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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.35 no.28 Rio de Jeneiro  2013

 

Artigos

Considerações sobre a formação do analista: ética, saber e transmissão

 

Considerations on the development of the analyst: ethics, learning and transmission

 

 

Humberto Moacir de Oliveira*; Tiago Iwasawa Neves**

Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O reconhecimento internacional da Psicanálise intensificou a preocupação de Freud em expor sua técnica e em pensar a formação dos novos profissionais que iriam exercê-la. As precauções freudianas revelam a existência de um impasse no campo da técnica psicanalítica que só pode ser respondido no campo da ética. Em Lacan, o saber e o conhecimento não são mecanismos coincidentes. O artigo propõe uma discussão que coloque a formação do analista no âmbito da ética do inconsciente e da construção de um saber, e não da técnica do conhecimento.

Palavras-chaves: Formação do analista, ética, saber, conhecimento, transmissão.


Abstract

The international recognition of Psychoanalysis intensified Freud's concern about exposing his technique and form new professionals who would practice psychoanalysis. Freudian precautions reveal the existence of an impasse in the field of psychoanalytic technique that can only be answered within the field of ethics. In Lacan's work, knowledge and learning do not mechanisms that coincide. The article proposes a discussion that places the development of the analyst within the field of the ethics of the unconscious and the building of a learning, and not in the limits of the knowledge technique.

Key-words: Analyst development, ethics, learning, knowledge, transmission.


 

 

Introdução

O ano de 2011 marcou o centenário do Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Weimar, evento que serviu para respaldar a fundação da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), criada por Freud um ano antes. A fundação da IPA foi, nas palavras do próprio Freud (1914/1969b), um ato de defesa da psicanálise a favor de seus princípios conceituais e clínicos:

Julguei necessário formar uma associação oficial porque temia os abusos que a psicanálise estaria sujeita logo que se tornasse popular. Deveria haver alguma sede cuja função seria declarar: "Todas essas tolices nada têm a ver com a análise; isto não é psicanálise" (FREUD, 1914/1969b, p. 56-57).

As palavras de Freud não nos trazem somente uma preocupação de sua época, mas um problema que inquieta os psicanalistas até hoje: quais são os critérios epistemológicos e técnicos estabelecidos para se exercer a psicanálise?

Quando pensamos na situação da psicanálise, nos dias de hoje, é inevitável nos depararmos com o problema de sua formação, sua validade e sua eficácia. Algumas publicações atuais contestam a validade da psicanálise em nossa sociedade, acusando-a de uma falácia científica e os psicanalistas de crentes de uma nova religião a qual não fazem nenhuma crítica. O exemplo mais notável deste tipo de denúncia é o livro intitulado Le livre noir de la psychanalyse (MEYER, 2005), onde os autores deixam claro que a formação técnica de um analista não está em conformidade com os preceitos científicos contemporâneos, o que os leva a concluir que as terapias de cunho cognitivo-comportamental são mais eficazes, pois justamente se adéquam ao modelo de ciência estabelecido por esta corrente de pensamento. Entretanto, de acordo com Miller & Milner (2006), esta suposta "eficácia terapêutica" de cunho cientificista deve ser discutida, pois quando os diversos psicoterapeutas que escreveram o "livro negro" usam este termo, torna-se claro que estão falando a partir de uma ideia de normatividade social. Normatividade que implica um modelo de avaliação governamental que visa regulamentar o campo da saúde mental e definir, assim, os critérios técnicos necessários para a formação de um bom psicoterapeuta.

Com efeito, a partir desta perspectiva, a direção do tratamento fica condicionada a uma simples questão de métodos e competências que se adequariam "cientificamente" à realidade e a uma dada concepção de normatividade. Ora, não seriam exatamente estes preceitos que a psicanálise se encarregou de desmitificar – a perfeita e justa adequação do sujeito a determinações da realidade e da norma social vigente? A questão pode ainda sofrer alguns desdobramentos: que sentido o termo "eficácia" teria no discurso científico contemporâneo? Notemos que o termo eficácia encontra-se, no contexto destas práticas psicoterápicas, mais alinhado a uma perspectiva utilitarista e menos a uma perspectiva propriamente científica. Nesse sentido, essas psicoterapias estranhas à psicanálise, em linhas gerais, tomam o conceito de ciência como equivalente de eficácia, e eficácia como sinônimo de utilidade. E mais, tomam o sujeito como algo a ser objetivado cientificamente, se esquecendo de que, por definição, um sujeito "se estabelece quanto ao direito e não quanto ao fato, por isso 'observar' o sujeito, buscá-lo na objetividade, é não querer encontrá-lo" (MILLER, 1998b, p. 234).

Portanto, em primeiro lugar, não devemos nos confundir e acreditar que o problema em torno da formação de um analista e da validade da prática deste se coloca em função de um utilitarismo imaginário. Pelo contrário, somente em função de uma discussão sobre os conceitos que sustentam e dão sentido à prática psicanalítica é que podemos pensar sobre a validade ou não da psicanálise e sobre a formação do analista, que contrariando esse modelo utilitarista, diz 'não' a uma vocação tecnicista. Contudo, como afirmou Miller (1998a), se na prática psicanalítica não temos padrões ou normas técnicas, temos princípios que necessitam ser formalizados.

Mas, se a psicanálise não se submete à lógica de um manual, máximas ou regras, e se as recomendações de Freud a respeito do seu método são, na maioria das vezes, negativas, dizendo o que não deve ser feito, mais do que o que se deve fazer, como pensar a formação do psicanalista em uma cultura cada vez mais marcada pelo referencial tecnicista e utilitarista, tão valioso às políticas de saúde mental implementadas por nossos governantes?

O presente artigo trata do problema da formação do analista, com o objetivo de discutir a tensão existente entre os conceitos de técnica e ética, conhecimento e saber, ensino e transmissão. O momento para esta discussão não poderia ser mais oportuno, uma vez que, além das publicações que criticam a postura epistemológica e clínica dos psicanalistas, vimos acontecer na França, por exemplo, um movimento político que visa à regulamentação das práticas psicoterápicas tomando como critério um decreto do Ministério da Saúde que estabelece a qualificação necessária ao profissional de saúde pública. A Emenda Accoyer talvez seja o exemplo mais vivaz de que o debate sobre o campo da saúde mental ultrapassa o domínio acadêmico, onde se privilegia a dimensão do conhecimento técnico para o bom exercício do profissional "psi" na clínica.

Sendo assim, na primeira seção de nosso artigo pretendemos apontar, a partir da releitura dos artigos sobre a técnica de Freud, que a psicanálise define- se e orienta seu campo de ação em função de sua ética e não de uma técnica exterior ao seu discurso. Na segunda seção, já tendo apontado a direção ética da clínica psicanalítica, buscamos destacar quais são os principais deveres do psicanalista e qual pode ser sua função no ambiente clínico. Ao pensar a função do analista deparamos com uma questão de grande interesse para Lacan, que pode nos ajudar na reflexão a respeito da formação do analista. Referimo-nos à diferença entre conhecimento e saber, diferença que nos possibilita ainda uma última discussão sobre o problema que o ensino lacaniano chamou de transmissão.

 

As recomendações freudianas: técnica versus ética

Seguindo a discussão freudiana sobre os critérios epistemológicos e técnicos da psicanálise, percebemos que a inquietação de Freud com a defesa dos princípios fundamentais de sua teoria não se revela somente através de um ato político de fundação de uma Associação. O reconhecimento internacional da psicanálise, principalmente a partir dos primeiros congressos, intensificou a preocupação de Freud em expor sua técnica e em pensar a formação dos profissionais que iriam exercer a psicanálise. No entanto, seus esforços em fazer essa exposição são acompanhados de uma precaução que se revela quando Freud (1913/1969) diz ser prudente chamar suas advertências técnicas de recomendações e a não reivindicar qualquer aceitação incondicional delas. Essa precaução, juntamente com a relutância freudiana em publicar o que ficou conhecido como seus "artigos sobre a técnica", revelam o ceticismo freudiano em relação a um manual prático de psicanálise e confirmam a hipótese levantada por ele (1910/1969a) de que a psicanálise não pode ser transmitida apenas com a leitura teórica dos livros. Não custa nada lembrarmos que para Freud a questão da técnica psicanalítica está intimamente ligada à análise do analista. Segundo Freud:

Nenhum psicanalista avança além do quanto permitem seus próprios complexos e resistências internas; e, em consequência, requeremos que ele deva iniciar sua atividade por uma auto- -análise e levá-la, de modo contínuo, cada vez mais profundamente, enquanto esteja realizando suas observações sobre seus pacientes. Qualquer um que falhe em produzir resultados numa auto-análise desse tipo deve desistir, imediatamente, de qualquer ideia de tornar-se capaz de tratar pacientes pela análise (FREUD, 1910/1969a, p.130).

Voltemos aos chamados artigos sobre a técnica. Em Sobre o início do tratamento (1913/1969) Freud afirma ser impossível a prática clínica psicanalítica pautada em uma mecanização técnica. Esta impossibilidade ocorre em função da consideração de que um sintoma é produzido devido a uma condição psíquica específica, a qual implica, necessariamente, um posicionamento do sujeito. Portanto, se Freud fala de recomendações e não de um critério fixado para uma boa condução de uma análise, existe uma preocupação com o trabalho do inconsciente, cuja lógica de funcionamento não aponta – como um fato em si – um determinante que permitiria classificar as estruturas clínicas através de um quadro sintomatológico e epidemiológico.

Ao iniciar os comentários a respeito das recomendações técnicas para a direção do tratamento psicanalítico, Freud diz ser o período de "sondagem" fundamental no início, pois é através deste que se torna possível aceitar ou não um paciente. A escolha aí indica, entre outras funções admitidas a este período das entrevistas preliminares, que o analista deve levar em consideração o diagnóstico, onde a "sondagem" proporcionaria a identificação da estrutura clínica do sujeito. O cuidado e a escolha se devem à possibilidade de o paciente apresentar sinais de um estágio preliminar de psicose. Levar adiante uma análise, neste caso, é estar ciente de que a análise possa ter como efeito o desencadeamento e eclosão da psicose. Porém, o que chama mais atenção, segundo o próprio Freud, é a pergunta: quanto tempo durará o tratamento? Freud admite ser esta questão impossível de ser respondida, pois determinar um tempo de cura implicaria em especificar quais os resultados a serem obtidos. Ora, se considerarmos, mais uma vez, que a cura se encontra vinculada a uma mudança no posicionamento do sujeito frente ao sintoma, não é pertinente a previsibilidade de um resultado e, consequentemente de um tempo de cura. E mais, admitir um tempo para que o trabalho da associação-livre dê conta de fazer com que o sujeito se familiarize com o que condicionou sua neurose, contrasta com o caráter atemporal do inconsciente.

Ainda neste texto, Freud condena qualquer linha de conduta do analista, que procure fornecer ao sujeito uma tradução dos seus sintomas. O importante, no entanto, é demonstrar que esta condenação não surgiu ao acaso, mas que ela possui um sentido. Mesmo que as resistências possam indicar algo a respeito da estrutura do sujeito, o analista não possui um saber sobre o que condicionou o aparecimento de tal estrutura. Em outras palavras, mesmo uma tentativa de fornecer ao sujeito, via interpretação, informações sobre o conteúdo recalcado, fracassa. Atentemos que o abandono da teoria da sedução traumática atesta este fracasso citado por Freud, uma vez que, mesmo sendo informado a respeito da experiência traumática, o sujeito se posiciona, ainda, como se nada soubesse sobre ela. Portanto, o problema que se coloca é o seguinte: como é possível a coexistência de um conhecimento consciente do conteúdo recalcado e uma insistência do sintoma? Ora, a psicanálise, ao superar o modelo proposto pela teoria da sedução traumática, demonstra que informar ao sujeito a suposta experiência recalcada não é suficiente para admitirmos uma cura da neurose. Isso é o que demonstram os escritos de Freud, principalmente a partir de 1920, nos quais ele anuncia um novo momento para a técnica, onde as construções em análise devem prevalecer sobre o delírio de interpretação total do inconsciente recalcado.

O desejo do analista, que não é da mesma ordem do desejo médico de curar, se estabelece como o ponto nevrálgico da questão que envolve a formação dos analistas, uma vez que a via aberta por Freud para que façamos de nós analistas cientes de sua causa, não implica outra coisa senão a subversão de todo edifício cultural ordenado pelos valores do bem, do belo, do verdadeiro; implica, em última instância, o abandono da esperança de controle e educação da libido em prol de uma saúde coletiva. "Perde-se tempo, como sabemos, procurando a camisa de um homem feliz, e aquilo a que se chama uma sombra feliz deve ser evitado, pelos males que propaga" (LACAN, 1958/1998, p. 621).

Mas, a preocupação de Freud não é somente com a dimensão do desejo do analista. Se observarmos de perto a discussão empreendida em Psicanálise silvestre (1910/1969b), iremos perceber que a ironia com que Freud taxa a intervenção de um suposto psicanalista a sua paciente não é gratuita. Ao sugerir três possibilidades terapêuticas à paciente que se queixa de crises de angústia, após a separação de seu marido (o retorno para o marido, a conquista de um amante e a masturbação), o médico do exemplo de Freud se atrela somente à dimensão prescritiva, terapêutica e com fins curativos do caso em questão. "As três alternativas terapêuticas desse assim chamado psicanalista não deixam lugar para a... psicanálise" (FREUD, 1910/1969b, p. 210)! Isso porque a psicanálise selvagem seria o uso indiscriminado do saber psicanalítico fora do contexto de transferência. E, a transferência, por sua vez, é o lugar ocupado pelo analista no qual a demanda de cura e felicidade se desdobrará no advento do desejo, ao contrário de uma reabilitação e restauração de um bem-estar perdido, "de descobrir nesse caminho do desejo que o mal-estar é efeito e defeito de estrutura, é irremediável" (JORGE, 2006, p. 137). Portanto, se posicionar contrariamente a "tratamentos selvagens" é, para Freud, elevar a importância do trabalho do inconsciente, evidenciando que a neurose é justamente o retorno do real excluído pela política do bem-estar.

Segundo Miller, a ética da psicanálise seria, então, aquela contrária à ilusão filosófica da ética para todos, pois "só há ética relativa, isto é, específica ao discurso" (MILLER, 1996, p. 109). Isso significa que a psicanálise, quando fala de ética, não se refere a uma universalidade dos costumes, tão menos a uma generalidade da ação. O que realmente importa é a dimensão da ética própria à psicanálise, ou seja, aquela que se coloca, segundo os dizeres de Lacan, sob o prisma do desejo do analista. Ora, não é exatamente esse o problema que ele coloca em seu seminário sobre a ética, que não trata da ética dos filósofos, mas antes, somente da ética da psicanálise? Eis, portanto, a postura ética da psicanálise: não tomar o sujeito e o seu sofrimento como uma categoria técnica. "Na análise, contudo, as questões técnicas são éticas, por um motivo muito preciso: nela nos dirigimos ao sujeito. A categoria do sujeito é ética e não técnica" (MILLER, 1998a, p. 221). Ou, como diria Lacan (1964/1998), o estatuto do inconsciente, longe de ser ôntico, é ético.

Diante do que foi exposto nos parágrafos anteriores, depreende-se uma conclusão fundamental: a psicanálise se define como a clínica do sujeito. Tal como afirmou Lacan (1966/1998a): o sujeito é a matéria única do trabalho analítico. Isso significa que, na formação de um analista, o que está em jogo não é a aquisição de competências técnicas que impliquem um saber sobre sujeito, uma vez que esta perspectiva é contrária ao que a psicanálise se propõe, a saber, tratar cada caso como sendo único, e ainda, como se fosse o primeiro.

Portanto, é injustificável o estabelecimento de um critério de como chegar à cura de um sintoma, uma vez que o problema em questão não se atém a um domínio orgânico, onde a doença só aparece a partir do momento em que se verifica um mau funcionamento dos órgãos. Ao contrário, a estrutura clínica não determina um valor para o sintoma do sujeito. Sabemos que o sintoma para a psicanálise não é índice de déficit orgânico; este somente irá provocar desprazer a partir do momento em que um posicionamento subjetivo está em jogo. Assim, a psicanálise ao considerar o problema do sujeito, exclui a ideia de uma clínica de cunho cientificista, cujo objetivo não é outra coisa senão a tentativa de padronizar técnicas diagnósticas – nomeadas por si mesmo de científicas – como ferramentas fundamentais na elaboração da direção do tratamento, em detrimento do caso único. Consequentemente, a psicanálise reforça a impossibilidade de a prática clínica se constituir sob a égide de um manual técnico ateórico, baseado em dados epidemiológicos, como vemos acontecer nas diversas atualizações dos DSM's.

Lembremo-nos, no entanto, de que nossa atitude perante a vida não deve ser a do fanático por higiene e terapia. Devemos admitir que a prevenção ideal de enfermidades neuróticas, que temos em mente, não será vantajosa para todos os indivíduos. (...) Existe alguém entre os senhores que, alguma vez, não examinou a causalidade da neurose, e não teve de admitir que esse era o mais suave resultado possível da situação? E dever-se-ia fazer tais pesados sacrifícios, a fim de erradicar a neurose, em especial, quando o mundo está cheio de outras misérias inevitáveis (FREUD, 1910/1969a, p. 135)?

Vemos, nesta passagem, Freud evocar a dimensão ética da psicanálise, admitindo que o problema de uma saúde psíquica para todos não deve ser o objetivo do psicanalista. Entrevê-se que a formação deste último não deve se orientar pela aquisição ilusória de um conhecimento técnico sobre o sujeito, cuja apresentação não se faz a partir de um quadro generalista e com pretensões universalizantes. O desejo do analista deve ser aquele que não busca a cura e a felicidade como o fim próprio de uma análise, uma vez que tanto a cura quanto a felicidade tem, para cada sujeito, um sentido particular que foge à regra normativa da civilização. Não custa nada lembrarmos que a descoberta freudiana, por si só, complica muito o objetivo terapêutico do happiness: há uma satisfação ignorada em todo mal-estar comportado pelo sintoma. Portanto, se há para a psicanálise uma preocupação com esta dimensão é porque sua ética visa à ultrapassagem do modelo tecnicista e utilitarista da clínica contemporânea.

 

O dever do analista: bem-estar versus elucidação de desejo

Se o desejo do analista deve se orientar, não pela cura ou pela felicidade de seus pacientes, então qual é o compromisso do analista? Miller (1997), ao descrever as diferenças e semelhanças entre a psicanálise e outras psicoterapias, destaca três deveres do psicanalista: em primeiro lugar, um psicanalista deve ser, de fato, um psicanalista, e isso, desde Freud, como foi ressaltado anteriormente, só pode ser efeito de uma análise pessoal. Outro dever do psicanalista é proporcionar os efeitos analíticos, de acordo com as capacidades do sujeito de suportá-los, e isto vai ao encontro do que já discorremos sobre o papel da transferência, seu manejo e a advertência freudiana sobre uma psicanálise silvestre. Outro dever do psicanalista apontado por Miller no mesmo texto é o de se comprometer a indicar ao público o que o psicanalista não sabe e o que ele não pode prometer. Curiosamente, o que o analista não sabe e o que ele não pode prometer é justamente o que algumas psicoterapias dizem oferecer e que o Estado gostaria que distribuíssemos, isto é, felicidade e harmonia, determinações e decisões; em outras palavras, a eficácia própria do discurso utilitarista. No entanto, não é apenas uma sugestão de Miller, mas um dever do psicanalista, saber que ele nada sabe sobre o que é melhor para seu paciente e que a única atividade com a qual ele pode se comprometer é com a elucidação de desejos inconscientes.

Temos, então, uma direção pela qual a ética da psicanálise deve se orientar. O compromisso do psicanalista não é com a felicidade, apontada por Freud (1930/1969) como um projeto humano fadado ao fracasso, mas com a verdade do desejo. Isso implica romper com toda uma abordagem que privilegia o bem-estar e a eficácia como objetivos clínicos. O desejo do psicanalista não se orienta pela busca da elevação do humor, pela noite bem dormida ou pela diminuição da ansiedade, mas pela busca do que inconscientemente determina uma alteração afetiva, uma insônia ou uma crise de ansiedade. É por isso que o psicanalista se opõe à maioria das práticas medicamentosas, não por ser adepto a um modo naturalista de viver, mas por acreditar que a química, embora com avanços significativos, não pode mais do que mudar o comportamento humano ou o funcionamento do corpo, sem com isso provocar uma mudança na posição do sujeito frente a seu sofrimento. É o que nos faz lembrar a crítica freudiana ao furor sanandi, ao fanatismo pela cura, em que o autor alerta que "acreditar que as neuroses podem ser vencidas pela administração de remediozinhos inócuos é subestimar grosseiramente esses distúrbios, tanto quanto à sua origem quanto à sua importância prática" (FREUD, 1914/1969a, p. 221).

O principal dever do psicanalista, podemos agora resumir, é não subestimar os distúrbios neuróticos, não negligenciar a presença de um sujeito que goza com seu próprio sofrimento e encontra satisfações, mesmo em mecanismos que se assemelham em tudo a uma falha do aparelho psíquico. Mas, como chamar de falha o que se revela estar em tão grande sintonia com o desejo inconsciente, como é o caso dos sintomas, dos chistes, dos sonhos ou dos atos sintomáticos? Ao psicanalista faz-se necessário um comprometimento com a elucidação do desejo inconsciente, mais do que com o bem-estar imediato, o que explica a dificuldade em determinar um tempo para a análise ou em encurtá- la.

Uma forma de entendermos o papel da cura no contexto psicanalítico é sugerida, indiretamente, por Ram Mandil (2005), quando ele compara o dispositivo analítico ao campo literário, dizendo que, em ambos, o que deve ser privilegiado não é o uso prático. No trabalho literário, diz Mandil, a utilidade vem por acréscimo. Da mesma forma, no trabalho analítico, a cura também deve ocupar um papel semelhante, não pode ser uma meta a ser alcançada, mas sim, algo que se pode esperar, por acréscimo. E só podemos esperá-la por ter ocupado um lugar distinto daquele que tenta responder as demandas do Estado ou do individuo.

Embora haja uma zona de interseção entre a psicanálise e a psicoterapia, já que, como aponta Miller (1997), ambas apostam na fala para conseguir seus efeitos, o que indicamos nesse momento, como função primordial do psicanalista, é algo que está em uma zona exterior e contrária à psicoterapia. Existe, portanto, um abismo entre essas duas formas de intervir. Abismo este que Freud (1905/1969) destaca, ao diferenciar a técnica sugestiva da técnica analítica, recorrendo à distinção que Leonardo Da Vinci faz entre a pintura e a escultura. Assim como, na pintura, as psicoterapias que se orientam pela técnica da sugestão trabalham per via di porre, pois depositam sobre a tela partículas coloridas que não estavam ali, a proposta freudiana é que a psicanálise siga o exemplo da arte escultural e funcione per via di levare, retirando do objeto pedras que escondem a estátua já existente.

Esse abismo entre as técnicas sugestivas e a técnica psicanalítica fez Lacan (1969-1970/1992) trabalhar em um esquema que busca demonstrar, formalmente, que as primeiras operam em um discurso exatamente avesso ao discurso da segunda. É o que encontramos como eixo principal no livro XVII dos Seminários lacanianos. As técnicas sugestivas, que dizem saber o que é melhor para o sujeito e que tentam promover o seu bem-estar, se sustentam pelo que Lacan chamou de discurso do mestre. No discurso do mestre, o mestre, representado pelo S1, significante primordial da cadeia significante, aquele que inaugura o saber, se dirige ao escravo de maneira a fazê-lo trabalhar duro, de forma que, de tanto trabalhar, ele aprenda algo; o escravo vem encarnar o saber. Saber, nesse caso, entendido como algo reproduzido na cadeia significante, representado pelo S2. O saber do mestre é útil, prático, produtivo, classifica as doenças e determina o remédio ou a conduta a ser tomada. Como o mestre não pode mostrar a incompletude de seu saber, principalmente seu saber sobre o que é melhor para o sujeito, ele oculta o fato de que, como qualquer ser da linguagem, ele também sucumbiu à castração simbólica; por isso, o representante do sujeito barrado, sujeito que falta, ocupa o lugar da verdade velada. Na posição de produto/perda está o objeto a, indicando que aí resta um gozo.

Os outros três discursos que Lacan (1969-1970/1992) irá propor em seu Seminário, mostram o giro que é necessário para se alcançar o discurso do analista. Acompanhando esse giro, num sentido anti-horário, temos o discurso universitário. Nele, Lacan coloca o S2, o saber articulado da cadeia significante, como agente do discurso. E no lugar da verdade velada, temos o S1, indicando que o universitário precisa de uma ordem do mestre para trabalhar e para referenciar seu trabalho. Embora o universitário, colocado em lugar equivalente ao do escravo, trabalhe para o mestre e execute o que ele ordena, o produto não pode ser outro, senão um sujeito barrado, que não consegue alcançar todas as exigências do mestre e não consegue esconder sua própria divisão. O objeto a está no lugar do Outro, mostrando que o destino desse discurso é usar o outro como objeto de gozo.

Se dermos mais uma volta no mesmo sentido proposto, alcançamos o discurso da histérica, que se coloca como sujeito dividido. Nessa condição de divisão é que ela se dirige ao mestre solicitando-lhe uma resposta que resolva sua divisão. Muitas vezes, é esse o discurso do paciente, e isso talvez explique o quanto algumas psicoterapias buscam, para não frustrar seus clientes que procuram o bem-estar, ocupar o lugar de mestre detentor do saber, embora necessitem, para isso, esconder sua própria divisão. O produto do discurso da histérica é a continuação da cadeia significante inaugurada pelo mestre e a verdade velada, nesse caso, é o próprio objeto a, como gozo que o sujeito retira de seu sofrimento e de suas lamentações.

Mais uma volta na engrenagem e estamos no discurso do analista, que irá numa direção totalmente contrária ao discurso do mestre já apresentado. O objeto a, nesse caso como objeto causa do desejo, ocupará o lugar de agente, o que aponta para que o analista desempenhe a função de pura condição desejante e interrogue o sujeito em sua divisão. Daí o sujeito barrado situar-se na posição do Outro, o que nos revela que o início de uma análise busca colocar o sujeito em um discurso histérico. Mas, é dever do psicanalista saber que nada poderá dizer a respeito do que o sujeito deve ou não fazer a partir de sua divisão, e, por isso, ele precisará recusar a posição de mestre. Ao analista não cabe, portanto, a função didática de ensinar, de dar sentido ou significação ao texto do analisante. Pelo contrário, a estrutura do discurso analítico será marcada por sua descentralização em relação ao sentido. Dessa forma, o analista, esquivando- se do lugar do conhecer, do mestre, transfere ao paciente o trabalho de "criar" um novo significante mestre que ainda não se relacionou com qualquer outro significante. Esse é o produto esperado do discurso analítico, a inauguração de uma nova cadeia significante, de um novo S1. Mas essa nova cadeia não é fruto de uma prescrição médica nem de uma tarefa terapêutica, mas sim da formação de um novo analista. O S2 se encontra no discurso do analista no lugar da verdade velada, indicando que a teoria psicanalítica estudada nos livros ajuda, juntamente com a análise pessoal e a prática supervisionada, a sustentar a posição do analista. Mas essa verdade é velada, pois ao tratamento não contribui a explicitação desse saber teórico, o que nos faria correr o risco de fazer com nosso paciente um debate filosófico e não uma clínica psicanalítica.

Através da figura desses quatro esquemas, apresentados no Seminário XVII, Lacan (1969-1970/1992) contrapõe o discurso do analista ao discurso do mestre, de tal forma que todos os elementos, se comparados os dois discursos, se encontrem em posições opostas. Isso mostra que estamos trabalhando não apenas com técnicas diferentes, mas com objetivos diversos. Não são diferentes maneiras de se chegar ao mesmo lugar; são métodos diferentes que chegam a resultados também diferentes, por terem éticas mais uma vez distintas. Se temos a palavra como ponto de interseção entre a psicanálise e a psicoterapia, temos como ponto distinto a posição que cada profissional ocupa diante dessa mesma palavra. O psicanalista, já que busca a elucidação do desejo, ou seja, um saber, precisa situar-se em uma posição de não saber. Se ele supõe saber o mínimo que seja do sujeito em análise, ele se situa fora do discurso analítico. Por isso, podemos afirmar com Miller (1997), que o desejo do analista é a outra face da paixão da ignorância e que é por não saber que o analista solicita ao analisando que ele fale. Isso nos provoca dizer que a regra de ouro da psicanálise se sustenta mais em uma posição do analista do que no pedido para que o paciente fale o que lhe vier à cabeça, sem censuras, o que por si só está longe de garantir algum efeito.

 

As "recomendações" de Lacan: saber versus conhecimento

Retornemos ao problema da formação do analista, ponto de onde partimos. Se a prática psicanalítica se orienta por uma ética que nos coloca na posição de não saber, como ensinar psicanálise? Em outras palavras, como ensinar um não saber? E mais ainda, como medir a eficácia de um método que só espera uma cura por acréscimo? A insegurança de Freud, quanto às formulações técnicas de sua prática, deixa claro que podemos esperar pouco de qualquer manual técnico de psicanálise. O mesmo vale para a fiscalização e a avaliação que busquem verificar se um analista faz ou não uso correto de seus dispositivos, pretensão da supracitada Emenda Accoyer. Se a psicanálise possui algumas técnicas, elas são raras e pouco seguras, tanto para utilização quanto para avaliação. Talvez não seja possível localizar mais do que dois dispositivos técnicos nas recomendações de Freud (1912/1969): a associação livre e o uso do divã são umas das poucas práticas que podem reclamar para si, esse lugar de técnica. Mas tanto a associação livre quanto o divã necessitam de uma condução que está condicionada ao manejo da transferência e a escuta, para os quais não temos nenhum manual, nem meio de avaliação. Essa condição nos força a colocar a formação do analista fora da lógica da formação técnica, tão exigida nos tempos atuais mesmo nas Universidades.

Para lidar com essa questão, Lacan não apenas fundou sua própria escola, desvinculando-se do discurso universitário e da IPA, como desenvolveu uma teoria que não trata o saber e o conhecimento como mecanismos coincidentes. Pelo contrário, o que ele apresenta é um antagonismo entre o saber que se transmite e um conhecimento que se ensina. Em Alocução sobre o ensino, Lacan (1970/2003) chega a dizer que o conhecimento pode, muitas vezes, representar uma barreira ao saber. Por isso, também em Variantes do tratamento- padrão (1966/1998b), ao discutir sobre a transmissão da psicanálise, principalmente em seus institutos, ele diz que:

O desejável não é que os analisados sejam mais 'introspectivos', mas que compreendam o que fazem; e o remédio não é que os institutos sejam menos estruturados, mas que não se ensine neles um saber pré-digerido, mesmo que resuma os dados da experiência analítica (LACAN, 1966/1998b, p. 358).

O remédio, segundo Lacan, é que não se ensine um saber pré-digerido, o que na antítese entre conhecimento e saber deve estar do lado do conhecimento. O saber, então, que se deve transmitir em psicanálise, é um saber do não sabido, um saber que não se cristaliza em significação definida. Esse é o saber antagônico ao conhecimento. O saber pré-digerido é o saber do acúmulo de informações, que podemos retirar de um manual de técnicas, é um saber possível de aplicação pela repetição. Já o saber do não sabido é o que se busca em uma análise. Por isso, Lacan descrê do conhecimento como base sólida da formação do analista e aposta no saber enquanto resultado de uma análise. "O que descobrimos na experiência de qualquer psicanálise é justamente da ordem do saber, e não do conhecimento ou da representação" (LACAN, 1969- 1970/1992, p. 30). Para elucidar essa diferença, Lacan utiliza metaforicamente a publicação de uma biografia. Nesse caso, o que nos interessa são as informações recolhidas, os documentos que provam os passos por onde um determinado alguém passou durante a vida. Uma psicanálise é, nesse sentido, distinta de uma biografia. É que a elucidação em uma análise não é da ordem do conhecimento comprovado, dos documentos que informa quem foi ou quem é uma pessoa, mas de um saber que, "de verdades verdadeiras, fez surgir tantos desvios, ficções e erros" (LACAN, 1969-1970/1992, p. 31).

Esse antagonismo lacaniano, entre o conhecimento e o saber, também aparece implicitamente na obra freudiana, no paralelo que Freud (1915- 1916/1969) faz entre sua teoria sobre a neurose e a doutrina socrática que afirma que os vícios proveem da ignorância. Nessa passagem, Freud faz questão de alertar o público quanto à ilusória facilidade de se curar um vício, ou melhor, um sintoma, que se origine da ignorância. Com isso, Freud reivindica a existência de mais de um tipo de ignorância, pois se a ignorância, em outras práticas, pode ser remediada pela informação, a ignorância, da qual tratam a análise ou a doutrina de Sócrates, não é removida ou sanada apenas com informação. Dessa forma, Freud (1915-1916/1969) afirma que "saber nem sempre é a mesma coisa que saber: existem diferentes formas de saber, que estão longe de serem psicologicamente equivalentes" (p. 288). O autor ainda completa esse raciocínio, afirmando que se o médico transferir seu conhecimento para o paciente, na forma de informação, não se produz resultado, ou melhor, o resultado produzido não é a remissão do sintoma, mas o começo de uma análise que só obterá êxitos quando o sentido do sintoma se tornar um conhecimento baseado numa modificação interna do paciente. Essa advertência, na verdade, já havia aparecido várias vezes na obra freudiana. Uma delas chama a atenção pela maneira caricaturada e chistosa com que Freud (1910/1969a) aborda o tema, ao dizer que ouvir conferências ou ler livros sobre o inconsciente são medidas tão eficazes para os sintomas neuróticos quanto a distribuição de cardápios o são para a fome. Mais uma vez, nos deparamos com o fato de que, não só a formação do analista, como o próprio avanço de sua clínica, ganha menos com a aquisição de novos conhecimentos do que com o trabalho de velhos saberes que habitam a mente inconsciente.

Se existe uma diferença entre os modos de saber, é natural que se pense também em diferentes formas de ensino. Para essa discussão, Lacan (1972- 73/1985) recorre à experiência do rato no labirinto. Inventados no começo do século por W. S. Small, os labirintos para ratos, muito usados pela escola behaviorista tanto de John B. Watson quanto de Burrhus F. Skinner são, por vezes, consideradas situações padronizadas para o estudo da aprendizagem. Essas experiências visam a demonstrar ou conhecer que capacidade o animal tem de aprender. A diminuição da taxa de ensaios e erros, para a obtenção da comida, demonstra que o rato é capaz de aprender algo. Isso, no entanto, não prova que haja nele um saber. Para Lacan, a verdadeira questão é saber se o rato vai aprender a aprender, se, após passar por essa prova, em alguma outra situação, o rato irá aprender mais depressa. A hipótese que encontramos é que tudo o que o rato aprende é a dar um sinal, um signo de sua presença de unidade. Não se trata de um saber, mas de um conhecimento, algo que se evidencia, principalmente, se nos reportamos a outro texto lacaniano (1960/1998) que definirá o instinto, estejamos ou não sob a ótica da biologia, como um conhecimento que não pode ser um saber. O inconsciente não é composto de um conhecimento sem saber, de um instinto, mas, pelo contrário, de um saber do qual o sujeito não tem o menor conhecimento (o que estaria mais próximo do conceito freudiano de pulsão). Então, é por essas vias que, à psicanálise, não interessa o conhecimento, o "acúmulo de informação", mas um saber.

 

A formação do analista: aprendizagem versus transmissão

Em quê então se pauta o ensino lacaniano? Por diversas vezes, em sua obra, tanto em seus seminários quanto em seus escritos, Lacan chama o seu trabalho teórico de ensino, o que faz com que, ainda hoje, diversos psicanalistas recorram a esse termo para se referirem à obra do autor. Porém, curiosamente, no já citado texto Alocução sobre o ensino (1970/2003), o psicanalista indica que um ensino nem sempre é a transmissão de um saber, deixando entender que seu trabalho se guia por métodos distintos ao que se poderia chamar de ensino. Essa diferença é reforçada quando Lacan diz que "ao se oferecer ao ensino, o discurso psicanalítico leva o psicanalista à posição do psicanalisante, isto é, a não produzir nada que se possa dominar, malgrado a aparência, a não ser a título de sintoma" (LACAN, 1970/2003, p. 310). Isso indica que o ensino na psicanálise coincide ou se aproxima ao trabalho do psicanalista, que já ressaltamos acima. Ou seja, trata-se de se colocar numa posição distinta do mestre que detêm um saber e que transfere informações.

Mas, como então tratar essa modalidade de ensino que procura produzir um saber que não se possa dominar, um saber que não seja pré-digerido? A resposta, que encontramos nos textos de Lacan, parece estar no que ele próprio chamou de transmissão. Para Milner (1996), o conceito de transmissão, que aparece na obra lacaniana, aponta-nos para uma direção diversa do ensino tradicional, que supomos acontecer, sempre, a partir de um sujeito insubstituível que chamamos de mestre. Para o autor, o conceito de transmissão está diretamente ligado ao papel importante que a matemática adquire na obra lacaniana, a partir de 1972, principalmente com o artigo chamado O aturdito. De fato, um ano após o referido artigo, Lacan afirma que "a formalização matemática é nosso fim, nosso ideal. Por quê? Porque só ela é matema, quer dizer, capaz de transmitir integralmente" (LACAN, 1972- 1973/1985, p. 161).

A lógica matemática é encarada por Lacan como o modelo de transmissão. A partir da entrada dessa lógica no discurso lacaniano, os estudos sobre a formação do analista sofrerão sua consequência, uma vez que Lacan buscará cada vez mais o matema como meio de exercer o que ele chamou de transmissão integral. Para Miller (1996), um matema é aquilo que não se tem necessidade de traduzir num livro de lógica, ou seja, as fórmulas, as letras. O matema é capaz de uma transmissão integral devido a essa desnecessidade de tradução. O que não é matema em um livro de lógica, suas palavras (significantes) necessitam de uma tradução, necessitam serem sempre transferidos para um campo de significação compatível com o leitor. Já as letras, os matemas, podem permanecer os mesmos, pois desprovêem de sentido.

Esse conceito de matema, que Miller nos oferta, revela a coincidência entre o termo matemático e o que Lacan chama de letra. A noção de letra, embora sofra muitas modificações na obra de Lacan, aponta sempre para algo fora do significante, ou seja, do que não comporta um significado. Dessa forma, a letra estaria para a linguística como o matema está para a matemática, ambos exercendo a função de colocar o discurso fora do campo simbólico, fora do campo da significação. Daí o próprio Lacan tentar, no final da sua obra, matematizar a psicanálise, buscando usar cada vez mais fórmulas e letras, ao invés de uma explicação exaustiva do que pretendia dizer. Isso revela a descrença de Lacan para com a comunicação.

Se existe um ensino que transfere significantes, a psicanálise deve tentar ir para além desse ensino e alcançar um ensino que transfira um trabalho. É o próprio Lacan que diz que "o ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho" (LACAN, 2003b p. 242). Enquanto o ensino do mestre transfere conhecimento, o ensino do analista deve buscar transferir trabalho. Por esse motivo, achamos justo fazer uma oposição entre ensino (ou aprendizagem) e transmissão. Isso explica porque Lacan (1969-1970/1992) diz que as letrinhas que sustentam sua teoria dos discursos não estão em seu texto por acaso, mas por carecerem de significado. É notável como essa carência de significação aparece no discurso de Lacan, seja em seus escritos, seja em seus seminários. Seu texto busca, intencionalmente, não fazer o leitor compreender o que é dito, mas fazê-lo trabalhar em cima do que é proposto. Assim como uma análise, isso também é transferir trabalho.

Se de um lado temos a distinção entre o conhecimento e o saber, agora estamos diante de uma antítese entre aprendizagem e transmissão. Enquanto a aprendizagem recorre ao conhecimento, como acontece com o rato no labirinto, a transmissão recorre ao saber como um trabalho. Talvez seja exagerado dizer que a formação do analista possa desprover totalmente de uma aprendizagem, visto que os conhecimentos contidos nos livros de Freud e seus seguidores exercem importante função quando são repassados. Mas, quando lembramos que, para Lacan, o resultado de uma análise é sempre a formação de um novo analista, tenha ou não ele estudado psicanálise, ficamos tentados a dizer que o papel da transmissão, ou seja, da transferência de um trabalho, é de longe mais importante para o avanço da psicanálise que seu ensino tradicional. Evidentemente, isso ocorre pelo fato, já citado, de que é inútil dizer ao paciente como o inconsciente funciona, se ele mesmo não passar pela experiência de trabalhar e inventar um saber que diz do modo de funcionamento de seu próprio inconsciente, o que exige posições éticas e subjetivas.

 

Considerações finais

Por encararem a formação do analista, mais no âmbito da ética do inconsciente do que da técnica do conhecimento, é que tanto Freud quanto Lacan reconhecem a importância de uma transmissão de saber que supere a teoria dos livros, o primeiro dizendo que quem deseja ser um analista deve começar por analisar seus próprios sonhos, e o segundo afirmando que o produto de uma análise é um novo analista. Freud (1912/1969) afirma que não basta ao analista ser uma pessoa aproximadamente normal, mas antes que tenha passado por uma purificação psicanalítica e ficado ciente de seus complexos que podem interferir na análise do paciente. Para Freud, o psicanalista que negligencia o saber adquirido na própria análise, em prol do conhecimento adquirido nos livros e conferências será, não apenas punido por ser incapaz de aprender um pouco mais em relação a seus pacientes, mas também se tornará um perigo para os outros e para o crédito da psicanálise.

Essa aproximação entre a formação do analista e sua análise pessoal denuncia a distância que Freud e Lacan enxergam entre a psicanálise e o modelo utilitarista das psicoterapias e do ensino convencional. Se a formação do analista coincide com sua clínica e sua análise pessoal é porque, na direção do tratamento psicanalítico, não há espaço para a normatividade utilitarista almejada pelas psicoterapias e pelos manuais de técnica terapêutica. Temos, assim, a primeira distinção fundamental para a formação do analista: saber que a técnica pode estar muito distante da ética e que a segunda deve exercer o papel primordial em uma análise.

Essa diferença entre a técnica e a ética equivale a outra distinção importante, que diz respeito ao objetivo da prática clínica. Para muitas abordagens psicológicas, assim com para o governo, o objetivo principal de uma terapia é a cura, e como afirma Miller (1997), não existe outra definição de cura a não ser tornar o sujeito útil à sociedade. Ora, para a psicanálise, o objetivo de uma intervenção clínica aponta para caminhos que não privilegiam a utilidade do sujeito, nem tampouco seu bem-estar, mas sim, a elucidação de seus desejos. Isso implica dizer que uma intervenção psicanalítica pode ser contrária à busca de bem-estar e de outras condições psíquicas exigidas pelo paciente ou pelo Estado. Afinal, a revelação de um desejo inconsciente não é feita sem uma determinada dose de angústia. Dessa maneira, situamos o resultado psicanalítico num campo distante da justa adequação do sujeito a determinações da realidade e da norma social vigente.

Tratar o ajustamento do sujeito ao utilitarismo da sociedade, como critério para se medir a eficácia terapêutica, é descartar toda a contribuição que Freud e Lacan nos deram em relação à formação do analista e à formação de uma nova modalidade de discurso, que a psicanálise inseriu em nossa ciência e em nossa sociedade. Se uma clinica se sustentasse na passagem de informações ou sugestões ao paciente, então, uma formação que se oriente pela aplicação técnica do conhecimento deveria bastar. Mas como isso não acontece, toda vez que falarmos da formação do analista, estamos falando da construção de um discurso que privilegia mais o saber do inconsciente do que os conhecimentos técnicos e teóricos passíveis de ser ensinados. Dessa forma, preterimos todos os métodos de ensino que buscam transferir informações, aos métodos de ensino que buscam transferir trabalho, e encontramos, como meio principal para que isso aconteça, a passagem do analista por uma análise pessoal.

A grande lição que o ensino lacaniano nos deixa é que um analista não se produz com a prática de troca de informações ou em qualquer prática que não implique necessariamente a construção de um saber. Se as coisas se passam realmente nesse nível, então nos resta a difícil tarefa de pensar a formação do analista e sua prática sustentadas em critérios epistemológicos e técnicos que divergem das mensurações do que "o livro negro" chama de ciência. Esse desafio só pode ser respondido através de uma operação que, por se basear num saber mais do que em um conhecimento, devemos chamar, com Lacan, de transmissão. Eis a tarefa do analista, pouco mais de cem anos após o Congresso de Weimar.

 

 

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Endereço para correspondência:
Humberto Moacir de Oliveira
e-mail: beto7296@yahoo.com.br

Tiago Iwasawa Neves
e-mail: tiagoiwasawa@yahoo.com.br

Tramitação: Recebido em 13/03/2013
Aprovado em 23/03/2013

 

 

* Psicanalista, membro do CEPP (Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço), ágoras de Ipatinga (FAP)
** Psicanalista, membro do CEPP (Centro de Estudo e Pesquisa em Psicanálise do Vale do Aço), prof. assistente da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG)