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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.36 no.30 Rio de Jeneiro June 2014

 

ARTIGOS

 

Mutações da subjetividade contemporânea: performance e avaliação

 

Mutations of contemporary subjectivity: performance and evaluation

 

 

Maria Cristina Franco Ferraz*

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Conforme já salientado por Alain Ehrenberg, o culto à performance tornou-se imperativo nas sociedades liberais avançadas. A ele se articula uma intensificação de regimes contínuos e permanentes de avaliação, cada vez mais incorporados. Tal regime deve ser distinguido das pressões disciplinares e da normatividade moderna. Na esteira de filósofos europeus tais como José Gil e Barbara Cassin, este artigo investiga a lógica implicada no atual diagrama da avaliação, que introjeta e dissemina sentimentos de incompetência, frustração e inferioridade. No lugar de compreender criticamente o mundo em que se vive, sofrem-se as sequelas produzidas por novos e asfixiantes ditames, ligados ao funcionamento acelerado do capitalismo tardio.

Palavras-chave: Avaliação, performance, cultura contemporânea.


ABSTRACT

As stressed by Alain Ehrenberg, the cult of achievement and optimal performance has become an imperative of our liberal advanced societies. This cult is articulated with the intensification of permanent and continuous forms of evaluation which tend to become incorporated. This new regime should be distinguished from disciplinary pressures and modern normativity. Inspired by some European philosophers such as José Gil and Barbara Cassin, this article investigates the logics implied in the present diagram of evaluation, which introjects and disseminates sensations of incompetence, frustration and inferiority. Without this understanding, one tends to reflect and suffer the consequences of new and asfixiating imperatives, related to the accelerated functionning of late capitalism.

Keywords: Evaluation, performance, contemporary culture.


 

 

Autores contemporâneos têm atualmente enfatizado a disseminação de um novo diagrama que expressaria o funcionamento de relações de poder e saber contemporâneas. Trata-se do diagrama da avaliação. Inicialmente, cabe esclarecer que o conceito de diagrama, remetendo à filosofia de Gilles Deleuze (Deleuze, 1980), diz respeito a um modo de dar conta de práticas sociais a partir do mapeamento das lógicas de funcionamento que operam em vários e distintos campos. Em vez de se ater a indagações presas às malhas das relações de causa e efeito, no lugar de atribuir a uma instância específica (como, por exemplo, à internet) a causalidade do problema cernido, almeja-se pensar em paralelo certos efeitos visíveis, por vezes aparentemente triviais, em determinada formação histórica, buscando articulá-los entre si para desentranhar suas implicações em modelos de vida valorizados ou descartados.

Nesse sentido, explorar a avaliação como forma diagramática que exprime certas maneiras de organizar a vida, de projetar valores e sentidos, requer uma visada ampla. A partir dessa cartografia consegue-se, então, propor hipóteses acerca de como e com que efeitos se efetuam jogos de poder nas sociedades liberais avançadas de nossa época. Embora o uso do conceito de diagrama seja mais diretamente tributário da filosofia deleuzeana, o gesto que o convoca articula-se aos trabalhos de Nietzsche, Foucault e, mais recentemente, Jonathan Crary. Dito de modo sintético, trata-se de pensar ativando o método genealógico, que escapa tanto à crença em um sujeito agente "por trás" quanto ao hábito de buscar causalidades, considerando as práticas sociais, valores e sentidos simultaneamente como efeitos e como instrumentos em determinados contextos histórico-culturais. Adotando uma metodologia genealógica, trata-se de estabelecer certos paralelos entre campos e práticas sociais historicamente adjacentes a fim de problematizar, em síntese, o que vamos nos tornando (Deleuze, 1992).1

Esclarecida brevemente a metodologia, cabe dar um primeiro exemplo claro (e propositalmente trivial) da disseminação cultural do diagrama da avaliação. Existem atualmente diversos aplicativos que podem ser utilizados em vários suportes, sobretudo em dispositivos móveis de comunicação/informação tais como smartphones, iphones, tablets, capazes de contar, por exemplo, os passos dados a cada dia ou a performance em corridas, medindo e comparando (com o próprio usuário e com outras pessoas) ritmo, velocidade, distância, perdas calóricas. Nesse coaching digital, um dentre vários produtos disponíveis chama-se Podômetro Pro GPS+ e é divulgado como um personal trainer tecnológico. Existe também um Smartcoach ainda mais sofisticado, com diferentes funções.

Como na cultura somática saúde e bem-estar estão intimamente ligados à ideologia securitária, que se pauta pela prevenção de riscos, é demandada uma avaliação contínua de diferentes funções físicas e de taxas de elementos bioquímicos do corpo (F erraz, 2010; Freire Filho, 2010; Rose, 2007), tanto em consultas médicas como na vida privada. Os produtos tecnológicos citados exprimem, portanto, igualmente uma tendência cultural cada vez mais presente: a privatização do cuidado com a própria saúde, que acompanha há décadas o paulatino desmonte do antigo Estado de bem-estar social (no Brasil sequer realizado) e a expansão de onerosos planos de saúde privados. A contínua e ininterrupta preocupação com o fitness tanto físico quanto cerebral tornou-se um valor culturalmente disseminado, a que essas invenções tecnológicas vêm corresponder.

Os simples e inocentes aplicativos acima referidos se inserem, portanto, no diagrama que é objeto deste artigo. Quantos passos se anda por dia, quantas calorias se pode perder em tarefas diárias (mesmo ao varrer uma casa) passam a ser medidos e traduzidos em termos de perdas calóricas, tendo por objetivo tanto a prevenção de doenças futuras e a produção continuada de bem-estar, saúde e "autoestima" quanto a submissão ao imperativo da boa forma. Está em jogo, como expressou Benilton Bezerra Jr, uma espécie de saúde-espetáculo, uma saúde espetacularizada na superfície dos corpos (Bezerra Junior, 2002). Essa mensuração exige parâmetros comparativos que implicam, por sua vez, certos modelos de corpo e de vida. Ou seja: usar tais aplicativos equivale a ir literalmente incorporando essas lógicas, valores e sentidos, de modo em geral irrefletido. Assim se naturalizam sentidos e crenças, incorporados como verdades, que são requeridos e festejados. Como a cultura da performance otimizada já está instalada, surge um mercado propício para esses produtos, que passam a ser "demandados" por sujeitos em nada passivos, cada vez mais imersos na lógica de funcionamento da cultura somática.

Para avançar na discussão acerca da avaliação em sua atual condição diagramática e de suas implicações, cabe ampliar o espectro da pesquisa. Nesse sentido, a avaliação, ligada ao culto à performance (Ehrenberg, 2010) e a valores próprios ao modelo empresarial e ao empreendedorismo (Freire Filho, 2013), atravessando diversas práticas, também comparece de modo direto na gestão da vida acadêmica, nas práticas docentes e de pesquisa, cada vez mais recobertas por uma lógica produtivista e empresarial.

Retomemos certas reflexões desenvolvidas em um pequeno livro do escritor português José Gil, publicado em 2009, intitulado Em busca da identidade (o desnorte) (G il, 2009). Segundo o diagnóstico de Gil, inspirado na biopolítica foucaultiana e no conceito deleuzeano de controle, a figura emblemática do século XXI, especialmente nas sociedades liberais avançadas, vai-se delineando como a do "homem avaliado" (G il, p. 52), versão atualizada do "homem endividado" que, segundo Deleuze, ocuparia paulatinamente o lugar do "homem confinado" entre os muros disciplinares. Cabe uma explicitação sintética inicial dessas idéias de Deleuze.

Em breves e antecipatórios textos sobre a sociedade de controle escritos no início dos anos 90, Deleuze identificou, na esteira de Foucault, o esgotamento da disciplina e a emergência do que propos chamar de controle (Deleuze, 1992). Com relação à dívida, a diferença é clara. O filósofo se refere à sagacidade com que Kafka amalgamou formas jurídicas inquietantes em O processo. Destaca que, enquanto na disciplina se está sempre recomeçando - tendo-se entretanto a sensação de quitar suas dívidas entre um confinamento e o subsequente -, nas sociedades de controle não se termina nada. A formação, por exemplo, torna-se permanente, interminável. Já não se trata de seguir moldes, mas de modular-se continuamente, tal qual uma serpente ondulante.

Deleuze contrapõe a lógica operante nas sociedades disciplinares, que funcionam por uma quitação aparente de dívidas, em um processo serializado de confinamentos sucessivos, àquela presente nas sociedades de controle, aproximável da noção de uma moratória ilimitada, em variação contínua e infinita (Deleuze, 1992, p. 222). O diagrama da avaliação equivaleria a uma versão radicalizada desse perpétuo diferimento de dívidas provavelmente impagáveis.

Segundo José Gil, a avaliação não se aplica atualmente apenas ao sistema educativo, no qual se expressa de modo direto. Abarcando todo o campo social, funciona como "diagrama transversal a toda a sociedade" (Gil, 2009, p. 52). Como diagrama que rege o modo de funcionamento do social, a avaliação hierarquiza, seleciona, integra mas sobretudo exclui. Isto é, só integra para estabelecer nuançados "graus de exclusão" (Gil, 2009, p. 53), tendo por horizonte padrões inalcançáveis, infinitos. E isso em todas as esferas da vida.

Cabe mencionar ainda alguns exemplos desse modo de funcionamento e da axiomática que atravessa, hoje, o campo social. Estar idealmente mais do que bem (Bezerra Junior, 2010), exibir mais do que saúde, não se deixar envelhecer, se autossuperar sempre, nunca se acomodar ou "aposentar". A palavra de ordem da superação constante é aliás presente em modelos de vida caros ao empreendedorismo e em toda a literatura de auto-ajuda, mesmo religiosa. Aqui também se faz ouvir o conceito de "dividual", empregado por Deleuze para caracterizar as subjetividades produzidas por esse diagrama. Segundo Deleuze, vamos nos distanciando do "indivíduo" disciplinar, aquele que não se dividia, para nos assemelharmos a seres cindidos, em eterna competição com os outros e consigo mesmo (Deleuze, 1992, p. 222).

No campo da avaliação ligada à educação e ao saber, lembremos que, nos anos 60 do século passado, um famoso programa televisivo brasileiro de perguntas e respostas que mediam conhecimentos variados e enciclopédicos chamava-se O céu é o limite. Para o atual homem avaliado, não parece mais haver esse teto ou limite. Não há mais céu. Sempre se pode (e se deve) buscar ir além, estar inquietantemente motivado em uma corrida alucinada e sem tréguas. Eis nosso inferno particular. Em perene avaliação, o "dividual" passa a se medir por suas posições em escalas de performance constantemente reformuladas e atualizadas. Inevitavelmente, os expelidos dessa corrida tendem a se constituir como legiões.

Não por acaso, o diagrama da avaliação produz e internaliza sensações de inadequação, de incompetência, de inferioridade, fontes de grandes sofrimentos passíveis de serem integrados a proliferantes rubricas em sucessivos DSM's, como variados níveis de depressão ou como transtornos de ansiedade. A disseminação da lógica da avaliação faz com que os indivíduos, em vez de identificarem e discutirem esse mesmo jogo, o incorporem e naturalizem. Convencem-se assim de sua inaptidão ou de sua própria inferioridade, de sua falência e impoder, tanto face aos avaliadores (também eles mesmos) quanto ante à nebulosa imagem ideal. É o que afirma igualmente Jacques-Alain Miller, no livro Voulez-vous être évalué?, citado por José Gil: "a comparação é, com efeito, o núcleo da avaliação"; "a avaliação visa à autocondenação pelo sujeito" (apud Gil, 2009, p. 53).

Eis como procede o diagrama da avaliação: em primeiro lugar, captura forças livres, fixando-as hierarquicamente em relações de poder. Submete assim a singularidade do indivíduo a um crivo geral, "em que se comparam, se quantificam e se qualificam competências" (Gil, 2009, p. 53). Como esses padrões estabelecem graus máximos, virtualmente infinitos, de competência, induzem necessariamente sentimentos de impotência, insatisfação, angústia e inferioridade.

Embora tal diagrama atravesse todo o campo social, na educação e na vida acadêmica ele se manifesta de modo direto e evidente. Para se poder dimensionar o que está em jogo, é entretanto necessário atentar para as diferenças entre a avaliação de que se fala aqui e modos disciplinares de se avaliar, tradicionalmente presentes no sistema de educação. Pois não se trata do mesmo gesto de avaliar (provas, exames, bancas, conclusões de cursos, diplomações) nos moldes da educação moderna, normalizadora e disciplinar, em que se concluíam processos. Também nesse sentido, algo da empresa (sua "alma", diria Deleuze [ Deleuze, 1992, p. 224]) parece ter se sobreposto à tradição escolar. Em vez da velha opção dicotômica aprovação/reprovação, no culto da performance (Ehrenberg, 2010) otimizada produzem-se interminavelmente graus diferenciados e certamente mais sutis de reprovação ou exclusão. Assiste-se, portanto, a uma alteração do estatuto da própria norma.

Enquanto a norma moderna estabelecia uma lógica dual (na escola, por exemplo, "aprovação"/"reprovação"), o desnorte contemporâneo dispensa a normatividade, apresentando-se como um horizonte infinito e incomensurável de maximização de desempenhos e competências. Daí seu funcionamento como dispositivo de exclusões em variados graus, mesmo quando se apresenta como "avaliação de produção". Não havendo uma meta fixa e estável, sempre se estará aquém. Restam graus de perfectibilidade, de otimização, aperfeiçoamento, em uma escalada sinuosamente comparatista e mutante, estendendo a exclusão no mesmo passo em que se dissolve a fixação de horizontes finais, de pontos de chegada definitivos. A dívida se torna assim impagável e não há mais "vencimentos": eis de fato implantado um sistema de moratória ilimitada levada ao extremo.

A avaliação, que compara para hierarquizar e hieraquiza para introjetar a lógica de funcionamento empresarial, pode então dispensar a normatividade disciplinar. No modo serpenteante do controle, a norma perdeu seus contornos nítidos, volatilizou-se, dilatou-se e condensou-se na nuvem, inoculando nos corpos novos sofrimentos. Eis uma das faces daquilo que Paula Sibilia, em uníssono com Cristina Corea, chamou de "sofrer por superfluidez" (Sibilia, 2012, p. 204). Para esses sofrimentos e sensações são oferecidas novas rubricas psiquiátricas e produtos da cada vez mais lucrativa indústria farmacêutica.

Atualmente, novas formas de avaliar a "produtividade" de professores pesquisadores universitários procuram também dar conta da suposta qualidade dos trabalhos. Para isso, passam a ranquear a repercussão acadêmica, quantificando o número de citações de artigos e livros publicados. Tem-se utilizado, no Brasil, o programa Google Acadêmico. Eis a metodologia empregada por esse programa para aferir a "relevância" de um trabalho, segundo o próprio site:

Como na pesquisa da web com o Google, as referências mais úteis são exibidas no começo da página. A tecnologia de classificação do Google leva em conta o texto integral de cada artigo, o autor, a publicação em que o artigo saiu e a frequência com que foi citado em outras publicações acadêmicas.2

Cabe indagar: quem avalia o mais "útil"? E seria a "utilidade" mero resultado da quantidade? Ou ainda: "utilidade" seria critério acadêmico pregnante? Além disso, essa metodologia classificatória do Google teria ela mesma relevância para a pesquisa acadêmica?

Existe também um outro programa que quantifica pelo mesmo criterio o pretenso impacto de pesquisas e publicações, e que funciona como um veredito mais evidentemente kafkiano, como uma explícita sentença de morte acadêmica. Trata-se de um programa sugestivamente intitulado Publish or perish (Publique ou pereça). O impacto e a repercussão deixam de ser entendidos de modo sutil, silencioso, tal como se dá efetivamente no trabalho intelectual e docente, inserindo-se em uma lógica de quantificação análoga à do Facebook e outras redes sociais, mensurada por número de acessos ou cliques: quantos amigos, quantas curtidas, sou popular? A cultura norte-americana do Loser e do Winner nunca esteve mais globalizada e naturalizada. De fato, a dicção do Google parece ser o globish, difundido neologismo para global English.

O diagrama da avaliação tem se tornado objeto de debates na Europa. O número 37 da revista Cités teve por tema L'idéologie de l'évaluation: la grande imposture (A ideologia da avaliação: a grande impostura) (Zarka, 2009). Um artigo de Philippe Büttgen e Barbara Cassin (Büttgen; Cassin, 2009) desenvolve algumas idéias que contribuem para a compreensão da figura do homem avaliado. Como José Gil, os autores também frisam que a avaliação, que deve classificar, serve antes de mais nada para justificar desclassificações e desengajamentos do Estado. Salientam que o motor atual da avaliação é a performance, termo que parece operar magicamente, transformando por um passe de prestidigitação o "mais" em "melhor", a quantidade em qualidade, o cardinal em ordinal.

Esse poder mágico deriva, segundo os autores, de uma tensão interna presente no próprio termo performance, que designa ao mesmo tempo o mais objetivamente mensurável (como no caso de indicadores de performance de uma máquina, de uma economia) e o aspecto mais singular de um ato individual, aquilo que não se repete - performance de um cavalo, de um campeão. Em suma, o termo performance tinge-se com a objetividade do mensurável, ao mesmo tempo em que parece contemplar a singularidade dos desempenhos. É, portanto, uma palavra-chave para operar a transformação almejada: produzir a ilusão de se avaliar a qualidade, tomada tão-somente como uma propriedade emergente da quantidade (Büttgen; Cassin, 2009, p. 29).

Büttgen e Cassin sugerem que a "cultura de resultados", a lógica da "coopetição" (termo sinistro, amalgamando cooperação e competição), o modelo de avaliação calcado em performances marcam a convergência e a circulariedade entre novos instrumentos de medição acadêmica e o Google. Vale lembrar que esse programa utiliza o algoritmo PageRank para hierarquizar a ordem das respostas na página, valendo-se do modelo acadêmico da citação. Assim, como vimos, os mais clicados são classificados em primeiro lugar, estabelecendo-se o império da opinião, da doxa, que coloca na primeira colocação os sites mais citados... pelos sites mais citados. O sistema é circular, tautológico. E, como se sabe, o pensamento filosófico tradicionalmente deu-se por tarefa desacreditar a doxa, combater a confortável arrogância da opinião.

Google caracteriza esse sistema como "democracia cultural" (Büttgen; Cassin, 2009, p. 29). Büttgen e Cassin traduzem sagazmente essa "democracia" por dois termos globish em voga, mesmo em língua francesa: people e parochial. Nesse sistema, os pesquisadores são então classificados pelo número de publicações em revistas que, por seu turno, são cotadas por outras revistas, também elas ranqueadas. Ou seja: trata-se de labirintos kafkianos da burocracia e da opinião tautologicamente autocertificada.

Subjaz a essa crença no valor desse regime de avaliação permanente a angústia de se sentir perdedor (loser), de já se estar perdendo frente a competidores nacionais e internacionais. É o caso, por exemplo, da França, que amarga há décadas uma progressiva perda de seu antigo prestígio intelectual e acadêmico, o que cria um solo fértil para a plena instalação do diagrama. Mas, de um modo geral, é tal sentimento de perda possível ou iminente que alavanca e naturaliza a competitividade e a demanda por avaliações constantes, intermináveis.

Em síntese, o modelo de avaliação atualmente utilizado no mundo acadêmico atua como mola propulsora de uma certa "economia do conhecimento", uma knowledge-based society cuja história se confunde com a das flutuações e crises das bolsas de valores (Büttgen; Cassin, ibid., p. 35). Evidencia-se desse modo o valor preponderante: o mercado, suas leis e ritmos nervosos. Cabe mencionar de que modo essa axiomática se adequa a modos de vida, de consumo e produção on-line, non-stop, ressaltados por Jonarthan Crary em um livro recente.

Em 24/7 - Late capitalism and the ends of sleep (Crary, 2013), Jonathan Crary abre o livro relatando pesquisas militares americanas sobre pássaros migratórios capazes de cruzar longas distâncias e de passar muitos dias sem precisar dormir. O interesse dessas pesquisas é evidente, pois toda guerra sempre teve de lidar com problemas relativos à vigília e ao sono, com a desatenção sonolenta dos soldados. Se na Segunda Guerra Mundial se fez uso de drogas, sobretudo de anfetaminas para deixar os soldados grande parte do tempo despertos, esse recurso farmacêutico (como sabiam os gregos, pharmakon, droga, é sempre ambivalente: remédio e veneno) tinha o grave inconveniente de diminuir a eficácia, o bom desempenho das tarefas de vigilância e combate. O interesse militar atual pelas aves migratórias reside no fato de elas conseguirem ficar sem dormir por não terem necessidade de sono, sem perda da atenção ou da eficácia de sua performance. Por isso seus cérebros são estudados.

O que Crary salienta é que esse projeto de colonização de todo o tempo de vida encontrava um obstáculo intransponível, uma resistência natural: a necessidade de dormir. A aposta do autor é a de que esse tipo de pesquisa, inicialmente de interesse militar, deve estender-se cada vez mais às esferas da vida civil, da produção e do consumo. Já se expressa no presente, por exemplo, na convergência crescente entre informação e entetrenimento, de modo contínuo e intercambiável. Também no desenvolvimento de regimes ininterruptos de trabalho, possibilitados por tecnologias digitais de comunicação e acesso à informação 24 horas por dia. O canal a cabo GloboNews bem o expressa, com seu lema assustador (e tendencialmente patológico): "Nunca desliga". Os termos em inglês on-line e non-stop apontam para a extensão da ocupação do tempo de vida, diferindo e complexificando o regime humano do sono. Não é à toa que drogas tanto para dormir quanto para despertar e intensificar a atenção se expandem e são atualmente consumidas em grandes quantidades.

Mas não é só no sono, por ora ainda necessário aos seres humanos, que encontramos esferas de resistência ao regime non-stop. Face ao quadro brevemente aqui traçado, este artigo também é performativo, na medida em que aposta na potência da reflexão teórica para contribuir para uma compreensão polifônica do presente, afiando as armas da resistência. Resta ainda, para concluir, registrar outro contraponto ao diagrama da avaliação em meios acadêmicos: a alegria pouco ruidosa, a festa que acompanha as aventuras do pensamento, de modo por vezes tão solitário, nada espetacular, silencioso. Uma alegria em nada ranqueável.

A riqueza do pensar, pesquisar e ensinar diz respeito ao que passa pelos docentes, os deixa, segue além, e por vezes retorna, em um diálogo enriquecedor que festeja silenciosamente o tempo de vida e os acasos de nossa presença simultânea, contemporânea no mundo. Nesse sentido, a avaliação reverte seu sentido, voltando a se aproximar da filosofia de Nietzsche. Em parte significativa de sua obra, à crença em verdades supostamente desinteressadas Nietzsche contrapôs a avaliação das perspectivas que nelas se expressam. A genealogia, como gesto de estimar o valor dos valores, ou seja, a que modos de vida eles servem, pode ser relida e reativada contra o diagrama da avaliação, articulado a leis de mercado, à quantificação de acessos e à otimização infinita de desempenhos.

Retomando então Nietzsche, podemos observar de que modo algo do sentimento generoso, discreto e amoroso que atravessa o trabalho intelectual e docente se furta à avaliação da performance passível de ser efetuada por algoritmos de programas informáticos, surgindo muito bem expresso em um aforismo no qual ganha voz a rara alegria do pensador e do artista quando se observa envelhecer. Trata-se do aforismo 209 de Humano, demasiado humanoI, intitulado Alegria na velhice, que reproduzo a seguir, a título de conclusão:

O pensador ou artista que colocou seu melhor si-mesmo (Selbst) em suas obras, sente uma alegria quase maldosa ao ver seu corpo e seu espírito serem paulatinamente alquebrados e destruídos pelo tempo, como se, escondido em um canto, observasse um ladrão arrombando seu cofre, sabendo que ele está vazio e que todos os tesouros estão a salvo (NIETZSCHE, 2005, p. 130, tradução alterada por mim).

 

 

Referências

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Büttgen, Philippe; Cassin, Barbara. Jen ai 22 sur 30 au vert. Six thèses sur l'évaluation. In: Zarka, Yves Charles (Org.). Cités. L'idéologie de l'évaluation (la grande imposture). Paris: PUF, 2009. v. 37.         [ Links ]

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Zarka, Yves Charles (Org.). Cités. L'idéologie de l'évaluation (la grande imposture). Paris: PUF, 2009. v. 37.         [ Links ]

 

Artigo recebido em: 12/03/2014
Aprovado para publicação em: 09/05/2014

Endereço para correspondência
Maria Cristina Franco Ferraz
E-mail: mcfferraz@hotmail.com

 

 

*Filósofa, doutora em Filosofia pela Universidade de Paris 1/Sorbonne/Paris-França, profa. titular de Teoria da Comunicação da ECO/UFRJ (Rio de Janeiro-RJ-Brasil), aposentada como professora titular da UFF em 2011, com três estágios de pós-doutoramento em Berlim, autora de: Nietzsche, o bufão dos deuses (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; Ediouro/Sinergia: 2009 e Paris: L'Harmattan, 1998), Platão: as artimanhas do fingimento (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999; Ediouro/Sinergia, 2009 ; Lisboa: Nova Vega, 2010), Nove variações sobre temas nietzschianos (Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002) e Homo deletabilis - corpo, percepção e esquecimento: do século XIX ao XXI (Rio de Janeiro: Garamond, 2010).
1Cf., por exemplo, o site <http://runnersworld.abril.com.br/noticias/10-aplicativos-escolha-seu-personal-trainer-bolso-306543_p.shtml>. Acessado em 17/01/2014.
2Cf. <http://scholar.google.com.br/intl/pt-BR/scholar/about.html>, acessado em 03/01/2014.

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