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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.35 no.28 Rio de Jeneiro  2013

 

Artigos

A dor de não existir: uma reflexão sobre a questão dos limites nas patologias alimentares*

 

The pain of not existing: a reflection on the issue of limits on eating disorders

 

 

Camila Braz Padrão**

Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

O artigo propõe uma reflexão acerca de aspectos teóricos e clínicos implicados nas patologias alimentares, com base na experiência de atendimento psicanalítico de três mulheres que sofrem de diferentes modalidades de transtorno alimentar. São destacados aspectos em comum, observados nessas experiências clínicas, para se pensar as seguintes questões: limites, dimensão pré-edípica e problemática edípica.

Palavras-chaves: Limites, fronteiras, relação pré-edípica, relação edípica, transtornos alimentares.


Abstract

This article suggests a reflection on the theoretical and clinical aspects of eating disorders, based on the experience of psychoanalytic treatment of three women suffering from different types of eating disorders. A common ground – from which to observe those clinical experiences – is highlighted in order to approach the following topics: limits, the pre-Oedipal dimension, and the Oedipal issue.

Key-words: Limits, boundaries, pre-Oedipal relationship, Oedipal relationship, eating disorders.


 

 

Introdução

Esta comunicação tem como objetivo promover uma reflexão acerca dos aspectos teóricos e clínicos das patologias alimentares. Como afirma Fernandes em Transtornos Alimentares (2006), trata-se de um tema atual e muito estudado por diversos campos de saber. Nosso breve relato tem como base a experiência de atendimento psicanalítico de três mulheres que apresentam diferentes modalidades de transtorno alimentar: anorexia, bulimia e obesidade1. Sabemos que muitas e importantes diferenças se apresentam em cada uma dessas modalidades. No entanto, procuramos aqui partir dos pontos em comum que observamos nestes casos, para tentarmos esboçar uma linha geral sobre a dinâmica psíquica subjacente às adicções alimentares, sem especificá- -la de acordo com cada modalidade de sintoma alimentar.

O que estas três experiências parecem indicar tem como eixo principal, questões relacionadas à dimensão pré-edípica e à problemática edípica, nas quais centraremos nossa análise. Trata-se, de maneira simplificada, de casos onde a figura paterna é completamente esvaziada e a figura materna, bastante invasiva. Partindo desta hipótese, procuramos investigar um pouco mais da teoria a respeito, buscando compreender as razões pelas quais, em muitos destes casos, a saída pela patologia alimentar parece ser privilegiada.

A riqueza do tema e tantas interessantes contribuições poderiam nos levar a uma exaustiva e profunda pesquisa. Entretanto, devido a nossos próprios limites, nos contentaremos com um breve recorte da teoria a respeito desses quadros clínicos, com a finalidade de fomentar a reflexão. Além dos pontos teóricos que consideramos importantes, utilizaremos "pinceladas clínicas", isto é, pequenos fragmentos clínicos que acreditamos ser importantes, pois se coadunam a nosso estudo e parecem corroborar as hipóteses teóricas com as quais nos encontramos. É importante ressaltar que não se trata da fala ipsis litteris dessas pacientes, mas de uma reprodução da ideia central implícita em seu discurso.

Assim, organizamos nosso trabalho em três grandes tópicos que, por sua vez, englobam uma série de subtemas que os constituem: A questão dos limites, A dimensão pré-edípica, e A problemática Edípica. Tais temas não são estanques e obviamente se articulam entre si. Trata-se apenas de uma separação didática para uma melhor compreensão de nossa exposição. Ao final, proporemos brevemente possíveis vias de investigação para o estudo dos distúrbios alimentares, a partir de suposições que nos parecem possíveis chaves de leitura para um melhor entendimento da dinâmica psíquica própria a estes casos.

 

A questão dos limites

Muitos autores2 têm considerado as patologias alimentares como manifestações que apontam para as fronteiras na vida psíquica, para os limites da representação e em especial, para os limites entre o eu e o outro. Tais manifestações não se inserem nos campos específicos da neurose, psicose e perversão, mas apontam para a fronteira entre tais estruturas. Freire e Andrada (2012, p. 28) afirmam que o "tipo "clássico" de padecimento neurótico vem perdendo terreno para a proliferativa categoria dos "novos sintomas" - incluídos aí os transtornos alimentares - que emergem como patologias do ato". Por tais considerações, incluímos as patologias alimentares no campo dos chamados novos sintomas, das patologias do ato e dos estados-limites.

A problemática dos limites presente nestes casos denuncia uma deficiência particular no que se refere à constituição narcísica desses sujeitos, o que engendra diretamente um problema de alteridade, isto é, uma dimensão de conflito na relação de objeto. O termo conflito aqui não denota a ideia de um antagonismo, mas de uma relação de objeto peculiar, delicada. Tal relação indica uma considerável dificuldade de discriminação entre o desejo próprio e o desejo do outro, ou ainda, primariamente, leva o sujeito a uma alienação ao desejo do outro.

No bojo desta dificuldade de se discriminar, encontra-se uma questão central em todos nós: o desamparo. Mas qual é a especificidade da vivência de desamparo nos estados-limites? Apesar de sua inevitabilidade, nos estruturamos psiquicamente de maneira a dar conta, mesmo que apenas parcialmente, de nosso desamparo primordial. Constituímo-nos narcisicamente e assim, ganhamos a possibilidade de simbolizar, de promover representações a partir da cadeia de associações. Entretanto, os estados-limites levam a marca do próprio limite representacional de maneira radical.

Para entendermos a dinâmica destes quadros-limites, precisamos retornar à importância de outra função do narcisismo: a consolidação do espaço egoico. É a partir dele que podemos, não apenas simbolizar, mas também nos discriminar do objeto, nos constituir egoicamente, de modo a traçarmos certo delineamento entre o eu e o outro. Como sabemos, é o narcisismo o promotor de "unificação e inscrição de impressões, antes fragmentadas, presentificadas inicialmente no território psíquico na qualidade de marcas (...), fora do campo da representação, ou seja, das inscrições que supõem uma inserção na cadeia de significação..." (CARDOSO, 2010, p. 20).

Freud trata desta questão em variados textos de sua obra como Totem e tabu (1913), A negativa (1925) e em O ego e o id (1923). Neste último, articula a própria formação do ego com a influência do mundo externo e o teste de realidade, colocando ainda o sistema perceptual no centro da questão. Isso já revela a problemática dos limites como central na própria constituição egoica:

É fácil ver que o ego é aquela parte do id que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio do Pcpt.- -Cs.; (...) o ego procura aplicar a influência do mundo externo ao id (...) e esforça-se por substituir o princípio de prazer (...) pelo princípio de realidade(...) (FREUD, 1996 /1923, p. 38).

Maia (2003) nos chama atenção, afirmando que esses casos apontam para graves feridas no plano do narcisismo. Em Narcisismo: uma introdução (1914) Freud nos diz que a ação psíquica da identificação que promove a unificação narcísica deve advir do outro3. Assim, parece que temos no outro uma importante pista sobre as falhas que se apresentam neste complexo processo de constituição egoica e aquisição de limites. A este respeito, Maia nos leva a pensar sobre a repercussão da experiência de intrusão do objeto externo/interno nos sujeitos-limites. A autora afirma que seus sintomas aparecem quando há um risco de ruptura narcísica, capaz de levar o sujeito à fragmentação e os define como sujeitos do transbordamento, que evidenciam os limites da representação e da simbolização.

Trata-se de quadros que podem ser considerados limites não apenas por sua proximidade com as psicoses, mas também porque apontam as fronteiras da representabilidade de um conflito no espaço psíquico. Além desses limites aparecerá o transbordamento (2003, p. 83).

Mesmo considerando a importância deste apontamento de uma falha narcísica nestes casos, não desejamos situar nossa análise apenas na ideia de uma constituição psíquica narcisicamente claudicante. Nossa hipótese diz respeito a um funcionamento psíquico inserido numa lógica situada aquém do narcisismo. Estamos nos referindo a uma etapa anterior, marcada por uma temporalidade correlata ao desamparo primordial do qual o sujeito-limite parece não poder livrar-se minimamente: trata-se do autoerotismo.

Anterior ao processo de unificação que advém do narcisismo, "o autoerotismo é definido, por oposição, como a fase anárquica que precede essa convergência das pulsões parciais para um objeto comum (LAPLANCHE; PONTALIS, 2000, p. 48)". O autoerotismo, então, corresponde ao estado primário de fragmentação da pulsão sexual, que implica a ausência de objeto total, mas permite a presença de um objeto parcial fantasístico.

Neste primeiro tempo de constituição psíquica, um tempo autoerótico, o corpo é desviado de suas funções de autoconservação e se constitui como um eu-corpo, sem fronteiras, aberto ao outro, diz Cardoso (2010). No cerne deste ângulo da análise, subentende-se a ideia de desapoio. Para melhor compreender esta ideia, precisamos lançar mão de uma breve revisão acerca da noção de apoio, tal como concebida por Freud.

Desde a postulação do conceito de pulsão por Freud, temos que a mesma se situa justamente na fronteira entre o somático e o psíquico. É do corpo que nasce a pulsão, o que traz consequências inevitáveis para o estatuto do corpo na psicanálise, como bem sabemos. Por agora, o fundamental é enfatizarmos que a instauração do movimento pulsional no psiquismo e porque não dizer, no corpo e na vida humana, se dá a partir da perversão do instinto em pulsão. A este respeito, Cardoso (2010) afirma que, com o conceito de pulsão, Freud nos remete aos limites entre corpo e psiquismo, onde a própria noção de "apoio" se trata, de fato, de um radical "desvio", uma perversão do caminho do instinto. Nesta noção, o objeto aparece como "fonte" da pulsão, tudo se inicia na satisfação do instinto de fome e culmina no nascimento da pulsão. Assim, é a partir da satisfação da necessidade que se funda o desejo.

Deste modo, a relação com o objeto nos estados-limites parece sofrer uma flutuação entre a ordem da necessidade e a do desejo. Cardoso (2010) nos fala de um rebatimento do desejo na necessidade. É neste sentido que lançamos mão do termo desapoio, como um movimento pulsional retrógrado, onde a pulsão se volta mais uma vez ao instinto e parece acorrentada a ele, não conseguindo "andar com as próprias pernas".

Aqui chegamos a um ponto delicado de nossa reflexão: tal rebatimento pode ser considerado como um não desenvolvimento ou como um movimento de regressão? Isto é, será que nos estados-limites há certa fixação neste momento autoerótico ou devemos supor certo grau de regressão, um retorno a esta fase do desenvolvimento? Não temos certeza, mas sabemos que certo grau de desenvolvimento egoico foi atingido por estes sujeitos, ou sua indiscriminação em relação ao objeto carregaria a marca da radicalidade e nos levaria à ideia da psicose propriamente dita. Contudo, nos parece que, de certa forma, as duas suposições se justificam: uma parcela de regressão narcísica e uma fixação na fase autoerótica, resultante desta regressão, ou independente dela.

Mas o que será que aconteceu na história desses sujeitos que representou esta falha narcísica, esta regressão às pulsões e aos objetos parciais? Buscando responder estas questões começaremos nos embasando na seguinte afirmação: se a ação psíquica da identificação, que promove a unificação narcísica, deve advir do outro, parece que temos no outro uma importante pista sobre as falhas que se apresentam neste complexo processo de constituição egoica.

Como dissemos anteriormente, no processo especular próprio à ação específica da identificação que funda o narcisismo da criança, o papel do outro é fundamental. É importante ressaltarmos que, a ausência do objeto real não o descarta, se pensarmos na presentificação deste na fantasia. Seu comparecimento no campo fantasístico, pode se instaurar a partir de um processo de internalização satisfatório, proveniente da relação inicial entre o sujeito e seu primeiro outro. Contudo, para ser assimilado e tornar-se objeto interno, é preciso considerar este primeiro momento das relações primárias. Neste sentido, podemos afirmar que ser sujeito pressupõe, ter antes sido objeto.

Considerando nossa dupla suposição de certo grau de fixação no autoerotismo e também de um movimento de regressão narcísica a um momento anterior, promoveremos uma articulação entre cada uma destas suposições e o exercício das funções de um outro-mãe, no caso da primeira hipótese e de um outro-pai, no caso da segunda. Primeiramente, nos deteremos na organização pré-edípica própria a estes casos. Nesta, percebemos certa fixação ao autoerotismo e uma falha de unificação narcísica. Articulamos tais falhas a uma dificuldade materna em investir libidinalmente em seu bebê como objeto total, unificado, de modo a promover bases narcísicas seguras a ele, concebendo-o, gradativamente como sujeito discriminado de si.

 

A dimensão pré-edípica

Segundo Gaspar (2010) e Fernandes (2006), a literatura a respeito dos transtornos alimentares procura destacar uma predominância significativa do registro pré-edípico. Tal fato indica uma dificuldade de encontro com a alteridade, marcada por um congelamento na relação primária. É neste sentido que se insere nossa suposição a respeito de certa fixação no autoerotismo, como afirmamos anteriormente. A relação da filha com a mãe perpetua a marca da indiscriminação própria a este momento anterior ao narcisismo.

Como vimos, não se trata de uma indiscriminação total em relação ao outro, como poderia se pensar na psicose, mas é nos campos da identificação, internalização e unificação narcísica que parece se dar a falha em sua constituição psíquica.

Assim, o que se tem não configura propriamente uma relação objetal, como se pressupõe entre sujeito e objeto, onde ambos são sujeito e objeto do outro. Neste congelamento, a filha fica num lugar de passividade absoluta, numa posição de servidão ao outro4, e não tem espaço para existir subjetivamente como sujeito desejante. Ela sempre está submetida ao desejo do outro e há uma impossibilidade psíquica de contrariar tal desejo. Esta situação abarca uma experiência de violência psíquica. Assim como o bebê fica a mercê das invasões pulsionais maternas e não tem ainda capacidade de simbolização, nestes casos, não se pode representar esta "indiscriminação" e sua correlata invasão pulsional no aparelho psíquico.

Anzieu (apud GASPAR , 2010, p. 70) nos fala da dimensão fronteiriça do ego no sentido não de um obstáculo, mas de uma possibilidade do psiquismo vir a se discriminar tanto em seu interior quanto em relação ao que lhe é externo. Tais fronteiras seriam elásticas no sentido de permitir o processo de constituição simultânea das realidades interna e externa. Do ponto de vista de se discriminar internamente, podemos vislumbrar uma precariedade na separação entre psiquismo e corpo nestes sujeitos. Já, do ponto de vista externo, a dificuldade reside em se diferenciar do outro.

Sobre este aspecto, nos diz Gaspar (2010) que, quando fragilizadas, as fronteiras do ego o deixam à mercê da invasão de conteúdos pulsionais, frente a qual tais fronteiras não podem oferecer contenção. Federn, P. (apud GASPAR, 2010, p. 70), chama essa invasão pulsional que promove a perda do ego de ganho de realidade, no sentido do ego ser tomado pela realidade psíquica inconsciente e seus aspectos intraduzíveis. Segundo este autor, o ego é constituído pelo investimento narcísico libidinal. Assim, quando se é investido como objeto de amor, se estabelecem as fronteiras do território egoico e o reconhecimento de uma realidade exterior. Quando há uma falha neste investimento, as realidades interna e externa perdem sua consistência. Podemos, então, considerar a falha narcísica encontrada nos transtornos alimentares como resultado de um comprometimento do investimento narcísico do outro, na medida em que este investe no objeto como parte de si mesmo e não o reconhece como objeto total, separado de si.

A mãe de uma filha bulímica, anoréxica ou compulsiva, é uma mãe que tampona ou procura tamponar, qualquer tipo de falta em seu bebê. Trata-se de uma mãe que atende, adivinha e procura se antecipar às necessidades e supostos desejos da criança, paralisa qualquer movimento desejante por parte da filha. A mãe, ao tentar adivinhar o que a filha quer ou ao ter certeza daquilo que ela precisa, acaba impondo a ela seu próprio desejo e suas próprias acepções a respeito do que a filha precisaria.

Percebi minha bolsa muito pesada, quando vi, percebi que minha mãe mexeu na minha bolsa e colocou um guarda-chuva, como se eu não soubesse me cuidar. Parece que tenho 12 anos. Eu já havia pego um guarda-chuva e então fiquei o dia todo com dois, pesando no meu ombro (paciente, 22 anos).

Essa dinâmica, por sua vez, engendra um tamponamento afetivo da filha em relação à figura materna, que não pode ser criticada ou odiada, já que é perfeita. A mãe fica apenas como objeto bom, sem permitir à criança a possibilidade de odiá-la sem uma vivência aterrorizante de culpa. Essas mães permanecem, assim, como fálicas, o que impede à criança o reconhecimento da castração materna e um luto subjacente a este processo: o processo de poder perder a mãe idealizada. A mãe poder falhar gradativamente, como nos diz Winnicott, com o conceito de mãe suficientemente boa5, é essencial para o bom desenvolvimento emocional da criança.

Este dia eu estava triste e minha mãe fica desesperada quando estou triste. Eu passei a vida mentindo que estava bem, mesmo sentindo dor ou tristeza porque me sentia responsável por deixá- la triste e preocupada (paciente, 22 anos.).

Mantendo-se como fálicas, capazes de atender a todas as necessidades, de adivinhar o que se passa em sua cabeça, estas mães vem a se tornar objetos persecutórios. No entanto, no discurso manifesto, ao menos por algum tempo, a mãe permanece como puro objeto de amor, ao qual não se pode decepcionar ou fazer sofrer, do qual não se pode ter raiva. É como se um canal desta relação ambivalente se fechasse, como o levantamento de uma represa, que escoa todo o conteúdo afetivo apenas para a via do amor. Entretanto, a raiva dessa mãe que não permite a discriminação, permanece na esfera psíquica inconsciente e nos sintomas de toda ordem, principalmente por vias corporais.

Parece-nos que esse ódio que ainda não pode ser conscientemente sentido pela mãe permanece voltado à mãe interna, não exatamente à mãe internalizada como objeto, mas assimilada e reconhecida como parte de si mesmo. Daí vem uma série de falas e sintomas de autopunição, severa autocrítica, passagens ao ato e a aparição de uma espécie de cisão interna: uma separação do eu em duas partes, em permanente conflito.

É como se eu fosse duas e cada uma dessas quer uma coisa diferente. Eu quero melhorar, mas a outra não quer que eu melhore e nós vivemos em guerra (paciente, 16 anos).

É evidente que podemos realizar um estudo mais aprofundado e buscar compreender esta cisão metapsicologicamente em termos de ego e superego. Mesmo segundo essa possibilidade, consideramos válida nossa suposição sobre a determinação desse outro-mãe, real e internalizado para o efeito desses sintomas, mesmo que o pensemos com relação à gênese do superego.

Por agora, sem mais aprofundamentos, vamos apenas imaginar que este outro-mãe que mora como um objeto interno não discriminado neste sujeito- -filha, a coloca num lugar de objeto-filha: um lugar de radical passividade, perpetuando uma relação de desamparo extremo e provocando altos níveis de angústia de separação. O que está em jogo aqui é um pânico do sujeito de ser invadido pelo objeto: "... a angústia de separação, mais do que uma ameaça de perda, é ameaça de uma impossibilidade de perder (CARDOSO, 2010, p. 26)".

Minha mãe é a pessoa que mais amo no mundo. Ela é boa demais pra mim. Acho até que ela me ama mais que a ela mesma. Às vezes ela quer fazer alguma coisa por mim, pro meu bem e eu brigo com ela, grito, bato a porta. Não sei por que eu faço isso. Fico culpada, mas por mais que eu ame minha mãe, não consigo amá-la tanto quanto ela quer (...) não consigo nem demonstrar o que sinto (paciente, 16 anos).

A saída deste lugar de passividade radical e de intenso sentimento de culpa, marcado por uma impossibilidade de odiar a mãe que é pleno amor, nos parece ir cedendo lugar, com o processo de análise, a outro momento. Um ódio latente começa a ser associado ao objeto-mãe, promovendo de forma gradativa, certa consciência de toda esta dinâmica. Acreditamos que a análise seja essencial para que essas filhas possam passar a ocupar uma posição mais ativa, crítica, de enfrentamento, de aceitação da castração e das falhas maternas e assim, continuar o trabalho que ficou por fazer, de unificação egoica e de separação do outro.

Ela colocou um terço na minha bolsa para me proteger sem que eu soubesse, porque eu estava com muita dor este dia. Ela não respeita meu direito de ter minha própria crença. Mais do que isso: ela não respeita minha própria dor. A dor faz parte da vida e eu lido com a minha como eu bem entender (paciente, 22 anos).

Mas, antes deste momento, de que forma toda esta dinâmica psíquica incide diretamente sobre o corpo e se reflete como sintoma alimentar?

Segundo Gaspar, podemos entender o processo de estruturação egoica como concomitante à estruturação da imagem corporal. O ego se forma como uma gestalt, se diferencia assim do outro e do mundo, através das percepções corpóreas como um sistema fechado. O ego rudimentar está em contato permanente com o mundo externo e o afluxo pulsional,

Sendo um efeito das sensações corporais no sistema perceptivo consciente. Em outras palavras, o ego vem se originar a partir da recepção das excitações tanto internas quanto externas provenientes do corpo (...) Nesse sentido, é na travessia desse período primário de investimento libidinal da mãe na criança, que o sujeito irá realizar o movimento de autonomia e de totalização da imagem de si, promovendo a estruturação egoica e, consequentemente, sua discriminação em relação ao outro (GASPAR, 2010, p. 39).

Neste contexto, incidindo diretamente sobre a imagem corporal e dificultando o processo de unificação egoica, as mães invasivas não respeitam suas filhas como sujeitos de desejo e as colocam como incapazes de cuidar de si mesmas. Assim, justificam sua própria necessidade de controle sobre as filhas.

Não suportava aquela situação de todo mundo se curvar para o que minha avó dizia. Ela manda na família e temos que aceitar tudo. Ninguém perguntou se eu queria comer pizza, eu nem gosto de pizza, mas não consegui dizer não. Tive que engolir a pizza e parece que ela ficou atravessada na minha garganta. Fui pro banheiro e vomitei toda aquela porcaria de pizza da minha avó (paciente, 22 anos).

Outra justificativa comum para manter um controle absoluto sobre seus corpos e desejos, é alegar que o mundo é perigoso, que precisam de proteção. Assim, esses dois discursos se coadunam, e estas filhas, incapazes de reagir e fazer frente à invasão materna, introjetam um sentimento de desqualificação e perpetuam uma relação de extrema dependência.

Vemos aí o sentido da assertiva de Freud de que o ego é, antes de tudo, um ego corporal, o que contribui para nossa compreensão da inegável importância corporal na constituição egoica e da complexa relação que se estabelece entre corpo, imagem corporal e unidade narcísica. Compreender tal relação nos parece essencial para o entendimento dos distúrbios de imagem corporal próprios às patologias alimentares. Acreditamos que tal distorção não se apresente apenas no caso extremo da anorexia, mas também na bulimia e no outro extremo: a compulsão. Da mesma forma que a anoréxica se vê gorda no espelho, a obesa não tem ideia do quanto engordou e acredita "não estar tão gorda assim".

Não acreditei quando subi na balança após tanto tempo. Como assim eu não caibo numa balança de 200 quilos? Foi um choque muito grande ver que eu estou pesando mais de 200 quilos. Embora a nutricionista diga que é só um número, eu me olho no espelho, sei que sou gorda, mas não vejo esses 200 quilos. Pensar nesse número é desanimador (paciente, 28 anos).

No início do trabalho usamos o termo adições alimentares e voltar a este termo, neste momento, parece pertinente. A priori, o termo adição não parece fazer sentido na patologia da anorexia, por exemplo. Entretanto, se tivermos uma visão mais aprofundada, poderemos verificar que não só a compulsão possui um caráter de adição à comida. Embora a anorexia carregue a marca de uma recusa alimentar, vemos que a anoréxica se ocupa da comida o tempo todo. Ela pensa sobre a comida, cozinha para os outros, pesquisa receitas e faz de sua hora de comer, um ritual. Isto é, passa horas comendo, embora não coma quase nada.

Percebemos assim, que mesmo a anoréxica é completamente dominada pelo significante comida. Indagamo-nos a este respeito: porque será que a comida e o comer ganham tanto relevo nesses casos? Porque o sintoma alimentar é privilegiado em detrimento de outras saídas precárias possíveis, como em outros quadros-limite?

O que buscamos agora é estabelecer uma articulação entre o que dissemos há pouco sobre a dimensão pré-edípica própria às patologias alimentares e nossa suposição, colocada no início do trabalho. Tal hipótese diz respeito a uma espécie de fixação no autoerotismo, no sentido de um desapoio, de um retorno ao campo instintual, da autoconservação.

Considerando que o nascimento do movimento pulsional, do impulso desejante, tem como base o apoio no instinto no início da vida, não é difícil compreender porque o significante comida reside num lugar especial nos casos em questão. Sem uma unificação egoica apropriada para o surgimento do desejo. Esses sujeitos parecem ter se fixado neste momento anterior, autoerótico, onde as pulsões são parciais e não podem encontrar um objeto, onde o ego não unificado não pode ser objeto de seu próprio desejo. No autoerotismo tudo permanece no campo do instinto, tudo se passa num corpo fragmentado, que tem fome e ao alimentar-se, encontra o que comer, mas não encontra quem lhe dá de comer. Isto é, encontra o leite, mas não o seio, não o olhar do outro para si. No máximo, encontra um olhar tantalizante que o atravessa.

Nas patologias alimentares, o objeto fica como única fonte de satisfação: o objeto em si, concreto. A satisfação que ele pode dar é da ordem do instinto, do quantitativo. O outro-mãe, que lhe apresenta este objeto, não é reconhecido como separado de si, permanecendo o sujeito misturado a ele e aprisionado no circuito de um prazer de órgão, de um prazer de satisfazer-se de maneira instintual. O ego da criança se torna cada vez menos pretensioso e modesto e o objeto cada vez mais sublime e precioso. (...) O objeto, por assim dizer, consumiu o ego, nos diz Freud (1921/1996).

Uma das coisas que mais sinto falta depois da morte da minha mãe é a comida dela. E de pensar que nunca mais vou comer a comida da mamãe. Não há comida no mundo como a da nossa mãe, né (paciente, 28 anos)?

A ausência de um olhar do outro "libidinizante", que o trate como objeto de amor, que o reconheça como objeto total, abandona-o à condição de desamparo primordial e o marca por seu atravessamento, conferindo-lhe invisibilidade, de modo a sonegar-lhe a possibilidade de existir subjetivamente. Sua existência fica atrelada à existência materna, que lhe possibilita a vida, a sobrevivência, ao menos fisiológica, pois que a vida psíquica se encontra caótica em demasia. Quanto à vida psíquica, permanece assim atrelado ao desejo materno.

Assim, o outro-mãe se coloca no lugar especial de alimentar e cuidar de sua filha, mas ao dirigir cuidados corporais e ela, não investe libidinalmente em seu corpo e não a ajuda a dar sentido, a representar suas sensações corporais. Esta mãe invade-a por excesso ou negligência: invade-a de conteúdos pulsionais advindos de suas prematuras sensações corporais, os quais esta mãe não organiza, não simboliza, não os integra no circuito pulsional.

Tais mães, muitas vezes, se colocam como mães da necessidade, não chegando a constituírem-se enquanto mães do afeto. Seu amor por sua filha é demonstrado por toda a vida como preocupações excessivas sobre seu corpo, cuidados corporais e sua saúde. Essas filhas recebem de suas mães um olhar sobre o corpo e não sobre sua subjetividade. Os desejos da filha não são simplesmente negados: eles não são sequer supostos.

Minha mãe cismou que o que eu comia era pouco e que eu tinha que engordar, embora eu me sinta bem assim. Resolvi fazer um sanduíche porque não queria jantar. Minha mãe decidiu que eu tinha que comer um mingau. Eca! Eu odeio mingau! Qual é o problema de eu comer o que eu quero (paciente, 16 anos)?

Este não reconhecimento da filha enquanto sujeito desejante, denuncia, a nosso ver, uma negação materna a respeito do campo da sexualidade. Tal negação se evidencia na maneira pela qual essas mães continuam tratando suas filhas adolescentes e adultas como desprovidas de sexualidade. Não sabemos ao certo se a dificuldade de separar-se de seu "bebê" leva essas mães a manterem suas filhas neste lugar infantil de passividade sexual ou se a negação da sexualidade das filhas que contribui para essas mães permanecerem tratando-as como "o bebê da mamãe". Parece-nos que essas duas possibilidades fazem sentido e não poderemos aqui realizar uma pesquisa sobre este aspecto.

Não tenho coragem de me desfazer dos presentes que meus pais me deram a vida toda. Tenho uma estante e um armário lotado com todas as bonecas que ganhei da minha mãe e do meu pai. Nem as tiro da caixa com medo de que estraguem. Afinal, não poderei ganhar mais nada deles (paciente, 28 anos).

De qualquer forma, é pertinente citarmos que essas mães apresentam esta negação que pode estar relacionada com a forma com que vivem sua própria sexualidade. Além disso, também podemos observar que as jovens com patologia alimentar também apresentam dificuldades significativas com sua própria sexualidade, o que pode estar relacionado com esta posição de negação materna.

Essas moças parecem internalizar esse lugar infantil de maneira radical e não conseguem assumir uma posição sexualmente ativa, tendo assim seu desenvolvimento comprometido neste campo. Não lidam bem com mudanças corporais na adolescência e não desejam ocupar um lugar de objeto de desejo sexual para o outro.

Talvez esta questão resida na dificuldade de separação que estas jovens têm em relação à figura materna, mas há outro ponto privilegiado de análise para o entendimento desta dificuldade: a questão edípica.

 

A problemática edípica

O aparecimento dos sintomas alimentares geralmente acontece na adolescência, o que parece ter um importante sentido por se tratar de um momento crucial: a revivência do Complexo de Édipo. Deteremo-nos, aqui, em dois aspectos relevantes que podem se evidenciar nesta fase. Primeiramente, abordaremos brevemente a função paterna de interdição da relação primária e mais adiante, a pregnância dos fantasmas incestuosos que ressurgem com força total neste momento da vida.

Gaspar (2010, p.61) nos indica que "a referência paterna é de extrema importância no momento de constituição do sujeito, quando ocorre o processo de diferenciação em relação ao outro." É a entrada do pai que vem possibilitar a ressignificação da relação indiscriminada mãe-bebê, indicando que a criança não é o único objeto para o qual aponta o desejo materno. Este movimento é fundamental para que a criança compreenda que os pais se desejam entre si e assim, possa abandonar a crença de que ela própria seja o objeto único do desejo da mãe. Abandonar esta crença é também reconhecer sua própria castração, de modo a se descolar da ideia de constituir como um objeto-falo, tamponador de toda falta materna, capaz de suprir qualquer demanda e se responsabilizar por qualquer sofrimento ou alegria da mãe.

Esta dinâmica que se engendra com a relação triangular que neste momento se inaugura, tem como efeito o reconhecimento dos limites entre o eu e o outro, o que implica "aceitar a perda da mãe, acessar a frustração, defrontar-se com o mundo da alteridade e renunciar aos desejos primitivos (GASPAR, 2010, p. 62)". A referência paterna tem como função fundamental, então, a imposição de um limite na relação primária, funcionando como uma interdição na relação de suposta completude entre a mãe e seu bebê. A lei do pai pode ser assim internalizada, possibilitando a consolidação dos limites entre o eu e o outro. Nos casos de patologia alimentar, isso não se configura como uma possibilidade. Há uma espécie de curto-circuito neste processo. O olhar e o desejo materno não apontam em direção ao pai, não permitindo sua entrada na vida psíquica da criança de modo que sua referência possa ser internalizada enquanto lei de interdito da relação primária.

Não acredito no amor entre mais de duas pessoas, nem no amor que acaba. Só é possível amar uma pessoa durante toda a vida. Se acabar é porque não era amor (paciente, 16 anos).

A deficiente internalização do interdito trazida pela não entrada do pai enquanto terceiro, tem como resultado uma dificuldade de triangulação nas relações objetais. No discurso, este aspecto aparece como uma particular insatisfação ou mesmo impossibilidade do encontro entre mais de duas pessoas, como a vivência em grupos. Segundo Gaspar, "a chegada deste terceiro (...) será sentida como invasiva, como uma efetiva ameaça de penetração" (GASPAR, 2010, p. 64).

Tenho um problema com o número 3. Quando estou com uma pessoa no recreio, até consigo conversar, posso tirar dúvidas com o professor, só eu e ele. Mas se outra pessoa entra na conversa, eu travo, já não sei o que falar. Tudo que eu penso que posso dizer parece idiota, parece sempre que o que a outra pessoa diz é mais interessante (paciente, 16 anos).

A maior consequência disso, entretanto, diz respeito a uma inscrição deficiente do interdito, que deixa o sujeito à mercê do perigo interno dos desejos incestuosos, o que citamos acima como o segundo aspecto que nos interessa destacar no contexto edípico. A revivência da problemática edípica própria à entrada na adolescência, que representa esse perigo ao qual nos referimos, parece se coadunar com o que expusemos acima acerca de uma negação da sexualidade dessas jovens por parte de suas mães e delas mesmas.

Ganhei este brinco do meu falecido padrinho, de quem eu muito gostava quando eu tinha quatro anos. Desde então, não o tirei da orelha nenhuma única vez. Eu gosto do brinco. Parece que se eu tirar ele vai ficar triste comigo. É como se ele fosse pensar que não gosto dele (paciente, 28 anos).

Evitar corpos com curvas desejáveis seja pelo excesso ou falta de peso; reduzir o próprio corpo a um organismo ao qual se deve ou não alimentar; procurar torná-lo um corpo apenas biológico e negá-lo enquanto corpo pulsional, que se relaciona libidinalmente e fantasisticamente com outros, constitui uma saída desesperada frente esse engolfamento eminente pelos conteúdos incestuosos, recalcados ou não, que oferecem um perigo psíquico incontestável.

Tal perigo é agravado pela posição privilegiada da mãe no psiquismo dessas jovens e o sentimento de culpa e ódio inconsciente que nutrem pela figura materna, por sua violenta invasão em seu psiquismo. Realizar o desejo incestuoso, mesmo que no plano da fantasia, é ocupar o lugar da mãe, é colocar sua existência simbólica em xeque, é destruí-la dentro de si e destituí-la de sua posição privilegiada de uma mãe que é só amor, apenas objeto bom.

Não sei por que, mas eu simplesmente não conseguia me aproximar do meu padrasto. Demorei a conseguir sentar e conversar com ele, pra explicar que não tenho nada contra ele, é apenas uma coisa minha, por isso estou afastada. Como a sala estava escura, não sei se ele chorou, mas eu chorei. Acho que porque ele não podia me ver. Só assim eu pude falar o que sentia (paciente, 16 anos).

Outro ponto de agravamento desta dinâmica edípica se refere à precariedade de simbolização nessas jovens, aspecto que abordamos no início do trabalho ao investigarmos os efeitos da falha narcísica encontrada nesses casos, falha esta que se desenvolve a partir deste congelamento na relação primária.

Como efeito desta sombra incestuosa, que se atualiza na adolescência com o advento da capacidade orgástica e a pregnância das fantasias, voltamos a nossa afirmação a respeito de um movimento de regressão no desenvolvimento psicossexual destas jovens.

Fui pro shopping ficar com o menino e minha mãe foi junto. Ela não foi embora. Ela ficou lá enquanto eu ficava com ele. Não gostei de ficar com ele, não senti nada (paciente, 16 anos).

Por não poder dar conta do investimento libidinal próprio às relações objetais que carregam em si o perigo do encontro amoroso que, por sua vez, representa fantasisticamente o encontro amoroso com o outro parental não barrado, essas jovens mulheres retornam a um momento onde não havia ainda um ego para ser investido.

Comecei a namorar aos 11 anos um cara mais velho que eu. Minha mãe acobertava meu namoro e escondia do meu pai. Ele não ia aceitar que a filha dele tivesse outro homem. Coitado do meu pai, eu traí ele por anos, enganei ele direitinho. Eu sempre fui a bonequinha dele, a princesinha (paciente, 28 anos).

O risco que este momento traz ao psiquismo precariamente constituído, no caso das patologias alimentares, se insere na lógica deste recuo à vivência autoerótica da sexualidade. Onde havia apenas em ego rudimentar, corporal, todo e qualquer investimento libidinal ainda não poderia ser reconhecido como narcísico, mas apenas sentido em termos de sensações corporais difusas, desorganizadas.

Impossibilitadas de investir narcisicamente em seu próprio corpo, seu investimento é da ordem do excesso ou da falta, mas sempre no corpo tomado como organismo. Corpo este que, aparece esvaziado de sentidos simbólicos para se apresentar enquanto carne ou não-carne, mas que paradoxalmente mostra com seu sintoma tudo aquilo que procura esconder: sua dimensão pulsional inescapável.

 

Concluindo

Dentre todas as possibilidades de chave de leitura para as patologias alimentares, privilegiamos as determinações psíquicas resultantes da uma vivência pré-edípica peculiar e de um desdobramento da problemática edípica próprio a estes casos. A peculiaridade de tal vivência, diz respeito ao apassivamento dessas jovens, que vivem à sombra materna, carregando a dor de não existir subjetivamente. Permanecendo numa relação de servidão ao outro, passivas diante da alteridade, parecem não produzir movimentos desejantes e realizações próprias em suas vidas. Esta passividade radical coloca tais jovens predominantemente numa posição de objeto, sem que possam erigir-se como sujeitos desejantes. Esta dinâmica parece encontrar ressonância na própria dificuldade materna em promover auxílio para o processo de separação, relegando- as a uma devastadora experiência de angústia de separação/intrusão.

Assim, suas mães6 estabelecem com elas uma relação de completude e complementaridade, sem furos, sem espaço para negociações, com pouca escuta e muitos imperativos. Há uma espécie de congelamento na relação primária, como dissemos e a própria dificuldade de separação entre mãe e filha não permite a entrada de um terceiro que venha a relativizar esta relação. Tais filhas são como falos para suas mães, o que não permite que seu desejo e olhar deslize para um terceiro. Deste modo, a figura paterna aparece desinvestida ou desqualificada no discurso materno e, por conseguinte, no discurso dessas pacientes, não podendo o pai se colocar como o terceiro que vem barrar a díade mãe-filha.

Esta não entrada subjetiva do pai no psiquismo da filha parece repercutir na dimensão edípica, tornando-a mais dificultada. Do ponto de vista clínico, encontramos uma espécie de resistência ao campo sexual que pode ir de dificuldades e vivências de culpa até uma repulsa ou negação radical. Assim, ao perpetuar-se na vida psíquica e sexual infantil, não podem posicionar-se em termos de escolha objetal, como nos diz Freud em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), isto é, na hetero ou homossexualidade. Correlata a esta vivência sexual infantil, o posicionamento enquanto sujeito desejante fica comprometido em todos os campos, o que se torna claro em situações de opressão ou necessidade de posicionamento ativo. Sob um aparente desinteresse sobre si mesmo, a tomada de atitudes e decisões sobre a própria vida, são terceirizadas à mãe e outras figuras com as quais estabelecem a mesma modalidade de relação.

Com base em nossa experiência, verificamos a importância do trabalho da análise que pôde proporcionar mudanças significativas na paciente, em sua forma de viver e confrontar o desejo do outro com seu próprio desejo. Tais mudanças dizem respeito a uma posição mais ativa e uma maior capacidade de simbolização frente a este outro materno invasor. Seu desejo pode, assim, ser relativizado, promovendo-se o reconhecimento do desejo próprio, numa crescente separação entre o próprio eu e o outro, alcançando o descongelamento de uma modalidade de relação primária aprisionante.

Limitamo-nos a uma análise acerca de tais questões, fortemente calcada em nossa vivência clínica, entretanto, nos interessa um estudo mais aprofundado acerca desses e de outros temas que a estes se relacionam, que, por uma questão de limites, encontrará espaço em outra ocasião.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Camila Braz Padrão
e-mail: camilapadrao@globo.com

Tramitação: Recebido em 28/08/2012
Aprovado em 13/01/2013

 

 

* Este trabalho foi apresentado no evento Escutando Ideias, realizado no CPRJ, em 05/05/2012
** Psicóloga, mestranda em Psicologia Clínica/PUC-Rio, especialista em Psicoterapia Infantojuvenil/ órum/CPRJ
1 O DSM-IV (2003) inclui nos transtornos alimentares específicos apenas Bulimia Nervosa e Anorexia Nervosa. Contudo, esclarece que a obesidade é incluída na CID como uma condição médica geral, mas que traz evidências da participação de fatores psicológicos na etiologia ou no curso de determinado caso, indicando a presença de Fatores Psicológicos que afetam a condição clínica. Para esclarecimentos a este respeito, remeto o leitor ao DSM-IV, 2003, páginas 555 e 683
2 Certos autores abordados em nosso trabalho fazem referência explícita a respeito da questão dos limites nas patologias alimentares, como Marta Rezende Cardoso, Fabiana Lustosa Gaspar, Maria Helena Fernandes e André Green, citado por Fernandes, 2006, p. 173
3 Ao nos referirmos ao termo outro neste trabalho, pretendemos usá-lo como sinônimo de objeto, de um outro que não é o sujeito mas aquele com o qual este estabelece uma relação de objeto. Não estamos considerando rigorosamente tal termo com base no referencial lacaniano
4 Tal expressão foi cunhada por Vanuza M. C. Postigo. A autora fala de uma "exposição do sujeito ao poder de um outro externo e uma relação que evoca uma assimetria que apassiva o sujeito. (POSTIGO, 2010, p. 69)". Isto denotaria uma relação de poder e fundamentaria o fascínio que o líder exerce sobre aqueles que o servem. Remeto o leitor a seu livro para mais esclarecimentos: Adição: um estudo sobre passividade e violência psíquica. Curitiba, Juruá, 2010, em especial ao capítulo 3
5 Tal conceito winnicottiano é vastamente abordado ao longo da obra do autor. Sobre tal, remeto o leitor à página 25 do texto de D. Winnicott, Objetos transicionais e fenômenos transicionais, de 1951, publicado em O brincar e a realidade, em 1975, pela Ed. Imago, e à dissertação de Marlene Pereira da Rocha, pela PUC-SP em 2006, que aborda detidamente esta questão
6 Aqui entendidas como quem exerce a "função materna", podendo ou não ser a mãe biológica.