para ambos os participantes da sessão psicanalítica. Na situação apresentada, surge ainda uma diferença entre as minhas duas rêveries, conectadas em dois tempos diferentes de minha vida, com estados emocionais e tipos de preocupação muito diferentes entre si: uma rêverie empaticamente construída (quando figurei a imagem tranquilizadora da casa de minha infância) e uma 'invasão contratransferencial' (quando comecei a pensar na casa em que vivo hoje e desejei que o paciente também tivesse uma casa para se assentar). A minha rêverie viabilizou, em parte, uma nova experiência para o paciente e, felizmente, a invasão contratransferencial, que é quase sempre uma perturbação do campo, não impediu o surgimento de uma nova memória de aspectos de sua infância. No final da sessão, quando falamos sobre o seu pai e os modelos identificatórios (e /ou a ausência deles) em sua vida, experimentamos algo relevante em conjunto, algo que poderia ser considerado como o surgimento do 'sujeito da análise ', o terceiro-analítico.

Para Ogden, a comunicação analítica se dá primordialmente entre o eu do paciente e o eu do analista; mas há em sua proposta uma verdadeira novidade que pode sugerir uma defesa da comunicação entre inconscientes: trata-se da ideia de que toda comunicação sempre se dá sobre o fundo de uma série de relações dialéticas, envolvendo as subjetividades isoladas de analista e analisando o terceiro-analítico, o terceiro sujeito intersubjetivo. Tais relações se dariam, predominantemente, em um nível inconsciente. Mas isso só é válido de um ponto de vista descritivo: não há transmissão de representações recalcadas de um sujeito para outro. "Uma análise não é simplesmente um método de descoberta do oculto; é principalmente um processo de criação de um sujeito analítico que não existia antes" (OGDEN, 1994, p. 47).

Nesse sentido, o que está envolvido na formação da intersubjetividade é um nível da existência e da experiência ainda pré-representacional e até mesmo pré-pessoal (a partir do qual o sujeito é criado), no qual não se pode, e não se deve tentar, "determinar que qualidades pertencem a cada indivíduo" (OGDEN, 1994, p. 64). Na experiência do terceiro-analítico, estão em jogo:

Formas simbólicas e proto-simbólicas (baseadas em sensações) atribuídas à experiência não-articulada (e muitas vezes ainda não sentida) do analisando, quando estas estão ganhando forma na intersubjetividade do par analítico (isto é, no terceiro-analítico) (OGDEN, 1994, p. 82).

Pensar a comunicação em uma sessão analítica a partir do campo transferencial- contratransferencial e a partir das dimensões intersubjetivas que constituem esse campo, não exclui as dimensões propriamente intrapsíquicas da compreensão dos processos determinantes em jogo. Ao contrário, trata-se de trazer a dimensão intrapsíquica e suas expressões para o plano da relação intersubjetiva (cf. COELHO JUNIOR, 2010). Assim, a dinâmica intersubjetiva ganha expressão nos "convites mútuos" operados em uma sessão pelo terceiro- -analítico, que Ogden definiu nos seguintes termos:

O processo analítico reflete a inter-relação de três subjetividades: a subjetividade do analista, a do analisando e a do terceiro- -analítico. O terceiro-analítico é uma criação do analista e do analisando, ao mesmo tempo em que ambos (na qualidade de analista e analisando) são criados pelo terceiro-analítico. (Não há analista, analisando ou análise na ausência do terceiro) (OGDEN, 1994, p. 93).

É tempo de avançar em (e/ou recuperar) outra direção. A psicanálise fez uso, também, de outras formas de apreensão do tempo, que se revelaram fundamentais para a compreensão do processo analítico: regressão, repetição e ritmo.

 

4

Tempo de regressão, tempo de repetição

Regressão, repetição e ritmo: estes são três dos conceitos psicanalíticos mais importantes relacionados com a experiência do tempo. São conceitos que indicam uma concepção psicanalítica do desenvolvimento humano e da experiência do tempo em uma sessão psicanalítica. Para a teoria psicanalítica, desde Freud, a solução para o problema da evolução temporal no desenvolvimento humano não se dá por meio de uma noção de tempo que se baseie na ideia de uma sucessão temporal comum. Processos psíquicos são sempre bidirecionais, o que significa que eles podem ser vistos como processos progressivos e regressivos. A experiência de um tempo presente pode ser influenciada por elementos do passado e por elementos do futuro, ou até mesmo por ambos simultaneamente. Devemos recusar, nesses termos, qualquer noção de determinismo linear, como em 'um evento passado sempre determina um evento posterior'. Mas, também sabemos pela experiência e prática psicanalítica, que muitas conquistas em um processo psicanalítico dependem de o paciente poder ou não viver uma regressão. O setting psicanalítico é especialmente orientado para permitir a regressão, concebida não como um mecanismo de defesa, mas, basicamente, como uma forma de se viabilizar transformações na organização psíquica. A regressão temporal traz de volta as emoções de experiências de outros tempos da vida, imagens e desejos que vão participar na transformação de comportamentos que se repetem indefinidamente. Existe um modo de defesa psíquica que se baseia na repetição. É por isso que, como analistas, temos sempre em mente a pergunta: na vida deste paciente o que está se repetindo e por quê? Em termos freudianos, podemos dizer que o paciente "é antes levado a repetir o reprimido como vivência atual, em vez de (...) recordá-lo como parte do passado" (FREUD, 1920, p. 177). Mas a repetição na análise, em algumas situações específicas, pode ser também uma forma de elaborar o que ainda não foi transformado em representação, em significação, se analista e paciente estão envolvidos na construção de um campo intersubjetivo de análise.

Na situação clínica apresentada acima, o sonho foi o primeiro passo em direção à regressão, por meio do que o paciente foi capaz de lembrar algo de seu passado. Segui sua regressão com a minha própria regressão, que eu acredito ter ajudado a viabilizar algo novo como forma de elaboração e não apenas de repetição. Mas, como já salientei anteriormente, o setting psicanalítico é também estruturado por outro tipo de repetição. Por exemplo, no caso descrito, temos duas sessões na semana, sempre no mesmo horário e no mesmo local, com o mesmo analista. Esta forma de repetição pode ser chamada de ritmo. É um ritmo absolutamente necessário para permitir que o paciente possa estar em dois tempos diferentes, vivendo simultaneamente uma estranha experiência que interconecta passado, presente e futuro. Ritmo e continuidade são formas essenciais de temporalidade no processo psicanalítico. Mas, em muitas situações clínicas, especialmente com pacientes muito perturbados, somos confrontados com experiências da supressão de qualquer perspectiva de futuro e é difícil estabelecer um ritmo. É um cara a cara com o vazio e com o desespero. Um passado traumático, um presente que é insuportável e sem perspectiva de futuro. Em vez de ritmo temos paralisia. É o que podemos chamar de um tempo coagulado. Aqui, ainda mais, temos de confiar em um campo intersubjetivo de construção, em que paciente e analista podem convergir para a criação de novos começos psíquicos e temporais.

 

5

Nachträglichkeit

Agora podemos dirigir a nossa atenção para o mais importante e inovador dos conceitos psicanalíticos sobre o tempo. A palavra que Freud usou em alemão foi Nachträglichkeit. Em inglês foi traduzido por James Strachey como ação diferida: momentos vividos que não podem ser integrados em um entrelaçamento de significados (estabelecendo representações psíquicas) têm uma potencialidade de sentido que não pode ser completamente consumada. O significado desses momentos vividos será suplementado em um a posteriori. Novas experiências vão enriquecer as primeiras marcas e oferecerão aspectos desconhecidos, ainda não descobertos. Não é apenas uma simples reconsideração do primeiro momento. É uma constante transformação por meio do suplemento interposto por momentos novos que se ligam a eles. A Nachträglichkeit implica a existência de uma distância temporal entre a situação vivida e seu efeito psíquico (ou a constituição de uma representação psíquica adequada para a situação vivida). É por isso que, em termos psicanalíticos, significado e consistência psíquica vêm depois e não ao mesmo tempo em que a situação vivida.

É em função disso que muitos psicanalistas recusam pesquisas empíricas em psicanálise apoiadas em métodos e ideias próprios das psicologias do desenvolvimento ou das neurociências. Aqui encontramos uma grande discordância entre a teoria freudiana e a maioria das teorias psicológicas em compreensão do que é a experiência do tempo. Como psicanalistas, não acreditamos que podemos, empiricamente, observar o desenvolvimento e ter a certeza de uma relação direta entre os fatos da vida e seu significado psíquico. André Green sugeriu que:

Os processos relacionados com o tempo são aquelas que escapam à observação e a maioria deles têm que ser deduzidos de forma retrospectiva. Por quê? Porque ocorreram intrapsiquicamente, reorganizando os resultados da percepção, dos afetos, das fantasias, dos desejos, etc. Esta é a base para a transferência (GREEN, 1999, p. 28, grifos nossos).

Acho essa afirmação controversa, mas eu concordo com Green que nunca estamos seguros de poder observar objetivamente um fato que depende de processos psíquicos. Concordo, também, que a transferência é a forma pela qual reorganizamos psiquicamente os fatos vividos anteriormente. Assim, é muito incerto e impreciso, e até mesmo errado, estabelecer que um trauma, por exemplo, ocorreu quando a criança tinha dois ou três anos, contando apenas com as observações da mãe ou a memória de observações ou mesmo auto- -observações. Isto não significa que não haja relação entre os fatos da vida e as representações psíquicas ou entre a realidade externa e a realidade psíquica, ou ainda entre a verdade histórica e a verdade de uma narrativa. A questão aqui é se nós, psicanalistas, devemos acreditar na realidade obtida por meio de métodos observacionais, por meio de métodos empíricos de pesquisa, que medem e contabilizam um tempo cronológico de supostos fatos ocorridos. A psicanálise tem seu próprio método de pesquisa, um método baseado na experiência clínica, baseado no que emerge no setting analítico, em um tempo de sonhos e de rêveries, nos caminhos de tempo próprios ao terceiro sujeito analítico.

É aqui que se entrelaçam o modo do psicanalista conceber o tempo, o uso da rêverie e o terceiro-analítico. O entrelaçamento entre os tempos vividos em uma sessão psicanalítica por paciente e analista, a permeabilidade entre interno e externo, entre o que é próprio de um e de outro (paciente e analista), entre o sonho, o relato do sonho em vigília e a rêverie do analista é o que permite o surgimento do terceiro-analítico. É esse tempo do sonho vivido em análise que subverte e amplia todas as experiências de tempo, criando algo novo, onírico, construído a dois por um terceiro.

Há, também, o tempo próprio da sessão, para além das épocas (passado, presente e futuro) nas quais se situam os diferentes momentos vividos pelo paciente. No caso da sessão relatada, o final da sessão se liga ao início. O retorno, por meio do sonho, à casa dos avós ganha sentido e se articula aos modelos identificatórios sugeridos pela lembrança da conversa com o pai. A sensação de segurança anunciada no começo ganha novo sentido ao poder ser ligada ao exemplo de vida oferecido pelo pai. Enfim, são sempre muitos tempos conjugados, mas não necessariamente coagulados. Nesse sentido, o trabalho da psicanálise é um trabalho de des-coagulação. Muitos tempos de sonho e de rêverie que colocam em movimento memórias e sensações até então congeladas, trazendo, para o jogo das significações construídas, experiências que se mantinham mudas no silêncio do corpo.

Por fim, gostaria de insistir, em consonância com a ideia de uma ação que ganha sua significação só no a posteriori, no que André Green (2000) chamou de a marcha do tempo em um processo psicanalítico. São formas de experiência que produzem diferentes efeitos de reverberação retroativa e de expressão antecipatória, e que permitem novas formas de irradiação de significados em um setting psicanalítico. Na vinheta clínica que abre este artigo tentei mostrar, em uma experiência vivida, alguns momentos desta marcha do tempo que são inerentes a qualquer processo psicanalítico.

 

 

Referências

COELHO JUNIOR, N. E. Da intercorporeidade à co-corporeidade. Elementos para uma clínica psicanalítica. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 44, n. 1, 2010.         [ Links ]

FREUD, S. (1915). O inconsciente. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 12).         [ Links ]

______. (1920). Além do princípio do prazer. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, 12).         [ Links ]

GREEN, A. The greening of Psychoanalysis: André Green, em diálogos com Gregorio Kohon. In: KOHON, G. (ed.). The dead mother: the work of André Green. London: Routledge, 1999.         [ Links ]

______. Les temps éclatés. Paris: Editions Minuit, 2000.         [ Links ]

OGDEN, T. Subjects of analysis. Northvale, NJ: Jason Aronson, 1994.         [ Links ]

______. Conversations at the frontier of dreaming. Northvale, NJ: Jason Aronson, 2001.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência:

Nelson Ernesto Coelho Junior
e-mail: ncoelho@usp.br

Tramitação: Recebido em 24/04/2013
Aprovado em 08/05/2013

 

 

* Psicanalista, doutor em Psicologia Clínica/Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, prof. do Instituto de Psicologia/Universidade de São Paulo.