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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.36 no.30 Rio de Jeneiro jun. 2014

 

ARTIGOS

 

Sobre os conceitos de verdadeiro self e falso self: reflexões a partir de um caso clínico

 

The concepts of true self and false self: reflections based on a case study

 

 

Gustavo Vieira da SilvaI*; Andrea de Alvarenga Lima**; Nadja Nara Barbosa PinheiroI***

IUniversidade Federal do Paraná - UFPR - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo parte de uma história clínica para apresentar algumas reflexões sobre os conceitos de verdadeiro self e falso self postulados por Donald Winnicott. Primeiramente, discutem-se as relações entre falhas ambientais no início do desenvolvimento emocional, a desordem psicossomática e o falso self. Na sequência, considera-se o lugar do verdadeiro self no decorrer dos atendimentos, vinculando-o à sensação de "sentir-se real". Por fim, levantam-se algumas questões sobre a instrumentalidade dos conceitos de verdadeiro self e falso self no caso exposto.

Palavras-chave: Verdadeiro self, falso self, psique-soma, Winnicott.


ABSTRACT

Based on a clinical history, this paper presents some reflections on Winnicott's concepts of true self and false self. First, the relations between environmental failures in early emotional development, psycho-somatic disorder and false self are discussed. Then, the place of true self throughout the treatment in its association to the sense of 'feeling real' is considered. At last, some questions are raised regarding the clinical value of the concepts of true self and false self.

Keywords: True self, false self, psyche-soma, Winnicott.


 

 

Introdução

Os conceitos de verdadeiro self e falso self estão entre as contribuições mais importantes de Donald Woods Winnicott para a clínica psicanalítica. Através da noção de verdadeiro self, o autor discutiu o lugar da criatividade, do gesto espontâneo e do "sentir-se real" em análise. O falso self, por sua vez, é um conceito utilizado por Winnicott para abordar a mediação entre o verdadeiro self e o ambiente no qual o sujeito se desenvolve (W innicott, 1960/1983).

Neste artigo, apresentamos uma articulação entre um caso clínico e o pensamento de Winnicott. Na medida em que abordamos algumas dimensões do caso clínico, introduzimos elementos teóricos sobre os cuidados maternos, o psique-soma e as suas relações, os conceitos de verdadeiro self e falso self. Por fim, apresentamos algumas reflexões sobre estes conceitos, a partir de questionamentos que o caso clínico suscitou.

O atendimento clínico abordado neste trabalho foi realizado em um serviço de psicologia de uma universidade, tendo duração aproximada de oito meses.

 

1. Caracterização da história clínica

"Me colaram no tempo, me puseram uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo, a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação [...]"1
Murilo Mendes

Clara2 tem 32 anos, é casada, mãe de três filhos pequenos e estudante universitária. Ela procura o atendimento clínico com a queixa de estar "fisicamente exausta e desanimada". Ela relata se sentir sem forças físicas para seguir com as suas tarefas domésticas e ter o rendimento que gostaria na faculdade.2

Nas primeiras sessões, Clara aborda alguns aspectos de sua história familiar, especialmente de sua infância. Inicialmente, a paciente fala de sua mãe, declarando que esta teve uma história de vida difícil e se tornou prostituta para garantir o sustento de seus filhos. No decorrer dos atendimentos, a paciente ressalta a falta que sentiu da mãe na infância, destacando que esta se afastava de casa por dias ou semanas, sem oferecer explicações para tanto. Além disso, a paciente traz, constantemente, o sentimento de que não se sentiu suficientemente cuidada pela mãe nos primeiros anos de sua vida.

Embora Clara tenha conhecido o seu pai, ela não manteve contato frequente com ele. A paciente conviveu desde a época de seu nascimento com um companheiro de sua mãe. Algumas vezes, a paciente se refere a este padrasto como um apoio importante. Contudo, Clara salienta, mais frequentemente, os episódios de violência emocional e física cometidos por seu padrasto, diante dos quais ela teve de se defender sozinha e recorrer a um serviço público de proteção à infância.

Clara tinha duas irmãs mais novas e, desde muito cedo, responsabilizou-se por algumas atividades domésticas e de cuidado de suas irmãs. No início da adolescência, Clara sofreu agressões físicas da mãe e decidiu "romper" com ela: saiu de casa, procurou trabalho, fez novos amigos e iniciou relacionamentos amorosos. Posteriormente, já durante a vida adulta, retomou o contato com a mãe, que aparece nos relatos atuais da paciente ainda como uma figura ausente, por não lhe dispensar cuidados. Contudo, paradoxalmente, Clara relata sentir-se "invadida" pela presença de sua mãe, com quem discute com frequência. Além disso, a paciente considera a mãe como uma pessoa demasiadamente sensual e reprova as suas formas de se relacionar com os homens.

Clara ressalta, desde o início dos atendimentos, a importância de fazer parte de uma igreja. Ela apresenta esta instituição como um elemento importante de organização e de manutenção de seu casamento e de sua família. Quando a paciente se aproximou deste grupo religioso, ela estava namorando. Os líderes desta igreja deram duas opções à Clara: casar ou romper o namoro. Diante deste impasse, ela optou por se casar. Ao falar sobre o seu marido, Clara destaca, inicialmente, a dedicação dele aos filhos do casal. Além disso, a paciente relata ter discussões frequentes devido aos ciúmes do marido, principalmente com relação ao seu primeiro namorado. Após algumas sessões, a paciente começa a falar sobre as dificuldades que tem em conviver e manter relações sexuais com o seu marido.

 

2. O início dos atendimentos: "lembranças escondidas em um baú"

As semanas iniciais de atendimento de Clara são marcadas por lembranças de sua infância. A paciente relata muitos episódios de sofrimento referentes a um período bastante precoce, sentidos como violência e falta de cuidados. Depois de algumas sessões, Clara afirma ter pensado em deixar os atendimentos. Ela declara que as sessões estavam trazendo à tona "lembranças escondidas em um baú" e tem receio de que estas memórias possam desorganizá-la demasiadamente. Assim, a paciente indica querer "fechar este baú" novamente.

Este momento das sessões é importante para que Clara possa passar a confiar no setting clínico. Para Winnicott (1954/2000) a confiabilidade no setting clínico é decorrente de uma consistência do analista: a frequência estável, em uma hora marcada, na qual o analista está vivo, presente e interessado pelo sofrimento do paciente. Segundo o autor, estes elementos que compõe o manejo analítico podem ser considerados como equivalentes a um manejo consistente dos pais às necessidades de seus bebês. Desta forma, consideramos que o setting clínico pôde servir como um continente para as memórias e afetos de Clara, permitindo que o seu "baú de lembranças" se mantivesse aberto.

 

3. A mãe de todos

A partir da construção gradual da confiança no setting clínico, Clara traz o seu sentimento de responsabilidade em relação à sua família de origem e ao seu casamento. E, à medida que esta confiança ganhava mais solidez, algumas pontuações acerca das associações da paciente eram realizadas, tecendo relações sobre a posição subjetiva que ela assumia em diferentes âmbitos de sua vida.

Em várias sessões, a paciente relata a sua preocupação quanto ao estilo de vida de sua mãe. Clara se preocupa com os namorados da mãe, acreditando que deve evitar que estes a explorem. Além disso, a paciente interpõe-se na relação da mãe com as suas irmãs, buscando ocupar, em relação a estas, um lugar de orientação e cuidado. Neste contexto, a paciente traz falas como "fui mãe das minhas irmãs", "sou mãe de minha própria mãe" e "desde muito cedo tive de me tornar mãe de mim mesma".

Além disso, Clara, progressivamente, se abre para abordar os sentimentos de seu matrimônio, declarando se sentir "o pilar que sustenta o casamento". Embora a paciente relate, através das sessões, as dificuldades de relacionamento com o seu marido, ela declara estar decidida em manter a união conjugal. Ela estabelece regras sobre as tarefas cotidianas da família e sobre a frequência de seu marido e filhos à igreja. Clara afirma que a manutenção destas regras é sentida como um peso e, ao mesmo tempo, uma necessidade. Além disso, no decorrer das sessões, a paciente percebe que estabelece várias normas para o marido, tratando-o de forma muito semelhante aos seus filhos.

Assim, embora Clara tente assumir o papel de "mãe" de toda a sua família - inclusive de si mesma - alguma coisa falha em termos afetivos e somáticos. Sem condições físicas para cumprir as tarefas acadêmicas e domésticas, a paciente buscava auxílio no atendimento clínico.

a) Os cuidados maternos e o psique-soma

A procura pelo atendimento clínico, em um momento de exaustão física e o relato da paciente sentir ter vivido uma infância marcada pela falta de cuidados, levou-nos a considerar a relação estabelecida por Winnicott entre a conquista de um psique-soma e os cuidados maternos3.

Para Winnicott (1988/1990), a unidade entre psique e soma não pode ser tomada como um dado natural no recém-nascido, pois a localização da psique no corpo é uma conquista que se realiza - ou não - durante o processo de amadurecimento da criança. Para este autor, a psique se localiza no corpo da criança a partir de suas experiências pessoais (impulsos, motricidade e excitações) e ambientais (cuidados oferecidos pela mãe ao seu corpo). Ambas as experiências possibilitam à criança uma elaboração imaginativa das funções corporais (p.ex. ingestão, excreção, excitação), no sentido das fronteiras da psique se estenderem às mesmas fronteiras do corpo. Este processo é chamado pelo autor de conquista de um psique-soma²1 ou integração psicossomática.4

Segundo Winnicott (1949/2000), o bebê, inicialmente, tem uma dependência absoluta dos cuidados maternos. Neste contexto, o ambiente deve se adaptar ativamente às necessidades da criança. Durante o início da vida do infante, as falhas podem ser sentidas como uma intrusão em sua "continuidade de ser". A condição de dependência absoluta do bebê torna-se progressivamente uma dependência relativa, na qual a mãe, gradualmente, insere falhas em sua relação com a criança. Desta forma, quando a mãe é "suficientemente boa", ela permite falhas ambientais, na medida em que a criança tem condições de lidar com as mesmas. Diante das falhas graduais de adaptação entre uma mãe "suficientemente boa" e o bebê, Winnicott afirma que é função da mente - distinta da psique - possibilitar à criança uma compreensão destas falhas. Contudo, para o autor, uma mãe que permite que falhas excessivas ocorram poderia levar - como uma das possibilidades - a uma primazia do funcionamento mental na criança.

A partir dos relatos e dos afetos comunicados por Clara em relação à sua infância mais precoce, podemos perceber a marca de uma falha demasiada do ambiente. Durante os atendimentos, a paciente ressalta que, desde cedo, tornara-se "mãe" de si mesma. Winnicott (1965/1994, p. 122) estabelece uma relação entre esta ideia e o excesso de funcionamento mental:

Se tomarmos agora o caso de um bebê cujo fracasso da mãe em adaptar-se é rápido demais, podemos descobrir que ele sobrevive por meio da mente. A mãe explora o poder que o bebê tem de refletir, de comparar e de entender. Se o bebê possuir um bom aparelho mental, este pensar transforma-se num substituto para o cuidado e adaptação maternas. O bebê "serve de mãe" para si mesmo através da compreensão, compreendendo demais.

Para este autor, o funcionamento mental poderia operar como um suporte, a partir do qual o bebê serve de mãe para si mesmo, nos casos de fracasso da função materna se adaptar às suas necessidades.

Conforme Winnicott (1949/2000), como consequência das falhas maternas demasiadas, a mente se ofereceria falsamente como um "lugar" onde a psique pode residir, impondo um afastamento entre psique e soma e o estabelecimento de uma organização a partir de uma "psique-mente". Neste contexto, o autor indica a possibilidade de uma "desordem" psicossomática.5 6

É importante notar que, segundo Winnicott (1964a/1994, p. 88), "a enfermidade psicossomática é o negativo de um positivo, com este último sendo a tendência no sentido da integração em vários de seus significados". Assim, a desordem psicossomática seria um tipo de defesa, fundada numa tendência à integração, impedindo que a ligação psique-soma se desfaça totalmente. Nestes casos, um sofrimento físico possibilitaria que o descompasso na relação entre psique e soma se expresse, indicando para o sujeito o risco da ruptura entre estes dois âmbitos. Desta forma, consideramos que a procura de Clara por um atendimento clínico diante de um estado de exaustão física contém um aspecto positivo: a busca de integração.

Para Winnicott (1960/1983), o funcionamento exacerbado da mente e a desordem psicossomática estão relacionados à organização de um falso self. Para compreender o lugar deste conceito no estudo do caso de Clara, apresentaremos algumas considerações sobre a distinção entre o verdadeiro e o falso self no pensamento de Winnicott.

b) O verdadeiro e o falso self

Segundo Winnicott (1960/1983), o verdadeiro self surge assim que há qualquer organização psíquica na pessoa. Logo, o conceito de verdadeiro self remeteria aos rudimentos - antes de haver uma separação entre interior e exterior - do que posteriormente constitui a realidade interna da criança.7

O verdadeiro self refere-se ao gesto espontâneo da criança, ou seja, o conjunto de expressões criativas do bebê desde o início da vida. Uma "mãe suficientemente boa" buscaria, em certa medida, se adaptar a estes "gestos" a partir de sua sensibilidade aos movimentos (físicos e afetivos) da criança (Winnicott, 1960/1983).

O falso self, por sua vez, aludiria a uma organização decorrente das ameaças ao verdadeiro self. Quando a função materna não é suficientemente boa, o gesto espontâneo do bebê não é continuado, sendo este submetido à necessidade de se adaptar ao ambiente (Winnicott, 1960/1983). O autor afirma: "No caso da mãe não se adaptar suficientemente bem ao bebê, o lactente é seduzido à submissão, e um falso self submisso reage às exigências do meio e o lactente parece aceitá-las" (Winnicott, 1960/1983, p. 134). Assim, diante de um ambiente que não é suficientemente bom, o falso self constitui uma defesa - e ao mesmo tempo uma proteção necessária - para a sobrevivência do verdadeiro self. Nestes casos, o falso self cuida e garante a existência do verdadeiro self.

Podemos compreender que o verdadeiro self inclui aspectos dos primórdios da organização subjetiva, enquanto o falso self é decorrente da relação do sujeito com a realidade compartilhada. Embora o ambiente possa acolher o gesto espontâneo e responder aos impulsos instintuais da criança, estes nunca serão efetivados em totalidade. Neste sentido, Winnicott (1960/1983, p. 137) afirma:

Há um aspecto submisso do self verdadeiro no viver normal, uma habilidade do lactente de se submeter e de não se expor. A habilidade de conciliação é uma conquista. O equivalente ao self verdadeiro no desenvolvimento normal é aquele que se pode desenvolver na criança no sentido das boas maneiras sociais, algo que é adaptável. Na normalidade essas boas maneiras sociais representam uma conciliação.

Assim, o autor apresenta a conquista da habilidade de conciliação entre o verdadeiro self e a realidade compartilhada como parte do processo de desenvolvimento subjetivo.

Compreendemos que, para Winnicott, os termos verdadeiro e falso não equivalem a "certo" e "errado", mas indicam a existência de dois modos diferentes de sentir o si-mesmo (self): (1) como verdadeiro, expressão do gesto espontâneo e dos impulsos instintuais mais primitivos; e (2) como falso, imposto para que o sujeito responda e se adapte à exterioridade. Assim, as vivências do sujeito podem ser sentidas como pertencentes ou não ao si-mesmo (self).

Segundo Winnicott (1960/1983), pode haver casos em que a organização do falso self se torna prevalente, apoiando-se na capacidade intelectual do bebê. Ele afirma:

Quando um falso self se torna organizado em um indivíduo que tem um grande potencial intelectual, há uma forte tendência para a mente se tornar o lugar do falso self, e neste caso se desenvolve uma dissociação entre a atividade intelectual e a existência psicossomática (Winnicott, 1960/1983, p. 132).

Assim, para o autor, a desordem psicossomática poderia se relacionar com um excesso de funcionamento mental e com a primazia do falso self sobre o verdadeiro self.

A partir do exposto sobre o psique-soma, o verdadeiro e o falso self, voltamo-nos agora a alguns desdobramentos da história clínica de Clara.

 

4. Um corpo sentido

"[...] Rio e choro,
estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém,
batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais [...]"
Murilo Mendes

Através dos atendimentos clínicos, Clara progressivamente fala mais sobre o seu corpo. Para tratar deste tema, abordamos aspectos que se relacionam ao erógeno, ao adoecimento e ao "sentir-se real". Esta é uma forma didática de apresentar aspectos inter-relacionados que a paciente revela no decorrer das sessões, ao dar espaço para um corpo que sente para além do controle do funcionamento intelectual(mente).

a) Um corpo erógeno

Durante os atendimentos, Clara declara que a sexualidade em seu casamento despertava várias angústias, medos e sensações desagradáveis. Em sua história, a paciente procurou se organizar de forma a controlar seus desejos sexuais. As suas primeiras experiências sexuais ocorreram, em suas próprias palavras, de uma forma "pensada". Casou-se com um rapaz também de forma "pensada", sob sugestão de seu grupo religioso. Porém, a relação sexual com o marido trazia sensações de invasão, violência e desrespeito.

A partir da noção winnicottiana de mente, podemos considerar que a sexualidade de Clara tentava se manter sob a égide de um controle intelectual. Nas falas da paciente, a mesma mãe que remetia à falta de cuidados ambientais, era a mãe habitada por uma sexualidade "fora de controle". Desta forma, a sexualidade da paciente deveria ser controlada - "pensada". É interessante perceber que o cuidado ao seu filho mais novo era a "saída" que ela, frequentemente, usava para não manter relações sexuais com o marido. Assim, Clara se distanciava duplamente do lugar de sua própria mãe.

No entanto, uma angústia nessa posição de evitação da sexualidade se mantinha para a paciente, pois ela não conseguia compreender porque o sexo com o marido lhe era tão desagradável. Consideramos que neste aspecto, a paciente também "adoece saudavelmente" (assim como no caso da "exaustão física"): diante do mal-estar frente ao sexo, busca falar sobre esta condição nos atendimentos. No transcorrer das sessões, algumas indagações sobre a vida sexual anterior ao casamento eram feitas a Clara, que começa a recordar de sua juventude e a falar sobre o prazer que sentira através do sexo. No setting clínico, ela encontra espaço para falar de uma sexualidade que nem está debaixo do controle de normas religiosas, nem precisa ser sentida como "descontrolada". Aos poucos, Clara começa a dar palavras ao desejo que outros homens lhe despertavam e a considerar uma possível separação de seu marido. A partir destes movimentos, consideramos que a paciente se aproxima de uma dimensão criativa da sexualidade, na qual ela não tem de ser nem totalmente igual, nem totalmente diferente de sua mãe.

b) Um corpo que adoece

Já tratamos anteriormente do sentimento de exaustão física de Clara, o que a leva a procurar o atendimento clínico. Além disso, a paciente aborda, no decorrer das sessões, episódios de dificuldades respiratórias em diferentes momentos de sua vida. Inicialmente, ela se refere a estes episódios ao falar de sua dificuldade em estar fisicamente próxima de sua mãe, porque esta teria "fedor de cigarro". Logo, a proximidade da mãe impõe o risco de uma crise respiratória.

Clara relata também ter sofrido fortes crises respiratórias antes de completar dois anos idade, tendo de ser internada algumas vezes neste período. Estes episódios, nos quais sua mãe a acompanhava ao hospital, são apresentados pela paciente como momentos de cuidado. Clara também destaca a necessidade de ser internada devido à sensação de "falta de ar" no período final da gestação de cada um de seus filhos. Nestas crises, a paciente não se mantinha na posição de "pilar que sustenta" a família, recebendo cuidados de familiares e da equipe hospitalar.

Acreditamos que a dificuldade em respirar pode ser compreendida na história de Clara como uma desordem psicossomática. Assim, estes episódios de adoecimento através de sua vida indicariam a fragilidade das relações entre psique e soma, em uma organização subjetiva marcada pelo excesso de funcionamento mental.8

É interessante notar que Clara indica a ocorrência de crises respiratórias em duas circunstâncias diferentes de sua vida, sobre as quais se pode estabelecer uma relação: as primeiras crises aconteceram em um momento precoce de sua organização subjetiva, enquanto novas crises se deram na iminência do nascimento de seus próprios filhos. Desta forma, levantamos como hipótese a possibilidade destas últimas crises serem a atualização - via corpo - de agonias primitivas vividas pela paciente no início de sua vida. Estas agonias (re)surgiriam diante do nascimento de seus filhos, evento que remeteria a paciente à sua condição de dependência no início da vida.9

Consideramos que os transtornos respiratórios no caso de Clara marcam a existência de um "corpo" para além do funcionamento intelectual e convocam cuidados ambientais, permitindo que novos arranjos subjetivos sejam possíveis.

c) Um corpo que se sente real

No decorrer dos atendimentos, Clara pode sentir e falar sobre um corpo que deseja e que sofre. E ao utilizar o setting clínico de forma criativa, sente-se progressivamente mais real e verdadeira.

No transcurso do tratamento, a paciente produz alguns movimentos importantes. Decide separar-se do marido e estabelecer novas relações amorosas. Este movimento parece aos seus amigos e parentes um descompasso, já que Clara perde a estabilidade do casamento, tem de voltar a trabalhar para se sustentar, corta relações com seus sogros e com alguns amigos da igreja. A paciente traz, para muitas sessões, relatos difíceis sobre a inserção profissional e a instabilidade financeira e emocional. No entanto, em meio a estas dificuldades, a paciente pode falar de algo muito importante que é conquistado: ela passa a se sentir "dona de seus próprios sentimentos" e "deixa de viver uma vida de mentira". Com relação ao "sentir-se real", Winnicott (1967/1999, p. 18) afirma:

Ser e se sentir real dizem respeito essencialmente à saúde, e só se garantirmos o ser é que poderemos partir para coisas mais objetivas. Sustento que isso não é apenas um julgamento de valor, mas que há um vínculo entre a saúde emocional individual e o sentimento de se sentir real.

Desta forma, relacionando o "sentir-se real" com a saúde emocional, consideramos que Clara pôde então, mais próxima de si mesma (self), enfrentar os desafios que as suas novas escolhas lhe impuseram.

 

5. Considerações finais

"[...] nem triste nem alegre,
chama com dois olhos andando,
sempre em transformação"
Murilo Mendes

O estudo da história clínica de Clara possibilita algumas reflexões e questionamentos. Primeiramente, a sua história clínica indica a importância do falso self na preservação do verdadeiro self diante de um ambiente inconsistente e violento durante a infância. Assim, destacamos a importância de não se considerar o falso self como algo que deva ser expurgado durante o atendimento clínico, pois este faz parte da organização do sujeito, mediando as relações do verdadeiro self com o mundo externo. Desta forma, o que o setting clínico pode oferecer é uma sustentação para que algo do verdadeiro self - protegido pelo falso self - possa se expressar.

Além disso, a história clínica levanta alguns problemas em relação às indicações de Winnicott acerca do manejo clínico em casos "falso self ". O autor enfatiza que nestes casos o falso self é "entregue" ao analista em uma condição de profunda regressão à dependência no contexto do setting clínico (Winnicott, 1955/2000). Este processo aconteceria depois de um longo período de tratamento, que forneceria os fundamentos para esta experiência de regressão (Winnicott, 1954/2000). Assim, embora as proposições teóricas de Winnicott nos apontem para a pertinência do conceito de falso self para compreender alguns aspectos da história clínica de Clara, o seu atendimento durou apenas alguns meses e não foi marcado pelo mesmo nível de regressão à dependência indicado nos exemplos apresentados pelo autor. Logo, deparamo-nos com a questão: o caso de Clara poderia nos ensinar algo sobre o manejo e a dinâmica entre o verdadeiro e o falso self para além das indicações de Winnicott?

Podemos compreender que algumas considerações de Winnicott sobre a regressão à dependência em análise e o manejo do falso self se relacionam aos casos mais extremos de organização de falso self. Conforme Winnicott (1960/1983), nestes casos, o falso self se implanta como real e os observadores o confundem como a pessoal real. No outro extremo, estariam os casos em que o falso self corresponde a uma atitude social, caracterizada por uma forma polida de se relacionar, mas que não oculta o verdadeiro self. Winnicott (1960/1983, p. 137) assinala a possibilidade de alguns casos clínicos se encontrarem entre estes dois extremos: "Se a descrição destes dois extremos e sua etiologia é aceita, não nos é difícil achar lugar em nosso trabalho clínico para a possibilidade de um alto ou de um baixo grau de falso self como defesa, desde o aspecto polido normal do self ao marcadamente clivado falso e submisso self [...]". Desta forma, levantamos como hipótese que o caso de Clara corresponderia a um grau mais ameno de afastamento entre o verdadeiro e o falso self. Assim, a sustentação possibilitada por um setting confiável permitiu que a paciente expressasse algo do verdadeiro self, ainda que o tenha feito em poucos meses de atendimento.

Esta condição clínica só pode ocorrer caso o verdadeiro self seja uma realidade viva a partir de algum nível de adaptação dispensado pelo ambiente à dependência absoluta do bebê. É interessante notar que Clara trouxe, no decorrer dos atendimentos, alguns relatos sobre a dedicação de sua avó em seus primeiros anos de vida. Através da figura da avó, a paciente aludiu para a possibilidade de parte de seu ambiente ter buscado se adaptar ao seu gesto espontâneo, ainda que em meio a uma situação familiar de grande precariedade. Estes elementos do caso de Clara parecem nos indicar que o seu potencial criativo se preservou em uma dinâmica em que o falso self ocultou e protegeu o verdadeiro self.

Outro aspecto importante no caso clínico é a relação entre o verdadeiro self, o falso self e a sexualidade. Embora a paciente tenha declarado no início dos atendimentos que estava determinada a manter o seu casamento, seguindo as orientações de seu grupo religioso e um propósito de organização familiar, o contato físico com seu marido era vivido como mal-estar. A sexualidade sob a égide de um falso self era sentida como desprazer. No decorrer das sessões, Clara começou a considerar outras possibilidades de relacionamento amoroso e a sexualidade passou a ser vivida como a potência de um gesto criativo e de busca de prazer. A história clínica de Clara abre um campo de reflexão: quais são as possíveis relações entre o verdadeiro self e a sexualidade?

Por fim, ressalta-se que aos olhos de muitos familiares e amigos de Clara, a sua vida, depois dos atendimentos, estava piorando muito. A partir do divórcio, a paciente teve de enfrentar muitos desafios afetivos, profissionais e financeiros. Neste sentido, Winnicott (1950-55/2000, p. 297-298) declara sobre o falso self e a sociedade:

O falso eu [self] pode estar convenientemente em sintonia com a sociedade, mas a falta de um eu [self ] verdadeiro acarreta uma instabilidade que se torna mais evidente quanto maior for o engano da sociedade em pensar que o falso eu [self ] é verdadeiro. A queixa do paciente é de um sentimento de inutilidade.10

Assim, embora anteriormente Clara estivesse em maior sintonia com os interesses de seus familiares e amigos, a paciente padecia de um de afastamento de si mesmo (verdadeiro self), perdendo contato com seus afetos e com a possibilidade de vivenciar sua condição psicossomática de forma integrada e viva. A partir da história de Clara, podemos ratificar a proposição de que o atendimento clínico, orientado pela psicanálise, não é um processo adaptativo, mas balizado pela possibilidade do sujeito resgatar a sua criatividade e de sentir-se real.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 21/11/2013
Aprovado para publicação em: 09/02/2014

Endereço para correspondência
Gustavo Vieira da Silva
E-mail: gustavovs.psicologia@gmail.com
Andrea de Alvarenga Lima
E-mail: alvarenga.lima@gmail.com
Nadja Nara Barbosa Pinheiro
E-mail: nadjanbp@ufpr.br

 

 

*Psicólogo, mestrando em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil), integrante do Laboratório de Psicanálise/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).
**Psicóloga, mestre em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).
***Profa. Programa de pós-graduação em Psicologia/UFPR (Curitiba-PR-Brasil), doutora em Psicologia Clínica/ PUC-RJ, coordenadora Laboratório de Psicanálise/UFPR (Curitiba-PR-Brasil).
1Neste artigo são destacados três excertos do poema "Mapa" de Murilo Mendes (2000). Esta obra alude, de forma artística, a alguns conflitos abordados no decorrer da história clínica apresentada. Ressalta-se que, para Winnicott (1964b/1999, p. 54), os poetas sempre se ocuparam da temática do verdadeiro e do falso self: "Vocês poderiam apontar qualquer poeta importante e mostrar que esse [o falso self ] é um tema predileto das pessoas que vivem intensamente seus sentimentos".
2O nome da paciente e algumas informações biográficas foram alterados a fim de garantir o sigilo.
3Ressalta-se que no pensamento de Winnicott os cuidados maternos durante o período de dependência do bebê são realizados por uma função materna, que pode ou não ser a genitora da criança. Logo, abre-se a possibilidade para outras pessoas (tanto do sexo feminino como do masculino) ocuparem a função materna em relação ao bebê.
4O termo original inglês é "psyche-soma" - conforme indica Abram (2000). Algumas traduções brasileiras apresentam o termo "psicossoma".
5Para Winnicott (1949 / 2000), a mente é uma função especial do psique-soma decorrente das falhas ambientais em suprir a dependência do bebê, não devendo ser considerada como uma entidade realmente localizada em algum lugar no corpo.
6Nas traduções brasileiras, o termo normalmente utilizado é "transtorno". Optamos por utilizar o termo "desordem" como uma tradução possível do termo original inglês "disorder".
7É importante assinalar que estamos utilizando como principal referência para o conceito de verdadeiro self as considerações do autor em Distorção do ego em termos de verdadeiro e falso self (W innicott, 1960/1983). De acordo com Rodman (2003), em diferentes trabalhos de Winnicott encontram-se nuances teóricas diferentes sobre a origem do verdadeiro self. Contudo, este é um tema que extrapola os objetivos de nosso artigo.
8Ao considerar as dificuldades respiratórias da paciente como uma "desordem psicossomática" não estamos desconsiderando a possibilidade de a medicina somática detectar uma origem e propor um tratamento para este adoecimento. Contudo, seguindo a lógica paradoxal do pensamento de Winnicott, consideramos a possibilidade destes adoecimentos não se reduzirem ao somático, ocupando um lugar na fronteira entre psique e soma.
9Uma discussão mais detalhada sobre a relação entre as agonias primitivas (ou angústias impensáveis) e os fenômenos psicossomáticos pode ser encontrada em Vieira da Silva e Pinheiro (2010).
10Embora o tradutor brasileiro tenha optado nesta obra pelo termo "eu", o vocábulo utilizado no original inglês é "self" (Winnicott, 1950-55/1975).

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