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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

On-line version ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.36 no.31 Rio de Jeneiro Dec. 2014

 

ARTIGOS

 

Aberturas Utópicas: pesquisa, arte e psicanálise

 

Utopian Openings: research, art and psychoanalysis

 

 

Ana Lúcia Mandelli de MarsillacI*

IUniversidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Texto para resumoEste texto apresenta a tese Aberturas Utópicas: singularidades da arte política nos anos 70, que resulta da pesquisa sobre as operações artísticas dos brasileiros Cildo Meireles e Paulo Bruscky e do coletivo catalão Grup de Treball, nos anos 70. Ancorado na psicanálise e na história, teoria e critica de arte contemporânea, debruça-se sobre os atos de criação desses artistas, sublinhando e entrecruzando as singularidades de suas poéticas. Em um tempo permeado pela violência e censura ditatorial, esses artistas tinham o ato criativo como estratégia critica e política de transformação. Revelam que as transformações do objeto de arte comportam, necessariamente, uma alteração nos seus objetivos e em sua dimensão utópica.

Palavras-chave: Arte, política, utopia, psicanálise, anos 70, ditadura.


ABSTRACT

This text presents the thesis: " Utopian openings: singularities of political art in the '70s", as the result of a research on the operations of Brazilian artists Cildo Meireles and Paul Bruscky and the Catalan collective, Grup de Treball, during the'70s. The research, which was grounded on psychoanalysis and history, theory and criticism of contemporary art, focuses on the acts of creation of those artists, underlining and crisscrossing the singularities of their poetical production. In times permeated by violence and dictatorial censorship, those artists had the creative act as a critical and political strategy of transformation. They reveal that the transformation of the art object, necessarily, involves a change in its objectives and its utopian dimension.

Keywords: Art, politics, utopia, psychoanalysis, the '70s, dictatorship.


 

 

Introdução

Lembrar-se, portanto, por amor ao passado e a seus sofrimentos esquecidos, decerto, mas igualmente, de maneira ainda mais perigosa, lembrar-se por amor ao presente e à sua necessária transformação. [...] Um paradoxo que se esclarece, se se compreende que o verdadeiro objeto da lembrança e da rememoração não é, simplesmente, a particularidade de um acontecimento, mas aquilo que, nele, é criação específica, promessa do inaudito, emergência do novo (GAGNEBIN, 1994, p. 121).

Este texto trata-se do relato de pesquisa de doutorado desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais - Ênfase: história, teoria e critica/UFRGS. Nessa pesquisa, ancorada na teoria e método da psicanálise, criados por Sigmund Freud e ampliados por Jacques Lacan, busquei abordar as condições singulares de enunciação de uma arte política e utópica, nos anos 70. Inspirada nas operações artísticas dos brasileiros Cildo Meireles, Paulo Bruscky e do coletivo de artistas espanhóis Grup de Treball, idealizei resgatar um passado que tem a força de questionar os rumos do presente. O recorte temporal dos anos 70 justifica-se por tratar-se de um momento crucial, tanto no campo das artes, quanto no contexto sócio-político-cultural. Tratou-se de sublinhar um tempo de abertura a inauditos desejos, posicionamentos e imagens, onde se vislumbrava rever a relação entre arte e vida, promover aprofundamento crítico e político do processo criativo, dar a ver que a arte tem a força de criar novas realidades.

"Aberturas utópicas" são entendidas como aberturas à construção de novas realidades, a partir de fendas simbólicas, no caso como efeito do ato criativo. Este ato pode, de forma singular, despertar novas metáforas, realizar cortes na cadeia infinita dos significados, lançando uma interpretação sobre o contexto histórico, abrindo diálogos com outros campos de saber. Além disso, vinculo estas "aberturas utópicas" ao chamado "Utopismo Iconoclasta", que não prevê imagens ideais. Se denomino "aberturas", é justamente porque estão em contraposição aos muros e fronteiras de um determinado campo ou tempo, no caso desta pesquisa, no que se refere ao campo das artes e aos contextos ditatoriais, nos anos 70.

"Singularidades da arte política nos anos 70" é o modo como me aproximo destas aberturas. Não há homogeneidade e sim registros singulares que dialogam em uma determinada época. Dialogam por seus ideais, por seus métodos, através das questões que seus contextos suscitam. A escolha destes artistas se justifica, na medida em que suas proposições são exemplares de uma época, em que se incrementa a crítica sobre o lugar da obra1 e a função da arte, deslocando premissas que constituíam tradicionalmente o ato criativo. Frente a contextos ditatoriais, posicionaram-se politicamente, revelando que a arte é um território de liberdades, onde não é possível ser cúmplice de um sistema opressor. Era preciso abrir brechas de liberdade, instigar o público a posicionar-se de forma crítica frente ao horror social. Estes artistas questionaram, de formas singulares, não apenas os regimes políticos, mas sobretudo a eternidade, originalidade e valoração da obra; o lugar da autoria e do posicionamento do "espectador"/público; bem como a uniformidade da linguagem, a pureza da técnica e os espaços institucionais da arte.

Suas obras têm forte conteúdo crítico tanto ao campo das artes, quanto ao contexto político e cultural, assim instituem estratégias utópicas de resistência e criação. Estes artistas recusaram-se a uma arte tradicional, criando novos meios de comunicação visual, uma estética que se aproximasse mais da vida cotidiana e da política. Produziram uma arte que tinha a força de criticar a hierarquia social, os valores dominantes e a ideologia de um tempo, os quais se relacionavam intimamente com a obra eternizada, pura, distante da vida comum, contemplada por poucos, fetiche, signo do poder.

Resgatar a força de enunciação utópica das produções artísticas de Cildo Meireles, Paulo Bruscky e do coletivo Grup de Treball, nos anos 70, período inicial da chamada arte contemporânea, foi um objetivo maior. Busquei, para tanto, colocar em diálogo as produções singulares destes artistas, que se aproximam pelo foco conceitual, político e utópico de suas poéticas. Imersos em realidades ditatoriais, têm o ato criativo como estratégia crítica e política.

Esses artistas questionaram a função social da arte, desenvolveram uma arte de crítica sobre o contexto sócio-cultural e de recusa a muitos princípios tradicionais da arte2, tal como a concepção da obra de arte enquanto objeto puro, a ser contemplado pelo espectador. Esta arte nos indica uma tendência de ampliação do campo no que se refere ao objeto artístico: ampliação do conceito de obra e da crítica sobre a função da arte. O ato criativo passa a ser uma operação, guiado por uma ideia e uma estratégia de ação, que tende a convocar aquele que vê, e, muitas vezes, participa, a inquietar-se com suas proposições. Suas obras apresentam-se nas mais diversas formas e não prevêem um espectador passivo. Seus ideais não se centram mais no estilo e na técnica, mas na reflexão crítica sobre o contexto histórico e sobre o posicionamento da arte frente a este contexto.

É justamente a postura crítica destes artistas que me moveu a refletir sobre a utopia que se vincula a esta arte. Conforme as análises do psicanalista Edson Sousa, é preciso pensar a utopia como interdição do presente, critica ao que se coloca como verdade universal. Arte utópica que se apresenta como não lugar, que coloca em cena o vazio, o mal-estar de um tempo, sem contudo prever um paraíso a alcançar, um lugar ideal. Seus atos de criação fazem fenda, corte no presente, revelando sua incompletude. Ideais que se constroem pela critica ao seu tempo, resgatando traços do passado.

[...] a utopia muito mais como interdição do presente do que como promessa de um paraíso perdido. A utopia tem a função de interromper o fluxo das lógicas instituídas e abrir o caminho para outros mundos possíveis. A utopia, assim como a arte, abre um espaço critico como cesura e interrupção, revelando os avessos das "verdades". A arte busca dar forma ao sem forma, dar expressão ao inexprimível (SOUSA, 2003, p. 45).

Em contraposição às utopias modernas, que mantinham um ideal projetado de futuro, manifesto no encadeamento estilístico; as poéticas conceituais contemporâneas apresentam um utopismo renovado, que não prevê imagens ideais. Abordo um utopismo iconoclasta que almeja a indissociabilidade entre obra, imagem e palavra. Ideais que se constroem pela negativa, pela recusa aos ícones, sejam eles vinculados à adoração das imagens ou de sistemas conceituais. Trata-se de um utopismo que mantém a esperança nos seus anseios de transformação social e tem neles um eixo norteador, já que, conforme nos orienta o filósofo Ernst Bloch, a esperança é, em última análise, um afeto prático, militante (2005, p. 114).

Anseios de transformação do objeto artístico, ideal utópico de liberdade, brechas, fendas, aberturas utópicas que permeiam suas obras. Nos anos 70, tanto no Brasil, quanto na Espanha, vivia-se sobre os ditames de regimes ditatoriais. Convivia-se com a violência, com o medo, censura, prisões, torturas, morte..., aumentavam as desigualdades sociais, a fome. Estes artistas, a partir de diferentes estratégias, posicionam-se frente a isso, não compactuam com esse sistema. Era preciso, frente à injunção promovida por esses regimes, posicionar-se politicamente. A arte precisava mostrar que seu território era livre, que sua produção não estava a serviço de uma minoria que podia pagar pelas obras, as quais se tornavam signo do status de uma classe. Os artistas rompem com a lógica demarcatória, tencionam lugares. A autoria passa a estar também no público, nas redes e circuitos; a obra se expande, questiona o fetiche do objeto; o ato criativo se faz pela experimentação de novas linguagens: tornava-se indispensável criar outras formas de visibilidade. Era imprescindível demarcar que a arte pode criar visibilidades e despertar transformações.

A partir do recorte metodológico de uma arte política nos anos 70, em meio a contextos ditatoriais, pesquisei a poética de muitos artistas, não apenas do cenário brasileiro. Idealizo enfatizar que não se tratou de uma questão específica desta realidade territorial, mas de estratégias criticas e políticas, que já vinham permeando o campo das artes, desde o início do século XX e que foram fortalecidas frente à falência do espírito moderno de progresso e instigadas frente aos contextos opressores. Entretanto, algum corte era necessário, pois também não se tratava de constituir um universal, mas de pontuar estratégias singulares e exemplares de um tempo. Escolhi, desta forma, os brasileiros Cildo Meireles e Paulo Bruscky, bem como o coletivo espanhol Grup de Treball.

Imediatamente, poder-se-ia questionar o porquê de um coletivo espanhol e dois artistas brasileiros? Justamente, para enfatizar que estes artistas também buscaram fazer redes, criar novos laços, construir coletivos, romper com a clausura imposta. Além disso, a escolha por estes artistas tornou possível analisar as singularidades no processo de criação e suas relações com o campo das artes. Em um contexto europeu, onde a história da arte se faz presente no cotidiano, através dos monumentos, da arquitetura e dos inúmeros museus, era preciso valer-se de estratégias formais diferentes, ainda que pautadas sobre ideais semelhantes. Utopias e estratégias antiformais, porque se propunham a demarcar sua recusa à arte excessivamente atrelada à forma. Os artistas brasileiros também guardam posicionamentos singulares, tanto no que se refere às estratégias criativas, quanto em relação ao sistema das artes. Enquanto Cildo Meireles já gozava de certo reconhecimento institucional; Paulo Bruscky posicionava-se à margem; ainda que ambos fizessem (e ainda fazem!) uma arte crítica com relação ao sistema.

O desejo do analista, segundo a teoria psicanalítica não se situa na busca de certezas e generalizações, mas nas singularidades possíveis em um determinado contexto histórico. Tratou-se de resgatar brechas utópicas, pontos de resistência ao que busca homogeneizar, apagar singularidades. É fundamental dar visibilidades a estratégias de criação, recuperando traços que tendem ser esquecidos.

Vivemos uma profunda confusão entre a ordem do singular e a ordem do individual. Estas categorias não podem ser confundidas. O singular produz um estilo, busca uma forma de narrar uma história, desenha uma memória possível e, portanto, constrói condições para que uma transmissão aconteça. Nessa direção esse singular é uma peça fundamental no que pode ser compartilhado. Por outro lado, o individual - reinado da fortaleza egóica em suas carapaças defensivas - sonha em poder prescindir desta herança compartilhada (SOUSA, 2002, p. 8).

Como bem analisa Edson Sousa, o singular é o que pode ser compartilhado com o outro, aquilo que faz laço social. Diferentemente da ordem do individual, o singular resgata o passado e busca transmitir, compartilhar essa história, já ressignificada pelo sujeito. Podemos pensá-lo como um traço constituído pelas memórias que restam das trocas cotidianas, pelo nome próprio, pela língua materna, pelo pertencimento a determinado território, que carrega consigo outras tantas singularidades. Mas a singularidade também é tropeço, no sentido da repetição, que nos parece dominar: insistência de uma lógica significante, sintoma. É também permeada de ideais, alguns dos quais nos apresentam imagens a alcançar; outros, que não prevêem ponto de chegada, apenas indicam uma direção.

Quando me refiro a singularidades, trago junto uma bagagem conceitual que me orienta a olhar para todos estes pontos. Sempre trata-se de uma perspectiva, de uma construção ficcional. Não nos é possível alcançar toda a realidade, ela é sempre recorte daquele que se dispõe a olhá-la e sentir-se interrogado por ela. Isso é a singularidade, um recorte de olhar, sustentado por lembranças, identificações e ideais. Ao nos aproximarmos desta singularidade, ela já nos escapa.

[...] em todas as áreas do conhecimento e da produção cultural, vive-se o esfacelamento dos parâmetros para a avaliação crítica, esta que não pode mais situar-se sob qualquer perspectiva universalizante; exige cada vez mais uma visão da alteridade, da contextualização e do relativismo, o que vem contrapor-se às tendências à homogeneização (ZIELINSKY, 2003, p. 10).

Conforme analisa a historiadora e crítica de arte Mônica Zielinsky, é necessária uma crítica que abandone um ideal universalizante e centre-se na perspectiva da contextualização e do relativismo. Assim, ao buscar a singularidade destes artistas, revelo que fui em busca de suas obras, suas produções plásticas, seus textos, suas falas; para, assim me aproximar de elementos que constituem seus atos de criação e seus ideais. Não se trata de uma psicopatologia do artista, mas de uma leitura psicanalítica das obras e dos atos de criação de determinadas singularidades artísticas. Psicanálise em extensão, segundo Jacques Lacan, é a prática psicanalítica que se lança "sobre os fenômenos que não são necessariamente os da clínica, mantendo com o saber-fazer clínico uma relação tensa de derivação e contigüidade" (SOUSA; ENDO, 2009, p. 79). É um recorte de olhar, que me faz destacar traços dos atos de criação destes artistas em determinados contextos. Procuro partir das obras e das falas dos artistas, já que são elas que indicam as condições de enunciação destes artistas. Obras e falas revelam seus contextos e as soluções poéticas que encontraram para transmitir ideias e instigar novos atos.

A construção desta tese buscou dar visibilidade aos atos de criação destes artistas, às condições de enunciação, que ganham destaque por suas especificidades, para então realizar conexões entre eles, detendo-me comparativamente em suas estratégias de expansão do objeto artístico e seus ideais utópicos. A organização do texto final da pesquisa contemplou, primeiramente, uma análise inicial sobre as sustentações teórico metodológicas, para então apresentar a trajetória destes artistas, dentro deste recorte dos anos 70, separadamente. Busquei destacar, ao máximo, suas trajetórias específicas, de forma que o leitor possa aproximar-se de suas poéticas, para que, em um a posteriori, seja possível aprofundar cruzamentos, até mesmo para além dos realizados nesta tese.

Certamente, ao construir a narrativa sobre os artistas, já há um suporte teórico que sustenta o olhar e a escrita, mas, cabe ao analista, colocar-se em segundo plano, colocar-se atrás, para que as singularidades, sobre as quais nos detemos, possam revelar sua força. Além disso, segundo a psicanálise é, em um segundo tempo, que simbolizamos o que vivenciamos; ainda que, paradoxalmente, seja a rede simbólica que sustente nosso olhar. Neste sentido, conduzo o leitor a me acompanhar neste percurso de investigação sobre contribuições singulares da arte política nos anos 70 e seus ideais utópicos.

 

Método

O método de pesquisa segue a lógica das redes, elas são uma metáfora sobre a própria operação artística, mas, também, dizem respeito aos campos de saberes e suas parcialidades. Assim, esta pesquisa constituiu-se como recorte da múltipla realidade, balizada por saberes e métodos que permitem olhar. Ao mesmo tempo, em um só gesto, iluminam e formam sombras, abrem e cerceiam caminhos, possibilitando tratar-se apenas de pequenos deslocamentos, precariedade que produz diferença.

Primeiramente, cabe destacar que o saber instaurado pela psicanálise não nos traz garantias, sequer posições confortáveis, revela a separação radical entre saber e verdade. A verdade inconsciente, que move o desejo e produz a singularidade, é inapreensível pelo saber consciente. Nesse sentido, é que o saber é sempre parcial e a verdade, enquanto essência, não existe. Toda verdade tem uma estrutura de ficção, consiste em uma montagem.

Fictitious não quer dizer ilusório, nem em si mesmo enganador. Está longe de poder ser traduzido por fictício [...] Fictitious quer dizer fictício, mas no sentido em que já articulei perante vocês que toda verdade tem uma estrutura de ficção (LACAN, 1997, p. 22).

Jacques Lacan, em seu seminário sobre: A ética da psicanálise, afirma que a realidade não é o oposto do ilusório, fictício. A realidade é ficcional. Se o objeto de um determinado campo de saber é alterado, necessariamente, em uma reação em cadeia, alteram-se os papéis e os espaços. Se o objeto se transforma, muda-se o discurso que busca dar conta de conferir sentidos a ele. O sujeito está imerso no simbólico que insiste em esburacar as imagens que não se cansa de dar sentido ao Real.

"É na relação de substituição que reside o recurso criador, a força criadora, a força de engendramento, caberia dizer da metáfora" (LACAN, 1999, p. 35).

O simbólico é ficcional, porque é múltiplo, realizando constantemente substituições dos significantes, criando sentidos sempre novos, aprimorando-os, complicando-os, pela via da metáfora. Já pela via da metonímia, realiza quebras, fragmentando a realidade, representando-a por estes traços, por estas ruínas. Conforme analisa Jacques Lacan (1999, p. 80) "[...] a metonímia é a estrutura fundamental em que se pode produzir esse algo novo e criativo que é a metáfora". O simbólico, com isso, constitui, a um só tempo, o singular e o coletivo, que estão intimamente imbricados pelos jogos da linguagem. Tratam-se de metáforas e metonímias que recortam a opacidade Real, buscando conferir significados a ele, mas de modo sempre parcial, singular. É justamente deste constante tropeço, que construímos nossas realidades, que as compartilhamos e também nos desentendemos. Esta é a verdade do sujeito a que se refere a psicanálise: ficção que não denota engano, porque ali está o singular. A psicanálise, com essa assertiva, desmonta o sujeito da certeza e traz novos contornos à ciência e à pesquisa.

A teoria e o decorrente método da psicanálise, desenvolvidos por Sigmund Freud e Jacques Lacan, partem da premissa da parcialidade dos saberes: ferramentas que nos permitem ver, e que, também, nos defendem da multiplicidade do mundo. A partir da prática da psicanálise, Freud descobre o inconsciente e aprofunda a ferida narcísica humana, destronando a consciência do centro da vida psíquica, revelando que nossos atos dizem mais e também menos do que nossa consciência percebe. O inconsciente se mostra nos sonhos, nos lapsos, nos sintomas, nos chistes, nos atos, nas fantasias que nos acompanham cotidianamente. Freud mostra nossa sobredeterminação a uma lógica orientada por condensações e deslocamentos. Lógica das redes que interliga traços do passado e ideais de futuro, sustentando nossas escolhas do presente.

As obras de arte, enquanto atos dos sujeitos, são linguagens que carregam consigo aspectos conscientes e inconscientes. A leitura das obras, sustentada pela teoria psicanalítica, revela a importância de ir em busca dos elementos significantes, que indicam as interlocuções instauradas pelo ato criativo, através de uma escuta/olhar flutuante. Condições de enunciação do objeto de arte, jogo significante, que revelam e velam seu contexto, instaurando novas realidades. Cada obra é como uma aranha que tira de si sua teia. É da obra que o analista deve partir, pois ela carrega consigo seu mundo, sua verdade, ainda que parcial e fragmentária. A obra de arte é um enigma.

A inquietude retira então do objeto toda a sua perfeição e toda a sua plenitude. A suspeita de algo que falta ser visto se impõe doravante no exercício de nosso olhar agora atento à dimensão literalmente privada, portanto, obscura, esvaziada, do objeto. É a suspeita de uma latência, que contradiz mais uma vez a segurança tautológica (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 118).

O filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman (2006), inspirado pela teoria psicanalítica, analisa que a obra de arte é densa, não se deixa captar totalmente pela linguagem. O que vemos não se reduz a uma verdade tautológica. O objeto e suas imagens suportam uma latência, uma temporalidade sobreposta, constelações com outras imagens. A obra de arte é obra do inconsciente, logo, suportada pela complexa rede de condensações e deslocamentos.

Partindo de um viés teórico da psicanálise e da história, teoria e critica de arte contemporânea; do recorte temporal dos anos 70, em meio a regimes ditatoriais no Brasil e na Espanha, e das singularidades artísticas: Cildo Meireles, Paulo Bruscky e o coletivo Grup de Treball, busquei centrar minha escuta e olhar flutuante. No espaço formado entre estes vetores, construí uma rede, que me fizeram olhar, me encantar e também me perder nas obras desses artistas. Desta parcialidade, percebo um tempo em transformação, mas também um tempo de violência; artistas que se sentiram convocados a responder a isso, enquanto intérpretes críticos e agentes de mudança. Eles tiveram a força de mostrar que a arte é um território de liberdades. Suas obras revelam utopias iconoclastas que recusam imagens ideais e ídolos a serem seguidos. Não se tratava mais de perseguir um estilo formal, mas de colocar a arte em re-conexão com a vida. Suas obras, ainda hoje, interrogam nossas estratégias políticas frente aos sistemas que tendem a se colocar como verdades totais.

Para que seja, minimamente, possível reconstruir esta trama que sustenta o ato criativo e possibilita a criação de um novum, tal como analisa Ernst Bloch (2005), é fundamental que se resgate as predisposições desta específica época. O ato criativo sempre suporta a dimensão do necessário, poderia falar em um determinismo conjectural. Forma que se impõe ao fazer. Necessidade de estrutura, diria a teoria psicanalítica, que organiza a rede dispersa dos elementos em jogo.

Quando, a partir da série de condições contingentes uma coisa se realiza, produz-se o efeito retroativo de lidarmos com uma necessidade [...], como se tal desenvolvimento estivesse prescrito desde o começo: a partir do resultado, suas condições se afiguram como que estabelecidas pelo próprio resultado (ZIZEK, 1991, p. 39).

O psicanalista esloveno Slavoj Zizek reflete sobre esta relação entre necessidade e contingência. Entende que a contingência é simbolizada sempre no só depois, na posteridade, inicialmente ela não está clara, é do Real do ato, por aquilo que ele institui em sua presença, em sua específica forma, que deduzimos suas condições de realização, ou melhor, que conferimos sentidos à contingência, enquanto necessidade. A obra nos informa sobre sua conjuntura, pois, ao ordenar elementos dispersos, nos possibilita vê-los. Neste sentido, a obra lê uma realidade e, ao mesmo tempo, institui uma nova. Ela tem a força de reconfigurar o espaço que já não é o mesmo depois de sua presença.

Assim, trabalho com o termo: "operações artísticas", que identificam melhor a arte produzida por esses artistas. O termo operação, na língua portuguesa, significa a ação de um, poder de um. Faculdade de um agente, que produz um efeito. Por operação artística, entendo a ação produzida pela singularidade do artista no campo das artes visuais, em determinado contexto histórico. Esta operação envolve uma trama complexa entre os princípios éticos do artista, suas buscas, levantamento de problemas, criação de estratégias de apresentação. Referir-se às operações artísticas, enfatiza o ato de realizar a obra, o processo de criação, onde a obra é um dos componentes a ser analisado, somando-se às reflexões sobre a singularidade do artista, a recepção e o contexto histórico. Seu resultado vai além da produção de objetos, podendo se constituir como uma ação efêmera: performance, happening ou instalação em um espaço público, não necessariamente, vinculado ao campo das artes, como galerias e museus.

A fim de restituir essas operações e seus contextos, busquei, para além das obras, as falas dos artistas. Estas foram extraídas de publicações já existentes, bem como de entrevistas realizadas com Cildo Meireles, Paulo Bruscky e com três dos artistas do Grup de Treball. No caso do coletivo espanhol, também foi possível resgatar documentos e textos originais dos artistas, presentes no acervo do Centro de Estudos e Documentação do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA).

É através da arte de Cildo Meireles, Paulo Bruscky e do coletivo Grup de Treball, produzida nos anos 70, que me aproximo deste tempo. Período que se pode conhecer pela história oficial, pela música, pela arte, pelo que se viveu ou pelo que se ouviu falar; entretanto é ao aproximar-me dele pelas obras, pelas falas dos artistas e da critica, que ele ganha novo contorno. Cildo, Bruscky e os artistas do Grup de Treball mostram a sensibilidade de uma época, angústias e anseios que permeavam suas vidas e a de muitos outros. É através das singularidades, que vou em busca desse tempo para construir um novo traço de história. Trata-se de resgatar estratégias de ação e contingências das formas.

 

Resultados

A interpretação não é um ato isolado, mas ocorre dentro de um campo de batalha homérico, em que uma legião de opções interpretativas entram em conflito de maneira explícita ou implícita (JAMESON, 1992, p. 14).

Na montagem da tese, busco, em um primeiro momento, trazer elementos metodológicos e teóricos, que indicam este suporte do olhar e da construção estrutural da pesquisa. Redes que sustentam e direcionam, que abrem caminhos, mas que, inevitavelmente, também restringem certos percursos. Como reflete o crítico Fredric Jameson, a interpretação que, neste caso, é leitura critica das obras, não é um ato isolado, mas um tenso campo de confronto entre diversas opções de leitura.

Com que instrumental construo este recorte? Abordo, inicialmente, o referencial da psicanálise, pois é ele que estrutura o método de pesquisa. É o encontro entre a teoria e a arte, que desperta meu interesse de pesquisa. Busco destacar os principais conceitos operatórios da psicanálise, com os quais trabalho: inconsciente, Real, simbólico, imaginário, ficcional, sintoma, ato, olhar, anacronismo, autoria, objeto... A partir destes significantes, percorro as contingências dos anos 70, buscando situar esse contexto, tanto no que se refere ao campo das artes, quanto às especificidades dos regimes ditatoriais. Analiso o que entendo por política e crítica. Resgato reflexões de historiadores, filósofos, sociólogos e críticos sobre este período dos anos 70, sublinhando algumas das poéticas que constroem certo esteio, de onde partem estes artistas. Além disso, pontuo as transformações na concepção de objeto e, consequentemente, dos objetivos que permearam estes tempos e suas aproximações utópicas, que pulsam para além do objeto.

Ingresso, então, na abordagem das contribuições singulares destes artistas. Primeiramente, através de Cildo Meireles, destacando algumas de suas obras dos anos 70, resgatando características que se destacam em sua poética. A arte política de Cildo nos mostra que ela não abdica da instantaneidade de captura, que é própria das artes visuais. Suas obras, de um modo geral, são elegantemente criticas, resgatando, a um só tempo, singularidades e questões universais.

Passamos então para a arte de Paulo Bruscky, pontuando o caráter experimental e o humor que tendem a marcar suas obras. A arte política de Bruscky é iconoclasta por excelência, levando ao extremo as rupturas com os padrões estabelecidos e a transgressão dos espaços instituídos. Sua arte está em trânsito, circula, abre novos espaços de exposição, mostrando-nos que é preciso estar aberto ao olhar, é necessário sentir-se questionado pela vida cotidiana, é fundamental não temer e enfrentar aquilo que oprime.

Em um terceiro momento, apresento a poética do coletivo catalão Grup de Treaball, da qual me aproximei através do doutorado sanduíche, na Universitatde Barcelona. Este coletivo teve um curto período de existência, de 1973 a 1975, momento final da ditadura na Espanha. Desta forma, a exposição de sua poética foi organizada cronologicamente, resgatando a construção e dissolução deste grupo. A arte política do Grup de Treball mostra-se extremamente engajada aos ideais marxistas de crítica à ideologia que mantém a obra fetiche. Suas obras nos revelam a força de um povo contra aquilo que tendia a homogeneizar e calar.

Cabe destacar, que nestes três capítulos centrais, onde analiso as poéticas de cada um destes artistas, aprofundo a discussão sobre a história, teoria e crítica da arte, que se relaciona a suas poéticas e incluo algumas questões teóricas pela via da psicanálise. Destaco elementos que são específicos de cada um deles, como por exemplo: no capítulo sobre Cildo Meireles analiso a dimensão da imagem e do enlace com o público, no capítulo sobre Paulo Bruscky, destaco a dimensão do humor e no capítulo sobre o Grup de Treball, foco a dimensão da ideologia. Certamente, cada um destes elementos permeiam as obras dos demais, mas ganham destaque nas poéticas específicas.

Aproximando-me de um final, organizo: conexões, onde procuro cruzar estas poéticas, destacando pontos de proximidade e diferenças entre elas. Além disso, é nesse capítulo final, que aprofundo a reflexão sobre a dimensão do objeto para psicanálise e suas relações com o discurso utópico. Primeiramente, reflito sobre as transformações do objeto da arte, tanto no que tange à obra, quanto ao que se refere aos objetivos da arte. Foi possível analisar que as transformações do objeto alteram posições, ampliam o campo das artes. Busquei, assim, refletir sobre a dimensão do objeto para a psicanálise e esta mudança de olhar, que se dá na transformação da ênfase do objeto fetiche, para o objeto em falta. Antecipo tratar-se do conceito de objeto a, que segundo Jacques Lacan, é objeto causa de desejo. Objeto que não se coloca como possível a suturar a falta, mas na sua condição de radicalidade faltosa, que lança o sujeito a novas buscas. É desta conexão, que emerge a análise sobre os ideais utópicos que sustentavam suas poéticas neste período. O ideal utópico iconoclasta é aquilo que pulsa através e para além do objeto a. Liberdade, falta inexorável que acena e move.

A questão da linguagem e seu conteúdo revolucionário, associado à dimensão política da arte são pontos cruciais nesta análise. Criar formas que gerem tensões e resgate das singularidades é uma estratégia de subversão e crítica ao que se institui de forma dominante e supostamente universal, já que "a falta de esperança é, ela mesma, tanto em termos temporais quanto em conteúdo, o mais intolerável, o absolutamente insuportável para as necessidades humanas" (BLOCH, 2005, p. 15).

As vinculações entre arte e política afirmam o poder da arte de transpor ao instituído e revelam a esperança de um novo tempo. Nas mais diversas obras de Cildo Meireles, Paulo Bruscky e do coletivo Grup de Treball vemos a esperança de um novo mundo, vemos a crítica à segregação social; à história dos dominantes, que se afirma como única verdade; às classificações que tendem a excluir e até mesmo a negar o que difere; bem como uma crítica ao automatismo que conduz nossas escolhas. Tanto no plano cultural, quanto no campo das artes estes movimentos são frequentes.

As rupturas contemporâneas com os princípios tradicionais, que cerceavam a liberdade e definiam o futuro, levam a crer em uma falsa autonomia do sujeito e de suas produções. Sem parâmetros históricos a se nortear, seja a favor ou contra eles e, diante da falência dos ideais utópicos coletivos, torna-se muito mais fácil colar-se aos discursos neoliberais que associam a liberdade de escolhas às possibilidades do ter. Destaco, assim, o grave sintoma social do individualismo3, que se mascara atrás de um discurso libertário, vinculado, entretanto, exclusivamente ao bem privado e não público. Liberdade de escolhas, de investimentos, porém escassez de esperanças frente aos valores coletivos. Quanto a isso, é frequente o discurso de que não há nada a ser feito, uma vez que independe da vontade individual. Ao resgatar estas poéticas, trago a esperança em um novo tempo.

Percebo que se há algo que aproxima as poéticas de Cildo Meireles, Paulo Bruscky e o coletivo de artistas do Grup de Treball é um certo ideal que está para além de suas produções. Poderia dizer que se trata de um desejo de liberdade, que busca romper tanto com a submissão à ditadura quanto com a inoperância das normativas do campo das artes que se afirmavam pelo estilo e pelo progresso. Suas poéticas tendem a colocar em ato, o Real terrível a que estavam submetidos: a violência, a morte, a angústia, o silêncio. Não se tratam de imagens ideais, mas de imagens que questionam. A liberdade, enquanto utopia iconoclasta, necessariamente é singular, não tem imagens exatas, é um anseio, que não ancora em lugar algum. A liberdade "apenas" move e este é seu maior valor: fomentar sujeitos desejantes. Não há imagens para ela pois, para o próprio sujeito, ela é um enigma. O que é a liberdade para cada um de nós? Ela é, a um só tempo, singular, logo construída em referência ao coletivo, e múltipla para um mesmo sujeito. Enquanto Real, é algo que está sempre movendo o sujeito a lhe conferir sentidos. Analiso que estamos sempre em meio às redes, que, se por um lado nos aprisionam, por outro, têm a força de nos mover em busca da liberdade.

A liberdade traz esse espírito de transgressão e critica às ideologias que se colocavam como verdades universais. É importante enfatizar, entretanto, que este ideal de liberdade, anunciado com toda sua força naqueles tempos, foi capturado pelo discurso capitalista que se transforma em liberalismo econômico e, atualmente, em neo-liberalismo. Liberdade de poder e aquisição. Certamente, não era este o ideal desses artistas. A liberdade que buscavam não tinha rosto, pois era tão múltipla quanto fossem aqueles que se dispusessem a buscá-la. Liberdade com ética, respeito pelo outro, pela história e pela singularidade.

Esses artistas vivenciaram o traumático da realidade com toda sua brutalidade. Se a realidade sempre traz consigo o Real que transborda nossa capacidade de simbolização, em uma época, quando a violência e a morte batiam, literalmente, à porta, isso se potencializava. Excesso simbólico, que submetia a todos e se tornava uma injunção ao ato, necessidade de deflagração de novas realidades.

A arte política de Cildo Meireles, Paulo Bruscky e do Grup de Treball tem a força de nos mostrar a "partilha do sensível"4, balizada por um mesmo campo e época. De forma singular, cada um dos artistas nos apresenta formas de fazer política, de dar a ver a sensibilidade de um tempo, que é sua; que toca no coletivo, porque foi gerada a partir dele. Esses artistas, ao sustentarem seus posicionamentos críticos frente aos regimes ditatoriais, dão a ver que não é possível calar-se frente a isso, frente ao que assujeita, ao que se impõe como verdade universal. O diferencial é que eles fazem a crítica contextual através da arte e em relação às suas normativas também. Eles se posicionam frente ao campo, questionam a função do artista frente à sociedade, sublinham a dimensão política do trabalho do artista.

Será possível observar que suas "partilhas do sensível" são extremamente singulares, ainda que referidos ao mesmo campo e norteados por questões similares. Poderia iniciar dizendo que, enquanto a arte política de Cildo Meireles preza pela elegância formal, a arte política de Paulo Bruscky vale-se do humor, da precariedade e a arte política do Grup de Treball é engajada, militante; ainda há muito mais por dizer. Suas obras, de um modo geral, resgatam a estética que suporta a política. Eles parecem nos perguntar: Como podemos dar forma ao que refletimos? Como podemos ser agentes de transformação?

A arte materializa uma interpretação sobre o que vem a ser este comum, sobre traços da cultura, a partir do recorte singular dos artistas. Paradoxalmente, estes atos constituem novas realidades. Formas que ensejam modos de sentir, que instigam e incluem o observador na reflexão e no estranhamento. Perceber a composição singular do encontro, a solução formal criada pelo artista e deixar-se afetar por ela, produz uma "subjetividade política"5. As ações que criam zonas de tensão e deslocam as certezas têm a força de gerar novas realidades e reposicionamentos. Este movimento é a base da produção de autoria e do necessário posicionamento frente ao que se vê e ao que se faz: esta é a raiz da política e da cidadania.

Cildo Meireles, Paulo Bruscky e o coletivo Grup de Treball conseguem reconhecer a história que os precede, apropriando-se destes elementos históricos de forma singular para, então, dar um passo a mais, ultrapassar. Produzem obras, que têm a força de despertar, pois trabalham sobre os vestígios, sobre restos culturais que são re-significados por seus atos. Não se tratam de formas perfeitas, mas de formas em transformação, em constante choque entre passado, presente e ideais de futuro. É exatamente neste sentido que são políticas, porque são criticas e induzem a novas formas, a novas reflexões. Suas obras, entretanto, não têm a pretensão do inédito, do genial, elas são impuras, efêmeras. Seus ideais estavam na produção de pequenos deslocamentos que tivessem a força de despertar.

 

Discussão

Acho que a arte se torna interessante quando ela traz um tipo de saber que pode ser partilhado, que pode ser continuado por outras pessoas, ou seja, ele é parte de um processo histórico que vai se ampliando e vai ampliando seu campo (MEIRELES apud VERAS, 2009).

Cildo Meireles analisa a importância de um saber partilhado, continuado e ampliado. É esta amarração com o saber do outro, com uma pré e pós-história, como diria Walter Benjamin (1994) o que possibilita a chamada ampliação do campo. A partir dos anos 1960, muitos são os artistas que incrementam suas críticas à tradicional concepção de objeto de arte. Ao transformar o objeto, transforma-se a recepção e as possibilidades de leitura das obras e, necessariamente, já se transformou o ato criativo.

Analiso que, para além desta transformação, também se verifica uma alteração da dimensão utópica que já se encontra na inspiração do artista, na base do ato criativo. Utopia que faz enlace, que acena àquele que se dispõe a olhar. Se o objeto já não se mostra mais como fetiche, imagem de progresso ideal e pura, altera-se a forma de enlace com a recepção. Com o incremento da crítica ao objeto de arte, a partir dos anos 60, transforma-se o objetivo da arte, o objeto alvo que acena para além do objeto obra. Esta, como é possível analisar, faz furo, revela o mal-estar, já não pretende mais ser objeto puro, nega o ideal de progresso em mão única. Se a arte, nos anos 70, amplia sua dimensão política, incrementando soluções formais, ocupando espaços anteriormente impensáveis, é porque já havia o suporte de uma consistente reflexão sobre a condição do objeto de arte. É em relação ao saber já conquistado pelo campo, aos seus princípios, ou até mesmo, em contraposição a alguns deles que os artistas desenvolvem sua arte.

Toda interrogação surge de uma tradição, de um domínio prático ou teórico da herança que está inscrita na estrutura mesma do campo, como um estado de coisas, dissimulado por sua própria evidência, que delimita o pensável e o impensável e abre o espaço das perguntas e respostas possíveis (BOURDIEU, 1996, p. 274).

Ao abordar a arte dos anos 70, é preciso pensar em uma herança que possibilita a partilha do sensível em seu presente e a faz vislumbrar aberturas possíveis. A partir dos anos 60, o debate no meio artístico debruçava-se fortemente sobre a problemática dos valores do campo da arte relacionada à crise de valores políticos. Era um tempo permeado pelo avanço imperialista (guerra do Vietnã, governos totalitários e ditatoriais) e por uma onda de protestos. Enquanto alguns artistas se preocupavam com a dimensão política de sua arte, outros entendiam que a arte não deveria preocupar-se com questões e problemas que não fossem intrínsecos a si mesma.

De um olhar permeado pela psicanálise, pelos enigmas do inconsciente, surge um encontro com a arte. Uma arte que se caracteriza pelo hibridismo e pela precariedade enquanto posicionamento crítico, político e utópico. A Arte contemporânea foi inaugurada por suas características conceituais, por debruçar-se sobre a concepção de arte e sua tensa relação com a vida. Artistas que, singularmente, expuseram e compartilharam uma relação revigorada e, especialmente, política para com a vida e para com a própria arte.

Se os ideais mudam, transformam-se os objetos, transformam-se as relações. Esses artistas, como foi possível analisar, têm a força de expor posicionamentos, exemplarmente, críticos aos seus contextos pela via da arte. Tratam-se de atitudes de resistência política e subjetiva ao que se impunha de forma, violentamente, homogeneizadora, de experimentações transgressoras às tradicionais regras do campo. Atos de criação que revelam seus processos, suas buscas em transmitir mensagens e inquietações, seus ideais de construção de coletivos. Artistas que possibilitam aberturas utópicas, através dos jogos com os signos e com os meios. Atos simbólicos que revelam sua força de transformação dos objetivos da arte.

Na seção final da tese, detenho-me sobre a concepção de objeto para a psicanálise e, em paralelo, com as conexões entre as obras desses artistas. Reflexões que, de modo indireto, já foram abordadas ao longo da tese, mas que, nesta parte, se tornam mais visíveis e aprofundadas. Busco analisar que a transformação dos objetivos da arte está intrinsecamente atrelada à transformação da concepção de objeto. Objetivos que se aproximam, na medida em que se revê a relação entre arte e vida, sublinhando que a arte é um território de liberdades e, desta forma, pode instigar uma postura crítica no social. Objetos que não prezam pela pureza da técnica, que se relacionam com outros saberes, que se mostram em falta. É, justamente a relação faltosa, incompleta de encontro com os objetos que direciona a criação, tal como enfatiza Lacan.

Se os anos '70 marcaram profundamente a história da arte, revelando a força de transformação instaurada pela arte contemporânea, é porque artistas como Cildo Meireles, Paulo Bruscky, o coletivo Grup de Treball, posicionaram-se criticamente e, até mesmo, arriscaram suas vidas em nome de um projeto maior. Suas obras, por mais ambientais, imateriais e precárias que sejam, têm o poder de expor que os objetivos foram alterados. A arte não estava mais preocupada com as questões exclusivas do seu campo, mas em enfatizar a dimensão sociopolítica de seus atos.

Esses artistas nos mostram a força da crítica, a necessidade de tomada de atitude. Expõem isso das mais variadas formas, rompem com os dogmas, fazem aberturas nas malhas da censura. Eles tinham inimigos declarados e sistemas sólidos, aos quais combatem, e isso torna mais claro seus desejos de subversão. Hoje em dia, ao contrário, parece que há um esfacelamento da dimensão crítica, como se tudo já pudesse estar dado e claro a todos. Quais são as estratégias de crítica na atualidade? Parece que esses artistas antecipam questões que estão na pauta dos discursos críticos da atualidade, tais como a dimensão coletiva, transversal e estética do ato político.

Em um tempo em que supostamente temos a liberdade almejada, não se torna premente buscá-la? Será que despertamos ou, pelo contrário, estamos mais adormecidos? Resgatar a poética desses artistas é uma tentativa de despertar. Sublinhar os descompassos entre o que se buscava nessa época e os desvios nos seus ideais. Nossos inimigos já não são tão claros, nossos desejos empobreceram-se na falta de ideais.

Cildo Meireles, ainda que preze pela captura provocada pela imagem, vale-se da sua precariedade: imagens e objetos do cotidiano que montam uma cena, que buscam construir redes, que levantam uma questão reflexiva. Paulo Bruscky rompe com o espaço instituído tradicionalmente para a arte, leva-a para a rua, convoca o outro a olhar e a estranhar o cotidiano. O coletivo Grup de Treball, ainda que extremamente ideológico e programático, construiu obras que negam os valores da arte tradicional e as imposições do Governo ditatorial.

Artistas que, de diferentes formas, podem ser considerados utopistas iconoclastas. Eles não criaram programas positivos, não sabiam a coisa certa a ser feita, mas sabiam exatamente contra o que deveriam lutar. Imaginaram outras realidades, outras possibilidades para a arte, nutrindo uma esperança utópica. Contestadores, desconstruíram imagens e ideais, revelando que a utopia precisa construir-se em oposição a algo, pois, sem um contexto claro ao qual se opor, os desejos utópicos parecem vagos. Sonhos utópicos, que surgiram das realidades políticas e lançaram-se à liberdade do futuro. Entendo que tornam claro que a utopia não requer apenas projetos, mas, fundamentalmente, com direcionamentos éticos.

É fundamental observar que construíram ideais utópicos de forma singular e, exatamente por isso, permeadas por um coletivo. Esta parece ser outra das grandes diferenças entre esse tempo e a atualidade. Havia um ideal coletivo, ainda que extremamente censurado, de liberdade. Expressão e união não poderiam ser presas, enclausuradas no silenciamento da violência. Havia um clamor coletivo, ainda que muitas vezes velado. Suas obras parecem dar visibilidade a isso. Suas obras buscaram construir coletivos que se aproximavam por suas idéias e por suas esperanças.

Olhem! Escutem! Leiam! Estranhem aquilo que parece uniforme! Estas parecem ser consignas embutidas em suas obras. É possível perceber que recusaram o status do Gênio criador, colocaram-se, muitas vezes, em segundo plano, a observar, a convidar à participação. Por se colocarem em falta, fizeram laços, poder do gueto, da crítica, que não teme a tomada de posição. Nem tudo era possível, aliás, viviam cotidianamente em meio ao medo da violência que os sufocava.

A liberdade almejada não se afirmava naquela época, como erroneamente hoje, se afirma, a um tudo pode. A leitura de suas obras nos mostra que não se tratava de experimentalismos sem direcionamentos éticos. Estes artistas tiveram e ainda têm, extrema coerência em seus atos. A liberdade como exercício experimental da arte parece significar uma multiplicidade de meios, multiplicidade de linguagens, que transmitam uma mensagem, que busquem compartilhar, fazer interlocução. A liberdade colocada em questão nesse despertar da arte contemporânea, era uma liberdade construída através dos traços do passado, de uma crítica ao presente para então acenar, em um mais além, um por vir. Suas obras nos mostram que por trás da precariedade, encontra-se uma diversidade simbólica que tem a força de despertar. Abrir os olhos para as diferenças, para as formas de dizer, para os modos de construir coletivos. Esta é a política com direcionamento utópico.

"A utopia morre no empobrecimento dos desejos" (JACOBY, 2007, p. 216).

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 28/01/2014
Aprovado para publicação em: 26/06/2014

Endereço para correspondência
Ana Lúcia Mandelli de Marsillac
E-mail: ana.marsillac@ufsc.br

 

 

*Psicóloga, psicanalista, mestre em Psicologia Social e Institucional/ UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil), doutora em Artes Visuais - História, Teoria e Critica/ UFRGS (Porto Alegre-RS-Brasil), p rofa. Departamento de Psicologia/ Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC (Florianópolis-SC-Brasil).
1Utilizarei a denominação: obra, para me referir aos produtos das operações artísticas, ainda que elas não tenham a conotação tradicional da obra de arte. No entanto, na medida em que são fruto do trabalho do artista, entendo-as como obras, por mais efêmeras, imateriais, precárias, ambientais,.. que sejam. Além disso, é necessário observar, que a apresentação da obra ao público não é um momento final. Esta ancoragem se faz necessária apenas no processo de construção lógica da análise, uma vez que parto do pressuposto que a recepção transforma a obra a cada leitura e interação que alguém estabelece com ela.
2Os princípios tradicionais da arte vinculam-se ao campo da arte em um determinado contexto histórico, constituem-se pelos agentes, técnicas e conceitos. Nesta pesquisa, refiro-me aos princípios tradicionais vinculados à arte moderna, em especial ao Modernismo (termo cunhado por um dos mais influentes críticos da arte moderna, Clement Greenberg, a fim de designar o ápice deste movimento), onde predominava o ideal da obra como objeto formal, puro e original, vinculada ao gênero da pintura ou escultura. O artista era pensado como gênio criador, vinculado a um determinado movimento dentro do campo das artes; o público, como aquele que contempla a obra e o crítico, a quem cabe teorizar a prática em sua especificidade.
3Dialogando com esta análise, cabe lembrar o tema da 27ª Bienal de São Paulo: Como Viver Junto, sob curadoria de Lisette Lagnado (7 de Outubro a 17 de Dezembro de 2006).
4Termo cunhado por Jacques Rancière (2005).
5Termo cunhado por Jacques Rancière (2005).

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