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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro dez. 2013

 

Artigos

Instituição psicanalítica e democracia

 

Psychoanalytical association and democracy

 

 

Urias Arantes*

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

A questão das relações complexas entre a psicanálise e a aventura democrática é abordada tomando-se por base os problemas que levaram à dissolução da EFP, particularmente quanto a impasses gerados pelo 'passe'. Enfatizam-se questões observadas na associação entre analistas, em termos de 'servidão voluntária', como a que diz respeito à curiosa submissão ao Mestre.

Palavras-chaves: PPsicanálise, democracia, EFP, associação psicanalítica, formação do analista.


Abstract

In this paper the issue of the complex relationship between psychoanalysis and democracy is discussed from the standpoint of the problems that led to the dissolution of the EFP (Ecole française de psychanalyse), particularly those concerning the impasses generated by the 'passe'. Issues observed in the association among psychoanalysts in terms of 'voluntary servitude' – as the one referring to the curious submission to the Master – are properly focused.

Key-words: Psychoanalysis, democracy, psychoanalytical association, training of psychoanalysts.


 

 

Un pur trouve toujours un plus pur qui l'épure.

1.

Em julho de 1981, na abertura de um colóquio organizado pelo Collège des Psychanalystes, Serge Viderman introduziu a discussão estabelecendo um paralelo entre "a sociedade civil, na qual vivemos, e as sociedades psicanalíticas às quais pertencemos" (VIDERMAN, 1982, p. 5). Mais ainda, haveria uma analogia entre a deriva do marxismo revolucionário para o estalinismo e a historia das sociedades psicanalíticas: "lá, o marxismo como ciência absoluta da sociedade (…) aqui, quero dizer entre nós, quero dizer em psicanálise, a doutrina inaugurada por Freud como ciência total, definitiva, sem lacuna, da psique" (VIDERMAN, 1982, p. 8). Lá, a execução para o traidor, aqui, a exclusão ou 'une nouvelle tranche'. E os exemplos nao faltam: a filha de Melanie Klein analisada por un não-kleiniano, a estigmatização de uma colaboradora de Melanie Klein após ruptura com a ortodoxia kleiniana; Freud e a exclusão de Abraham, Adler e Jung, explicada em termos dignos dos processos de Moscou; a formação de um comitê secreto encarregado da pureza doutrinária, etc.. A École Freudienne de Paris não foi exceção. Viderman lembra que, para Lacan, há um saber absoluto, o saber de Freud "o único que soube de verdade (...) em termos indestrutíveis e que não foram esgotados" (VIDERMAN, 1982, p. 10) – a uma afirmação que poderia, observa Viderman, quase palavra por palavra, se encontrar no discurso de Stalin, junto ao túmulo de Lênin.

Mais radicalmente, é preciso repensar a relação entre teoria e instituição. Pois "a instituição sustenta e conforta a teoria, e a teoria secreta certo tipo de instituição, mais exatamente, um certo tipo de teoria, aquela que se pretende exaustiva, omnisciente, sempre violenta, engendra instituições que lhe são semelhantes" (VIDERMAN, 1982, p. 12).

Seria necessário, em consequência, refletir sobre novas instituições, mas também sobre novos tipos de teorização analítica. A fragmentação das sociedades analíticas não é o problema, pois ela abre novas perspectivas: "Será, portanto, necessário aprender o babeliano. O babeliano é o que se opõe absolutamente aos discursos ocos. Stalin detestava o cosmopolitismo e só falava bem de verdade o georgiano" (VIDERMAN, 1982; p. 13).1

As afirmações de Viderman podem parecer exageradas ou, ainda, pode-se pensar que ele cai no mesmo excesso que denuncia na história e na atualidade da psicanálise. No entanto, seu elogio do babeliano – quer dizer, de uma multiplicaçao de línguas – merece atenção, nesses anos de tormenta da psicanálise francesa, sobretudo nos meios lacanianos, antes, durante e depois da criação e da dissolução da EFP.

Tampouco podem ser minimizadas as questões que colocam sobre as relações entre teoria e instituição analítica. Mas Viderman parece pensar essas relações em termos de especularidade e de complentariedade: a teoria daria nascimento à instituição e esta sustentaria aquela. Como se as duas obedecessem à mesma lógica. Assim, da mesma maneira, se a União Soviética era um regime totalitário, o marxismo só poderia ser uma teoria totalitária. Há, certamente, relações entre as duas lógicas, mas é preciso problematizá-las, dado que teoria e instituição se manifestam e se desenvolvem em registros diferentes. A lógica da teorização analítica, o modo próprio à psicanálise de fazer proposições teóricas, são as mesmas da criação e do desenvolvimento das instituições analíticas? Construir uma teoria e defendê- -la publicamente, associando-se a outros interessados, ou mesmo procurar convencer muitos outros, não seriam movimentos diferentes? Têm as mesmas exigências e limitações? Se há diferenças – e seria necessário explicitá-las –, que relações existem, podem ou devem existir entre os dois processos? Doutrina religiosa e igreja devem aparentemente coincidir, sob pena de perderem sua força de persuasão, mas teorização e instituição psicanalítica têm uma necessidade interna, uma da outra? O que cada uma contribui, pode ou deve contribuir para a outra?

Desde 1902, os psicanalistas se reunem, se organizam em associação, sociedade, instituto, escola, etc., quer dizer, se dão regras de associação, de como entrar, do que se faz, uma vez no interior, e do que se pode esperar da associação. Essas regras mudaram frequentemente, se inventaram, isto é, se mostraram insuficientes e problemáticas, uma das consequências tendo sido as exclusões, as rupturas, e mesmo as dissoluções. A fragmentação do campo téorico e institucional da psicanálise não parece ter contribuído para o progresso do babeliano. Ao contrário, a fragmentação talvez tenha mesmo apagado a especificidade do campo da psicanálise, ao ponto que a diferença, por exemplo, face à psicologia ou à psiquiatria, não é consensual e parece mesmo impossível. O que domina é a guerra ou a indiferença recíproca entre os diferentes grupos que reclamam a mesma herança. E isso talvez seja uma das razões do 'declínio' da psicanálise.

Ora, penso que o nascimento, os conflitos, a fragmentação e a morte de uma instituição analítica são fenômenos bem menos dependentes de mutações teóricas fundamentais do que de problemas em relação ao exercício do poder no interior da instituição, os quais podem ser acompanhados por transformações da teoria: mais ou menos, como a multiplicação ao infinito das igrejas protestantes depois da Reforma. A crítica de funcionamento autoritário, até mesmo de funcionamento autocrático ou monárquico, é frequente numa instituição que consagra uma hierarquia à cabeça da qual está o Mestre, Mestre Fundador ou Grande Herdeiro. E a questão das relações entre teoria e instituição ganha, assim, uma dimensão política: como é possivel que a proximidade entre o nascimento, o desenvolvimento da teoria e da crítica analíticas – enquanto território novo da experiência humana – e a experiência democrática da perda de referências possam ser acompanhados pela de criação de institutuições, sociedades, associações ou escolas psicanalíticas, que funcionariam de modo autoritário ou não conseguiriam evitar tal evolução? Outra formulação: se a experiência democrática é a de recusar um Mestre, um poder e um saber encarnados – e ao mesmo tempo de reconhecer que cada um pode ou deve ser mestre de si, que ele pode ou deve escolher seus próprios fins – o que dizer do 'desejo de Mestre' que se manifesta frequentemente sob a forma do laço entre os membros de uma associação analítica, raiz obscura de seus conflitos? Quais são os efeitos de tal paradoxo sobre a teorização? Os psicanalistas, tão hábeis para provocar a manifestação dos desejos inconscientes, seriam cegos quando, associados, se manifestam seus próprios desejos inconscientes?

 

2.

As múltiplas rupturas que ocorreram no seio do movimento psicanalítico são devidas, segundo J.-P. Valabrega, à rivalidade entre pessoas e/ou aos problemas de formação dos analistas, isto é, os problemas de transmissão e de filiaçao (VALABREGA, 1994, p. 120). Ele não é o único a fazer tal afirmação. Apesar de diferenças de ponto de vista, a mesma proposição se encontra, por exemplo, em R. Castel (Le psychanalisme, 1973) e em Safouan, Julien & Hoffmann (Malaise dans la psychanalyse, 1995). Pode-se, igualmente, lê-la nos trabalhos de Roudinesco (2009). Essas duas fontes de conflito colocam en jogo questões de poder, as quais podem de novo se diferenciar entre busca de poder sobre o desenvolvimento da teoria – é a grande preocupação de Freud e de seu Comitê Secreto – e controle dos mecanismos institucionais – é o que manifesta o cuidado precoce com a uniformização dos procedimentos de filiação no interior da IPA.

A história da EFP parece implicar, ao mesmo tempo, os dois aspectos. A novidade vem da presença de um Mestre. As dissidências, conflitos e rupturas anteriores não questionam o fundador, Freud, e os problemas se concentram ou sobre aspectos da elaboração teórica a partir das descobertas do fundador, ou sobre a fidelidade à sua doutrina na criação de um 'novo' território da psicanálise (psicanálise infantil, por exemplo). Ora, no caso da EFP, sua fundação se fez em nome do 'retorno a Freud', sustentado e elaborado por Lacan. Mas, rapidamente, aos olhos dos membros da EFP, pelo menos, o Filho sobrepassou o Pai, o Novo Testamento aboliu o Velho Testamento. E muitos lacanianos renunciaram ao gesto de Lacan de retorno a Freud, não se interessando pelos textos freudianos ou se mostrando incapazes de lê-los sem o peso frequentemente esmagador dos aparelhos conceptuais lacanianos.

Tal novidade se inscreve já no ato de fundação da EFP. Pois, se a fundação de uma 'escola' quer restaurar 'le soc tranchant' da verdade no campo inaugurado por Freud – a causa psicanalítica defendida contra desvios e compromissos – o «je fonde» inaugural vai logo se aproximar do 'je forme' (os membros da EFP serão aqueles "que moi-même j'ai forme" (LACAN, 2001, p. 229) e também do 'je contrôle' (os membros receberão tarefas a realizar e se submeterão 'a un contrôle interne et externe'. Não há hierarquia, mas uma organização circular na medida em que o modo de funcionamento em cartel (3 + 1) significa uma permutação regular dos membros. Resta uma ambiguidade profunda, pois Lacan assume a direção institucional e a orientação teórica. Lembremos que Freud havia recusado a direção da IPA. Roudinesco vê aí uma mudanca significativa no percurso de Lacan: "ao banquete socrático (1953 a 1963, dez anos de ensino à terceira geração de psicanalistas franceses) sucede a academia platônica, a escola" (ROUDINESCO; PLON, 1997; entrada EFP). Lacan se autoproclama mestre para a doutrina e diretor da escola, legislador de um novo modo de formação, uma espécie de «monarca direto» (ROUDINESCO, 2009, p. 1131). Pois a relação com os cortesãos se serve da ambivalência da posição do mestre para escapar à hierarquia institucional, criada pelo próprio mestre.

É preciso certa dose de simplicidade de espírito para afirmar que uma reunião de psicanalistas é diferente, essencialmente, de uma reunião de qualquer outro grupo humano. Se abandonarmos essa crença, o resultado deve ser um esforço para distinguir a elaboração teórica e o processo institucional. Mas os dois não se dão separadamente, como se não houvesse efeitos recíprocos. É preciso prestar atenção ao conflito, à tensão, à diferença problemática entre os dois, talvez mesmo a uma dialética. O esforço para confundi-los produz não somente incompreensão, mas também impasses. É certamente a armadilha que Lacan não pode ou não soube evitar com a proposição institucional e teórica do «passe», o significante que produzirà as rupturas, mas, sobretudo, a dissolução da escola: uma dissolução que de fato se pretende como uma nova fundação. Uma dissolução que tomou a forma de uma epuração.

O dispositivo do 'passe', enquanto tal, é bastante simples: um 'passant' testemunha diante de um 'passeur' (escolhido pelo analista do 'passant' entre os membros da escola) sobre sua experiência de fim da análise; o 'passeur' testemunha diante de um 'jury d'agrément' sobre o que ouviu ; o 'jury d'agrément' decide, então, se o 'passant' é apto a tornar-se analista da escola – um estatuto atribuído igualmente ao 'passeur', caso já não o possua. Trata-se de testemunhar sobre uma experiência que Lacan designa de 'ato analítico'. A ideia que Lacan tem do ato analítico, funda teoricamente o dispositivo do 'passe'. Leva-se em conta o início e o fim da análise (fim, aqui, no duplo sentido de término e de objetivo). Tudo começa na transferência graças à qual o analisando experimenta o analista como 'Sujet Supposé Savoir'. Ao termo do processo, o analista é experimentado pelo analisando como « objet a », isto é, como um objeto cujo destino é ser rejeitado (como uma merda!). O analisando comprende, agora, que o ato analítico só virá se ele dá seu consentimento a tal destituição. O dispositivo do « passe » é a « mise en scène » ou a objetivação dessa experiência de destituição, razão pela qual é necessário que os « passeurs » estejam igualmente próximos dessa experiência, que a estejam atravessando, "bref encore liés au dénouement de leur expérience personnelle" (LACAN, 2001, p. 255). Quanto au 'jury d'agrément', sua função é a seleção e a elaboração teórica da experiência.

Num balanço feito dez anos mais tarde, Safouan admite que a elaboração teórica foi modesta e limitada (SAFOUAN, 1978). A função seletiva tampouco funcionou bem. A função de Lacan no interior do 'jury d'agrément' provocou visivelmente um problema que Safouan comprende atribuindo ao mestre o lugar do 'Plus-um' dotado não 'd'une certaine autorité, mais d'une autorité certaine'. E Safouan ajunta, curiosamente, que a palavra do mestre não serve de argumento de autoridade! Dez anos depois, as práticas do 'jury d'agrément' parecem ser pelo menos obscuras.

As discussões ao redor do 'passe' conduziram a escola à 'débâcle' (expressão de Roudinesco), a qual conduziu à dissolução e à refundação. Um pouco mais tarde, morre Lacan e a escola se fragmenta em vários grupos, cada um com a pretensão de ser mais realista do que o rei (morto!). Apesar dos esforços notáveis de Roudinesco, esses anos são confusos e as razões do impasse difíceis de formular. Como toda história significativa, a história da EFP e de seu fundador é múltipla. Mas, resta que o 'passe' cristalizou as dificuldades. Um dos aspectos fundamentais da proposição de outubro é a procura de um dispositivo institucional exprimindo idealmente as exigências teóricas, como se a lógica da teorização e a lógica da instituição pudessem ou devessem ser idênticas. Sem levar em conta que a teoria da passagem de analisando a analista, experiência singular, nunca foi teoricamente elaborada. O texto tardio de Freud sobre o fim da análise indica, mais do que, resolve os problemas. E a questão parece legítima: trata-se de um limite (e não apenas de uma limitação) que não pode ser ultrapassado, sob pena de anular a descoberta freudiana do desejo inconsciente? O que vale, provavelmente, também para todos os pontos cruciais da teoria analítica enquanto saber habitado, atravessado e alimentado por um não-saber radical (e não apenas provisório, como é o caso da ignorância). Se for o caso, talvez precisemos aceitar que a psicanálise é mais uma arte do que uma ciência.

Por outro lado, outra tarefa é confiada ao 'jury d'agrément': elaborar a teoria da passagem. O fracasso foi reconhecido. Antes mesmo de sublinhar a ambiguidade de um dispositivo fundado sobre uma teoria que o próprio dispositivo deve permitir elaborar, a pergunta que está faltando é a de saber se a lógica da teorização -- que para a psicanálise tem a ver com a singularidade -- não é de uma outra natureza que a lógica da institucionalização -- que tem a ver com uma experiência coletiva. A menos que o traço de união entre as duas lógicas seja garantido por um Mestre, o que perverte inteiramente o dispositivo. Segundo Valabrega, o risco aqui é de criar "uma prática da formação e da habilitação flutuante, preguiçosa, absurda, impossível, fundada sobre a auto-autorização e o reconhecimente cortesão do Mestre ou do grupo de seus favoritos do momento" (VALABREGA, 1994, p. 126).

A formação do analista não é certamente a mesma que, por exemplo, a do médico. É a própria análise que a dirige, tanto na posição do analisando como na posição do analista. O vasto programa, proposto por Freud para formar o analista, só tem por objetivo aprofundar a formação pela própria análise, torná-la mais exigente, afinando a palavra e a escuta. Mas isso é um convite para levar em conta a singularidade radical da experiência analítica que analisando e analista não poderão compreender inteiramente, mesmo se um e outro podem reconhecer seus efeitos e falar deles. Assim, a destituição do analista de seu lugar de SSS ('Sujet Supposé Savoir'), que é também uma experiência de perda, de falta ou de ausência irremediáveis para o analisando, é um movimento do qual a palavra de quem o atravessa ou o testemunho de um 'passeur' não poderão explicitar o sentido para fins de julgamento ou de elaboração teórica. Mas, podem-se contar histórias. Entre muitas outras, a história do analisando que sente nascer nele o obscuro desejo de tornar-se analista.

 

***

Essa rápida reflexão sobre um momento particular da história das instituições psicanalíticas levanta perguntas em aparência simples: mas por que os psicanalistas precisam se associar? E se associar de uma maneira que não se reduz a uma sociedade de sábios ou de defesa de interesses corporativos? O que é que torna impossível uma prática solitária da psicanálise? Donde vem a impressão que nos associamos sob o modo de uma igreja ou de uma seita? As respostas provavelmente se encontram nas tarefas de formação e de transmissão da psicanálise, as quais são incompatíveis com uma modalidade, por exemplo, universitária de ensino. Institutos e escolas, dispensando cursos sobre um conjunto de disciplinas, nunca puderam formar um analista. A regra enunciada por Eitingon em 1918 é incontornável: a condição fundamental para tornar-se analista é a análise pessoal. O problema é de saber se isso é suficiente. Esse nó de toda formação analítica contém em germe todas as dificuldades que uma instituição vai encontrar quando pretende garantir a prática analítica.

Como nos diálogos socráticos, o discípulo só aprende porque já sabe, mas esqueceu que sabia. Conhecer, desse ponto de vista, significa lembrar. A singularidade de uma experiência não impede de partilhá-la, ainda que não seja nunca verdadeiramente partilhada. Não se trata de uma experiência inefável, mas de uma experiência de discurso. Falamos sem nunca podermos dizer tudo. Ainda mais quando se trata de uma das saídas possíveis – mas não exclusiva – da experiência analítica, isto é, a emergência do desejo de tornar-se analista. Talvez, esse desejo esteja na origem das instituições analíticas e de suas dificuldades. A associação com outros não vem revelar também o desejo de controlar esse desejo, de colocá-lo em ordem? Pois justamente haveria nele algo de incontrolável, algo que nos escapa sempre? Se a experiência analítica é uma experiência de perda, falta ou ausência de Mestre – ou a experiência de um mestre que não se leva a sério – o desejo de se associar não está ligado ao desejo de controle, um desejo de Mestre intimamente relacionado ao desejo de escutar e de falar? Ou como diz Lacan, ao desejo de 'naître, de n'être'?

As 'respostas' se exprimiram sob a forma da invenção de uma burocracia acompanhada ou não de uma partilha do poder de decidir, de formar e de transmitir, ou então sob a forma de um culto do mestre, com os paradoxos e impasses que se seguiram. Por que as sociedades psicanalíticas não são em geral fiéis à experiência do não-saber e não-poder que as fundam e que, se elas aceitassem seus efeitos, as tornariam mais democráticas? Quero dizer, associações existindo com uma interrogação permanente de seus próprios paradoxos – os paradoxos da democracia, à medida que a democracia contém nela mesmo, de maneira constitutiva, o que pode destrui-la e invertê-la em seu contrário?

No interior da EFP, a questão foi formulada menos em termos de porque se quer o poder (de decidir, de formar, de transmitir) – um pouco como se a resposta fosse evidente: o poder engendra o gozo – mas em termos de por que se obedece ao Mestre com tanto fervor, pelo menos antes de a servidão voluntária se transformar em rebelião?

 

3.

There never did, there never will, and there never can exist a parliament, or any description of men, or any generation of men, in any country, possessed of the rioght or the power of binding and controlling posterity to the 'end of time', or for commanding for ever how the world shall be governed (….) Every age and generation must be as free to act for itself, in all cases, as the ages and generations which preceded it. The vanity and presomption of governing beyond the grave is the most ridiculous and insolent of all tyrannies (Thomas Paine, Rights of man, 1791. Penguin books, 1984, p. 41s.).

Em sua retomada da introdução à tradução para o árabe do Discours de la servitude volontaire, Safouan (2008) traça as grandes linhas da origem da democracia europeia e americana. Mas não aborda praticamente jamais o problema, ou melhor, o enigma do texto de La Boétie. Assim, ele sustenta a ideia de que as raízes da servidão voluntária dependem de nosso apego à unidade encarnada pela integridade do corpo e à figura do Pai Ideal, que garante a unidade. Ele se pergunta como, nessas condições, um regime democrático pode se desenvolver nos países árabes. O que o conduz a formular um problema supostamente ignorado por La Boetie: qual é a política dos que detêm o poder que tem como resultado que os homens renunciem à propria ideia de liberdade? Numa série de ensaios, onde o psicanalista mostra as dimensões inéditas reveladas pelo seu encontro com as questões políticas, Safouan defende a tese de que, no Médio Oriente, a política da alienação resulta de uma política da escrita, consistindo em desvalorizar a língua popular em favor da língua aprendida, língua morta (a língua do antigo poder) ou língua estrangeira (a língua do colonizador).

A questão de La Boétie não é certamente formulada do ponto de vista do tirano, mas daqueles que o obedecem. La Boétie não escreveu Il principe. Mas seu exame das razões da servidão voluntária não o impede de mostrar por quais meios o tirano perpetua sua dominação, insistindo sobre os efeitos dos meios empregados sobre o desejo natural de liberdade. Pois é bem aí o ponto de partida de La Boétie: nossos direitos naturais implicam que somos "naturellement soumis à nos parents, sujets de la raison, mais non esclaves de personne" (LA BOÉTIE (1549) 1978, p. 181). Somos em consequência todos iguais, 'ou plutôt tous frères', e as desigualdades naturais existem para reforçar os laços entre iguais, provocando o nascimento do amor fraternal. Tais laços são ainda reforçados pela palavra dada a todos "pour nous aborder et fraterniser ensemble (….) nous amener à la communauté d'idées et de volontés, fortificando, assim, "le noeud de notre alliance, les liens de notre société". No entanto – e aí começa o problema para La Boétie –, "quel malheureux vice a donc pu tellement dénaturer l'homme, seul vraiment né pour vivre libre, jusqu'à lui faire perdre la souvenance de son premier état et le désir même de le reprendre?" (LA BOETIE (1549) 1978, p. 187).

A primeira razão é o hábito e, em particular, a educação, capaz de dar à natureza humana "un tout autre pli" (LA BOÉTIE (1549) 1978, p. 195). Há, no entanto, sempre alguns homens que escapam ao peso dos hábitos e dos costumes: "ce sont ceus qui aians la teste d'euxmemes bien faite, l'ont encore polie par l'estude et le sçavoir (….) et la servitude ne leur est de goust pour tant bien qu'on l'accoustre" (LA BOETIE (1549) 1978, p. 134s).

A segunda razão decorre da primeira. Trata-se da mistificação: panem et circenses, os belos discursos sobre o bem coletivo, a ordem pública ou a ajuda aos pobres, as frases feitas e os símbolos religiosos ou laicos que não somente reforçam a obediência, mas também criam uma espécie de devoção pelo tirano. Mas, lá de novo, há um limite. Tais estratégias de submissão só funcionam sobre a parte mais ignorante e grosseira do povo.

E só a terceira razão que revela "le secret et le ressort de la domination, le soutien et le fondement de tout tyrannie" (LA BOETIE (1549) 1978, p. 212). É também aqui que o texto nos coloca diante de um enigma que nos convida a interrogar a tese relativamente pacífica de uma natureza humana corrompida pela educação e pela mistificação. Sabemos já desde o início do texto que a força não é o fundamento do poder do tirano, que o tirano "n'a de puissance que celle qu'on lui donne, qui n'a de pouvoir de leur (homens, cidades e nações) nuire, qu'autant qu'ils veulent bien l'endurer, et qui ne pourrait leur faire aucun mal, s'ils n'aimaient mieux tout souffrir de lui, que de le contredire" (LA BOÉTIE (1549) 1978, p. 174s). Não é a covardia dos dominados que alimenta o poder do tirano, mas outro vício "pour lequel toute expression manque, que la nature désavoue et la langue refuse de nommer" (LA BOÉTIE (1549) 1978, p. 177). Tal vício pode se denominar interesse: se obedecemos ao tirano e o apoiamos é "pour avoir part au butin et être, sous le grand tyran, autant de petits tyranneaux". Essa corrente de tiranetes é o verdadeiro fundamento da tirania e os que estão por baixo, tudo bem pesado, vivem em melhores condições, pois só têm que obedecer, sem exercer sobre ninguém sua própria tirania. Todos os outros não se pertencem a si próprios, estão condenados a prestar atenção ao menor capricho dos que lhes são superiores, pois deles dependem, mas também ao menor sinal de desobediência dos que eles oprimem. Eles podem perder tudo de um momento para outro : "Est-ce là vivre heureusement ? Est-ce même vivre ? Est-il au monde rien de plus insupportable que cet état, je ne dis pas pour tout homme bien né, mais encore pour celui que n'a que le gros bon sens, ou même figure d'Homme?" (LA BOÉTIE (1549) 1978, p. 216).

A lição de La Boétie é a seguinte: é impossível ser amigo do tirano, a amizade sendo impossível onde reinam crueldade, deslealdade e injustiça: "Entre les méchants lorsqu'ils s'assemblent, c'est un complot et non une société. Ils ne s'entretiennent pas, mais s'entrecraignent. Ils ne sont pas amis, mais complices" (LA BOETIE (1549) 1978, p. 221).

O papel do interesse é certamente importante, pois é a cupidez que conduz cada tiranete a querer a maior parte possivel dos ganhos, senão a totalidade. Mas face à impossibilidade real de ser o único tirano diante da massa dos sujeitos querendo igualmente ser o único tirano, cada um é forçado a renunciar a uma parte pelo medo de perder tudo (perdendo, por exemplo, a vida). Um encadeamento se forma então e cada um aceita sofrer um mal para poder fazer mal a outros. Tal cadeia, que se organiza a partir do ideal do ego de todos, engendra o encademento dos tiranetes ao qual nem mesmo o Grande Tirano pode escapar, pois tal encadeamento assegura seu lugar. O interesse bem comprendido de cada um aparece assim como movimento do desejo que possui cada um (ou é possuido por ele) de ser o Tirano. Tudo se passa então como se o desejo natural de liberdade transportasse na sua sombra a representação segundo a qual eu sou livre se mais ninguém o é e se todos obedecem aos meus desejos. Tal ambivalência do desejo de liberdade que é, segundo La Boétie, a raiz da igualdade e da fraternidade, mas também do desejo de dominação, encontra-se também na ideia de Hobbes do estado de natureza, um estado de guerra de todos contra todos cuja solução seria o contrato social.

A ambivalência no coraçao do desejo de liberdade – sou livre se sou o mestre – se manifesta na experiência da democracia moderna, experiência de uma forma de sociedade emergindo no inicio do século XIX na Europa e na América. Se o Ancien Régime se caracterizava pela representação de um poder encarnado na pessoa do rei que é, ao mesmo tempo, sujeito à lei e acima dela – lugar pleno do poder onde a nação se reconhece como totalidade orgânica – a democracia vem transformar esse lugar do poder tradicional em lugar vazio, isto é um lugar em relação ao qual se faz a experiência da perda do fundamento. Quem dirá o que quer a vontade geral? Quem pode enunciar o discurso do povo soberano? O que não impede evidentemente ninguém, homem politico, intelectual ou simples cidadão, de querer pronunciar tal discurso.

A aventura da psicanálise, como experiência da perda do fundamento da unidade assegurada pelo ego, envia à reflexão política e ajuda a esclarecer seu campo. Ao mesmo tempo a psicanálise se deixa entender na dimensão política e, mais amplamente, cultural moderna. Os textos de Freud são testemunha. Lei, poder e saber estão à procura de fundamento e o lugar vazio do poder é um palco para o conflito e a competição numa sociedade dividida. Não é difícil dizer a mesma coisa da experiência analítica, experiência do sujeito cuja unidade se mostrou ilusória, como uma resposta neurótica. A inversão da aventura democrática, assim como a inversão da psicanálise, não aparece assim como um acidente externo, um golpe de estado, mas como uma possibilidade que lhes é constitutiva. Lefort formula tal tese claramente:

Là où la perte des fondements de l'ordre politique et de l'ordre du monde est sourdement éprouvée, là où l'institution du social fait émerger le sens d'une indétermination dernière, le désir de liberté porte la virtualité de son reversement en désir de servitude - renversement qui, soit n'altère pas les formes extérieures de la liberté, comme disait Tocqueville, soit fait surgir un despotisme d'un nouveau genre (LEFORT, 1982, p. 21).

 

4.

I can't get no satisfaction. (M. Jaeger & K. Richards. In: Out of our heads, 1965).

O que dizer, então, das associações analíticas? Por que não são elas democráticas em seu modo de funcionamento, apesar do parentesco íntimo entre a aventura da Psicanálise e a da democracia moderna? Um parentesco tão grande que a psicanálise só se desenvolveu verdadeiramente sob regimes democráticos. Ao contrario da literatura, por exemplo, ou dos artistas. Pode-se forçá-los ao silêncio, mas não se pode impor a ausência de criação. O que dizer do desejo de mestre que os analistas parecem capazes de decifrar no consultório, mas contra o qual não são imunizados quanto se associam ?

Se aceitarmos a lição de La Boétie, o desejo de mestre se lê em dois sentidos diferentes, opostos em aparência e, no entanto, unidos como duas faces da mesma moeda: primeiro, como desejo de ter um mestre, segundo, como desejo de ser um mestre. Para o psicanalista, tal desejo aparece com seu duplo sentido na experiência analítica: dois sujeitos que falam e escutam se defrontam com a perda de referência diante dos fragmentos de um discurso sem mestre. Em consequência, discurso enigmático, sem sujeito enunciador definido, ou então, enviando a uma multiplicidade de sujeitos diferentes e divergentes. A experiência analítica é a experiência da descoberta de que os alicerces não se encontram nem nos deuses nem no universo, mas numa dimensão em que dentro e fora se confundem, uma dimensão habitada por uma espécie de população de vozes discordantes.

Tal experiência contém nela algo de insustentável, o que constitui certamente uma das razões pelas quais os analistas se constituem em grupo e engendram associações analíticas. Como os porcos-espinho de Schopenhauer, eles se aquecem na proximidade, mas logo são incomodados pelos espinhos dos vizinhos e se afastam. Mas aí, tremem de frio. A associação funcionaria como uma espécie de exultório da angústia do goleiro diante do penalti, teste radical de seus poderes. Duas soluções parecem existir: submeter-se a um chefe, a um SSS – o caminho do grande número – ou se considerar a si mesmo como chefe. O fato é que a forma e a orientação que o Mestre dá ou impõe ao grupo – que as está pedindo – não são nunca satisfatórias. Pois o grupo não é nunca à sua imagem e semelhança. Daí as expulsões ou a reeducação burocrática. Para os discípulos, a submissão é sempre imperfeita, posto que ambivalente. Daí as rupturas brutais ou delicadas, lá onde a identificação fracassou. Nos dois casos, mestres e discípulos acabam vivendo num labirinto de amor e de ódio, de idealização ou de condenação, de paixão fusional ou de isolamento desdenhoso.

Talvez esteja aí o começo da interrogação sobre o funcionamento não democrático das instituições analíticas: sua criação parece ignorar o que as liga à aventura democrática e cultural modernas, ou melhor, ignorar o que num caso pode esclarecer o sentido do outro. Tal ignorância as condena a experimentar, sem o saber, a inversão da experiência de um desejo sem mestre em desejo de dominação total. Os psicanalistas reunidos não formam um grupo humano à parte, dotado de um « saber » que bastaria aplicar sem submetê- lo de novo à prova da multiplicidade. Pois no espaço que lhe é próprio, a psicanálise participa – e o melhor é sabê-lo – das ambiguidades e paradoxos de nossa modernidade.

A questão que se coloca, então, talvez seja aquela que dirige e ilumina os trabalhos de Pierre Clastres: como organizar uma sociedade de modo a impedir a emergência de um poder que a ultrapassa? Como criar uma sociedade analítica não somente sem Estado, mas sobretudo organizada nas modalidades concretas de seu funcionalmente contra o Estado?

 

 

Referências

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Endereço para correspondência:

Urias Arantes
e-mail: urias.arantes@gmail.com

Tramitação: Recebido em 09/04/2013
Aprovado em 29/05/2013

 

 

* Filósofo, psicanalista, membro da FEDEPSY (Fédération Européenne de Psychanalyse)
1 A. Phillips exprime num outro contexto, a mesma ideia: "É curioso que a fragmentação dos grupos analíticos seja considerada como um problema: o psicanalista, por definição, é alguém cuja orelha é atenta às vozes discordantes. Mas, o risco é que ele seja apenas condescendente" (PHILLIPS, 1997, p. 15)