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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.36 no.30 Rio de Jeneiro jun. 2014

 

ARTIGOS

 

Implicações éticas perante a angústia e a urgência

 

Ethical implications in the presence of anguish and urgency

 

 

Renata Reis BarrosI*; Simone Zanon MoschenI, II, III**

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
IIAssociação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA - Brasil
IIIRede de Pesquisa Escritas da Experiência - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Partindo do campo da psicanálise, o artigo aborda a questão da ética perante a angústia e a relação desta com o desejo e a demanda de urgência que é gerada. Abre-se uma discussão acerca da possibilidade de nos valermos da angústia como motor da análise. E, ao abordar o tempo lógico de Lacan, vislumbramos ainda o analista como elemento capaz de promover, em transferência, o tempo de compreender que permitirá uma possível saída da angústia para a emergência do sujeito do desejo. Trata-se, então, de uma discussão, não apenas sobre o afeto angústia e a urgência, mas também sobre a ética e, consequentemente, a política de um fazer clínico que leva consigo o compromisso com o desejo.

Palavras-chave: Angústia, desejo, ética, urgência, psicanálise, tempo lógico.


ABSTRACT

As far as the field of psychoanalysis is concerned, the article deals with the issue of ethics in the presence of anguish and the relation between the latter and desire, and the demand for urgency that is generated. Therefore, a discussion about the possibility of counting on anguish as a driving force of analysis is started. And when dealing with Lacan’s logical timing, we conceive the analyst as a key figure capable of promoting, in transfer, the time for comprehending which might enable a possible way out of anguish for the emergency of the subject of desire. The discussion therefore is not only about the anguish passion and urgency, but also about ethics, and consequently, about politics of a clinical practice that carries in itself a commitment with desire.

Keywords: Anguish, desire, ethics, urgency, psychoanalysis, logical timing.


 

 

I. Introdução

Não é incomum que situações de angústia e demandas tidas como de urgência produzam nas equipes de saúde impasses éticos. Nesse artigo procuramos, partindo das teses freudianas e lacanianas sobre a angústia e sua relação com o sujeito do desejo, levantar elementos que nos sirvam de guia frente aos impasses que a clínica revela, quando estamos diante de situações de extrema angústia. O campo de proveniência de nossas questões é a experiência que tivemos, em diferentes instituições de atendimento clínico, em nosso país e na Argentina, onde as equipes, frequentemente, deparavam-se com uma demanda caracterizada como urgência. Demanda não sem efeitos nas equipes que, neste contexto, pareciam desafiadas a lançar um olhar crítico sob seu trabalho. Instigadas pela experiência, convidamos o leitor a nos acompanhar em um caminho por textos freudianos e lacanianos guiados, em nossa incursão, por uma interrogação sobre a ética e a política do fazer clínico com a angústia nos diferentes espaços de escuta e de acolhimento do sofrimento mental.

O que nos instiga são os sujeitos que não chegam com uma pergunta sobre si, mas que parecem apresentar-se orientados pela tentativa de sair rapidamente da angústia pela qual estão tomados. Logo constatamos que, frente à angústia, aquilo que não pode ser falado parece buscar com urgência outras vias para ser dito. A partir da ética da psicanálise proposta por Lacan, a de que o sujeito não deve ceder no desejo ao gozo (Lacan, 1964, p. 262), o que podemos dizer deste afeto chamado angústia e como podemos pensar o manejo da transferência que parece não ter tempo para se desdobrar?

 

II. Teses freudianas e lacanianas sobre a angústia

Muitas vezes, na transferência, pela urgência que a angústia leva consigo, equipes e profissionais apressam-se em oferecer alguma coisa que presumem ser capaz de preencher uma suposta falta, à qual se supõe a causa do mal-estar do sujeito. Melhor dizendo, muitas vezes parecem buscar algo que venha a conter o sofrimento do sujeito, alguma coisa que faça barricada ao seu apagamento subjetivo em situações, onde a sensação é a de que algo precisa ser feito ou oferecido imediatamente. No entanto, o que observamos na clínica é que muitas vezes as condutas que se oferecem a preencher uma falta, em vez de diminuir o sofrimento, parecem agenciar ainda mais angústia. A partir dessa constatação da experiência, de que não se trata de evitar ou restaurar a falta deixada por uma perda, a hipótese oferecida por Lacan (1962-63) seria a de que a angústia implica, justamente, uma dimensão de perda, mas não uma perda relativa à castração (separação radical entre o sujeito e seu objeto) e sim uma suspensão da castração imaginária - portanto, suspensão do sujeito enquanto desejante.1

Assim, conceber a angústia como efeito de uma ameaça é uma das primeiras proposições da psicanálise sobre o assunto. Em Inibição, Sintoma e Angústia (1925-26), Freud inverte sua tese, que anteriormente era de que o recalque geraria a angústia, para dizer que a angústia não é efeito e sim causa do recalque (defesa neurótica perante a castração). Neste escrito, Freud localiza a angústia diante da ameaça da perda do objeto. Freud fala em objetos edipianos (pai, mãe), objeto perdido e objeto indiferente da pulsão (objeto totalmente substituível da pulsão). No entanto, ao pensar a angústia, Freud atém-se ao objeto irremediavelmente perdido, para ele especificamente o da união com a figura materna, afirmando que o sujeito estaria em sua constante busca e o que lhe causaria mal-estar estaria ligado à falta criada por tal perda. Assim, o sujeito procuraria reencontrar-se com seu objeto primeiro, aquele com o qual, miticamente, experimentara um estado de plenitude e júbilo.2 3

Freud indicou que a angústia era ante algo, para ele, ante a perda. Era a possibilidade de que o objeto (representante daquele primeiro objeto perdido) viesse a faltar, o que causaria a angústia. Sem deixar de reconhecer que Freud já havia percebido a angústia como um afeto ligado a um objeto em especial, a teoria lacaniana estabelecerá outra concepção sobre a relação de objeto. Essa nova concepção surgirá como resposta a um impasse na teoria freudiana no que diz respeito à angústia de castração. Impasse que Moustapha Safouan descreve nas seguintes palavras:4

Podemos dizer, por um lado, que, segundo Freud, a angústia de castração é exatamente a de uma nova separação da mãe, cujo desejo permanece no horizonte da libido genital. Mas, por um outro lado, na medida em que a união com a mãe constitui seu desejo essencial, o sujeito nada teme tanto quanto uma ameaça que comporte a liquidação de toda a possibilidade dessa união à qual o desejo está suspenso. Daí podemos concluir que o perigo em questão no fundo da angústia é contraditoriamente duplo: perigo da separação, mas também perigo de uma união que tornaria a separação certa. O desejo assume então uma forma ambígua: a de uma ligação feita pela própria separação, ou de uma separação feita pela ligação (Safouan, 2006, p. 178).

Considerando esse impasse, Lacan desloca a questão da angústia antes tida como ligada à separação do objeto para a questão da inscrição simbólica e imagem da falta para o sujeito. Não obstante, Lacan concorda que a angústia se dá ante algo, revelando sua possível função de sinal, o que significa que ela não representa a si mesma (Harari, 1997, p. 16). Há, portanto, um ponto de tensão entre as concepções lacaniana e freudiana sobre o que poderia desencadear a angústia e qual a relação do sujeito com a falta deixada pela queda do objeto.

A partir da teoria freudiana, Lacan extraiu outra tese a respeito da angústia, a de seu caráter de exceção entre os demais afetos. Freud havia elaborado a ideia de que os afetos se desviam, se deslocam ao longo da cadeia discursiva, ou, para usar um termo mais freudiano, no trâmite pelo campo das representações. Desse modo, ódio e amor podem perfeitamente confundir-se ou transformar-se em outro afeto qualquer. No entanto, Freud (1925-26) já havia destacado que a angústia não possuía a propriedade de deslocamento5

Com Lacan, vemos ainda mais claramente a estrutura de exceção da angústia, uma vez que a mesma surge amarrada a um objeto não substituível, o objeto a. Não se trata do objeto mãe, pai, objetos cambiáveis, mas sim do objeto elaborado por Lacan como aquele inapreensível e em última instância insubstituível, o objeto em sua vertente real. Ao estar amarrada a este objeto especial, a angústia não é capaz de deslocar-se, desviar-se, deslizar na cadeia simbólica dos significantes (Soler, 2012, p. 23). Isso porque, enquanto o significante faz parte da dimensão simbólica, como aquilo cujo valor se determina e transforma pela posição na estrutura, este objeto pertence à dimensão do real, daquilo que não se apreende enquanto imagem e para o qual não há palavras. Assim, a angústia seria um fenômeno que se dá perante algo do irrepresentável. Por este viés é possível compreender a ruptura da narrativa do sujeito tomado pela angústia como uma marca do irrepresentável.

Somando o fato de a angústia ser um sinal ao de não ser sem objeto, já que está amarrado a ele, Lacan afirma que a angústia é da ordem da certeza (Lacan, 1962-63, p. 88). O angustiado está certo do que sente. Ao contrário dos demais afetos como o amor, o medo, o ódio, entre outros, que, por serem da ordem dos significantes, são capazes de se prestarem ao engano, a angústia é sentida com convicção. Para trazer algo da experiência clínica: é assim que o paciente O. não consegue dar um nome à sensação de que irá enlouquecer e, com seu corpo trêmulo, mostra-se certo do que sente. Tudo isso nos leva a um ponto cuja consideração por aqueles que se propõem a praticar a escuta revela-se essencial: Lacan dirá que diante da certeza da angústia a posição do sujeito se revela, o que permite que o analista se sirva dela como motor de um labor analítico, por ser aquilo que aponta a relação do sujeito com o objeto que lhe causa. Quando o sujeito encontra-se em angústia, revela desde onde fala, revela algo muito particular de sua verdade e de sua relação com o objeto.

Para Freud, a angústia era um sinal de perigo localizado e promovido no eu (Freud, 1925-26, p. 2864), mais tarde chamado por Lacan (1949) de eu [moi ]. Mas, como dito anteriormente, o perigo ao qual Freud se refere é o da angústia de castração (Safouan, 2006, p. 177): a angústia pela reatualização da primeira perda, a de uma nova separação que remete ao objeto "mãe". Por sua vez, Lacan argumenta que não seria a angústia de castração o verdadeiro impasse do neurótico. Ele dirá que a angústia é um sinal não frente a uma falta, mas sim diante de um excesso de algo que deveria permanecer oculto.6

Na origem do mal-estar da angústia, ao invés da ameaça de perda do objeto, Lacan retoma o que Freud chamou de sinistro, Unheimlich, como o que estaria particularmente ligado ao sentimento inquietante da angústia (Freud, 1919). O Unheimlich seria o mais íntimo e ao mesmo tempo o mais estranho ao sujeito. Ele presentificaria aquilo do sujeito que, devendo permanecer oculto, insiste em retornar. Ao retornar, o sinistro é sentido como ameaça frente a qual a angústia aparece como fenômeno de alerta, defesa para o sujeito. Daí podemos extrair outra tese freudiana, a de que a angústia é uma defesa.

Isto posto, a hipótese de Lacan é de que a angústia não seria decorrente da falta, e sim da presença, do reencontro com o sinistro em nós mesmos. De fato, pensar a causa da angústia como algo de um excesso e não de uma ausência ou falta não parece questão de pouca importância e, portanto, deveria ser levada em conta no modo em que nos posicionamos na transferência, seja ela no atendimento individual, seja nas equipes em que os sujeitos são recebidos para tratar de seu mal-estar.

A questão da falta ligada ao desejo é intensamente trabalhada no seminário A Angústia (Lacan, 1962-63). Esse seminário marca um momento crucial para a formalização da teoria de Lacan. Caracteriza-se por um verdadeiro retorno a Freud e, mais que isso, por uma tentativa de avançar para além de onde este precisou deter-se. Trata-se de um seminário em que Lacan não só redireciona a abordagem freudiana da questão da angústia - a angústia de castração como impasse intransponível da análise -, mas também dá outro entendimento em relação ao objeto e à falta como fundantes do sujeito e organizadores da estrutura. Nesse seminário, Lacan também passará a formalizar mais claramente o objeto a e suas modalidades.

EmA angústia, Lacan aponta a relação direta desse afeto com o objeto a. Em suas observações, Lacan concluiu que a angústia se dá na presença de algo da verdade do sujeito, como dito anteriormente: parte da verdade que deveria permanecer oculta, mas que aponta a causa do desejo auxiliando, portanto, na direção da cura. Assim, podemos nos defrontar com duas faces da angústia: horror e motor da análise. Duas faces que formam uma linha tênue na qual profissional e paciente caminham e da qual podem se servir na direção do tratamento. Para os que não trabalham com a psicanálise, ainda assim esta é uma indicação de que a angústia merece atenção e deveria ser acolhida como parte importante e até mesmo especial do sofrimento mental, pois ali algo do mais íntimo do sujeito revela-se.

 

III. Angústia e tempo7

Pensar a relação entre tempo e angústia pode nos auxiliar a compreender a demanda de urgência que costuma acompanhar o sujeito tomado por esse afeto. Por um lado, vimos que o sujeito em angústia - fenômeno ligado ao real, ou seja, ao que é irrepresentável - encontra-se suspenso em sua enunciação devido ao desvelamento do desejo que deveria permanecer oculto. Por outro lado, pensando uma saída possível da angústia, a operação do tempo lógico (Lacan, 1945) proposto por Lacan permite a emergência do sujeito da enunciação através da via simbólica. Lacan parte da premissa de que da mesma forma que, por não haver acesso direto ao real, a realidade psíquica somente pode ser reconstruída por intuições metafóricas, também a verdade somente pode progredir através de uma estrutura de ficção - que é a essência da linguagem. Segundo Lacan, A verdade implica já o discurso. Isto não quer dizer que possa ser dita. [...] isto só pode dizer-se às meias (se mi-dire). Mas enfim, para que exista o gozo, é necessário que se possa falar dele mediante algo que é outra coisa e que se chama o dizer.8

E sendo assim, a lógica apresentada por meio do sofisma do tempo lógico permite a Lacan desenhar, escrever, a inscrição da falta que diz respeito à castração e à verdade. O tempo lógico apresenta-se como uma invenção de Lacan que recoloca em pauta a teoria do sujeito incluindo a temporalidade. O tempo lógico ajudou Lacan a escrever o real, esse impossível que apenas podemos inscrever em nossas representações, pensar, enquanto falta à imagem e que caracteriza o objeto causa de nosso desejo, o objeto a. Por meio do tempo lógico podemos compreender de que forma Lacan articula tempo (enquanto acontecimento lógico) e espaço (composto pelo diferentes lugares na estrutura) numa operação capaz de fazer emergir o sujeito enquanto desejante. E, se o tempo lógico inclui a questão da temporalidade como constituinte do sujeito, o que ocorre em termos da relação temporal com sujeito suspenso em angústia?

A possibilidade de fazer voltar a operar a representação da falta seria uma saída para a angústia que converge com a ética da psicanálise proposta por Lacan, pois ao final do percurso do tempo lógico, o desejo está novamente operando enquanto enigma para o sujeito. Basicamente, o tempo lógico tem relação com o advento do saber e define-se por uma estrutura de ficção onde a operação de duas escansões suspensivas com valor significante determinam três modulações de tempo: instante de ver, tempo para compreender e momento de concluir. Ao final do tempo lógico, quer dizer, no momento de concluir, sabe-se da falta, sabe-se da divisão do sujeito através da passagem pela experiência (Costa, 2001, p. 53). A importância do advento do saber se dá pelo fato de que o saber em relação à falta, à castração, é o que permite ao sujeito seguir desejando.

No instante de ver, vê-se a falta sem que essa já tenha passado à palavra, pois ainda não passou pela experiência (que implica operação simbólica). O tempo de compreender é quando a identificação ao outro - que pode ser a pessoa do analista - permite a dialética que aponta um lugar terceiro, o da falta. Nas palavras de Ana Costa: "entrada em causa do lugar do eu e das identificações, onde o sujeito se perde na complementariedade do espelho, na dialética eu/outro" (Costa, 2001, p. 53). Nesse momento, há um enigma: não posso ver o que o outro vê em mim e nessa falta em ver é que se impõe entre o sujeito e o outro um lugar terceiro, o lugar onde suponho a verdade sobre mim na forma de enigma. Já o momento de concluir é quando acontece a antecipação de uma certeza: "sabe-se" da divisão do sujeito, mas agora já tendo passado pela experiência. Ou seja, a experiência que permite a emergência do sujeito da enunciação depende de que antes se tenha passado pela identificação ocorrida no tempo de compreender, onde também ocorre o reconhecimento de um lugar terceiro, lugar do Outro.9

Então, a partir das proposições sobre o tempo lógico, podemos pensar o que acontece na angústia, onde o sujeito se vê suspenso frente à possibilidade de faltar a falta devido ao desvelamento do real por fora do plano simbólico. De início, podemos dizer que a angústia evidencia a pressa por uma conclusão, mas que é distinta da antecipação sob a urgência do movimento lógico, em que se precipita a conclusão do tempo de compreender, como nos enuncia Lacan (1945). Tomemos como referência sua frase: "o momento de concluir é o momento de concluir o tempo para compreender" (Lacan, 1945, p. 201), para pensar que a precipitação da conclusão é o que retroativamente circunscreve uma duração ao tempo de compreender. Na angústia, parece ser justamente este tempo que está suspenso; o sujeito fica congelado em um tempo contínuo, curto-circuito entre o instante de ver e o momento de concluir. Por isso, poderíamos dizer que a pressa por uma conclusão na angústia não é um juízo produto da dialética dos três tempos, mas sim um erro lógico (Meli; Menín, 2005). Erro lógico que determina uma relação entre a exclusão do tempo para compreender e a convocação ao ato, sem a significação que permita uma posição de sujeito como sujeito da enunciação.

Logo, haveria uma hipótese a ser investigada: a urgência, do lado de quem escuta, engendrada pela incidência da angústia, estaria também associada à precipitação, do lado de quem fala - ou não consegue falar -, do próprio momento de concluir, sem que haja o tempo necessário para compreender. É como se no curto-circuito entre instante de ver e momento de concluir provocado pela angústia a experiência de duração que dá densidade à significação dos acontecimentos corresse o risco de ser eliminada. Na angústia, é por estar capturado por um instante de ver a ausência da falta do Outro que o sujeito se põe em uma pressa por um ato que conclua esse instante. Essa pressa por concluir, sem a experiência da duração, parece traduzir-se no apagamento das bordas do sujeito, quando o que está em jogo é a precipitação do real. E assim, no lugar da emergência do sujeito irrompe a urgência ligada à angústia.

 

IV. Um giro ético

Por conseguinte, ainda que pareça subversivo, concentramo-nos na tentativa de dar contorno à nossa pergunta sobre de que maneira a angústia, na transferência, pode ser o que salva ou, em outras palavras, o que permite o encontro com algo do desejo. Partindo da experiência e da teoria psicanalítica, damos então um "giro ético" na direção de nossa escuta: do simples acatamento da demanda de urgência - que surge com a angústia - ao estado de advertência de que ali estamos diante do desvelamento de algo da verdade do sujeito, o que significa que precisamos nos alongar um pouco mais na escuta antes de nos precipitarmos a concluir.

Uma das consequências desse giro ético é que, para o analista, já não se trata somente do afeto e do perigo que ele parece enunciar, mas também de algo da temporalidade que sai do seu curso e de um chamado a uma tomada de posição ética por parte de quem empresta sua escuta na transferência. Baseadas na teoria e na clínica, nossa hipótese é de que, diante da angústia, o tempo necessário para compreender e fazer emergir o sujeito da enunciação parece estar suprimido, convocando a que se conclua "rápido demais", sem que se tenha passado pelas identificações que a posteriori permitem emergir o sujeito do desejo. Logo, a questão que se apresenta é a de quais os caminhos que permitem ao sujeito suspenso em sua enunciação dar contorno à angústia pela palavra. Ou seja: como a angústia, o tempo e a transferência poderiam jogar a favor da análise?10

A reflexão em torno da relação entre a angústia, o tempo e a transferência parece mostrar sua pertinência tanto no âmbito da prática psicanalítica, naquilo que acontece entre analista e analisando durante o percurso da análise, quanto naquilo que se estabelece entre paciente, serviços e instituições de assistência e saúde, além da rede de apoio em sua concepção mais ampla. Ademais, percebemos que, por se tratar de algo que acontece na relação do sujeito com o Outro e o objeto, a articulação destes três termos (angústia, tempo e transferência) também toca algo do que acontece no próprio laço social. Laço onde os indivíduos, muitas vezes, são tomados como números, compondo estatísticas sobre a grande quantidade de pessoas que hoje sofrem de quadros fortemente marcados pela angústia, tais como a síndrome do pânico, entre outros diagnósticos nosográficos. Laço onde também encontramos muitos serviços e equipes em situação de intenso sofrimento e angústia diante da grande demanda que se impõe acompanhada de uma convocação de urgência. Diante desse contexto, a angústia e a demanda de urgência parecem ter muito a nos comunicar sobre o mal-estar que presenciamos na atualidade, tempo em que o desejo frequentemente se encontra apagado diante da pretensão de um saber total - lembrando que o que sustenta o desejo é o enigma do desejo do Outro, ou seja, o que o Outro quer de mim? Trata-se, portanto, de pensar qual a ética que nos guia em nosso fazer diante do sofrimento mental, ou ainda, desde onde nos posicionamos perante a angústia e a urgência a que ela nos convoca.11

Encontramos no tempo lógico de Lacan (1945) pistas para pensar de que forma o analista pode entrar na transferência como elemento capaz de permitir a tramitação da angústia de forma a abrir espaço para o advento do sujeito do desejo. Nossa incursão pelo texto lacaniano foi guiada pela indagação da urgência como efeito da pressa ligada ao real. Então, neste desdobramento, encontramos uma diferença entre o tempo do sujeito suspenso em urgência - quase que literalmente sem tempo, sem tempo para compreender - e o tempo da emergência do sujeito. Esse deslocamento permite entender a urgência como uma demanda que, em vez de ser satisfeita, deve ser escutada, buscando colocar em questão o tempo lógico que permite advir o desejo. Em outras palavras, fazer o indivíduo passar de uma urgência da angústia, que convoca à especularidade (onde não há lugar terceiro), à emergência do sujeito do desejo, através do percurso do tempo lógico e distensão do tempo de compreender em transferência (contexto em que a falta também pode encontrar lugar).

Em um exercício de entretecer a teoria com a clínica, trazemos um recorte clínico de uma cena para pensar a angústia e o tempo no contexto transferencial. Passada uma sessão em que sua analista estava doente, J. chegou à análise exclamando, de uma forma que mostrava a então relação especular, entre dois, posta em transferência: "hoje sou eu quem não está bem". Afirmou estar com hipertensão aguda e vertigens que começaram quando saíra da última sessão. Ao ser perguntada se buscara atenção médica, contestou dizendo que antes desejava falar com a analista. Essa, por sua vez, escutou J. chorar e descrever tudo o que sentia no corpo. A analista percebeu que as palavras pareciam cair no vazio. Algo havia ocorrido na última sessão que deu lugar à angústia. Ante tal estado de angústia e choro, a intervenção da analista estabeleceu-se na direção de operar como sustento para uma abertura do tempo de compreender através de sua presença e acolhida a J. - melhor dizendo, escutando que ali havia um chamado ao Outro, a algo de simbólico que lhe permitisse significar sua dor. A intervenção veio no sentido de buscar restabelecer um lugar de semblante. Tão somente a analista sancionou aquela demanda de acolhimento. Essa abertura do tempo, sem a urgência por concluir, permitiu, aos poucos, que J. recuperasse a palavra e pudesse, então, reformular sua demanda.

Neste recorte, em dois momentos, retomamos distintas posições que, como analistas, ocupamos na transferência, posições provocadoras de diferentes efeitos para o sujeito. Num primeiro momento, nos situamos na transferência como elemento capaz de gerar angústia ao não considerarmos que nossa enfermidade desvela ali algo do real para aquela paciente. Somando-se a isso, ao não escutar a angústia como um sinal de que algo da verdade do sujeito se fazia presente, parece configurar-se uma cena em que essa verdade retorna em forma de mostração. Nesse tempo, a relação transferencial está marcada pela exclusão imaginária da falta, no sentido de não dar lugar à representação da divisão do sujeito. Assim, a doença da analista aparece como parte do real sem representação possível. Nesse caso, quando a transferência é marcada pela relação dual, especular, perder a analista equivale perder a imagem de si própria, pois na transferência imaginária é como se não houvesse saber para além da analista. Daí nossa hipótese sobre esse recorte clínico. Já, num segundo momento, quando enfim pudemos recuperar nosso lugar de analista, colocando-nos em posição de semblante de objeto a, é que se pode abrir espaço para algo a mais a ser escutado na mostração da paciente, algo que testemunhava a verdade e que precisava passar à palavra. Melhor dizendo, foi quando se deu lugar a falta em saber é que a falta voltou a operar na transferência permitindo a emergência do sujeito do inconsciente. Neste momento, podemos dizer que a nossa posição na transferência fez entrar em jogo um terceiro elemento, cortando com a relação dual e compondo um tempo para compreender. Quando isso acontece, há um saber sobre si para além do sujeito e da analista. Passou-se de um momento de urgência ligada à angústia para a emergência de um sujeito capaz de ensaiar uma pergunta sobre si. Ademais, notamos que a falta em saber da analista e a resistência gerada na transferência revelam a irredutibilidade da falta, ou para dizer mais diretamente, da castração. Não se trata, portanto de idealizar a posição do analista já que, por vezes, é justamente seu vacilo o que vem a dar lugar a falta frequentemente escamoteada.

 

V. A ética perante a angústia e a urgência

A retomada do tempo lógico no contexto da transferência, onde pululam as identificações, permite concluir pela importância da posição do analista como sustentação para o tempo de compreender bem como esta modalidade de tempo está diretamente ligada à ética da psicanálise. O analista, quando em lugar de semblante de objeto a - disso que escapa deixando em seu lugar a falta -, seria capaz de possibilitar a tramitação pelo tempo que permite ao sujeito uma afirmação sobre si. Afirmação que traz consigo o Um a mais - sujeito do inconsciente, ou do desejo - que servirá, então, de testemunha da verdade por meio da palavra; uma palavra que diz a verdade ao mesmo tempo em que finge para escondê-la. É então que se destaca o papel fundamental do analista em sustentar o lugar da falta, em vez de escamoteá-la. E, por esse viés, aquilo que se observa na clínica pode ser levado ao plano político enquanto campo da prática e das tensões que envolvem a relação impossível entre os diferentes sujeitos. Insistindo em apontar o lugar da falta em seu caráter de potência, o psicanalista pode aparecer como aquele que resiste aos discursos que tendem à totalidade, sem dar espaço ao desejo revelado pela divisão do sujeito.12

E então passamos a questionar acerca de como pensamos no cotidiano os efeitos da angústia. O que é uma urgência? E ainda, qual a urgência está em questão, a do relógio ou a psíquica? Quando podemos nos servir da angústia como motor, como ponto de desvelamento da verdade, e quando ela se desdobra na impossibilidade de seguir escutando? Por vezes, a urgência não passa de uma antecipação do próprio analista que conclui sem o tempo necessário para compreender. Outras, é justamente a angústia que aponta algo passível de ser escutado na transferência, tal como um corte em certos estados de gozo quase que silenciosos. Parece ser neste sutil limiar que andamos em nossas clínicas, em nosso trabalho diário, seja ele mais solitário, ou na companhia de uma equipe.

Além disso, ao entender a importância da angústia na direção do tratamento, não nos perguntamos somente acerca de sua presença, mas também dos efeitos de sua ausência. Se considerarmos a angústia um momento valioso, no sentido de que algo da verdade e da causa do desejo do sujeito ali se presentificam, poderíamos nos perguntar se a urgência maior não se estabeleceria quando os sinais de sua presença silenciam. Em outras palavras: a urgência mais radical poderia ser aquela quando não há mais sinais da presença da angústia. Nesse caso, o homem desafetado estaria ainda mais sozinho com seu mal-estar, sem sequer poder comunicá-lo. A ideia de a angústia ser o único correlato do objeto a, deste objeto que nos causa, parece nos levar a pensar que ainda que afete o sujeito, a angústia pode ser justamente o que possibilita saber algo do desejo, daquilo que move nossas vidas.

Situar a ética psicanalítica no plano da insistência no desejo e da relação deste com o outro nos leva a uma indagação que inclui o laço social. Lacan aponta que, de certo modo, a ciência e o discurso capitalista excluem o desejo por desconsiderarem a castração (Soler, 2012, p. 260). O engano colocado nesses discursos - diferentemente do engano necessário que constitui uma identidade ilusória para o advento do sujeito - está na própria promessa de que tudo pode ser visto, de que a verdade pode ser dita toda, negando o real da castração como o impossível, íntimo a todos nós. A nosso ver, um exemplo desse tipo de discurso pode ser observado no que aconteceu no início do ano de 2013, no estado de São Paulo, quando, em um acordo político, o Estado, a Justiça e alguns órgãos de saúde uniram forças em uma ação que chegou a ser chamada por muitos de "higienização social". Tais entidades pareceram abusar de sua autoridade impondo seu saber, incitando e privilegiando a internação como meio de abordagem daqueles usuários de drogas que julgavam correr risco de vida. Dentre uma série de questões então envolvidas, como a de quais os limites das responsabilidades e do saber de cada um dos sujeitos e serviços implicados, fica uma pergunta acerca de que tipo de escuta foi feita previamente a essas internações. Os sujeitos foram escutados? Se sim, como se desenrolaram essas escutas? Ao não colocar em questão o sujeito e o seu mal-estar por trás dos fenômenos - no caso, a dependência química - tais internações não se aproximariam à negação do sujeito enquanto desejante? "As toxicomanias", como fenômeno de nosso tempo, não seriam um sintoma social? Algo que escapa ao discurso totalitário e denuncia o mal-estar gerado por este? Por esse viés, pensando até mesmo para além da dependência química, quais as considerações possíveis a respeito da ética que adotamos no nosso dia-a-dia perante o mal-estar e a angústia?13

A ética proposta por Lacan fundamentalmente leva em conta a castração como condição inerente à estrutura, portanto, considera o caráter irredutível da falta. Guiados por essa ética, poderíamos dizer que uma política que se pretende humana, necessariamente, precisa escutar o sujeito desde sua divisão, pois o desejo é o humano por excelência. Sendo assim, desde a perspectiva de dar lugar à falta, perguntamo-nos o que poderíamos chamar verdadeiramente de políticas de humanização em um serviço de saúde. Em princípio, parece-nos que uma legítima política de humanização implicaria a inclusão do desejo, a possibilidade da distensão do tempo de compreender e da consideração do tempo enquanto lógico. Quer dizer, para que seja chamada de humana, a política não poderia desconsiderar a causa, ela precisaria ser capaz de conceber o sujeito como dividido; ela precisaria se retirar do lugar de absoluta, deixando em aberto um lugar para a falta - a falta em saber frequentemente encoberta. Interessante observar que uma tomada de posição - seja pela família, pelo Estado, pelo especialista, etc - que venha a ocupar o lugar de saber absoluto, parece, justamente, andar em consonância com um discurso, onde o mal-estar pode aparecer como angústia em seu caráter mortífero e não caráter motor.14

Ao olhar para as redes de saúde, de assistência e outras redes de apoio não formalizadas em nosso país, podemos perceber diferentes posicionamentos éticos. Por sorte, muitos fazem resistência a discursos totalitários como o hospitalocêntrico, o do saber total do especialista etc. Muitos, inclusive, já manifestam sua contrariedade e fazem resistência diante de políticas que tendem a silenciar os sujeitos. Apontam, por meio da palavra e da transferência, o fato de que o abuso da força e do saber, em lugar da palavra, ignora o sujeito e não sana a angústia e o mal-estar, apenas os desmentem. As frentes de resistência ao discurso totalitário, ao proporem a descentralização do saber, ao considerarem que há algo de singular do sujeito a ser escutado na angústia e no mal-estar, ao permitirem a dilatação do tempo para compreender, estão também restabelecendo um lugar para a falta amarrada ao simbólico. Lugar que permite a vida.

No momento em que estabelecemos uma crítica aos discursos totalitários, pensamos, então, quais os caminhos possíveis a serem trilhados pelas equipes de saúde diante do mal-estar. A pergunta acerca da ética diante da angústia e da urgência também nos leva a interrogar a eficácia da análise perante situações em que vislumbramos um risco de desfalecimento do sujeito e, portanto, um risco subjetivo. De pronto, perguntamos o que a análise é capaz diante do excesso de gozo, diante da angústia do sujeito caído da cena, logo caído da vida, situações muitas vezes classificadas como de urgência ou de risco. A hipótese lacaniana acerca da angústia é de que essa, enquanto correlato do objeto a, aparecerá para o sujeito como sinal de que a falta ameaça faltar, quer dizer, de que a falta em torno da qual se constitui o desejo pode vir a cessar.

Também é preciso dizer que o analista não está imune à angústia e com seu corpo também estará sensível ao gozo, que se mostra revelando o mal-estar de quem busca, na relação transferencial, algum alojamento. O mesmo vale para as equipes de profissionais que se encontram envolvidas em uma transferência. Elas também vivenciam a angústia, e com isso, muitas vezes, a urgência coloca-se do lado da equipe. Nesses casos, frequentemente, o vacilo ou a angústia do profissional são tomados como produções isoladas do indivíduo, ou ainda, como fracasso pessoal, negando tanto o que poderia ser efeito do próprio laço transferencial, quanto a potência que a angústia carrega enquanto sinal da presença da causa do sujeito. Em transferência, à sua vez ao considerar o lado motor da angústia, a ética analítica não foge do horror que ela gera; ao contrário, mostra-se comprometida com esse horror buscando denunciar a subordinação do sujeito ao gozo do Outro e propor alguma mudança nessa economia de gozo.

A psicanálise, ao considerar o inconsciente e o objeto a, compromete-se com a castração, ao contrário dos discursos científico e capitalista que desmentem a dimensão do impossível, rejeitando o caráter irredutível e causal da falta. Tais discursos, ao contrário do discurso psicanalítico, frequentemente andam em direção ao apagamento do desejo, deixando caminho aberto para o aparecimento da angústia como marca do mal-estar atual. Isso não quer dizer que outros discursos não gerem angústia, tampouco, que outras modalidades discursivas se mostrem totalmente inofensivas à emergência do sujeito do desejo. Talvez o que se vê agravado diante de discursos totalitários é o fato de que neles o sujeito encontra-se evidentemente solitário, pois, com seu mal-estar, não logra fazer grande coisa. A falta que deveria causar o desejo, ao ser excluída do plano dos significantes, através da plenitude de sentido, falta enquanto falta, restando angústia. Quando se propõe dizer A verdade, plenamente, o sofrimento é tomado com plenitude de sentido, sem que se possa deslizar nos sentidos, sem que haja operação significante. "Isso é depressão", "é fracasso", e outros tantos dizeres que são tomados como mandatos e que implicam a permanência em uma posição de submissão ao gozo do Outro. A solidão, da qual falamos aqui, corresponde à do louco, que é livre por não estar no laço, mas também é solitário e prisioneiro, pois ao permanecer preso em uma relação imaginária, plena de sentido, não logra chegar à saída - em outras palavras, não subjetiva a divisão do sujeito oriunda da falta. Aqui poderíamos voltar ao exemplo da intervenção onipotente do Estado de São Paulo e dos enunciados que já podemos vislumbrar num futuro próximo, quando as internações revelarem que não há dispositivo que, por si, dê conta da cura como algo conciliatório. Na lógica do saber absoluto, o fracasso do discurso é traduzido por "ninguém pode dizer que ele não teve ajuda". Nesse caso, ao invés do reconhecimento do desejo como inconsciente, o que resiste à simbolização tende a se significar como o fracasso do indivíduo. Nega-se aí o que se pode escutar de universal no sofrimento, em certos casos, nega-se o que o adoecimento pode dizer da forma como estamos inseridos no laço. Mais uma vez nos deparamos com o fato de que aquilo que se repete junto com o mal-estar pode ser tanto o que nos faz paralisar ou quanto o que nos permite seguir pensando.

Então voltemos a nos fazer nossas perguntas iniciais: como respondemos em situações em que o mal-estar convoca à urgência? De que urgências se tratam? Quando atuamos de forma a atenuar nossa própria urgência, deixando apagar-se ainda mais o sujeito ao qual escutamos? O que acontece quando, em busca de um saber total, o "furor diagnóstico" passa a ser uma forma de calar uma pergunta sobre o sujeito que corre o risco de permanecer reduzido a um signo, a uma doença?

Conforme acompanhamos o desenvolvimento teórico da psicanálise, através da produção de Freud e Lacan, percebemos que foi a partir do resto, do que não se inscreve, que ambos puderam pôr em questão o sujeito. Enquanto Freud (1900) apontou a importância dos restos significantes os quais chamou de formações do inconsciente, Lacan (1962-63) ocupou-se, sobretudo, do resto que justamente não entrava na ordem significante. Lacan ocupou-se especialmente do objeto a em sua posição não subjetivável e tratou de formalizar uma escrita para o objeto, uma forma de poder escrever o vazio, deslocando o entendimento da causa do sujeito para o objeto em falta. Ao insistir sobre as formações do inconsciente e a formalização do objeto a, Freud e Lacan propõem uma psicanálise que está disposta a ocupar-se com o resto e com o horror como algo íntimo e ligado à verdade do sujeito e, neste sentido, a angústia alcança estatuto de instrumento da análise a ser tomado como motor em direção à cura.

Diante disso, há algo muito importante a ser considerado: ao querer implicar o objeto a como objeto causa do sujeito, estamos falando de dar lugar a algo que não tem imagem. Assim, ao abordar este vazio que o real marca no campo da linguagem, estamos diante do desafio de poder pensar o impensável, aquilo que, alheio à representação, aparece apenas como horror, mas que Lacan (1962, 1963) inscreveu no discurso da psicanálise como objeto a, através da formulação e da inscrição simbólica de um lugar para a falta de representação. É a partir da inscrição do significante da falta, no campo do Outro, que o sujeito pode então amarrar seu desejo: "mediante o discurso analítico, o sujeito se manifesta em sua hiância, a saber, no que causa seu desejo" (Lacan, 1972-73, p. 19, tradução nossa).

A psicanálise busca, na potência clínica do objeto a, formas de dar contorno ao impossível tornando a insuficiência em saber a possibilidade de seguir desejando. Por ser um objeto que falta à imagem, o objeto a apresenta-se como uma forma de "contra-pensar". E, por ser a tradução subjetiva do objeto a, é que podemos aproximar a angústia do appensé (Lacan, 1975-76). Ao dar lugar à falta em saber na transferência, andamos também em direção a um convite, a uma espécie de "contra-pensar", marcamos o lugar do objeto que opera desclassificando, problematizando a lógica de conjuntos, desorganizando a contextura que inventamos para nos proteger do desejo. O trabalho do analista perante a angústia poderá ser o de buscar uma virada que vai do gozo solitário do sujeito em angústia a uma outra solidão - ou a outro vazio - que lhe permita criar. Quer dizer, o analista poderá ter como horizonte pôr em questão a falta, através da palavra e do restabelecimento do desejo enquanto formulação por parte do sujeito de uma pergunta sobre si. Buscará pôr em questão um vazio em dimensão de causa.15

Deste modo, para o sujeito em angústia, suspenso em seu desejo, o suporte que o analista dá pode ser aquele que habilita a passagem de um discurso vazio a um vazio, uma falta, que reintroduza um discurso que diga do desejo, dando outra saída para o horror. Essa passagem ou virada de uma palavra vazia a uma palavra plena implica, conforme vimos, apontar o gozo do Outro por meio de uma escuta que vá desde o enunciado até a enunciação - em outras palavras, desde o que se fala e o que vai para além da fala - com o intuito de dar contorno ao gozo do Outro de forma a torná-lo tolerável.

Ainda que a análise busque não deixar o sujeito suspenso em sua enunciação, não podemos prever o transbordamento do real ou a desarticulação simbólica. Ou seja, não é algo para o qual alguém se prepara e, pronto, passa a estar imune a qualquer vacilo ou angústia. Ainda que para determinado sujeito a castração simbólica esteja inscrita, isso não impede que, por vezes, o desenlace se dê deixando em descoberto aquilo que nos angustia. Os momentos de angústia em análise vão e vem e, conforme Lacan, o analista deve manejá-los de forma que esses colaborem com a cura. Isso implica que se esteja atento à angústia que, quando desmedida, em vez de servir de instrumento, pode paralisar o indivíduo. Isso nos leva a considerar que não deixar cair o desejo implica, antes de qualquer coisa, um compromisso ético com a vida, ao que Pipkin (2009) acrescenta:

Se bem o desejo do analista não é somente o de aspirar a uma máxima diferença, senão também desejo de vida, o limite de sua responsabilidade respeito a essa vida é sua ética. Ética que se joga em uma tensão entre liberdade e responsabilidade subjetiva, um frágil equilíbrio para esquivar a submissão ao Amo (Pipkin, 2009, p. 152, tradução nossa).

A análise é uma experiência pautada na reintrodução da morte na vida como forma de aposta pela vida. Supondo que se tenha percorrido o processo de destituição subjetiva pela via simbólica, em transferência, a vida a qual se espera ao final da análise é uma vida potente. Ainda que pareça uma ética da submissão (à castração e à morte), a ética psicanalítica é uma ética do descobrimento da solidão essencial devida ao caráter irredutível da falta, uma ética que propicia a emergência da resposta àquilo que nos sucede e, nesse sentido, envolve tanto liberdade, quanto responsabilidade por parte do sujeito.

Em nossa prática, observamos que, muitas vezes, os indivíduos parecem identificar-se às categorias nosográficas em uma tentativa de nomear seu sofrimento. No entanto, quando os diagnósticos são manuseados de forma a calar uma pergunta sobre o sujeito, o indivíduo corre o risco de permanecer reduzido a um signo, um objeto, um número que não é mais do que parte de uma estatística sob a qual os esforços vão em direção à busca de um saber total e o mais dessubjetivado possível. Nesse sentido, o discurso científico justamente trabalha de modo a tentar tamponar qualquer vazio em torno do qual se poderia criar, opondo-se à ética que aqui propomos.

Diante disso, quando o discurso vigente ameaça a subjetividade e a vida o que podemos enquanto analistas? Qual a nossa responsabilidade frente ao gozo que engendra a angústia? Ela vai mais além da consideração da angústia como afeto especial na direção da cura. Nossa responsabilidade vai em direção ao que o tempo lógico aponta: a de estar advertido do papel do analista como sendo o de testemunha da angústia provocada pelo horror - testemunha não passiva, pois sua presença é capaz de fazer lembrar o lugar terceiro que permite a passagem da urgência para a emergência do sujeito. Então, talvez possamos chegar a uma consideração que seja ética e, consequentemente, política: a responsabilidade do analista é a de emprestar sua presença através de seu olhar sem desviá-lo, emprestar sua escuta, e até mesmo, conforme apontou Lacan, em algum momento da transferência fazer semblant prestando-se como objeto de gozo. Trata-se de uma tarefa delicada e que nos toca no corpo, pois a angústia comunica um horror que pode afetar também nosso próprio íntimo. Essa comunicação da angústia pode nos levar, enquanto analistas, a cair em resistência, enredando-nos na dificuldade ou recusa em escutar aquilo está sendo dito ou mostrado na transferência. Mas lembremos, é Freud quem nos diz: se há resistência é porque, antes, há transferência. Isso implica pensar o vacilo, o não-saber, como parte do percurso. E essa é uma questão que precisa ser retomada e pensada nos serviços de acolhimento das diversas situações de sofrimento mental. O tempo do vacilo pode ser um tempo pelo qual se precisa passar na escuta para poder se reposicionar como analista ou equipe de saúde. Portanto, nossa ética, ao admitir o lugar da falta, também considera a distância sempre existente entre nós e o nosso ideal. Lembramos que a insuficiência também é o que causa e, neste sentido, a teoria, longe de ideal ou completa, também deve ser interrogada.

Dados os desafios que concernem ao lugar de analista, Lacan salientou que ocupar este lugar, emprestar o olhar e a escuta para não ceder em seu desejo, supõe que o analista possa abster-se ele próprio do gozo ao qual é convocado. Da mesma forma, o analista não é um cuidador, uma entidade, uma substância, e sim um Sujeito Suposto que, ao ocupar lugar de semblante de objeto a, desprende o desejo e põe em questão a causa. É o que podemos confirmar através do tempo lógico, onde Lacan claramente aponta que a eficácia do simbólico cura mais pelo que é, do que pelo que diz, pois trata-se de uma experiência estética. Trata-se da articulação da estrutura, mais do que dos sentidos das narrativas que se costuram e se descosturam ao longo de uma análise. A experiência analítica caminha em direção à cura, sobretudo pela regulação de gozo que permite e não tanto pelos sentidos que deixa ou não emergir. Trata-se de poder escavar alguma inscrição possível para o irrepresentável, de dar um lugar possível ao impensável, ao appensé (Lacan, 1975-76, p. 152).

 

VI. Considerações finais

Por fim, o percurso em torno da angústia, articulando-a ao tempo e à transferência, permite perceber que as questões que dele derivam se mostram intimamente interligadas à clínica e àquilo que se observa em relação aos discursos nos quais essa clínica é praticada. Sendo correlato do objeto a, a angústia está no cerne da relação do sujeito com o Outro, portanto, com aquilo que diz do desejo. Ademais, podemos dizer que a materialidade em si posta em jogo na transferência - materialidade dos corpos apontando a não-relação sexual, o caráter irredutível da falta - pode vir a ser suporte para o indivíduo em angústia aceder à experiência, sendo, inclusive, condição para que se possa atar a morte à vida e ao corpo e, assim, restabelecer o que há de mais humano, ou seja, o desejo.

A dificuldade de um percurso de análise, entre outros fatores, deve-se ao fato de que o objeto em questão nos falta à imagem. Trata-se de uma imagem que não existe, o que não significa que não nos pautemos por sua busca. Sua falta implica um compromisso e esforço de dizer esse impossível, e isso diferencia a psicanálise de outros discursos. O que se espera em uma experiência analítica é que se possa atravessar o horror para o qual a psicanálise não fecha os olhos e voltar à condição humana, sabendo que este retorno à vida implica subversivamente a inscrição de alguma marca da morte.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 28/07/2013
Aprovado para publicação em: 03/11/2013

Endereço para correspondência
Renata Reis Barros
E-mail: renatareisbarros@yahoo.com.br
Simone Zanon Moschen
E-mail: simonemoschen@gmail.com

 

 

*Psicóloga, especialista em Atendimento Clínico/UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil), mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil).
**Psicóloga, mestre em Educação/UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil), doutora em Educação/UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil), membro Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Porto Alegre-RS-Brasil), membro Rede de Pesquisa Escritas da Experiência, profa. associada/UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil).
1Suspensão da castração imaginária enquanto suspensão da imagem da falta para o sujeito, já que independentemente de sua organização, a estrutura em si será sempre marcada por um furo deixado pelo real na cadeia simbólica, logo sempre incompleta e impossível de ser preenchida.
2"A angústia causa aqui a repressão e, não como antes afirmávamos, a repressão causa a angústia." (Freud, 1925-26, p. 2846, tradução nossa).
3Essa elaboração freudiana será de extrema importância para o entendimento da falta enquanto irredutível e do conceito de das Ding enquanto tendência a buscar o objeto que na verdade não é perdido porque sequer fora possuído. A partir dessa busca pelo reencontro com tal objeto, Freud elaborará o que chamou pulsão de morte.
4"Este afeto tem uma inegável relação com a expectação: é angústia ante algo. Lhe é inerente um caráter de imprecisão e carência de objeto." (Freud, 1925-26, p. 2878, tradução nossa).
5"A angústia não nasce nunca da libido reprimida." (Freud, 1925-26, p. 2846, tradução nossa).
6A partir da concepção de divisão de sujeito, Lacan formulará uma distinção que dá conta da bipartição do sujeito entre moi-eu e je-eu. Nos Escritos, em nota de rodapé, encontramos uma definição: "moi-eu como construção imaginária, je-eu como posição simbólica do sujeito". (Lacan, 1949, p. 100, tradução nossa).
7Sugerimos ao leitor a leitura do texto lacaniano O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada (1945), pois aqui iremos nos deter no diálogo desse texto com o tema da angústia e urgência.
8Lacan, J. El Seminario 19: "... Ou pire". [Buenos Aires?: s.n.], [s.d.], p. 136 (tradução nossa).
9Outro, ou ainda, o grande Outro, ocupa um lugar importante na teoria desenvolvida por Lacan. Introduzimos uma citação que nos dá uma pequena ideia do que consiste o Outro: "lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que, anterior e exterior ao sujeito, não obstante o determina" (Chemama, 1995, p. 156).
10Consideramos rede as diversas relações, não necessariamente formais, que de alguma forma dão suporte ao sujeito.
11Ver nota 9.
12Este Um a mais se refere ao sujeito do desejo que emerge ao final do tempo lógico. A divisão do sujeito serve de testemunha da castração e, portanto, da falta inerente à estrutura.
13Aqui, nos referimos à ação conjunta entre a União, o Estado e a cidade de São Paulo, no ano de 2013 em prol da internação compulsória de usuários de drogas como parte do programa do governo federal "Crack, é possível vencer", lançado em 2011, nos termos do Art. 50-A do Decreto 7.179, de 20 de maio de 2010.
14Falamos, aqui, da castração como colocada desde sempre para o sujeito, no real do corpo pela porção de gozo perdido e no não-todo da cadeia simbólica.
15"Pensa-se contra um significante. Esse é o sentido que hei dado à palavra apensamento. Apoia-se contra um significante para pensar" (Lacan, 1975-76, p. 152, tradução nossa).

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